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O Planejamento Familiar na Organização Mundial da Saúde

Em seus trinta anos de existência, a Organização Mundial de Saúde tem-se defrontado com problemas de difícil solução, menos por seus aspectos técnico-científicos, que por sua eventual conotação política. Nenhum, porém, terá despertado tanta controvérsia, crítica e, até mesmo, tensões internas, quanto a delicada questão levantada por alguns países durante a V Assembléia Mundial de Saúde (Genebra, maio de 1952)11. Official Records of the World Heallh Organization - n° 42, Fifth World Health Assembly, Geneva, 5 to 22 May 1953, páginas 90, 98-9, 111, 131-2, 230-42., referente ao controle demográfico. Ante a iminência, naquela ocasião, de uma crise que, felizmente não chegou a ocorrer, as Assembléias anuais subseqüentes, até iniciar-se a década de 1960, preferiram manter a OMS cingida a uma política de facto, que consistia em considerar o problema do crescimento populacional e, por via de conseqüência, o denominado “planejamento familiar”, como questões da área sócio-econômica, devendo ficar fora do domínio da medicina e da saúde pública.

Os debates que, daí em diante passaram a se realizar sobre a matéria, vêm geralmente carregados de tons emocionais, teorias acadêmicas e considerações de ordem ética, de mistura com doutrinas religiosas, ou políticas. Infelizmente ainda predominam atitudes extremas, radicais, que levam à popularização política, ou ideológica, com alguns atribuindo à “explosão demográfica” todos os males do mundo, enquanto outros se recusam a considerá-la como problema, reagindo contra qualquer forma de intervenção do Estado nesse campo. No centro ficam todos aqueles que, embora se com os efeitos perturbadores do acelerado crescimento populacional sobre o desenvolvimento nacional, têm consciência de que as ações aqui e ali deliberadamente empreendidas pelo Estado com vistas ao controle da fertilidade de suas populações, são de reduzida eficácia. A experiência internacional vem, aliás, demonstrando que a solução da questão repousa, antes de tudo, na melhoria das condições de vida, com melhor distribuição da renda, elevação dos níveis de educação, respeito aos direitos do indivíduo (particularmente aos da mulher) e, principalmente, numa vigorosa atuação do Estado em prol da saúde individual e coletiva.

A qualquer momento o Ministério da Saúde deverá divulgar as Normas que irão orientar as ações de “planejamento familiar” do programa de Saúde Materno-Infantil aprovado pelo Conselho de Desenvolvimento Social, em julho de1977, para ser desenvolvido no País a partir deste ano. Estarão aquelas ações voltadas, para a prevenção da gravidez de alto risco. Trata-se de uma abertura cautelosa que em nada diverge da posição que a OMS foi levada a adotar a partir de 1964. Mister será, por conseguinte, fazer um breve retrospecto do modo pelo qual o problema evoluiu no seio daquela organização, valendo referir que o Brasil esteve presente em todas as Assembléias Mundiais de Saúde, havendo participado das decisões que vieram, por fim, definir o papel dessa agência internacional sobre a delicada questão.

Embora a OMS, já em 1952, tivesse podido acumular convincente evidência sobre a estreita relação existente entre o grau de crescimento populacional e o desenvolvimento nacional, os debates da V Assembléia Mundial da Saúde se realizaram em atmosfera de grande emoção, havendo alguns países1 1 Irlanda, Bélgica, Itália, Espanha, Portugal... ameaçado se afastar da OMS se a mesma adotasse uma “posição prematura” sobre a questão. Ante a ameaça daqueles e, talvez, de outros de se retirarem da OMS, a Assembléia sabiamente decidiu adiar a discussão para outra oportunidade, propondo que a matéria fosse -examinada, em seus diversos aspectos, pela Conferência Mundial da População, já convocada pela Organização das Nações Unidas para o ano de 1954.

