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AVALIANDO A AVALIAÇÃO

“Após o exercício de escrita ia-se “estudar a lição.” O “estudo” era gritado, berrado. Cantava-se a lição o mais alto que se podia, numa toada enfadonha. Um enferno daquela barulheira. Trinta, quarenta, cinquenta meninos gritando coisas diferentes, cada qual esforçando-se em berrar mais alto. E quando, já cansados, íamos diminuindo a voz, o professor reclamava energicamente, de sua cadeira: -Estudem! Aquela mesma coisa, semanas inteiras, meses inteiros.” 1 1 Corroa, V. "Cazuza". São Paulo, Ed. Nacional, 1974, pg.33.

A avaliação escolar ao longo do tempo tem tido um caráter de cobrança e punição.

Olhamos a avaliação de modo cada vez mais estreito e padronizado, não vendo cada sujeito da avaliação como singular. O sucesso e o fracasso, em termos de aprendizagem, são uma perigosa invenção da escola.

O professor ao dizer que uma resposta está completa ou incompleta, correta ou não, revela o próprio entendimento do assunto, a profundidade com que o domina, a leitura que ele faz do que está escrito. As respostas que lê são confrontadas com suas posturas e concepções teóricas.

Muitas vezes, por estar centrado em suas próprias ideias, não percebe que o que o aluno está expressando é totalmente diferente do seu pensamento. Portanto, o educador é sempre comprometido com o ato avaliativo.

CONTEXTUALIZANDO A NOSSA PRÁTICA DE AVALIAÇÃO

O atual exercício da avaliação escolar não está sendo efetuado gratuitamente. Está a serviço de uma pedagogia, que nada mais é do que visão teórica da educação, que por sua vez, traduz uma concepção teórica da sociedade. O que poderá estar ocorrendo é que, hoje, se esteja exercitando a atual prática da avaliação da aprendizagem escolar ingênua e inconscientemente, como se ela não estivesse a serviço de um modelo teórico da sociedade e da educação. Como se ela fosse uma atividade neutra. Postura esta que indica uma distorção no entendimento e na compreensão da prática social.

O modelo liberal conservador da sociedade produziu três pedagogias:

  • Pedagogia tradicional - centrada no intelecto, na transmissão do conteúdo e na pessoa do mestre;

  • Pedagogia renovada - centrada nos sentimentos e diferenças individuais.

  • Pedagogia tecnicista - centrada nos meios, nas técnicas de transmissão e apreensão dos conteúdos.

Os elementos das três pedagogias acima citadas pretendem garantir a estrutura social. A educação toma-se então, um modo de traduzir-se o modelo social e garantir a sua continuidade.

A equalização social só pode ser alcançada a partir de um modelo social que permita a todos o acesso ao saber e a permanência na escola. Esta é a função dialética da escola: ao mesmo tempo que reproduz a estrutura social, é capaz de instrumentalizar o homem para transformá-la.

Sabemos que professor e alunos interagem em níveis de relações humanas. Toda relação humana supõe comunicação, diálogo. À medida que o diálogo é aberto, franco, a distância é diminuída, o relacionamento interpessoal é facilitado, trazendo como consequência a melhoria da aprendizagem.

Limitar o estudo à dimensão cognitiva é fragmentá-lo. As três dimensões - psicomotora, afetiva, cognitiva - não se excluem, antes coexistem em todos os momentos.

O pressuposto básico dessa interação é a presença do professor, o diálogo que poderá estabelecer. Sua maturidade emocional, seu autoconceito, sua aceitação é que vão tornar possível uma relação sem defesas, barreiras ou inseguranças.

A base deste relacionamento está no tripé autenticidade do professor; sua competência profissional e aceitação da pessoa do aluno, corno ele é, merecedor de todo respeito e consideração.

Caberá ao professor encorajar a participação do aluno, sua iniciativa e responsabilidade. Ele tem função incentivadora e organizadora, ajudando o aluno na construção do conheci­mento e na aquisição de atitudes e habilidades.

Faz-se necessário que tenha:

  1. apreço pelo aprendiz, por seus sentimentos e opiniões, como ser humano imperfeito, dotado de sentimento e potencialidades;

  2. autenticidade, ser uma pessoa real, capaz de apresentar-se tal como é, de entrar em relação com o aluno sem ostentar uma determinada aparência, mas colocar-se como uma pessoa inteira, viva, com sentimentos e convicções.

  3. compreensão empática, sentir com o outro, "calçar suas sandálias", compreender sem julgar.

Como o homem não é apenas cognição, mas afeto, sentimento, e possuidor de destrezas ou habilidades, há que se privilegiar as avaliações afetivas e psicomotoras.

