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Percepções dos estudantes de medicina da ufop sobre sua qualidade de vida

Perceptions of ufop medical students about their quality of life

Resumos

Assim como em qualquer comunidade, fatores estressantes estão presentes no dia a dia dos acadêmicos de Medicina, impactando sua qualidade de vida. Como um desdobramento da experiência pedagógica na disciplina Saúde e Sociedade, do curso de Medicina da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), um grupo de alunos decidiu investigar o tema, a fim de conhecer a própria percepção sobre o assunto. A partir de um grupo focal e com base em parâmetros adotados pelo Grupo de Qualidade de Vida da OMS, foram analisados fatores que têm determinado a qualidade de vida dos acadêmicos de Medicina. O principal elemento considerado na qualidade de vida do estudante de Medicina da Ufop é uma extensa carga horária curricular, frequentemente associada a uma carga excessiva de atividades extracurriculares, que limitam práticas de esporte, lazer e qualidade de sono. Outro ponto considerável é a precária relação dos alunos com a infraestrutura da cidade. Considera-se o grande desafio que se apresenta à adequação do programa do curso às diretrizes curriculares nacionais sem prejuízo das condições necessárias à saúde física e mental dos graduandos.

Educação Médica; Qualidade de Vida; Educação em Saúde; Estresse


As in any community, stressing factors are present in the day-to-day of medicine students, impacting on their quality of life. As a development of the teaching experience in the discipline "Health and Society", at the medical school of the Universidade Federal de Ouro Preto, a group of students decided to investigate the subject in order to undestand their own perceptions of the issue. A focus group was organised, based on the parameters adopted by the WHO Quality of Life Group, and factors used to determine medical students’ quality of life were analysed. The main elements considered relevant to the quality of life of UFOP medical students are related to long curricular class hours, often associated to an excessive load of extracurricular activities, which limit the practice of sport, leisure and quality of sleep. Another significant point is the precarious relationship between students and the city’s facilities. The great challenge lies in adjusting the course program to national curriculum guidelines without affecting the necessary conditions for the students’ physical and mental health.

Medical Education; Quality of Life; Health Education; Stress


PESQUISA

Percepções dos estudantes de medicina da ufop sobre sua qualidade de vida

Perceptions of ufop medical students about their quality of life

Adriana Maria de FigueiredoI; Gustavo Meirelles RibeiroI; Ana Luiza Martins ReggianiI; Bruno de Araujo PinheiroI; Gabriela Oliveira LeopoldoI; Jessica Almeida Horta DuarteI; Ligia Barros de OliveiraI; Luisa Martino AvelarI

IUniversidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil

Endereço para correspondência ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Adriana Maria de Figueiredo Universidade Federal de Ouro Preto/ Escola de Medicina Campus Universitário Morro do Cruzeiro – Ouro Preto CEP: 35400-000 – MG E-mail: adrianamfigueiredo@medicina.ufop.br

RESUMO

Assim como em qualquer comunidade, fatores estressantes estão presentes no dia a dia dos acadêmicos de Medicina, impactando sua qualidade de vida. Como um desdobramento da experiência pedagógica na disciplina Saúde e Sociedade, do curso de Medicina da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), um grupo de alunos decidiu investigar o tema, a fim de conhecer a própria percepção sobre o assunto. A partir de um grupo focal e com base em parâmetros adotados pelo Grupo de Qualidade de Vida da OMS, foram analisados fatores que têm determinado a qualidade de vida dos acadêmicos de Medicina. O principal elemento considerado na qualidade de vida do estudante de Medicina da Ufop é uma extensa carga horária curricular, frequentemente associada a uma carga excessiva de atividades extracurriculares, que limitam práticas de esporte, lazer e qualidade de sono. Outro ponto considerável é a precária relação dos alunos com a infraestrutura da cidade. Considera-se o grande desafio que se apresenta à adequação do programa do curso às diretrizes curriculares nacionais sem prejuízo das condições necessárias à saúde física e mental dos graduandos.

