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Jorge André Swieca: Uma figura ímpar na física brasileira

(Jorge André Swieca: A unique character in Brazilian Physics)

Resumos

A presenta-se uma breve análise da obra de Jorge André Swieca, sob o ponto de vista da experiência do autor como seu aluno de mestrado e doutorado.

Palavras-chave:
física brasileira; teoria quântica de campos


A brief analysis of the work of Jorge André Swieca is presented, from the perspective of the author’s experience as his M.Sc. and Ph.D. student.

Keywords:
Brazilian physics; quantum field theory


1. Introdução

Iniciava-se o ano letivo de 1975 no Instituto de Física da UFRGS em Porto Alegre, meu último ano de bacharelado, quando eu, decidido a trabalhar na área de teoria quântica de campos (TQC), procurei o meu orientador de graduação para me aconselhar. Tratava-se de Pedro da Rocha Andrade, um físico brilhante em todos os aspectos, dono de uma profunda visão da física. Pedro havia sido o meu primeiro professor de mecânica quântica e durante os poucos anos que convivemos desenvolvemos uma grande amizade. Contei-lhe sobre a minha decisão e perguntei quais seriam as alternativas para uma pós-graduação em TQC no Brasil. A sua resposta foi categórica: “a única pessoa que você deve procurar para lhe orientar no Brasil é o André Swieca, da PUCRJ”.

Nas férias de julho daquele ano, munido de cartas de recomendação, fui para o Rio de Janeiro, aproveitando a oportunidade para visitar a minha namorada, que mais tarde se tornaria a minha esposa. Chegando ao Rio, dirigi-me à PUC, procurando pelo Prof. Swieca. Ao entrar em sua sala deparei-me com um homem esguio, sério, de olhos negros, olhar enetrante, poucas palavras e frequentes “hum... hum...” pontuando o que eu dizia. Iniciara-se ali uma relação que exerceria uma profunda influência em toda a minha vida profissional. Ficou então combinado que em março do ano seguinte eu ingressaria na PUC para iniciar o mestrado sob a sua orientação. Antes de sair Swieca prescreveu alguns textos de TQC, que comecei a estudar avidamente ao regressar a Porto Alegre: Mandl e Bjorken-Drell.

Ao longo de cinco anos de intensa interação tive a oportunidade de apreciar as raras qualidades de Swieca como físico, bem como a grandeza de sua obra. Esta é brilhante, apesar da curta duração de sua vida o que me traz, irresistivelmente, a imagem de um astro muito luminoso que passou pela física brasileira.

As contribuições de Swieca para a física subdividem-se em duas fases bem marcadas que, entretanto, possuem extensões que se superpõem por alguns anos. Num primeiro período, que foi aproximadamente de 1960 até 1970, ele revelou-se um dos grandes mestres da área da física conhecida como física matemática. Nesse período, demonstrou, de forma rigorosa, alguns teoremas fundamentais, não apenas em TQC, mas na física como um todo. Em uma segunda fase de sua carreira profissional, que durou de 1970 até a sua morte em 1980, Swieca foi o criador daquilo que hoje se conhece como “laboratórios teóricos”. Nessa etapa, ele usou a sua enorme maestria em TQC, aliada a um profunda visão física de todo e qualquer sistema que estivesse sob sua consideração, para criar modelos de TQC em uma dimensão espacial que apresentassem mecanismos e comportamentos similares aos encontrados no mundo real tridimensional. Dessa forma, ele contribuiu significativamente para a compreensão quantitativa de fenômenos que até hoje o modelo padrão para as interações fundamentais só descreve qualitativamente, tais como o confinamento de quarks e a sua hadronização. Essa capacidade de abordar um certo problema, aliando o rigor matemático a um tratamento profundamente físico era uma característica marcante de sua personalidade como físico.

