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Ecologia médica: uma visão holística no contexto das enfermidades humanas

Medical ecology: a holistic view in the context of human diseases

Resumos

O presente ensaio traz como objetivo geral uma reflexão sobre a ecologia médica e uma discussão sobre os seres humanos, profissionais de saúde e suas relações como meio ambiente. A pesquisa, de caráter descritivo e exploratório, buscou na literatura e na internet, por meios dos unitermos "Ecologia Médica" e "Medical Ecology", subsídios para discutir e refletir sobre a relação homem, meio ambiente e profissionais da saúde. Estudiosos do assunto afirmam que os médicos clínicossão treinados para tratar problemas que ocorrem em nível individual e não estão devidamente preparados para trabalhar no nível do ecossistema. Da mesma forma, outros profissionais da saúde e da vigilância sanitária e ambiental,como enfermeiros, biomédicos, farmacêuticos e biólogos, também não possuem, em suas grades curriculares de graduação, componentes que tragam reflexões e ensinamentos sobre profilaxia e controle de doenças no âmbito da ecologia médica. Os profissionais da saúde, principalmente de Medicina e Enfermagem, devem estar preparados para uma análise critica dos desafios apresentados nesta área, para que sejam agentes de mudanças e profundas transformações no processo saúde, meio ambiente e prevenção de doenças humanas, com base nos princípios e reflexões da ecologia médica.

Educação em Saúde; Saúde Ambiental; Educação Médica


This essay is aimed at reflecting on medical ecology and discussinghow health professionals and people in general relate to the environment. An exploratory and descriptive study, it investigates such relationships through literary and internet searches for the keywords "EcologiaMédica" and "Medical Ecology". Scholars on the issue maintain thatphysicians are trained to treat problems at an individual level and notto work at the ecosystem level. Likewise, undergraduate students of health and environmentalfields such as nursing, biology, biomedicine and pharmacy are not taught about disease prevention and control in the context of medical ecology. Health professionals, especially those in medicine and nursing, should trained in critical analysis of the challenges they face in this area, so as to become agents of change and deep transformation in the processes of health, environment and prevention of human diseases, based on the principles and reflections of medical ecology.

Health Education; Environment and Health; Medical Education


ENSAIO

Ecologia médica: uma visão holística no contexto das enfermidades humanas

Medical ecology: a holistic view in the context of human diseases

Artur Dias-Lima

Universidade do Estado da Bahia; Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Bahia, BA, Brasil.ro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Artur Dias-Lima Rua Silveira Martins, 2555 Cabula– Salvador CEP 41195-001 – BA E-mail: agdlima@uneb.br; parasitologista@gmail.com

RESUMO

O presente ensaio traz como objetivo geral uma reflexão sobre a ecologia médica e uma discussão sobre os seres humanos, profissionais de saúde e suas relações como meio ambiente. A pesquisa, de caráter descritivo e exploratório, buscou na literatura e na internet, por meios dos unitermos "Ecologia Médica" e "Medical Ecology", subsídios para discutir e refletir sobre a relação homem, meio ambiente e profissionais da saúde. Estudiosos do assunto afirmam que os médicos clínicossão treinados para tratar problemas que ocorrem em nível individual e não estão devidamente preparados para trabalhar no nível do ecossistema. Da mesma forma, outros profissionais da saúde e da vigilância sanitária e ambiental,como enfermeiros, biomédicos, farmacêuticos e biólogos, também não possuem, em suas grades curriculares de graduação, componentes que tragam reflexões e ensinamentos sobre profilaxia e controle de doenças no âmbito da ecologia médica. Os profissionais da saúde, principalmente de Medicina e Enfermagem, devem estar preparados para uma análise critica dos desafios apresentados nesta área, para que sejam agentes de mudanças e profundas transformações no processo saúde, meio ambiente e prevenção de doenças humanas, com base nos princípios e reflexões da ecologia médica.