Nos anos subseqüentes muitas transformações ocorreram devido à presença, no plano internacional, de um grande número de países que, havendo-se libertado do jugo colonial e adquirido independência, vieram incorporar-se à ONU e às agências especializadas, como a OMS. A atuação dessas novas nações, todas elas engajadas na formulação de planos de desenvolvimento nacional, veio acentuar a necessidade d dar solução a sérios problemas como saúde, habitação, emprego, nutrição, educação, etc., etc., a se agravarem, entre elas, de maneira dramática em virtude do rápido crescimento de suas populações. Vale referir que o problema de relacionamento entre aumento de população e desenvolvimento econômico, bem identificado pela OMS, mas por ela colocado em 1952 em “fogo brando”, passou, a partir dessa época, a ser enfaticamente postulado na Ásia. Tendo sido naquele Continente que planejadores, economistas, demógrafos, sociólogos e profissionais de saúde, conseguiram dar os primeiros impulsos à formulação e ao estabelecimento de políticas demográficas nacionais, bem como à execução de programas voltados para a limitação da fertilidade. Países como a Índia, o Paquistão e o Ceilão, sem terem que enfrentar ideologias políticas, ou doutrinas religiosas, foram os primeiros a solicitar e obter assistência internacional, de diversas fontes, para a execução de programas nacionais de “planejamento familiar”. A esses países vieram se juntar outros da África e da América Latina, muito embora, entre estes últimos, muitos sofressem pressões de toda ordem contrárias a quaisquer iniciativas que viessem à redução do ritmo de crescimento populacional.

Só a partir de 1965, isto é, decorrida mais de uma década, é que a OMS passou a receber, de suas Assembléias anuais, mandatos cada vez mais precisos sobre como poderia oferecer assistência técnica aos Países-Membros no campo de “planejamento familiar”. De fato, a Resolução WHA 18.49 da Décima Oitava Assembléia Mundial de Saúde22. Handbook of Resolutions and Decisions of the World Health Assembly and the Executive Board. ao mesmo tempo que declarou “não ser de responsabilidade da OMS tanto o endosso, quanto a promoção de qualquer política populacional”, autorizou-a a “oferecer-lhes assistência técnica sobre os aspectos de saúde da reprodução humana, não devendo, porém, envolver-se em atividades operacionais”. Esta posição conservadora foi modificada logo no ano seguinte pela Décima Nona Assembléia Mundial de Saúde, ao aprovar a Resolução WHA 19.4333. Idem estabelecendo que o “papel da OMS consiste em oferecer assistência técnica, quando solicitada, para o desenvolvimento daquelas atividades de planejamento familiar que façam parte dos serviços organizados de saúde, sem prejuízo para a execução de suas normais ações de caráter preventivo e curativo”. Resoluções subseqüentes tornaram ainda mais explícito o papel da OMS, ao enfatizar a necessidade de os Países-Membros intensificarem o desenvolvimento de serviços básicos de saúde, neles integrando as atividades de planejamento familiar. Em 1971, o então Diretor Geral da OMS, Dr. Marcolino Gomes Candau, ao referir-se ao mandato recebido daquelas Assembléias, buscou esclarecer que:

“uma adequada infraestrutura de serviços básicos de saúde é condição essencial para que as atividades de proteção e recuperação da saúde possam incluir o planejamento familiar. Não é da responsabilidade da OMS endossar ou promover qualquer política especial de população, porém a incorporação do planejamento familiar aos sistemas de saúde servirá para evitar que os mesmos se fragmentem e dará às suas atividades a continuidade de que não desfrutariam se medidas naquele terreno fossem levadas a efeito através de programas específicos, unilaterais”.

Em 1970 a OMS foi, por fim, autorizada a criar, em sua estrutura central, uma Divisão de Saúde da Família, compreendendo áreas como Reprodução Humana, Nutrição e Saúde Materno-Infantil. Colocou-se assim, em posição de assistir os Países-Membros na matéria e, também, de orientar a ajuda internacional que, nesse campo, já havia sendo concedida, não só pelo Banco Mundial, o Fundo das Nações Unidas para Atividades de População, o Fundo Internacional de Socorro à Infância, a FAO e a Organização Internacional do Trabalho, como também por alguns países mais desenvolvidos. Estará, assim, em condições de influir para que tal ajuda se ajuste à posição que havia assumido, contrária ao desenvolvimento de atividades de planejamento familiar fora do âmbito dos serviços nacionais, ou locais de saúde.

