RESUMO
A educação médica brasileira apresenta desafios com o intuito de contribuir com a formação de recursos humanos para o Sistema Único de Saúde, em consonância com as principais políticas de saúde do País. A pedagogia de Paulo Freire apresenta uma visão crítica do processo ensino-aprendizagem enquanto processo de emancipação política e de ação transformadora da realidade. Tais valores são desejados na formação profissional dos médicos. O presente estudo visa avaliar a concepção de docentes de Faculdade de Medicina paulistana sobre o processo ensino-aprendizagem segundo os princípios da pedagogia problematizadora de Paulo Freire.
Educação Médica; Docentes; Percepção Social
ABSTRACT
Brazilian medical education presents challenges in providing human resources to the Unified Health System in line with the main national health policies. The pedagogy of Paulo Freire presents a critical view of the teaching-learning process including the political emancipation of the student and the ability to transform the reality. Such values are desired in the professional training of Brazilian physicians. This study aims to assess to what extent medical teachers from a São Paulo university understand the teaching-learning process in terms of the principles of Paulo Freire’s pedagogy.
Medical Education; Teachers; Social Perception
A PEDAGOGIA FREIREANA
O educador Paulo Freire concebeu uma epistemologia inovadora da educação em termos mundiais e foi reconhecido como o Patrono da Educação Brasileira em 2012 (Lei no 12.612, de 13 de abril de 2012)1. A proposta de Paulo Freire da educação da libertação (ou educação problematizadora) se baseia na indissociabilidade dos contextos e das histórias de vida na formação de sujeitos, que ocorre por meio do diálogo e da relação entre alunos e professores. Freire enfatiza que ambos, professores e alunos, são transformados no processo da ação educativa e aprendem ao mesmo tempo em que ensinam, sendo que o reconhecimento dos contextos e histórias de vida neste diálogo se desdobra em ação emancipadora. A educação problematizadora busca estimular a consciência crítica da realidade e a postura ativa de alunos e professores no processo ensino-aprendizagem, de forma que não haja uma negação ou desvalorização do mundo que os influencia. Sendo assim, a educação é encarada como um ato político, e as relações estabelecidas entre alunos e professores devem ser embasadas em interações de respeito entre sujeitos e cidadãos, de modo a construir conhecimento crítico e centrado na busca pela autonomia. No entanto, Freire ressalta que: “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém”(p.67), uma vez que a autonomia é sempre resultado de um esforço individual que gera o próprio amadurecimento e se constrói nas relações entre seres humanos e, somente nestas interações, ela se consolida2.
A ideia de que o professor deve transmitir conhecimentos ao aluno e que este deve memorizá-los, internalizá-los e repeti-los mecanicamente é denominada “concepção bancária” da educação, segundo Freire. A concepção bancária parte do pressuposto de que o professor é detentor de conhecimentos legítimos e que o aluno é um mero receptáculo de informações. Neste tipo de relação, existe uma desigualdade importante quanto ao poder e à autonomia, pois o professor é o sujeito da ação, ele ensina e toma o aluno como um objeto, passivo, receptivo e ingênuo. Além disso, o contexto é desvalorizado, a história de vida dos indivíduos é secundária, e a ação educativa é uma forma de opressão e subjugação2.
Em busca da autonomia na educação, Freire preconiza a estratégia da ação-reflexão-ação, utilizando como ferramentas o estímulo à curiosidade, à postura ativa e à experimentação do aluno, fomentando a análise crítica da realidade durante a formação. Na concepção freireana, o professor deve atuar de forma problematizadora, questionadora, mas com postura respeitosa e gentil, desestimulando qualquer forma de discriminação e respeitando a diversidade entre os alunos. Para Freire, ensinar é uma especificidade humana e ele prioriza a necessidade de o professor saber escutar o educando, sendo o diálogo a sua principal ferramenta de ensino3.