Palavras-chave: Educação em Saúde; Saúde Ambiental; Educação Médica

ABSTRACT

This essay is aimed at reflecting on medical ecology and discussinghow health professionals and people in general relate to the environment. An exploratory and descriptive study, it investigates such relationships through literary and internet searches for the keywords "EcologiaMédica" and "Medical Ecology". Scholars on the issue maintain thatphysicians are trained to treat problems at an individual level and notto work at the ecosystem level. Likewise, undergraduate students of health and environmentalfields such as nursing, biology, biomedicine and pharmacy are not taught about disease prevention and control in the context of medical ecology. Health professionals, especially those in medicine and nursing, should trained in critical analysis of the challenges they face in this area, so as to become agents of change and deep transformation in the processes of health, environment and prevention of human diseases, based on the principles and reflections of medical ecology.

Keywords: Health Education; Environment and Health; Medical Education

INTRODUÇÃO

Há cerca 12 mil anos, os seres humanos, deixaram de ser nômades e passaram ao comportamento "sedentário", e alguns fatores importantes contribuíram para essa brusca mudança comportamental1. O Homo sapiens sapiensaprendeu a dominar as técnicas de agricultura e irrigação. Ainda nessa época, historiadores afirmam que aconteceu a domesticação animal2. A partir daí e com maior magnitude, o ambiente passou a ser alterado de forma contínua, interferindo nas interações sociedade/meio ambiente/agente/vetor. A tríade epidemiológica – para alguns tríade ecológica das doenças– é composta por hospedeiro, agente e meio ambiente. O "desequilíbrio" desses "sistemas" leva ao surgimento e/ou aumento de casos de doenças. Um quarto elemento pode estar envolvido no processo: os vetores (transmissores de doenças) .

Apesar de pouco difundida quanto a seus conceitos, saberes e aplicações, foi com Hipócrates, no seu tratado sobre Ares, Águas e Lugares, que surgiram as primeiras ideias sobre ecologia médica3. Ainda segundo esse autor, a ecologia médica só teve condições de se desenvolver após a comprovação das teorias de Darwin e Pasteur, e seu progresso deveu-se, em grande parte, às investigações epidemiológicas sobre os ciclos complexos das zoonoses, no século XX. Na essência das palavras e nas definições mais simplórias, ecologia seria o estudo das interações dos seres vivos entre si e com o meio ambiente. Já médica, do latim medicinal, significa medicar, remediar, sanar, sarar, tratar. Poderíamos, então, definir a ecologia médica como a ciência que estuda as doenças e seus fatores relacionados ao homem, ao meio ambiente e a seus desequilíbrios. Vaughn4 define a ecologia médica como "o estudo de todas as doenças em grupos de pessoas em relação a ambos os seus ambientes bióticos e abióticos"(p.290) . Avila-Pires3 salienta que os médicos clínicos são treinados para tratar de problemas que ocorrem em nível organismal ou individual e não estão preparados para trabalhar no nível do ecossistema. Poucos profissionais da saúde, ecólogos e biólogos, recebem treinamento adequado em microbiologia e em patologia, e nenhum em epidemiologia. Esse mesmo Avila-Pires, em sua singular obra Princípios da Ecologia Médica, nos leva a uma reflexão quando afirma: "Em geral, o homem declara guerra às doenças, às pragas e aos parasitos, sem levar em conta a organização que os gerou, nem o papel que desempenham nas suas respectivas comunidades. Combate-se o efeito ou o sintoma, mas não se controla ou elimina a causa"(p.279) .

A título de esclarecimento, a expressão "visão holística" aqui aplicada traduz uma perspectiva na qual "o todo" e cada um de seus elementos estão estreitamente ligados, estando o meio ambiente relacionado à exposição do homem a doenças,em interações constantes.Essa visão holística, ou seja, do todo, poderia ser aplicada à medicina preventiva, que define o modelo de causalidade das enfermidades humanas com base nas relações entre agente, hospedeiro e meioambiente.

Czeresnia5 salienta que, no contexto atual, as doenças passaram a ser compreendidas como a relação entre agente etiológico, alterações fisiopatológicas e um conjunto de sinais e sintomas.O doente e seu ambiente passaram para um plano secundário,e a preocupação principal do médico tornou-se a doença, e não o paciente.