Nas seções seguintes, as duas fases em que se subdivide a obra de Swieca serão analisadas com mais detalhe. Gostaria de enfatizar, entretanto, que esta despretensiosa análise está longe de ser exaustiva e de ter a profundidade que a sua obra merece. Na seção 4 me permito recordar mais de perto a interação profissional que eu tive com esse grande mestre da física brasileira.

2. Resultados rigorosos fundamentais

2.1 O teorema de Goldstone

Uma das peças fundamentais da obra de Swieca foi a demonstração rigorosa do chamado “teorema de Goldstone”. Este teorema está intimamente relacionado ao Modelo Padrão das interações fundamentais, mais especificamente com a teoria eletrofraca. Como se sabe, um ingrediente fundamental dessa teoria é a geração dinâmica de massa para os bósons vetoriais W’s e Z, que são os mediadores da interação fraca. Evidências experimentais mostravam que tais partículas deveriam ter uma massa bastante grande, devido ao curto alcance das interações fracas.

A simples colocação de um termo de massa na lagrangiana do modelo, quebrando assim explicitamente a simetria SU(2) × U(1), levava entretanto a graves inconsistências matemáticas, tais como a perda de unitariedade.

A ideia brilhante de Salam e Weinberg, de substituir a quebra explícita da simetria SU(2) × U(1) pela sua quebra espontânea, com a subsequente geração dinâmica de massa através do mecanismo de Anderson-Higgs, nos remete imediatamente ao teorema de Goldstone. Este é o precursor do mecanismo de Anderson-Higgs. Efetivamente, o teorema de Goldstone afirma que a quebra espontânea de uma simetria global contínua, tal como a SU(2) × U(1) implica necessariamente a existência partículas de massa nula no espectro de excitações, os bósons de Goldstone.

O mecanismo de Anderson-Higgs, introduzido inicialmente por Anderson no contexto da física da matéria condensada [1][1] P.W.Anderson, Phys. Rev. 130 (1963) 439., e depois por Higgs [2][2] P.W. Higgs, Phys. Rev. 145 (1966) 1156; R. Brout and F. Englert, Phys. Rev. Lett. 13 (1964) 321; G.S. Guralnik and C.R. Hagen, N. Cimento, A43 1; T.W.B. Kibble, Phys. Rev. 155 (1965) 1544. no âmbito da física de partículas elementares, consiste precisamente em contornar o teorema de Goldstone tornando local a simetria contínua relevante. Neste caso, e esta é a alma do mecanismo, os bósons vetoriais intermediários tornam-se massivos sem inconsistências matemáticas.

O chamado teorema de Goldstone havia sido conjeturado em 1962 [3][3] J. Goldstone and N. Cimento 19 (1961) 154; J. Goldstone, A. Salam and S. Weinberg, Phys. Rev. 127 (1962) 965., sem demonstração rigorosa, justificado apenas por argumentos semiclássicos. Swieca, juntamente com Kastler e Robinson, publicou em 1966 [4][4] D. Kastler, D.W. Robinson and J.A. Swieca, Comm. Math. Phys. 2 (1966) 108. a demonstração rigorosa do teorema, colocando assim em bases firmes um resultado fundamental para o modelo padrão das interações fundamentais. Para chegar a este resultado, Swieca e colaboradores utilizaram com maestria os métodos contidos na formulação algébrica da TQC, devida em boa parte a Haag.

O principal resultado é que sempre que o espectro de energia do hamiltoniano possuir um gap, separando o vácuo do primeiro estado excitado, as simetrias são implementáveis por operadores unitários que deixam o vácuo invariante e, portanto, não ocorre a quebra espontânea de tais simetrias. Consequentemente só haverá tal quebra espontânea na ausência de gap, ou seja, na presença de estados de massa zero. Este resultado é conhecido como teorema de Goldstone.

O assunto na verdade é bem atual. De fato, o famoso “bóson de Higgs”, necessário para a implementação do mecanismo que leva à geração de massa, não apenas dos mediadores da interação fraca mas também dos quarks e léptons, ou seja, de toda a massa no universo, foi observado experimentalmente em julho de 2012, independentemente pelas colaborações ATLAS e CMS, no novo acelerador LHC inaugurado no CERN em 2008.