A PEDAGOGIA FREIREANA E A EDUCAÇÃO MÉDICA
Há intenso debate na literatura em educação médica sobre a necessidade de articular a formação de profissionais médicos para o sistema de saúde, articulando a graduação e o ambiente acadêmico com a realidade local de cada país4. As Conferências de Edimburgo, ocorridas em 1988 e 1993, sinalizaram a necessidade de transformações na educação médica, apontando a perspectiva de integração de ensino e serviços de saúde, buscando atender às necessidades de formação do médico para o sistema de saúde5.
No contexto brasileiro, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), no qual a saúde passa a ser encarada como um direito universal, a formação de médicos para atuação no SUS passa a ser considerada de extrema importância. Diante disso, o Ministério da Saúde elaborou diversas políticas públicas com o objetivo de efetivar o direito da população brasileira à saúde e que encontram consonância na concepção problematizadora de educação de Paulo Freire, entre elas a Política Nacional de Humanização, a Política Nacional de Atenção Básica e a Política Nacional de Promoção à Saúde6,7,8.
De acordo com os princípios norteadores da Política Nacional de Humanização, os profissionais de saúde devem “valorizar a dimensão subjetiva e social dos indivíduos e coletivos nas práticas assistenciais e de gestão, além de estimular a realização de processos comprometidos com a produção de saúde e de sujeitos, com forte estímulo a autonomia, participação popular e gestão participativa”6(p.9). Já a Política Nacional de Promoção à Saúde se baseia numa concepção ampliada do processo saúde-doença e propõe “ampliar a autonomia e corresponsabilização de sujeitos e coletividades, inclusive do poder público, no cuidado integral à saúde e minimizar e/ou extinguir as desigualdades de toda e qualquer ordem [...]”8(p.17).
As políticas encontram-se em forte consonância com os ideais pedagógicos de Paulo Freire, uma vez que ressaltam a necessidade de construir coletivamente processos de empoderamento de cidadãos, tomando como horizonte o respeito às diferenças e considerando os múltiplos contextos e histórias de vida dos sujeitos2,3. No entanto, a implementação de políticas públicas no nível da gestão do trabalho em saúde, estando desarticulada de reformulação dos processos de ensino-aprendizagem das escolas médicas, não resulta numa efetiva transformação das práticas médicas do País. É necessário adotar metodologias que permitam uma aprendizagem ativa dos estudantes, além de reavaliar a lógica prioritária de transmissão de conteúdos técnicos e a integração entre ensino e serviços de saúde4,5.
Para tanto, ressaltamos a relevância da concepção freireana de educação para a formação médica. A pertinência da educação problematizadora na formação médica encontra-se em consonância com a construção do paradigma da integralidade no ensino da Medicina e com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Medicina (DCN), promulgadas em 2014, que preconizam a formação de médico humanista, crítico e reflexivo, que atue com responsabilidade social e cidadania9,10,11.
Para atingir o objetivo de ensinar de maneira problematizadora e emancipadora, a capacitação docente é uma estratégia central. No entanto, os professores não são adequadamente preparados para a profissão, principalmente na educação superior13. De acordo com Srinivasan, a maioria dos professores que atuam na educação médica recebe pouco ou nenhum treinamento sobre práticas de ensino13,14. O desafio de desenvolver e implementar reais transformações nas práticas educacionais dos docentes de acordo com a pedagogia freireana exige uma importante ressignificação do papel do professor no ensino médico. Para isto, de acordo com os pressupostos da educação problematizadora, é imprescindível compreender e reconhecer as percepções dos sujeitos envolvidos acerca de determinado tema2,3.
Neste caso, para o processo de formação docente, é de extrema relevância questionar a percepção dos docentes de Medicina em relação ao próprio papel no processo de formação médica enquanto professor. Esta percepção estaria em consonância com a pedagogia problematizadora ou estaria mais centrada no modelo de educação bancária, de acordo com a pedagogia freireana?
O presente estudo visa compreender as percepções de docentes de graduação em Medicina de uma instituição privada do município de São Paulo acerca do seu papel no processo ensino-aprendizagem de acordo com os princípios da pedagogia de Paulo Freire2,3.