Palavras-Chave: Educação Médica; Qualidade de Vida; Educação em Saúde; Estresse.

ABSTRACT

As in any community, stressing factors are present in the day-to-day of medicine students, impacting on their quality of life. As a development of the teaching experience in the discipline "Health and Society", at the medical school of the Universidade Federal de Ouro Preto, a group of students decided to investigate the subject in order to undestand their own perceptions of the issue. A focus group was organised, based on the parameters adopted by the WHO Quality of Life Group, and factors used to determine medical students’ quality of life were analysed. The main elements considered relevant to the quality of life of UFOP medical students are related to long curricular class hours, often associated to an excessive load of extracurricular activities, which limit the practice of sport, leisure and quality of sleep. Another significant point is the precarious relationship between students and the city’s facilities. The great challenge lies in adjusting the course program to national curriculum guidelines without affecting the necessary conditions for the students’ physical and mental health.

Keywords: Medical Education; Quality of Life; Health Education; Stress.

INTRODUÇÃO

Qualidade de vida é um conceito amplo que exige uma contextualização no tempo e no espaço1 e envolve parâmetros subjetivos, como felicidade e prazer, e também objetivos, como necessidades básicas de vida compatíveis com o grau de desenvolvimento da sociedade e a promoção da saúde2.

Os profissionais de saúde têm como verdade comprovada que uma das principais estratégias para promover a qualidade de vida do paciente é o cuidado integral do indivíduo, incluindo não só suas condições físicas e psicológicas, mas também sua inserção no ambiente em que vive2. Sabe-se, porém, que esses profissionais nem sempre aplicam tais estratégias em benefício próprio. Um grupo específico da área da saúde, composto pelos acadêmicos de Medicina, sofre influência permanente de fatores estressantes1,3-8. Tais fatores – como pressão para aprender grande quantidade de novas informações, falta de tempo para atividades sociais, contato com doenças graves e com a morte no cuidado dos pacientes – podem contribuir para o aparecimento de sintomas depressivos7. Em decorrência dessas condições, observa-se "alta prevalência de suicídio, depressão, uso de drogas, distúrbios conjugais e disfunções profissionais em médicos e estudantes de Medicina, que podem prejudicar o cuidado do paciente" (p.92)5.

O interesse por esta pesquisa se originou desse quadro inegável e dos desdobramentos da experiência pedagógica estabelecida na disciplina Saúde e Sociedade, obrigatória na grade curricular do primeiro período do curso de Medicina da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Das atividades propostas aos estudantes, constam o planejamento e o desenvolvimento de uma investigação científica relacionada com um dos temas trabalhados durante a fase inicial da disciplina, de acordo com as expectativas e interesses do grupo.

Entre os referidos temas, inclui-se a análise da profissionalização da assistência à saúde, que abrange a compreensão dos processos de formação de profissionais de saúde e de trabalho em saúde. No desenvolvimento desse tópico, foram discutidas as vicissitudes do "formar-se médico" e "ser médico" em face dos desafios apresentados pela evolução histórica e social da assistência à saúde e pelo mercado de trabalho na era contemporânea. O tema foi abordado no contexto das políticas sociais, enfocando a situação brasileira. Tais análises instigaram os estudantes coautores deste estudo a buscar melhor entendimento sobre a origem dos fatores que têm gerado situações estressantes vividas por estudantes de Medicina, relatadas na literatura sobre a formação e o trabalho médico, com impactos negativos sobre a qualidade de vida desses profissionais.

A pesquisa ora apresentada resultou, pois, da necessidade de os próprios estudantes de Medicina da Ufop conhecerem as visões pessoais sobre qualidade de vida, correlacionando-as com resultados apresentados na literatura especializada sobre o tema. A pesquisa foi realizada por um grupo de seis acadêmicos (na ocasião, cursando o segundo período) do curso de Medicina e por dois professores do curso, com o apoio de duas professoras do Departamento de Educação da Ufop e dois bolsistas de iniciação científica, um do curso de Letras e outro do curso de Pedagogia, que se responsabilizaram pela aplicação do grupo focal para a coleta das informações. Trata-se não só de um trabalho de reflexão sobre o processo educacional, representado pelo esforço investigativo dos estudantes como sujeitos de sua própria análise, mas também de um trabalho de pesquisa, associado à busca de compreensão dos elementos determinantes da qualidade de vida do estudante de Medicina da Ufop, com vistas à realização de estudos posteriores sobre o tema e à formulação de estratégias educacionais que contribuam para um processo de construção da vida com a qualidade almejada.