2.2. O teorema de Swieca

No ano de 1975, quando passava uma temporada como visitante na New York University, Swieca obteve um outro teorema importante, também relacionado ao mecanismo de Anderson-Higgs. Tal teorema, por vezes conhecido como “teorema de Swieca” [5][5] J.A. Swieca, Phys. Rev. D13 (1976) 312., revela a existência de uma relação profunda entre a ocorrência de setores com carga não nula no espectro de estados assintóticos de uma TQC e o espectro de massa. Mais especificamente, mostra que a existência de estados carregados ocorre se e somente se a teoria possuir partículas de massa zero ediando a interação. O teorema foi demonstrado somente para o caso abeliano e vale para um espaço-tempo de dimensão maior do que dois. Aplicado à eletrodinâmica, por exemplo, o teorema mostra que o fato dos fótons não possuírem massaé, em última análise, o responsável pela existência de estados com carga na natureza! Em contrapartida, se devido a qualquer mecanismo, como por exemplo o de Anderson-Higgs, os mediadores da interação adquirirem massa, o sistema deixará de possuir estados com carga, mecanismo conhecido como “blindagem” da carga.

Um belíssimo exemplo de aplicação do teorema de Swieca é o fenômeno da supercondutividade. Em um supercondutor, o fóton efetivamente adquire uma massa não nula. Tal fato se manifesta experimentalmente através do efeito Meissner-Ochsenfeld, e foi descrito pela primeira vez pela teoria fenomenológica de London. A inexistência de estados carregados no espectro, exigida pelo teorema, aparece então através da própria natureza do estado supercondutor: toda a carga (pares de Cooper) está “condensada” no estado fundamental (vácuo) e não existem excitações carregadas. A fim de criar tais excitações, isto é, elétrons, devemos fornecer uma energia maior do que o gap supercondutor, destruindo assim a supercondutividade e, consequentemente, o efeito Meissner-Ochsenfeld.

A propósito, tal efeito nada mais é do que o próprio mecanismo de Anderson-Higgs atuando no caso específico do grupo U(1).

2.3. Invariância conforme

Uma outra parte importante da obra deixada por Swieca, na área da TQC associada ao uso de métodos rigorosos, consiste no estudo de representações da simetria conforme a nível quântico em TQC, feito em colaboração com Schroer e Völkel [6][6] J.A. Swieca and A.H. Völkel, Comm. Math. Phys. 29 319; B. Schroer and J.A. Swieca, Phys. Rev. D10 480; B. Schroer, J.A. Swieca and A.H. Völkel, Phys. Rev. D11 (1975) 1509.. Esses trabalhos foram precursores da celebrada determinação completa das representações irredutíveis do grupo de simetria conforme em duas dimensões, obtida no início dos anos 80 por Belavin, Polyakov e Zamolodchikov [7][7] A. Belavin, A. Polyakov and A.B. Zamolodchikov, Nucl. Phys.B241(1984) 333..

3. Laboratórios teóricos

3.1. A solução exata da eletrodinâmica quântica bidimensional

Uma fértil vertente da obra de Swieca consiste no estudo de modelos bidimensionais de TQC, que se tornaram laboratórios teóricos extremamente úteis para o estudo de diversos fenômenos descritos pelo Modelo Padrão, tais como o confinamento de quarks e a quebra da simetria quiral. Essa linha foi iniciada com aquele que talvez seja o seu trabalho mais importante: a solução operatorial exata da eletrodinâmica quântica de férmions de Dirac sem massa em duas dimensões (EDQ2; modelo de Schwinger), publicado em 1971, juntamente com Lowenstein [8]. O trabalho foi um marco na física teórica, constituindo até hoje um dos poucos exemplos de uma solução operatorial exata de uma teoria com interações.