MÉTODOS
Este estudo apresenta delineamento transversal e natureza qualitativa, com realização de análise de conteúdo15 sobre a opinião de docentes do curso de graduação em Medicina de uma instituição de ensino privada do município de São Paulo.
Todos os departamentos da instituição foram convidados a participar, mediante convites escritos e, posteriormente, convite verbal (nas reuniões de cada departamento) a todos os docentes do curso de Medicina, inclusive aos chefes de departamento. Este processo de seleção configurou uma amostra não probabilística do tipo “casos críticos”, no qual os “participantes são escolhidos em virtude de representarem casos essenciais ou chave para o foco da pesquisa”16(p.223).
Para a coleta de dados foi elaborado um questionário construído especificamente para o projeto, contendo perguntas abertas relacionadas às: (a) características demográficas dos docentes; (b) percepções acerca do projeto político-pedagógico da instituição; (c) concepções do próprio papel enquanto professor (mediante a pergunta: “O que, para você, é ensinar?”). O instrumento foi entregue aos docentes, via malote, por intermédio das secretarias dos departamentos da instituição. As respostas dos professores foram digitadas sem qualquer alteração do conteúdo, configurando unidades de análise de característica textual (respostas escritas)16.
Após a digitação, procedeu-se à realização de análise de conteúdo, mediante leitura vertical e horizontal das respostas dos participantes e elaboração de categorias de análise. Segundo Bardin, a análise de conteúdo é definida como:
um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens15(p.42).
As respostas foram classificadas em três domínios, desenvolvidos de acordo com os eixos da pedagogia freireana. Após a leitura vertical e horizontal, as respostas dos professores e chefes de departamento foram categorizadas de acordo com três diferentes concepções pedagógicas freireanas: (a) perspectiva de ensino bancária; (b) perspectiva de ensino dialógica (valorização do diálogo); (c) perspectiva problematizadora de ensino (valorização da autonomia).
Com base nesta classificação, procedeu-se á análise das frequências simples das respostas segundo as categorias, de modo a descrevermos a opinião dos docentes acerca do papel do professor no ensino médico.
A abordagem do corpo docente só foi realizada após parecer consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (CEP/2012), no 146.499. A pesquisa foi realizada após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por todos os participantes.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A participação na pesquisa foi oferecida aos 112 docentes da instituição estudada, com apresentação da pesquisa em todos os departamentos. Apenas 39 (43,3%) docentes aceitaram participar da pesquisa e preencheram o instrumento de avaliação autoaplicado, após assinatura do TCLE. Dos 39 indivíduos que preencheram o questionário, um não respondeu à pergunta sobre a concepção do papel do professor, cujas respostas são o foco principal deste artigo, culminando num total de 38 professores com questionários analisados neste trabalho.
Do total de indivíduos que aceitaram participar da pesquisa, oito docentes são chefes de departamento (há 12 departamentos na instituição estudada), e os demais são professores das disciplinas do curso de graduação (30 docentes). Entre os participantes, 21 docentes (55,3%) são do sexo masculino, e sua faixa etária apresenta a seguinte distribuição: 21,1% têm entre 20 e 39 anos; 50% têm entre 40 e 59 anos; e 28,9% apresentam idade superior ou igual a 60 anos (Tabela 1).
Características dos 39 docentes entrevistados em instituição privada de ensino no município de São Paulo, 2012
O perfil dos participantes demonstra que a maioria (73,7%) tem graduação em Medicina (n = 28), porém apenas 23,7% deles se dedicam exclusivamente ao ensino em regime integral. Do total de participantes, 71,1% apresentam pós-graduação em nível de mestrado e 68,4% em nível de doutorado, sendo que 50% atuam em programas de pós-graduação stricto sensu.