Diante desse cenário e contemporaneidade temática, o presente artigo pretende trazer para a discussão acadêmica e para os profissionais de saúde a necessidade de trabalhar as doenças de forma preventiva, considerando o papel do meio ambiente nesse processo. Por fim, o termo "holístico" aqui apresentado pretende abordar o todo, levando em consideração as partes e suas inter-relações. Para a resolução de um problema específico, é necessário ter uma visão holística sobre o problema maior – em outras palavras, o homem e a relação entre saúde e meio ambiente.

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica realizada na forma de revisão integrativa de literatura, do tipo exploratória e de natureza qualitativa. A revisão integrativa é um método de revisão mais amplo, pois permite incluir literatura teórica e empírica, bem como estudos com diferentes abordagens metodológicas (quantitativa e qualitativa) . Esse método determina o conhecimento atual sobre uma temática específica, aqui a ecologia médica, já que é conduzido de modo a identificar, analisar e sintetizar resultados de artigos independentes sobre o mesmo assunto, construindo uma conclusão com base nos resultados obtidos.

Trata-se de uma pesquisa teórica apoiada na revisão crítica da literatura, a mesma aplicada por Siqueira-Batista et al.6nesta conceituada Revista. Os textos foram buscados nas bases BVS (Biblioteca Virtual em Saúde) , Pubmed (U. S. National Library of Medicine) e SciELO (Scientific Electronic Library Online) , bem como nos livros e nos capítulos de livro das áreas de ecologia médica.Pesquisaram-se também sites da rede mundial de computadores sobre o tema aqui discutido. Foram utilizados os unitermos "Ecologia Médica" e "Medical Ecology". Com base na leitura dos manuscritos obtidos, foi possível construir uma síntese reflexiva sobre o tema.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Princípios da ecologia médica

No começo, afirma Boff7, a ecologia era apenas um subcapítulo da biologia. Porém, após 1960, começou a ser tema de ambientalistas e preservacionistas, e culmina hoje com o futuro da vida, do ser humano e do planeta Terra. Pugliese8 salienta que o termo ecologia médica foi "expressado" em 1939, pelo microbiologista francês René Dubos. Durante suas pesquisas sobre infecções tropicais, que resultaram na descoberta de um potente antibiótico, Dubos descobriu o quanto o meio ambiente interage no tratamento das doenças. Desde então, a expressão vem sendo empregada sempre que questões ecológicas se relacionam com a medicina. No entanto, foi Hipócrates (460-377 a.C.) , em seu mais famoso livro, Ares, Águas e Lugares, quem abordou e registrou, pela primeira vez, a relação entre meio ambiente e o fenômeno saúde-doença9.

A ecologia médica tem interfaces com as ciências básicas e aplicadas e engloba conhecimentos específicos de cada uma delas (www.medicalecology.org) . Nas básicas, estão a própria ecologia, geologia, oceanografia, hidrologia, bioquímica, biologia celular, física, química, sensoriamento remoto e outras. Nas aplicadas, a bioestatística, ciências médicas, epidemiologia, antropologia, agronomia, ciências ambientais, toxicologia, ciências sociais e a geografia médica. Podemos relacionar numa interface comum a ecologia médica com a geografia médica. Lacaz10 diz que a geografia médica nasceu também com Hipócrates, aproximadamente em 480 a.C. Nessa época, ele já demonstrava a relação dos fatores ambientais com o surgimento das doenças. Avila-Pires3salienta que a ecologia constitui, além disso, um dos pilares em que se apoia a geografia médica, sendo esta apenas aquela que mapeia a área de ocorrência das doenças sem explicar a razão dos padrões patogeográficos. Assim, ecologia e geografia médicas constituem a base essencial para a compreensão dos mecanismos íntimos de ação de doenças infecciosas e parasitárias e para o equacionamento das medidas gerais de controle racional dessas enfermidades. Em tempos de geoprocessamento e georreferenciamento, estas seriam, então, importantes ferramentas para a geografia e ecologia médicas. A ecologia médica seria ainda importantepor fornecer subsídios à epidemiologia, para que esta possa estabelecer programas de vigilância ambiental tanto no aspecto preventivo como no controle das enfermidades.