O resultado foi obtido através da técnica conhecida como “bosonização”, que havia sido aplicada originalmente no contexto da física da matéria condensada por Luttinger e Tomonaga, para descrever sistemas eletrônicos fortemente interagentes, e subsequentemente foi generalizada para a TQC por Klaiber para obter a solução exata do modelo de Thirring.

A solução obtida para o modelo de Schwinger por Swieca e Lowenstein apresenta diversas características verdadeiramente notáveis. Imediatamente chama a atenção a semelhança das propriedades físicas da eletrodinâmica quântica em duas dimensões com aquelas exibidas pela QCD em quatro dimensões.

A primeira semelhança entre as duas teorias é o desaparecimento dos férmions e bósons de gauge do espectro de estados físicos do sistema. Como se sabe, na QCD, parte-se de uma lagrangiana descrevendo quarks e glúons, chegando-se (evidentemente de forma não exata!) a um espectro de excitações contendo exclusivamente hádrons, isto é, estados ligados dos graus de liberdade da lagrangiana. Esta é uma manifestação do famoso confinamento dos quarks.

Na solução exata da EDQ2, também os férmions de Dirac e os fótons, originalmente presentes na lagrangiana, desaparecem completamente do espectro de excitações físicas. De fato, Swieca e Lowenstein mostraram de forma exata que a única excitação física da teoria é um bóson escalar massivo neutro! Toda a carga e quiralidade estão condensadas no vácuo.

A estrutura do vácuo da EDQ2, a propósito, é outro ponto de grande semelhança com a QCD. Em 1976, Callan, Dashen e Gross, e independentemente Jackiw e Rebbi, mostraram que, devido à não trivialidade topológica do mapeamento entre o espaço de coordenadas e o espaço interno de parâmetros do grupo de simetria da QCD, isto é, SU(3), o vácuo da teoria deveria ter uma estrutura não trivial manifestada em um contínuo de estados fundamentais indexados por um parâmetro θ = [0, 2π]: os famosos vácuos |θ⟩. Um valor de θ ≠ 0 implica a existência de um momento de dipolo elétrico para o nêutron, que não foi observado, levando à conclusão de que, por alguma razão, o universo se encontra em um estado fundamental com θ = 0. Uma explicação para isto está contida no chamado mecanismo de Peccei-Quinn.

A estrutura de vácuos da QCD é exatamente igual à da EDQ2, como revelara a solução de Swieca e Lowenstein já em 1971! O resultado foi obtido no âmbito da solução operatorial exata e estava fortemente relacionado com a mencionada condensação de carga e quiralidade, que produziam no vácuo uma estrutura não trivial. Logo se verificou que o fenômeno também podia ser explicado sob o ponto de vista topológico, a exemplo da QCD, já que o mapeamento do espaço de coordenadas em uma dimensão no espaço interno do grupo de simetria da EDQ2, isto é, U(1), apresenta a mesma não trivialidade, ou seja, classes de homotopia, que a QCD em quatro dimensões.

O trabalho de Swieca e Lowenstein na EDQ2 permitiu que propriedades fundamentais da QCD, claramente uma das teorias mais importantes da física, pudessem ser detalhadamente entendidas em seus princípios, em um modelo totalmente controlável. O confinamento de quarks, em particular, perdeu a sua aura de mistério e nebulosidade, em vista da cristalina evidência de sua ocorrência em um modelo solúvel (na verdade, há uma diferença técnica entre “confinamento” e “blindagem”. Nesse sentido a EDQ2 de férmions sem massa apresentaria “blindagem”, enquanto a versão de férmions massivos apresentaria “confinamento”, estritamente falando).

Mais tarde, ao longo da década de 70, Swieca, juntamente com Belvedere, Kurak, Rothe e Schroer, analisaram versões não abelianas do modelo de Schwinger, levando a análise das semelhanças com a QCD a um nível de grande detalhe.