Do total de docentes participantes, 27 (71,1%) referem ter recebido treinamento ou capacitação para o ensino, sendo que 11 deles (28,9%) não realizaram nenhuma capacitação para conduzir atividades educacionais. Masetto13 discute que o professor universitário apresenta, desde a implantação de cursos superiores no Brasil, o perfil de ser profissional competente na área em que atua, sendo que a competência técnica era (e continua sendo) a principal característica e pré-requisito do docente universitário. No entanto, embora seja fundamental, esta competência não basta para a docência universitária, incluindo a educação médica. É imprescindível que o professor tenha competência pedagógica e formação na área, para maximizar o aprendizado do aluno13,14,17-20. Paulo Freire afirma, em sua obra Pedagogia da autonomia, que ensinar exige segurança e competência profissional, assim como rigorosidade metódica, tanto no estímulo da capacidade crítica do aluno, quanto no ensino de conteúdos e atitudes éticas. Desta maneira, se evidencia a importância da formação do professor, enquanto profissional que deve buscar junto ao aluno o diálogo e o caminho da autonomia na sua formação2.
Do total dos departamentos da instituição, quatro não apresentaram participação no presente estudo. A ausência de participação pode demonstrar uma resistência ou desvalorização dos docentes em relação ao tema do estudo. Costa18 discute que, embora sejam necessárias mudanças no ensino médico para transformar o perfil do egresso do curso de graduação, os docentes de Medicina resistem em adotar novas metodologias de ensino-aprendizagem, havendo falta de profissionalização docente e desvalorização da formação docente do professor de Medicina18. Além disso, muitos professores evitam a autoavaliação (inclusive por meio de pesquisas), por ser um momento considerado negativo e desagradável, devido a possível exposição de fragilidades21,22. Freire discute, em seu livroPedagogia do oprimido, que os homens são seres históricos e inacabados, e que têm ciência de serem inacabados. No entanto, a relação de cada professor com a própria consciência de ser inacabado gera diferentes respostas às avaliações externas (como pode ser encarada uma pesquisa sobre docência na educação médica) e às estratégias quanto ao próprio aprendizado (enquanto formação docente empírica ou estruturada).
As respostas foram classificadas em três domínios, desenvolvidos de acordo com os eixos presentes na pedagogia freireana: (a) perspectiva de ensino bancária; (b) perspectiva de ensino dialógica (valorização do diálogo); (c) perspectiva problematizadora de ensino (valorização da autonomia).
A concepção bancária da educação aparece na maioria das respostas dos docentes e dos chefes de departamento. Dos 30 docentes (excluídos os chefes de departamento), 17 (56,7%) relataram uma perspectiva bancária do ensino em suas respostas. Como relata o docente 1, ensinar é “repassar o conhecimento de forma organizada” ou, segundo o docente 20, ensinar é “se atualizar para passar o conhecimento atualizado ao aluno. Preparar aula, plano de aula. Ministrar aula. Auxiliar alunos em atividades extraclasse, relacionadas à temática da disciplina”. O mesmo padrão é observado nas respostas dos chefes de departamento. Das oito respostas, cinco (62,5%) apresentam uma visão bancária da educação, tendo ensinar como “transmitir conhecimentos e experiências” (chefe de departamento 9).
Observa-se que a percepção dos docentes acerca do ato de ensinar está relacionada a uma concepção bancária de educação, focada na transmissão de conteúdos teóricos. No entanto, também foram incluídos domínios importantes para o ensino médico de qualidade em diversas respostas, tais como atitudes positivas, ética, valores profissionais e criticidade no processo de autoavaliação (conforme o relato do docente 31, ensinar é “transmitir o conhecimento médico, acompanhado de postura profissional – ética, bom senso, honestidade, autoavaliação”). Porém, grande parte das respostas ainda se encontra estritamente relacionada ao ato de “transmissão de conhecimento”, característico do modelo de educação bancária desenvolvido por Freire3.