No presente momento a OMS está recomendando às administrações de Saúde, quanto à prestação dos denominados cuidados primários, que busquem estender a toda população o “critério de risco”, originalmente utilizado para determinar apenas “risco gestacional”. Embora tais ações se concentrem sobre o normalmente numeroso grupo materno-infantil, a estratégia preconizada pela OMS volta-se, portanto e antes de tudo, para a coletividade em seu conjunto e para a família, como sua menor unidade social. O denominado “planejamento familiar”, ou melhor, a “orientação para a concepção” passa, por conseguinte, a ser especificamente dirigida para a “família de alto risco” - assim considerada por seu baixo nível sócio-econômico e educacional - e, especialmente, para os membros mais vulneráveis da mesma, isto é, para as mulheres em idade fértil e as crianças. Constitui-se desta forma, em mais um dos instrumentos da luta contra a mortalidade materna e infantil, incorporando-se definitivamente às ações de cobertura de saúde que devem ser normal e rotineiramente executadas pelo setor público.

Nos últimos anos a OMS vem realizando um grande esforço no sentido de coordenar um vasto programa internacional de pesquisas, não só sobre métodos de regulação da fecundidade que sejam inócuos, eficazes, aceitáveis e baratos mas, também, sobre como orientar as autoridades dos Países-Membros a res­ peito da melhor maneira de os colocar ao alcance das respectivas populações. Esse programa é realizado com a colaboração de 64 Países-Membros, cobrindo disciplinas como a Obstetrícia e a Ginecologia, a Andrologia, a Endocrinologia, a Farmacologia, a Toxicologia, a Embriologia, a Bioquímica, a Imunologia, a Sociologia da Saúde, a Epidemiologia, etc... Na verdade, já há que pensar em termos das próximas décadas, senão do século XXI. Se olharmos para os recentes avanços científicos a partir do apare­ cimento da pílula, veremos que os conhecimentos sobre métodos anticoncepcionais crescem aceleradamente, embora a metodologia para a sua aplicação continue a apresentar muitas limitações. O número da “Crônica da OMS” de maio de 1977 dá extensa conta do assunto em artigo que mereceria ampla divulgação, dada a enorme ignorância que há sobre a matéria. Tal artigo mostra que não há um método de regulação da fecundidade, mas uma série de métodos; que os efeitos secundários dos diversos métodos variam afetando as pessoas que os utilizam; que certos métodos são contra-indicados para determinadas pessoas; que as tradições e os fatores sócio-culturais exercem grande influência sobre a escolha do método e, finalmente, que pode-se prever o aparecimento dos novos métodos como, por exemplo, a vacina anticoncepcional, ou a pílula para o homem.

O fato é que começa a haver consenso sobre determinados aspectos do problema. Reconhece-se por exemplo, que o crescimento demasiadamente rápido da população perturba a qualidade do desenvolvimento sócio-econômico, porém, também, se sabe que a imposição de medidas voltadas, especificamente, para o controle da fertilidade, mesmo quando aparentemente imperativas para certos países, não trazem imediato declínio das taxas de crescimento populacional. Daí a indicação de providências que visem a cuidar, dentro do processo de desenvolvimento nacional, do problema demográfico segundo o grau de complexidade com que o mesmo se apresente. Indispensável será, no entanto, que isso se faça com base numa Política de Saúde e, também, numa Política Demográfica. A ausência de uma, ou de outra, representa grave omissão, já que devem estar indissoluvelmente vinculadas ao desenvolvimento equilibrado da Política Social de todo Estado moderno.

Referências Bibliográficas

  • 1
    Official Records of the World Heallh Organization - n° 42, Fifth World Health Assembly, Geneva, 5 to 22 May 1953, páginas 90, 98-9, 111, 131-2, 230-42.
  • 2
    Handbook of Resolutions and Decisions of the World Health Assembly and the Executive Board.
  • 3
    Idem
  • 1
    Irlanda, Bélgica, Itália, Espanha, Portugal...

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1978
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