É curioso notar que, ainda nos anos 70, a ideia do confinamento fazia com que alguns fossem céticos quanto à verdadeira existência dos quarks. Isto se dava apesar do fato de que os quarks haviam sido observados experimentalmente no SLAC, no final dos anos 60, exatamente da mesma forma que o núcleo atômico fora observado experimentalmente por Rutherford, aproximadamente meio século antes. De forma caricatural, costuma-se dizer então que físicos de Matéria Condensada não acreditavam em quarks enquanto seus colegas de Partículas não acreditavam em fônons...Como toda a caricatura, esta contém um fundo de verdade! Felizmente, nos dias de hoje estas barreiras que criavam compartimentos estanques na física praticamente não existem mais. Tanto físicos de Partículas como de Matéria Condensada compartilham uma visão unificada da física, que é proporcionada, em boa parte, pelo uso da TQC.

3.2. Matrizes-S exatas: O programa “bootstrap”

Um outro ramo importante da obra de Swieca na área de “laboratórios teóricos” foi a obtenção, em colaboração com Köberle e Kurak, de matrizes-S exatas de modelos de TQC bidimensionais [10][10] R. Köberle and J.A. Swieca, Phys. Lett. B86 (1979) 209; R.Köberle, V. Kurak and J.A. Swieca, Phys. Rev. D20 (1979) 897., concretizando assim o programa “bootstrap”, que havia sido proposto nos anos 60 como uma alternativa à TQC para a descrição das interações fortes. Foi uma bela contribuição, que preencheu uma lacuna da física teórica.

A teoria de perturbação na eletrodinâmica quântica, desenvolvida por Feynman, Schwinger, Dyson e outros havia tido um sucesso estrondoso na década de 50, levando suas previsões ao melhor acordo com a experiência jamais obtido por qualquer modelo teórico proposto pelo ser humano até hoje. A tentativa de utilizar o mesmo método da TQC para a descrição das interações fortes, entretanto, esbarrou na existência de uma constante de acoplamento grande, que inviabilizava o uso de teoria de perturbação. Pensou-se então em abandonar a TQC como método para encontrar a matriz-S de um sistema de partículas. A ideia subjacente era que seria possível a determinação direta da matriz-S, somente devido às restrições impostas pela simetria. Esse programa, conhecido como “bootstrap”, jamais foi concluído em quatro dimensões. Poucos anos depois, a descoberta do fenômeno da liberdade assintótica nos experimentos de espalhamento profundamente inelástico no SLAC e a sua subsequente descrição teórica por Gross, Wilczek e Politzer usando a QCD, resgataram de forma brilhante e dramática o uso da teoria de perturbação no contexto das interações fortes.

4. Minha experiência profissional com Swieca

4.1. Carga topológica fracionária?

Logo ao começar o mestrado em março de 1976, Swieca deu-me para ler o primeiro artigo (de minha vida!): uma “letter” de duas (!) páginas de Belavin, Polyakov, Schwartz e Tyupkin [12][12] A. Belavin, A. Polyakov, A. Schwartz, Y. Tyupkin, Phys. Lett. B59 (1975) 85., contendo a famosa solução para a teoria de Yang-Mills euclidiana, com carga topológica igual a um, que é conhecida como “instanton”. Foi difícil digerir, mas valeu a pena...

Swieca estava em sintonia com o que se fazia de mais avançado na área naquele momento. Havia, em particular, o interesse de saber se o confinamento em QCD poderia ser descrito por uma expansão semiclássica em torno de configurações do tipo instanton com carga topológica fracionária. Para isto tais configurações deveriam ter ação euclidiana finita, pois caso contrário a sua contribuição seria nula. Este foi exatamente o tema de pesquisa proposto por Swieca para o meu mestrado: “encontre configurações de campo tipo instanton com ação finita e carga topológica fracionária ou prove que elas não existem”.