O docente 6, ao responder que ensinar “é transmitir para o outro um conjunto de experiências de forma didática e educativa”, reforça novamente a concepção bancária de educação, mas valoriza, ao mesmo tempo, a metodologia na educação médica, demonstrando uma preocupação atual e necessária quanto ao formato pedagógico do ensino de Medicina. Masetto13discute a necessidade de debater o conceito de competência pedagógica, uma vez que o professor universitário era escolhido exclusivamente pela competência técnica na área em que seria docente. Segundo Masetto13:
Recentemente, professores universitários começaram a se conscientizar de que seu papel de docente do ensino superior, como o exercício de qualquer profissão, exige capacitação própria e específica que não se restringe a ter um diploma de bacharel, de mestre ou doutor, ou apenas o exercício de uma profissão. Exige isso tudo e competência pedagógica, pois ele é um educador, alguém que tem a missão de colaborar eficientemente para que seus alunos aprendam. Esse é seu ofício e compromisso(p.15).
A valorização da formação pedagógica na universidade é um processo gradual, impulsionada pelo impacto de novas tecnologias de informação e comunicação na divulgação e socialização do conhecimento (principalmente devido à utilização da internet) e no crescente acesso dos alunos a esta informação, gerando discussão quanto ao papel do professor no processo ensino-aprendizagem13. Na educação médica, a formação do docente vem sendo incentivada, mais especificamente desde as Conferências de Edimburgo, com o estímulo à incorporação de metodologias ativas de ensino-aprendizagem e a diversificação dos cenários de prática, em busca de promover a aprendizagem significativa dos alunos de Medicina5.
Portanto, embora haja uma concepção conservadora do seu papel enquanto professor, diversos docentes reiteram a importância da formação pedagógica, demonstrando uma possibilidade de avanço dos processos educacionais médicos. Esta valorização foi evidenciada na resposta do docente 20 (“se atualizar para passar o conhecimento atualizado ao aluno. Preparar aula, plano de aula. Ministrar aula. Auxiliar alunos em atividades extraclasse, relacionadas á temática da disciplina.”). Apesar de se encontrar fortemente relacionada à concepção bancária da educação (“passar conhecimento”), ela reforça a necessidade de programar e auxiliar os alunos em atividades fora da classe de aula e preparar atividades de ensino-aprendizagem, para além da tarefa de ministrar aulas de acordo com o modelo pedagógico hegemônico, que se restringe à realização de aulas expositivas. Esta concepção reitera a importância de uma formação pedagógica para docentes de Medicina em que haja um processo de reflexão sobre a docência e suas intencionalidades, não só no treinamento da construção de planos de aula e planos de disciplina e do uso de ferramentas educacionais, mas também como reflexão sobre a realidade em que se insere2,3,17.
Em relação à perspectiva dialógica do ensino (valorização do diálogo) foram identificadas apenas quatro respostas (13,3%) classificadas nesta categoria de análise entre os docentes. Para o docente 2, ensinar é “ter oportunidade de transmitir conhecimentos e ao mesmo tempo ter oportunidade de também aprender com quem ensinamos. Repassar uma visão mais crítica da sociedade onde atuamos e não apenas repetir conteúdos programáticos”. Ou ainda, segundo o docente 5, ensinar é “estar disposto a criar uma estrutura que permita processos de interação com os alunos”. No entanto, se considerarmos as respostas dos chefes de departamento, três (37,5%) apresentavam como perspectiva de ensino médico a inclusão e valorização do diálogo entre docentes e alunos da graduação médica. Segundo a percepção de menor parte dos docentes, o ensino apresenta uma característica inerentemente dialógica, estimulando uma construção conjunta, um caminho a ser trilhado pelo professor e pelo aluno, demonstrando uma visão mais horizontal de poder na relação professor-aluno. De acordo com a percepção dos docentes 2 e 5, embora a transmissão de conhecimentos esteja presente em sua concepção a respeito do ato de ensinar, evidenciamos também a valorização atribuída ao estabelecimento de relações dialógicas entre professores e alunos, uma vez que no processo de ensino-aprendizagem ambos os sujeitos aprendem e ensinam.