Lemos e Lima11 salientam que, na atualidade, está estabelecido que, para melhor entender o processo saúde-doença em qualquer comunidade, é necessário entender o ser humano em seu meio físico, biológico, social e econômico. Estes meios são considerados fatores determinantes e condicionantes deste processo, estabelecendo a ocorrência e a prevalência das doenças infecciosas e parasitárias nas paisagens terrestres e/ou aquáticas, bem como seus comportamentos, que são influenciados por estes fatores. O agente infeccioso é, na verdade, apenas uma das causas da ocorrência das endemias. É o que chamamos de conceito de multicausalidade.

Um dos setores que mais se beneficiam com os estudos da ecologia médica é a vigilância sanitária e ambiental em saúde. A vigilância sanitária é definida como um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários do meio ambiente. A vigilância ambiental em saúde é um conjunto de ações que proporcionam o conhecimento e a detecção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes do meio ambiente que interferem na saúde humana12. Considerando a ecologia médica como a ciência que estuda as doenças e seus fatores relacionados ao homem, meio ambiente e seus desequilíbrios, seria então esta ciência o elo para entendimento dos fatores ambientais, a saúde humana e a vigilância sanitária e ambiental. Munida das informações obtidas por meio dos estudos de ecologia médica, seria possível recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle dos fatores de risco e das doenças ou outros agravos relacionados à vigilância sanitária e ambiental12.

Contextualizando algumas das ciências aplicadas aos estudos da ecologia médica, é necessário refletir sobre a antropologia médica. O discurso antropológico revela que o estado de saúde de uma população é associado a seu modo de vida e a seu universo social e cultural. A antropologia médica se inscreve, assim, numa relação de complementaridade com a epidemiologia e com asociologia da saúde13. De acordo com esses autores, inúmeros estudos revelam que os comportamentos de uma população frente a seus problemas de saúde, incluindo a utilização dos serviços médicos disponíveis, são construídos com base em universos socioculturais específicos. Ainda, tais estudos apontam a necessidade de basear os programas de educação e o planejamento em saúde no conhecimento prévio das formas características de pensar e agir predominantes nas populações nas quais se quer intervir. Na maioria das vezes, a medicina dá atenção ao doente e não à doença.

Carvalho e Steil14 alertam para práticas que permitem identificar uma dimensão pedagógica que se expressa no aprendizado de um modo de olhar e perceber a si e o ambiente, constituindo o que poderíamos chamar de uma pedagogia da percepção, comprometida com a formação de sujeitos que encarnem os benefícios de um bem viver ecológico e de um campo educativo e experiencial voltado para modos de relação existencial com os lugares, vinculando os sujeitos humanos às paisagens.

Atualmente, de acordo com Almeida15,"ecologia médica", "medicina ecológica" ou "ecomedicina" são as formas utilizadas para definir um ramo da medicina que estuda a relação existente entre fatores ambientais e saúde. Segundo essa autora, na base dessa observação científica está o homem, tido como parte integrante da natureza, capaz de interagir com ela e vice-versa. O objetivo é ser o ponto de ligação entre o ser humano e seu ambiente, para estimular a conscientização do impacto dessa interação na saúde e na natureza.

Lobo16 salienta que a ecomedicina, medicina ecológica ou mesmo a ecologia médica é um movimento que vem surgindo nos Estados Unidos e Europa desde a década de 1990. Segundo ele, é possível encontrar suas raízes em 1965, quando foi fundada a Academia Americana de Medicina Ambiental, justamente para entender melhor o impacto do meio ambiente na saúde. Entretanto, segundo o médico norte-americano Andrew Weil, citado por Lobo, esse movimento cresceu mesmo a partir da década de 1990, quando a consciência ambiental começou a aumentar em todo o mundo.