Obter configurações com carga topológica fracionária foi relativamente fácil, mas a ação finita... Após inúmeras tentativas infrutíferas de obtenção da tal configuração com ação finita a tese já se encaminhava para uma mera descrição dessas tentativas. Foi quando ocorreu o seguinte fato. Ao final da aula de um certo curso que não despertava muito o meu interesse, subitamente tive a ideia de usar um Ansatz geral para uma configuração de campo com carga topológica fracionária. Corri para os meus papéis... Inserindo o tal Ansatz na ação, obtive algumas relações entre os seus diferentes termos, que indicavam que, se um termo fosse finito, outro necessariamente divergiria. Imediatamente telefonei para Swieca, que se encontrava em casa, convalescendo de uma cirurgia: “hum...hum,... hum hum...usando a desigualdade de Schwartz...” Era o elo que faltava! Demonstramos um teorema geral provando que uma carga topológica fracionária leva necessariamente a uma ação infinita [13][13] E.C. Marino and J.A. Swieca, Nucl. Phys.B141 (1978) 135.. Foi o meu primeiro trabalho com Swieca, que me rendeu o Mestrado em Física em 1978.

4.2. Anyons: Cargas × fluxos magnéticos

Na época em que comecei o doutorado, Swieca, juntamente com Köberle e Kurak haviam recentemente obtido a matriz S exata para certos modelos com simetria Z(N) que exibiam em seu espectro excitações com estatística generalizada, isto é, nem fermiônicas e nem bosônicas [10][10] R. Köberle and J.A. Swieca, Phys. Lett. B86 (1979) 209; R.Köberle, V. Kurak and J.A. Swieca, Phys. Rev. D20 (1979) 897.. Em outro contexto, em colaboração com Schroer, Swieca havia estudado a estatística generalizada de excitações quânticas [11][11] B. Schroer and J.A. Swieca, Nucl. Phys. B121 (1977) 505..

Surgia imediatamente o interesse em estudar as propriedades de uma TQC em que os campos básicos possuíssem estatística generalizada. Em uma formulação para férmions via integração funcional usavam-se variáveis de Grassmann. Como se poderia formular a quantização de campos com estatística generalizada através da integração funcional? Este foi o tema proposto por Swieca para o meu doutorado em 1978, bem antes que as partículas com estatística generalizada se tornassem famosas com o nome de anyons...

Swieca mais uma vez mostrou a profunda sintonia que tinha com as mudanças de rumo na fronteira da física. Afinado com as últimas tendências de superposição entre a TQC e a mecânica estatística (ME), recomendou-me que estudasse um trabalho clássico de Kadanoff e Ceva, onde esses autores introduzem um método para o cálculo defunções de correlação de variáveis de desordem em modelos de ME, relacionadas aos parâmetros de ordem por uma relação de dualidade [14][14] L.P. Kadanoff and H. Ceva, Phys. Rev. B3 (1971) 3918..

Generalizando os métodos de Kadanoff e Ceva para teorias de campo no contínuo, obtive uma formulação via integração funcional que era válida tanto para férmions como para partículas com uma estatística generalizad qualquer [15][15] E.C. Marino and J.A. Swieca, Nucl. Phys. B170 (FS1) (1980) 175.. Esta foi a minha tese de doutorado, defendida em agosto de 1980. Nesta formulação, as partículas com estatística generalizada podiam ser nterpretadas como estados ligados de cargas e fluxos magnéticos de valor arbitrário em duas dimensões espaciais [15][15] E.C. Marino and J.A. Swieca, Nucl. Phys. B170 (FS1) (1980) 175..

Este fato foi redescoberto mais tarde por Wilczek [16][16] F. Wilczek, Phys. Rev. Lett. 49 (1982) 957. em um contexto mais geral, e as partículas com estatística generalizada passaram a ser chamadas de “anyons”. Este autor, apesar de citar o trabalho de Kadanoff e Ceva [14][14] L.P. Kadanoff and H. Ceva, Phys. Rev. B3 (1971) 3918. jamais citou o nosso trabalho [13][13] E.C. Marino and J.A. Swieca, Nucl. Phys.B141 (1978) 135., embora ele contenha uma grande parte dos resultados apresentados em [16][16] F. Wilczek, Phys. Rev. Lett. 49 (1982) 957....