Paulo Freire reitera a importância da escuta na relação com os alunos, pois a disponibilidade para o diálogo com os alunos pressupõe a segurança do professor quanto à necessidade do respeito ao outro, aos seus valores, a sua história e, ainda, quanto à construção inacabada de seu próprio conhecimento2,3. Além disso, a dialogicidade é a base da pedagogia problematizadora ou pedagogia da libertação, segundo Freire. Por isso, foi considerado que docentes que reconhecem a perspectiva dialógica do ensino apresentavam uma visão mais avançada do processo ensino-aprendizagem.
No total, oito docentes (26,7%) e um chefe de departamento (12,5%) discutiram a importância da autonomia do aluno em suas respostas, o que demonstra uma concepção avançada de ensino. Para o docente 25, ensinar é “introduzir o aluno a uma nova área, dando os primeiros passos junto com ele, mas com o instrumento para que possa continuar a explorar a área por si só, a partir do momento em que conheça as ferramentas de busca, o jargão da área e tenha aprendido a analisar criticamente o que é discutido no campo específico. Se não gera esta independência futura, considero o ensino insatisfatório”. Já para o docente 37, ensinar seria “estimular o aluno para o conhecimento, não só para passar na prova, mas também para buscar mais informações e usá-las no seu dia a dia”. A valorização da autonomia e do diálogo por quase metade dos docentes e chefes de departamento participantes demonstra um cenário promissor de mudanças na instituição de ensino pesquisada, em busca de uma educação médica emancipadora. A relevância atribuída ao desenvolvimento de um pensamento crítico emerge como aspecto positivo nas respostas dos docentes, buscando uma postura mais ativa dos alunos e compromissada com os contextos e suas inúmeras possiblidades de análise. De acordo com a perspectiva do docente 22, segundo a qual ensinar consiste em “apresentar conteúdos de forma instigante que promova o pensamento crítico e a construção do conhecimento de forma ativa pelo aluno. É através de análise e síntese que se favorece a associação de conhecimentos. Ensinar é, antes de tudo, ensinar a aprender”, podemos identificar a potencialidade da perspectiva problematizadora de Paulo Freire3:
O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência (p.58).
Além disso, identificamos uma crescente valorização de aspectos atitudinais, como atitude humanista e valores éticos adequados, mostrando um avanço dos docentes quanto a uma visão mais complexa e completa do ensino médico. Muitos discutem a necessidade de desenvolver competências não somente dos domínios cognitivo e de habilidades, mas também de atitudes do exercício profissional, em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Medicina, de 2014. A valorização de atitudes, como evidenciada na perspectiva do chefe de departamento 24, em que ensinar é “promover a formação ética, humanística e profissional do aluno”, representa um importante desafio para a educação médica.
Frenk4 reforça a necessidade de valorizar o profissionalismo na educação médica, ao lado da responsabilização desses profissionais na transformação de sua realidade local junto ao sistema de saúde4. No entanto, apesar da valorização da postura profissional do médico em formação, é necessário um importante investimento na formação do docente para alcançar tais objetivos a contento. Estas atitudes também podem ser desenvolvidas mediante observação e experimentação de processos educacionais que permitam estabelecer interações, tanto na relação entre professor e aluno, quanto na relação entre médico/professor e paciente, coerentes quanto ao respeito das individualidades e dos contextos de cada sujeito. Afinal, diversos estudos apontam a importância do modelo na formação médica12,14,23.
Embora o presente estudo traga contribuições relevantes ao campo da educação médica, apresenta também algumas limitações devido à alta taxa de recusa (não desejo de participar) da pesquisa (n = 73, 65,2%). Diante deste dado, seria importante questionar se o perfil de docentes que não se interessam em participar de projetos de educação médica seria diferente dos que desejam participar. Os alunos da instituição estudada ainda apresentam contato com diversos profissionais de saúde nos diversos cenários de prática em que estagiam. Seriam suas concepções de ensino diferentes? Identificamos a necessidade de realizar novos estudos para responder a tais indagações.