Botsaris17, estudioso das doenças infecciosas e parasitárias e em medicina chinesa, afirma que toneladas de substâncias químicas têm sido despejadas na superfície do planeta, contaminando ar, água, alimentos e a própria vida. "Por isso, os seres humanos estão cada vez menos saudáveis, mesmo com todos os avanços tecnológicos, principalmente porque o meio ambiente é inadequado, e está mais agressivo e contaminado"15(p.1) . Aliás, Botsaris17 descreve que a "medicina ecológica valoriza muito a alimentação e a digestão"(p.1) . Afinal, segundo ele, a alimentação é uma das principais interações entre o organismo e o meio ambiente.

Ávila-Pires3,em um dos raros livros brasileiros direcionados à compreensão dessa temática, resume alguns princípios fundamentais da ecologia médica, que se preocupa com o estudo das relações dos fatores do meio ambiente físico e biológico com a saúde. As implicações da globalização das comunicações e transporte, da circulação de pessoas, alimentos, animais, plantas e microrganismos são claras e resultam na alteração dos padrões clássicos da geografia da saúde e da doença. Segundo esse autor, no resumo de sua obra, nos nossos dias, a teoria miasmática ressurge mal disfarçada na concepção popular de poluição ambiental, e autoridades culpam fatores mesológicos, como as alterações da corrente marinha El Niño, por epidemias que se devem, na realidade, ao relaxamento das ações de controle sanitário. A queda das barreiras políticas e o livre trânsito de pessoas e produtos são responsáveis, em grande parte, pelas chamadas doenças emergentes e reemergentes, que atualmente constituem grande preocupação da ecologia médica.

Lobo16 coloca a ecologia médica como sinônimo de medicina ambiental, ecologia celular, medicina ecológica, que tem como objetivos principais restaurar o equilíbrio entre homem e a natureza e tratar as patologias ocasionadas pela perda desse equilíbrio; o foco é o ecossistema, ou seja, o paciente é visto segundo uma abordagem holística. Lobo salienta que a ecologia médica é regida por dois princípios: unicidade e integralidade. Na unicidade, "cada indivíduo éúnico no universo, tendo uma individualidade bioquímica; o que pode ser bom para um pode serveneno para outro"(p.1) . Já no principio da integralidade,

[...] não estamos desconectados do universo, vivemos em uma grande teia, na qual o que fazemos afeta todo um sistema, por mais simples que seja essa ação. Os diversos fatores fisiológicos que contribuem para o aparecimento das doenças estão interligados entre si. Ou seja, todos os seres estão integrados e o que o homem faz com o meio ambiente gera repercussões em todos os âmbitos da vida(p.1) .

Despommier e Chen18situam a ecologia médica como uma ciência emergente e que define os aspectos do ambiente que têm influência direta na saúde humana.

O conceito de funções do ecossistema e serviços ajuda a descrever os processos globais que contribuem para o nosso bem-estar, ajudando a limpar o ar que respiramos, a água que bebemos e a comida que comemos. A degradação ambiental, muitas vezes, leva a alterações nestes aspectos, levando a vários estados de saúde(p.1) .

Esses autores acreditam que os princípios ecológicos, quando aplicados à condição humana, vão oferecer uma solução para a dicotomia "homem versus natureza".

De fato, os seres humanos são parte integrante da natureza, mas a maior parte do tempo não temos conhecimento de nossa conexão com o resto do mundo. O ambiente em que vivemos é caracterizado por inúmeras características físicas, químicas e pelos sistemas biológicos, e é neste cenário complexo que vivemos; quanto mais conscientes dele formos, o mais provável é que possamos evitar essas situações que tiram o nosso senso de bem-estar18(p.1) .

Uma infinidade de fenômenos poderia obter respostas nos estudos da ecologia médica. Além das enfermidades diretamente relacionadas a agentes etiológicos infecciosos e parasitários, desvendaríamos as causas e consequências das poluições ambientais de naturezas diversas, das intoxicações e até de determinados fenômenos naturais que interferem direta e indiretamente na saúde humana.