Excitações com estatística generalizada (ou anyons!) tem desde então desempenhado um papel central dentro da física teórica, em particular nas aplicações da TQC à Física da Matéria Condensada. No efeito Hall quântico fracionário, em particular, a solução proposta por Laughlin [17][17] R.B. Laughlin, Phys. Rev. Lett. 50 (1983) 1395; Phys. Rev. B23 (1981) 5632. previa a existência de excitações tipo anyon com carga fracionária. Tais excitações foram observadas experimentalmente no final dos anos 90 [18][18] R. de Picciotto et al., Nature 389 (1997) 162.. Logo depois o prêmio Nobel foi conferido a Laughlin. Muito recentemente, os anyons têm desempenhado também um papel importante no contexto da computação quântica.

Swieca evidenciou aqui uma outra qualidade que o caracterizava: o apurado instinto para perceber o potencial de um determinado tema de pesquisa para vir a desempenhar um papel importante na física.

4.3. A quantização de excitações topológicas

Logo após terminar meu doutorado em agosto de 1980, comecei, por sugestão de Swieca, a estudar o problema da quantização das excitações topológicas (sólitons) de uma TQC. A dificuldade do problema consistia no fato de que os operadores associados a tais excitações não aparecem na lagrangiana. Como consequência de meu trabalho de doutorado, entretanto, seguia-se que o operador de criação de sólitons deveria comportar-se como uma variável de desordem [20][20] E.C.Marino, in:Proceedings of the NATO Advanced Summer School on Applications of Field Theory Methods in Condensed Matter, edited by D. Baeriswyl, A.Bishop and J.Carmelo (Plenum, New York, 1990); E.C. Marino, Nucl.Phys.B217, 413 (1983; E.C. Marino, Nucl. Phys. B230 (FS10), 149 (1984); E.C. Marino, Phys. Rev. D38, 3194 (1988);E.C.Marino and J.E.Stephany Ruiz, Phys. Rev. D39, 3690 (1989); K. Furuya and E.C. Marino, Phys. Rev. D41, 727(1990); E.C. Marino, Int. J. Mod. Phys. A10, 4311 (1995); E.C. Marino, Phys. Rev. B61, 1588 (2000); E.C. Marino G.C.Marques, R.O.Ramos and J.E.Stephany Ruiz, Phys. Rev. D45, 3690 (1992); E.C. Marino, Ann. of Phys. 224, 225(1993); E.C. Marino, Phys. Rev. D53, 1001 (1996) ; E.C. Marino, J. of Phys. A39, L277 (2006)., satisfazendo uma álgebra dual com a variável de ordem, em geral o próprio campo básico da teoria. Exceto em alguns poucos casos, o único método de quantização de sólitons conhecido então era o método semiclássico, baseado em uma expansão em torno da solução clássica das equações campo.

Mais uma vez, generalizando então métodos da ME, obtivemos, através da formulação via integrais funcionais de Feynman, uma expressão para as funções de correlação de excitações topológicas, que era caracterizada pelo acoplamento do campo fundamental da teoria com um determinado campo “eletromagnético” externo peculiar, concentrado em uma curva arbitrária no espaço bidimensional [19][19] E.C. Marino, B.Schroer, J.A. Swieca, Nucl. Phys. B200 (FS4) (1982) 473.. A localidade das funções de correlação de sólitons era então garantida pela invariância frente a um conjunto restrito de transformações de gauge que deslocava de forma arbitrária a curva mencionada acima [19][19] E.C. Marino, B.Schroer, J.A. Swieca, Nucl. Phys. B200 (FS4) (1982) 473.. O resultado era atraente do ponto de vista calculacional já que o cálculo de funções de correlação de sólitons reduzia-se ao cálculo do funcional do vácuo da teoria em presença do referido campo externo, um procedimento padrão em TQC.