Entre as limitações do desenho metodológico desta pesquisa, não foram realizadas avaliações das ações pedagógicas em ato por intermédio de observações, assim como não foi estudada a percepção dos alunos em relação aos seus professores, o que poderia contribuir de forma ainda mais significativa para esclarecer as concepções pedagógicas dos processos de ensino-aprendizagem e da relação entre professores e alunos de Medicina.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora parte dos docentes e chefes de departamento que participaram deste estudo tenha uma visão dialógica e promotora de autonomia no ensino médico, a maior parte deles ainda valoriza a perspectiva “bancária” da educação, segundo a concepção freireana. Desta maneira, são necessários esforços para discutir o papel do docente na formação médica e na sua educação permanente enquanto professores.
Inúmeras barreiras dificultam a transformação da formação de médicos no País, tais como: o pequeno investimento na formação de docentes, a falta de profissionalização do professor de Medicina e a desvalorização da carreira docente, o apelo à pesquisa em contraposição ao ensino de graduação13,14,17,18,19. Além disso, as instituições de ensino médico, assim como os processos de formação de profissionais de saúde ainda não se encontram alinhados aos desafios que os sistemas de saúde têm enfrentado, como: aumento de custos com saúde, transição demográfica e epidemiológica, mudanças das necessidades de saúde das populações e desigualdade de acesso entre os diversos grupos populacionais. Observa-se uma desarticulação entre as demandas de saúde e a formação médica, com treinamento para o cuidado pontual e transversal ao invés do necessário cuidado longitudinal, com foco hospitalar em contraposição à ênfase na atenção primária, e despreparo para o trabalho em equipe4.
A ressignificação do papel do professor e das relações estabelecidas com seus alunos configura-se como uma das principais ações de transformação da educação médica com vistas à qualificação dos serviços prestados aos usuários. Se o professor apresenta uma concepção bancária de ensino, este modelo será identificado pelos alunos durante os processos de aprendizagem: seja na orientação ao paciente, numa aula expositiva, durante a realização de uma consulta médica, numa ação de educação em saúde, em reunião de equipe interdisciplinar. Identificamos diversas evidências do impacto do modelo apresentado pelo professor/preceptor durante a formação dos graduandos em Medicina. Devemos atentar para a postura durante o exercício da profissão, assim como nas atividades de ensino23. Se as interações estabelecidas entre educadores e educandos são relações verticalizadas e repousam numa concepção de poder e de dominação, transformando o sujeito em mero objeto da produção do conhecimento técnico pautado por uma racionalidade biomédica, o ensino será sempre imbuído da concepção bancária da educação, permeando todo o currículo oculto, baseado nos modelos e padrões de comportamento a que os alunos e futuros médicos estão expostos.
Desta maneira, é preocupante que a maioria dos docentes ainda apresente uma forte concepção bancária do ensino, mesmo com alta frequência de capacitação para o ato pedagógico (afinal, 71,1% dos professores participantes desta pesquisa relataram ter realizado treinamento para a atividade docente). Assim, é imprescindível discutirmos, cada vez mais, os futuros caminhos da formação do docente para o ensino da Medicina, de modo a qualificarmos o ensino-aprendizado e potencializarmos as ações de assistência à saúde da população.
Mas que pressupostos poderiam compor o horizonte pedagógico norteador dos processos de formação docente? Neste sentido, gostaríamos de ressaltar a importância da ressignificação das concepções acerca do “que é ensinar”, ou seja, do papel do professor no ensino médico, pois acreditamos que a mera instrumentalização dos docentes com novas “técnicas pedagógicas”, sem a reflexão necessária acerca dessa concepção, poderia tornar-se extremamente estéril e superficial, por reproduzir mais uma vez o modelo bancário de educação. Assim, Freire3 relata:
Assim como não posso ser professor sem me achar capacitado para ensinar certo e bem os conteúdos de minha disciplina, não posso, por outro lado, reduzir minha prática docente ao puro ensino daqueles conteúdos. Esse é um momento apenas da minha atividade pedagógica. Tão importante quanto ele, o ensino dos conteúdos é meu testemunho ético ao ensiná-los. É a decência com que o faço. É a preparação científica revelada sem arrogância, pelo contrário, com humildade. É o respeito jamais negado ao educando, a seu “saber de experiência feito” que busco superar com ele. Tão importante quanto o ensino dos conteúdos é minha coerência na classe. A coerência entre o que digo, o que escrevo e o que faço (p.101).