Após o controle de muitas doenças endêmicas com medidas sanitárias e com a urbanização, os setores conservadores da medicina consideraram que as questões da saúde ligadas ao meio ambiente estavam resolvidas17. Entretanto, afirma esse autor:

[...] o novo ambiente urbano trouxe novos riscos e fontes de doença aos seres humanos. Questões como a poluição, a contaminação de alimentos por resíduos químicos, e o próprio estresse gerado pela vida em grandes cidades, se tornaram sérios problemas de saúde pública. E pior, alguns vetores e microrganismos estão se adaptando aos ambientes urbanos, trazendo de volta as ameaças de epidemia, como o caso da infestação por Aedes aegypti que observamos nas cidades brasileiras(p.1) .

O controle de vetores deve incluir uma intervenção planejada em ecossistemas complexos, que precisam ser "alterados" de maneira a proporcionar resultados duradouros. Segundo Ávila-Pires3,na maioria das vezes não se trata de combater uma espécie, mas de suprimir nichos ou modificar biótopos, utilizando conhecimentos biológicos e ecológicos detalhados.

Benkimoun19cita o livro "CesMaladiesCréésparl'Homme"(As Doenças Criadas pelo Homem) , do professor Dominique Belpomme, onde o autor estima que podemos considerar que de 80% a 90% dos cânceres humanos são causados pela degradação do meio ambiente, sendo o meio ambiente "entendido no sentido amplo do termo", incluindo o modo de vida. Aí também a expressão "fatores ambientais" inclui o modo de vida (consumo de tabaco e álcool) , alimentação, condições de trabalho, medicamentos, hormônios, radiações, vírus, bactérias, agentes químicos e também o ar e a água. Benkimoun ainda cita que a exposição a um vasto leque de substâncias naturais e a outras de origem humana no meio ambiente é responsável por pelo menos dois terços do total de cânceres nos EUA. Botsaris17 alega que "muitos poluentes ambientais possuem capacidade de se ligar a receptores hormonais e, com isso, estimular o crescimento de células cancerosas. Outros resíduos causam uma redução da eficiência do sistema imunológico em identificar e reduzir células cancerosas" (p.1) .

Siqueira-Batista et al.6 enfatizam a necessidade de estimular a inserção da discussão dos conceitos ecológicos na formação do profissional da saúde com a inclusão de uma disciplina sobre ecologia, por meio da transversalidade do tema ambiente e saúde. Ainda salientam que se deve, igualmente, ressaltar a potencialidade do desenvolvimento do pensamento crítico, considerando as questões ambientais, na produção do conhecimento em saúde. Para Boff7, meio ambiente não é algo que está fora de nós e que não nos diz respeito; pertencemos ao meio ambiente e é dele que tiramos tudo o que é essencial a nossa vida.

A constatação de que vivemos uma grave crise ambiental, trazendo repercussões sobre a nossa existência atual e futura, associada a várias questões que se fazem presentes quando pensamos na relação disso com o campo da saúde, torna um imperativo a busca de um aprofundamento do debate sobre a interface saúde e meio ambiente no âmbito da formação profissional e do trabalho em saúde20. Afirma ainda Camponogara que esse processo não é simples, nem tampouco fácil. É algo que não pode ser simplesmente prescrito, como tarefa a ser cumprida. Ao contrário, tendo em vista sua estreita relação com questões ligadas a valores individuais, deve ter como fundamento uma profunda reflexão ética.

Ecologia médica: meio ambiente, reservatórios e vetores de doenças

É notória a relação íntima entre o homem e animais de estimação, sobretudo por mamíferos, como cães e gatos. O primeiro animal domesticado foi o cão, e isto se deu por volta do ano 10.000 a.C., seguido por gato, ovelha, cabra, porco, ganso, galinha, gado, cavalo e burro1. Segundo esse autor, em 4.000 a.C., todos esses animais conviviam próximo ao domicílio humano. Existe uma infinidade de doenças causadas por vírus, bactérias, fungos, protozoários e ectoparasitas de origem animal e que podem acometer o homem. Inúmeras são as possibilidades de transmissão de doenças ao homem pela ingestão e/ ou inalação de líquidos orgânicos, excretas, carnes e produtos em geral. A convivência social é crescente quanto ao número de animais e ao convívio familiar, principalmente com cães e gatos. O hábito de ter estes animais como companhia tornou-se comum. Atualmente, algumas famílias criam seus animais com costumes muito próximos aos dos proprietários, o que aumenta o risco de transmissão de doenças, como a leishmaniose visceral e a toxoplasmose.