Afetivamente, o aluno do curso médico será avaliado na sua relação com o paciente e seus familiares, além de suas posturas éticas. Serão observadas também a pontualidade, a assiduidade, a responsabilidade, a boa educação, o asseio e a ordem pessoal, além do trato cordial com os colegas.

Quanto às destrezas, devem estar claramente referidas nos objetivos dos programas: fazer uma sutura, passar uma sonda nasogástrica, imobilizar uma criança, etc.

As pedagogias preocupadas com a mudança social, com a participação democrática de todos, buscarão autonomia e a reciprocidade das relações. Neste modelo a prática de avaliação deverá deixar de ser autoritária para se tornar um mecanismo de diagnóstico da situação, tendo em vista o crescimento e não a estagnação.

Observamos que a avaliação da aprendizagem, definida como uma das dimensões do papel do professor, transformou-se numa verdadeira "arma", um instrumento de controle que tudo pode. Através do uso exacerbado do poder o professor mantém o silêncio, a "disciplina" dos alunos, a presença às aulas...

O ERRO CONSTRUTIVO OU ERRAR É HUMANO!

Na visão de Piaget, aprender não consiste em incorporar informações já constituídas e, sim, em redescobri-las e reinventá-las através da própria atividade do sujeito.

As respostas das crianças e dos jovens oferecem imensas possibilidades de análise em termos de visões diferenciadas às do adulto sobre fenômenos que estão sendo estudados.

A postura do professor frente às alternativas de soluções construídas pelo aluno deveria estar necessariamente comprometida com a concepção de erro "construtivo". O que significa considerar que o conhecimento produzido pelo educando, num dado momento de sua experiência de vida é um conhecimento em processo de superação. É próprio de um dado instante. A criança, o jovem, aprimoram sua forma de pensar o mundo à medida em que se deparam com novas situações, novos desafios, formulam e reformulam suas hipóteses. O conhecimento é sempre dinâmico.

O que pretendemos introduzir neste texto é a perspectiva de avaliação como um dos modos pelo qual se encoraja a reorganização do saber, onde professor e aluno buscam a reciprocidade intelectual, coordenar seus pontos de vista, trocar ideias e reorganizá-las.

Em suma, o erro é bastante significativo para auxiliar a compreensão do processo avaliativo, como construção e não como punição.

Com base nessa concepção de construção de conhecimento do sujeito como tentativa permanente de superação, abertura infinita a novas possibilidades de compreensão, percebe-se a importância da escola corno problematizadora e favorecedora de obstáculos que provoquem o surgimento dos desequilíbrios como precursores de novas tentativas, ensaios e erros, na tentativa de superação a tais obstáculos. A medida em que os alunos estiverem expostos a uma exploração mais rica e ampla do seu meio, bem como sofram provocações, desafios de natureza intelectual sobre os fenômenos, maior abertura ocorrerá com novas possibilidades de entendimento.

Partindo dessas afirmações, podemos retirar três importantes princípios para a avalia­ção educacional:

Princípio de provisoriedade dos juízos estabelecidos sobre o educando;

As considerações emitidas sobre determinadas respostas, reações e tarefas podem vir a serem negadas ou repensadas pelos alunos num outro momento.

Princípio de completariedade na análise das respostas construídas pelo aluno;

Toda resposta do aluno relaciona-se à alguma seqüência de raciocínio, é um processo acumulativo, e é indício de uma nova compreensão. Então a avaliação visa mais o processo de aprendizagem do que a verificação de resultados em termos de conceitos aprendidos. O mais importante não é saber quais as questões que os estudantes conseguiram dar a resposta, mas entender como conseguiram encontrar a resposta para essas questões.

Cabe ao professor fazer constantes provocações, desafios, para poder complementar as hipóteses sobre o seu saber e sobre o modo de alcançar o conhecimento.

Princípio de flexibilidade na análise do momento vivido por cada um;

Quando respeitamos as diferenças dos alunos no seu processo de construção do conhecimento, não podemos avaliar o aluno em função de respostas padronizadas e de resultados qualitativos. Cabe ao professor investigar sobre os processos utilizados por cada aluno, propondo problemas, adaptando novas perguntas às suas respostas, etc., de modo a observar como determinado problema foi resolvido.

Tentaremos, agora, compreender três possibilidades relativas ao erro:

  1. O aluno possui a estrutura de pensamento necessária à solução da tarefa, mas selecionou modos inadequados para tal. (Ex: erros ortográficos - erros não construtivos/ ou indicar para uma criança a mesma dosagem de antibiótico prescrita para um adulto).

  2. O aluno errou porque a estrutura de pensamento que possui não é suficiente para solucionar a tarefa. Os erros implicam dificuldades de entender a tarefa e solucioná-la. (Ex: não diferençar uma exceção da regra: erro construtivo ou o aluno faz o diagnóstico de pneumonia, mas não consegue elaborar o prognóstico).