Em outras palavras, os objetivos deste estudo foram conhecer as percepções dos acadêmicos de Medicina da Ufop sobre sua qualidade de vida, em especial no que afeta sua vida escolar; comparar a percepção desses estudantes com estudos realizados com outros grupos de alunos de Medicina e com médicos; e, por fim, como objetivo prático, levantar dispositivos que possam contribuir para a qualidade da educação médica e subsidiar mecanismos de acompanhamento e avaliação curricular, no sentido de promover melhor qualidade de vida do estudante de Medicina da Ufop.

METODOLOGIA

O projeto desta pesquisa foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Ufop (Número de Aprovação Sisnep: 00440238000-11), e o material de pesquisa empírica foi manipulado exclusivamente pelos professores pesquisadores, os quais mantêm a guarda dos originais sob sua responsabilidade.

O termo "qualidade de vida", como conceito, encontra na definição do Grupo de Qualidade de Vida da Organização Mundial de Saúde (Whoqol) sua expressão mais consagrada, tendo sido sua construção objeto de pesquisa que seguiu metodologia envolvendo a participação de vários países, representantes de diferentes culturas: "a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações" (p.179)9. Com base nos resultados dessa pesquisa, o Grupo desenvolveu um instrumento de avaliação de qualidade de vida com cem questões10 (o Whoqol-100) e, posteriormente, sua versão abreviada Whoqol-bref9. A metodologia possibilitou delimitar características psicométricas satisfatórias para se proceder à avaliação da qualidade de vida de forma sistemática e padronizada, passível de ser submetida à comparação em diferentes contextos sociais. Os instrumentos avaliam os domínios físico, psicológico, de independência, de relações sociais, de meio ambiente e de espiritualidade/crenças pessoais relacionados com a qualidade de vida.

Estudos recentes sobre a qualidade de vida dos estudantes de Medicina no Brasil1,5,7 utilizam essa metodologia e mensuram os domínios contemplados por esses instrumentos para proceder à sua análise. Seguindo a mesma tendência, esta investigação se orientou pelo conceito de qualidade de vida construído pelo Whoqol e considerou os domínios nele delimitados para obter e discutir os dados coletados entre os estudades de Medicina da Ufop.

Foi empregada a técnica do grupo focal para a coleta das informações, por proporcionar maior possibilidade de uma aproximação dos elementos subjetivos presentes na situação educacional experienciada pelos estudantes que dela participam, permitindo a incorporação do "universo do estudante de Medicina" por intermédio do viés de sua própria percepção. Após um esforço de reflexão, os estudantes puderam se expressar como grupo, realçando, durante o processo de pesquisa, seu estilo de viver e de pensar.

A importância da técnica do grupo focal tem sido reconhecida para a pesquisa no campo da saúde, por se tratar de um instrumento de diagnóstico rápido e de baixo custo, adequado para complementar informações, coletar dados sobre atitudes, opiniões, percepções e comportamentos relativos à saúde. O grupo focal não é voltado para estudar a frequência com que determinados comportamentos ou opiniões ocorrem. Pode ser considerado uma espécie de entrevista coletiva, na qual o interesse consiste justamente na interação estabelecida entre os participantes do grupo, que, ao ser observada e analisada, permite colher dados baseados na discussão focada em tópicos específicos e diretivos (por isso é chamado grupo focal)11.