Um excelente exemplo de como as questões ecológicas estão diretamente relacionadas à transmissão de determinadas doenças são as leishmanioses visceral e tegumentar.Inicialmente, a transmissão das leishmanioses era estritamente silvestre ou concentrada em pequenas áreas rurais. Porém as transformações ambientais, o desmatamento, os processos migratórios e a crescente urbanização vêm expondo mais o homem ao risco de contrair essas enfermidades.

A espécie vetora da leishmaniose visceral, o inseto flebotomíneo Lutzomyia longipalpis, tem ampla associaçãocom áreas de cerrados, caatingas e áreas desmatadas. Na região litorânea sul do Estado da Bahia, onde ainda se fazem presentes remanescentes de Mata Atlântica, e em áreas cacaueiras, a L. longipalpisnão foi encontrada. Aí não ocorre essa forma clínica de leishmaniose. Esse tipo de área florestada, após a supressão vegetacional, favorece a adaptação da L. longipalpis, sendo o desmatamento um importante fator predisponente para a sua dispersão. Por outro lado, os casos humanos da leishmaniose tegumentar predominam em áreas florestadas. Aí existem seus vetores e reservatórios específicos, que vivem exclusivamente nesse tipo de ecossistema. Para a leishmaniose visceral, são conhecidos mais distintamente seus animais reservatórios, silvestres e domésticos, e as espécies vetoras. No ambiente urbano, o cão infectado, mesmo quando assintomático, é considerado o principal reservatório para a infecção da vetora L. longipalpis.

Outro excelente exemplo de como as questões ecológicas estão diretamente relacionadas à transmissão de determinadas doenças é a doença de Chagas. O protozoário T. cruzi, descrito em 1909 por Carlos Chagas, fez, em 2009, cem anos de descoberta. Durante este século, foram adquiridos inúmeros conhecimentos sobre a ecoepidemiologia da doença de Chagas e deste hemoparasita, seus vetores e reservatórios. Existem várias maneiras de adquirir a doença, ea principal é a vetorial, transmitida pelas fezes dos triatomíneos (barbeiros) , seus hospedeiros invertebrados. Predominante no continente americano em relação a outras partes do mundo, a doença tem como reservatórios vertebrados uma enorme diversidade de mamíferos, incluindo o homem21. Ainda, Siqueira-Batista e colaboradores21chamam a atenção para os distintos elementos atinentes à moléstia de Chagas, considerando-a uma "doença ecológica", e às múltiplas possibilidades de interação dos diferentes partícipes da enfermidade. Segundo esses autores, o caráter marcadamente antropocêntrico e a consideração do ser humano acima ou fora da natureza – "ecologia rasa" – contribuem substancialmente para sua perpetuação. Ao invadir as matas e produzir o desequilíbrio ecológico no ambiente silvestre, o homem aproximou o T. cruzido ambiente doméstico, surgindo, assim, a doença de Chagas humana. Quanto aos seus hospedeiros invertebrados, os triatomíneos da Família Reduviidae, é sabido que, dentre cerca de 140 espécies descritas, todas são suscetíveis a transmitir a doença entre os animais e o homem. Porém, são aquelas que vivem mais próximas do homem (antropófilas) e do seu ambiente domiciliar (domiciliadas) as principais vetoras da doença. São exemplos as espécies Triatomainfestans, Panstrongylusmegistus,Triatomabrasiliensis e algumas do gênero Rhodnius. As alterações ambientais têm importante influência na emergência e reemergência de doenças. O município de Salvador, na Bahia, encontra-se em processo de expansão imobiliária, com intenso desmatamento de áreas remanescentes de Mata Atlântica. Isto favorece a diminuição das fontes alimentares para os triatomíneos, principais responsáveis pela transmissão da doença de Chagas, que acabam por invadir domicílios em busca de abrigo e alimento22.