Neste sentido, a formação do docente requer a emancipação crítica do seu papel enquanto formador e a valorização do diálogo real, justo e ético com o aluno. O docente precisa reaprender a ouvir e a ser humilde. Na relação com seu aluno, com seu paciente e com sua equipe. Precisa ter esperança e coragem, de ensinar, de aprender e de se reinventar a cada momento2,3.
REFERÊNCIAS
- 1 Romão JE. Paulo Freire e a Universidade. Revista Lusófona de Educação 2013; 24: 89-105.
- 2 Freire P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 2005.
- 3 Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2011.
- 4 Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professional for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet 2010;376:1923-58.
- 5 Feuerwerker LCM. O Movimento Mundial de Educação Médica: as Conferências de Edinburgh. Cadernos ABEM 2006;2:30-38.
- 6 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. – Brasília: Ministério da Saúde; 2004.
- 7 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.
- 8 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção à Saúde. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. 3.ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.
- 9 Lampert JB. Tendências de Mudanças na Formação Médica no Brasil: tipologia das escolas. 2.ed. São Paulo: Hucitec/ Associação Brasileira de Educação Médica; 2009.
- 10 Campos FE, Ferreira JR, Feuerwerker L, Sena RR, Campos JJB, Cordeiro H, Cordoni Jr L. Caminhos para aproximar a formação de profissionais de saúde das necessidades da Atenção Básica. Rev Bras Educ Med 2001; 25(2):53-59.
- 11 Brasil. Ministério da Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução no 3, 20 junho de 2014. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União, Seção 1, número 117, 23 de junho de 2014.
- 12 DasGupta S, Fornari A, Geer K, Hahn L, Kumar V, Lee HJ et al. Medical education for social justice: Paulo Freire revisited. J Med Humanit 2006;27:245-251.
- 13 Masetto MT. Competência pedagógica do professor universitário. 2ª edição revisada. São Paulo: Summus editorial; 2012.
- 14 Srinivasan M, Li ST, Meyers FJ, Pratt DD, Collins JB, Braddock C, Skeff KM, West DC, Henderson M, Hales RE, Hilty DM. “Teaching as a competency”: Competencies for Medical Educators. Acad Med 2011;86 (10):1211-20.
- 15 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70 editora; 2011.
- 16 Lakatos EM, Marconi MA. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas; 1991.
- 17 Batista NA, Batista SH. A docência em saúde: desafios e perspectivas. In: Batista NA, Batista SH. Docência em saúde: temas e experiências. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2004.
- 18 Costa NMSC. Docência no Ensino Médico: Por Que é Tão Difícil Mudar? Rev Bras Educ Med 2007;31(1):21-30.
- 19 Pimenta SG, Anastasiou LGC. Docência no Ensino Superior. 4.ed. São Paulo: Cortez editora; 2010.
- 20 Steinert Y, Mann K, Centeno A, Dolmans D, Spencer J, Gelula M, Prideaux D. A systematic review of faculty development initiatives designed to improve teaching effectiveness in medical education: BEME guide no8. Med Teach 2006;28(6):497-526.
- 21 Hoffmann JML. Pontos & Contrapontos: do pensar ao agir em avaliação. 11.ed. Porto Alegre: Mediação editora; 2011.
- 22 Perrenoud P. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artmed editora; 1999.
- 23 Jochemsen-Vanderleeuw RHGA, Van Dijk N, Van Etten-Jamaludin FS, Wieringa-De-Waard M. The atributes of the clinical trainer as a role model: a systematic review. Acad Med 2013;88(1):26-34.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Set 2015
Histórico
-
Recebido
14 Ago 2014 -
Revisado
02 Abr 2015 -
Aceito
24 Abr 2015