Desde 1979, Swieca havia se transferido para São Carlos, convidando-me para ir juntamente com ele para aquela cidade. Tendo aceitado o convite, encontrava-me em São Carlos quando desenvolvi, sob a orientação de Swieca, os princípios do método de quantização de excitações topológicas. No segundo semestre de 1980, tendo ido ao Rio de Janeiro, Swieca encontrou com Bert Schroer e comentou sobre o nosso resultado. Este sugeriu, então acoplar o “campo externo” a um sistema fermiônico, estendendo assim o método para excitações topológicas em tais teorias. Este foi o último trabalho de Swieca. Bert e eu publicamos o trabalho já após a sua morte [19][19] E.C. Marino, B.Schroer, J.A. Swieca, Nucl. Phys. B200 (FS4) (1982) 473..

Este método de quantização de excitações topológicas produziu muitos frutos ao ser generalizado para a quantização de excitações tais como vórtices e monopolos magnéticos de diversos sistemas em duas, três e quatro dimensões, tanto abelianos como não abelianos [20][20] E.C.Marino, in:Proceedings of the NATO Advanced Summer School on Applications of Field Theory Methods in Condensed Matter, edited by D. Baeriswyl, A.Bishop and J.Carmelo (Plenum, New York, 1990); E.C. Marino, Nucl.Phys.B217, 413 (1983; E.C. Marino, Nucl. Phys. B230 (FS10), 149 (1984); E.C. Marino, Phys. Rev. D38, 3194 (1988);E.C.Marino and J.E.Stephany Ruiz, Phys. Rev. D39, 3690 (1989); K. Furuya and E.C. Marino, Phys. Rev. D41, 727(1990); E.C. Marino, Int. J. Mod. Phys. A10, 4311 (1995); E.C. Marino, Phys. Rev. B61, 1588 (2000); E.C. Marino G.C.Marques, R.O.Ramos and J.E.Stephany Ruiz, Phys. Rev. D45, 3690 (1992); E.C. Marino, Ann. of Phys. 224, 225(1993); E.C. Marino, Phys. Rev. D53, 1001 (1996) ; E.C. Marino, J. of Phys. A39, L277 (2006).. Nosso método, em particular, foi utilizado amplamente em QCD, no estudo do confinamento de quarks, descrito em termos da condensação de monopolos magnéticos [21][21] D’Elia et al., Phys. Rev. D74 (2006) 114510; L. del Debbio, A. di Giacomo and B. Lucini, Nucl. Phys. B594 (2001) 287; J.Carmona, A. di Giacomo and B. Lucini, Phys. Lett. B485 (2000) 126; A. di Giacomo et al., Phys. Rev. D61 (2000)034503..

5. Conclusão

Durante os anos de convivência com Swieca pude apreciar as virtudes que fizeram dele uma figura ímpar na física brasileira. Ele possuía a rara qualidade de poder combinar uma abordagem matematicamente rigorosa da TQC com uma visão profundamente física. Como um malabarista da física ele saltava por entre os rigores da formulação axiomática da teoria para fornecer em instantes um cenário surpreendentemente claro e inteligível para alguém que não fosse versado naquelas artes. Inúmeras vezes eu entrava em sua sala confuso e saía, em pouco tempo, com uma visão clara e sobretudo física do problema. A sua dedicação à física era impressionante. Às vezes parecia não haver para ele outro mundo senão aquele desta ciência!

Guardo excelentes recordações do tempo em que morávamos em São Carlos e frequentemente aos sábados à noite íamos juntamente com Roland Köberle comer churrasco. Nessas ocasiões, com a condescendência de nossas esposas, o tema da conversa era invariavelmente o mesmo: física! Foi muito o que aprendi naquelas ocasiões, muitas vezes em guardanapos de papel...

A morte prematura de Swieca foi uma enorme perda para a física brasileira, mas a grandeza da sua obra é uma fonte permanente de inspiração para as gerações que o sucederam.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2015
  • Aceito
    07 Abr 2015
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