Nas áreas profundamente perturbadas pelo homem, rompe-se o equilíbrio intra- e interespecífico, os mecanismos controladores ou estabilizadores das populações deixam de operar, e o incremento e a redução demográficos tornam-se imprevisíveis e desordenados3. Dessa condição surgem as epizootias e as epidemias. No entanto, quando pesquisadores e especialistas detêm conhecimentos no âmbito da ecologia médica sobre determinados agentes, hospedeiros, meio ambiente e doenças, existe a possibilidade de prever certos acontecimentos. Assim, torna-se mais fácil aplicar medidas preventivas, e o controle é menos oneroso aos cofres públicos e à sociedade.

As infecções ou doenças transmitidas naturalmente entre animais vertebrados e o homem são denominadas zoonoses. Somam mais de 150 as doenças mais importantes que afetam o homem e outros vertebrados, afirma Ávila-Pires3. A respeito deste assunto, Gubler23cita as arboviroses dentre as mais importantes doenças infecciosas emergentes na saúde pública mundial do terceiro milênio. Segundo esse autor, existem cerca de 534 arboviroses catalogadas e transmitidas por mosquitos e carrapatos, das quais 134 são causas de morte em humanos.

O Brasil, mesmo com os avanços nos indicadores socioeconômicos, ainda se apresenta desigual, situação fruto de um desenvolvimento historicamente excludente24. Para alcançar o desenvolvimento sustentável e com qualidade de vida, a melhora dos indicadores de saneamento e de educação deve ser uma prioridade para o Brasil, afirmam Carneiro e colaboradores.

CONCLUSÃO

O caráter multifatorial dos problemas de saúde demanda estratégias para reduzira exposição a fatores de risco do meio ambiente. O que se observa atualmente no processo saúde-doença é a separação prática entre o meio ambiente e a saúde humana, com os profissionais de saúde e as políticas públicas, em geral, se limitando principalmente ao tratamento e aos cuidados dos doentes, ficando a prevenção em segundo plano. São necessárias, portanto, abordagens e atitudes para a promoção de saúde, qualidade de vida e prevenção de enfermidades associadas ao meio ambiente, pelos profissionais da saúde.

Nesse contexto, a ecologia médica se expressa como a ciência que estuda as doenças e seus fatores relacionados ao homem, meio ambiente e seus desequilíbrios. Aos profissionais da saúde, como médicos e enfermeiros, municiados pelas informações obtidas por meio dos estudos de ecologia médica, seria possível recomendar à comunidade e adotar as medidas de prevenção e controle dos fatores de risco e das doenças ou outros agravos relacionados à vigilância sanitária e ambiental.

O ser humano não está isolado do meio ambiente, mas é parte integrante deste. Sua saúde depende exclusivamente dessa relação direta. É preciso difundir conhecimentos e estratégias estudados na ecologia médica. Quando a população compreende o processo saúde-doença, aceita, utiliza e participa deste de forma efetiva e positiva. Os conhecimentos interdisciplinares e multissetoriais da ecologia médica são fundamentais no sucesso de programas de saúde e na educação médica.

Os profissionais da saúde, principalmente de Medicina e Enfermagem, devem estar preparados para uma analise critica dos desafios apresentados nesta área, para que sejam agentes de mudanças e profundas transformações no processo saúde, meio ambiente e prevenção de doenças humanas, com base nos princípios e reflexões da ecologia médica.

CONFLITOS DE INTERESSE

Declarou não haver.

Recebido em: 17/10/2012

Reencaminhado em: 28/06/2013

Aprovado em: 06/02/2014

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Ago 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      17 Out 2012
    • Aceito
      06 Fev 2014
    • Revisado
      28 Jun 2013
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