  3. O aluno errou porque não possui a estrutura de pensamento necessária à solução da tarefa, o que gera uma impossibilidade de compreender o que lhe é solicitado (Ex: o aluno soma 2+2 mas não multiplica 2X2 - erro sistemático/ ou o aluno interpreta uma chapa radiográfica, mas é incapaz de interpretar numa ultrassonografia, da mesma região examinada).

O erro no desenvolvimento do aluno tem função indicativa, diagnóstica. Funciona apenas como a tomada de consciência do professor sobre os esquemas assimilativos e estruturas que estão sendo utilizados por seus alunos na resolução de problemas.

AVALIAÇÃO NO PROCESSO

A função diagnóstica da avaliação, que deve ser priorizada por nós, consiste na identificação diária das dificuldades de aprendizagem, para que possam ser sanadas. Não há necessidade de se dar nota. Ternos em vista tomar decisões adequadas para que o aluno possa avançar no processo de aprender.

Já a função classificatória retira da prática da avaliação aquilo que lhe é constitutivo: a obrigatoriedade da tomada de decisão quanto à ação, quando ela está avaliando uma ação. Visa classificar, dar uma nota apenas.

É comum ouvirmos os professores dizerem que estamos na escola para aprender e que o erro faz parte desta trajetória. No entanto, os erros cometidos pelos alunos sofrem sérias penalidades e tendem a permanecer sob a forma de dificuldades.

Um ambiente livre de tensões e limitações favorece as tentativas de conquista do saber. Ao mesmo tempo em que permite ao professor a análise das relações estabelecidas em termos da lógica existente nas soluções apontadas pelo aluno.

Torna-se então sumamente importante o acompanhamento pelo professor das tarefas realizadas pelo aluno. "Acompanhar" não mais como retificar, marcar, apontar erros e acertos. Mas acompanhar numa atitude de pesquisa e reflexão sobre as respostas apresentadas pelo aluno, anotando questões não respondidas, respostas diferentes, registrando-se relações entre soluções apresentadas por ele.

BUSCANDO NOVOS RUMOS

Podemos diminuir a ênfase na avaliação utilizando algumas práticas concretas, como por exemplo:

  • propor a avaliação como uma atividade cotidiana, diária, sem trocar os alunos de sala ou “separá-los”.

  • utilizar todas as oportunidades para avaliação do aluno: suas respostas orais ou escritas, trabalhos em grupo, desenhos, maquetes, seminários, dramatizações, pesquisas, registros escritos...;

  • realizar a avaliação no horário normal de aula, estabelecendo um número maior de avaliações;

  • a questão diversas: múltipla-escolha, dissertação, gráficos, casos clínicos...;

  • valorizar mais as questões dissertativas que exijam compreensão, análise, crítica, síntese e avaliação;

  • oportunizar que o aluno apresente uma visão sintética do assunto estudado;

  • não "lembrar" o tempo que falta para o término da avaliação (faltam 20”, faltam 5”...);

  • deixar claros os critérios de avaliação e correção das provas;

  • permitir que a avaliação seja feita em dupla e/ou grupo, eventualmente;

  • não dispensar a avaliação individual;

  • fazer avaliação com consulta a livros, revistas, etc.;

  • permitir que os alunos elaborem propostas, perguntas, questões para a avaliação;

  • dar questões a mais, de modo que o aluno possa escolher (propondo cinco questões para o aluno escolher duas);

  • elaborar avaliações interdisciplinares;

  • dada as notas, eliminar uma das notas de um conjunto (se o aluno tem quatro notas, elimino a menor).

O professor, de modo a não se sobrecarregar com correções, pode fazer correção mútua pelos alunos, sob sua supervisão, ou fazer autocorreção.

É preciso esclarecer que, quando se faz crítica à ênfase na avaliação ou à prova, se faz crítica a ser esta algo "especial", "aterrorizante", como costumeiramente se dá. É bom reafirmarmos que haverá sempre necessidade de que os alunos produzam conhecimento e expressem este conhecimento.

De fato, o momento de avaliação deveria ser "momento de fôlego" na escalada, para em seguida ocorrer a retomada da marcha de forma mais adequada e nunca um ponto definitivo de chegada, especialmente quando o objeto da ação avaliativa é dinâmico, como, no caso, a aprendizagem. Com a função classificatória, a avaliação não auxilia em nada o avanço e o crescimento. Somente com uma função diagnóstica ela pode servir para esta finalidade.

Somente assim: do sofrimento de avaliarmos e de sermos avaliados ao alívio de construirmos juntos uma nova prática educativa.

  • 1
    Corroa, V. "Cazuza". São Paulo, Ed. Nacional, 1974, pg.33.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1999
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