Teoricamente, esse desenho metodológico se aporta no interacionismo simbólico de Mead e Blumer, o qual concebe a vida social como resultado de inter-relações que permeiam a construção de significados pelos sujeitos e pelos grupos, num processo interpretativo. Cada um é estimulado a construir simbolicamente os significados que são atribuídos em diferentes situações sociais. "Tais símbolos são necessários às interações entre as pessoas e são, ao mesmo tempo – reflexivamente – produtos dessas interações" (p.20)12.

Para se obter a percepção dos estudantes de Medicina da Ufop, foi realizado um grupo focal composto por dois estudantes de cada período do curso, selecionados por meio de sorteio realizado pela lista de matriculados em cada período, fornecida pela Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) da universidade. Os selecionados foram convocados ao receberem carta-convite explicativa. Esta pesquisa se tornou possível pelo fato de as informações coletadas terem sido obtidas de forma totalmente espontânea e participativa, uma vez que os respondentes eram o próprio objeto de estudo. Além disso, foram-lhes garantidos a confidencialidade e o anonimato, eliminando-se o risco de identificação das opiniões individuais.

A montagem do grupo focal foi planejada de modo a contar com a colaboração de professores do Departamento de Educação da Ufop, com experiência nas técnicas de pesquisa qualitativa, que assumiram a função de moderadores do grupo, criando um ambiente propício, em que diferentes percepções e pontos de vista pudessem vir à tona sem que houvesse nenhuma pressão sobre os participantes do grupo, o que poderia ocorrer caso fossem entrevistados por seus professores e colegas. A entrevista foi gravada com a aquiescência dos entrevistados, procedimento que garantiu a máxima fidedignidade às falas dos entrevistados, condição essencial para a validade dos resultados, tendo em vista que as representações sociais apresentadas por meio dessas falas constituíam o foco da pesquisa.

As gravações foram transcritas pelos dois professores do curso de Medicina e, em seguida, as falas foram confrontadas entre si e sua coerência criticada. Depois, foram agrupadas de acordo com as categorias e domínios relacionados à análise da qualidade de vida. Nessa fase, foram utilizados diversos títulos, com base nas categorias empíricas, seguindo desenho metodológico desenvolvido e utilizado por Minayo13. Esse mecanismo propiciou a delineação de um primeiro quadro com o conteúdo geral da discussão do grupo focal, no qual apareceram os principais elementos para a construção da visão manifestada pelo grupo de estudantes sobre sua qualidade de vida.

Adotando-se a mesma estratégia de análise13, a classificação dos dados foi feita realizando-se os seguintes procedimentos: seleção de determinados aspectos da realidade, pela ênfase que lhes foi dada durante as falas e a discussão estabelecida no grupo focal; confronto desse material empírico com as teorias existentes sobre os aspectos selecionados.

Dessa forma, por exemplo, foi possível perceber a organização curricular do curso de Medicina como eixo central para a análise da qualidade de vida do grupo. Com base nesse conceito central, buscou-se identificar as implicações que os padrões instituídos na grade curricular do curso tiveram na qualidade de vida dos estudantes.

Os resultados foram tabulados após a distribuição dos assuntos discutidos em quatro categorias ou domínios utilizados pela Organização Mundal de Saúde para análise de qualidade de vida (Whoqol_abreviado)9: aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais. A partir de cada categoria, ainda de acordo com o instrumento citado, detalhou-se a divisão dos temas, agrupando-os em subcategorias. Finalmente, os resultados foram sumarizados e reunidos em estruturas de relevância, como síntese das falas, integrando os depoimentos no que tinham em comum. A estrutura de relevância se refere a uma lógica de posicionamentos e construção de pontos de vista subjacente ao grupo social, que é o que interessa à abordagem qualitativa analisar, como descreve Minayo, em obra citada13.

Como instrumento investigativo complementar, foram distribuídos questionários aos alunos participantes, com perguntas relacionadas a características socioeconômicas, baseadas em pesquisa recente que avalia o perfil socioeconômico e cultural dos estudantes de graduação da Universidade Federal de Ouro Preto14.

RESULTADOS

Os resultados da análise das ideias desenvolvidas pelo grupo focal, apresentados a seguir, estão organizados de acordo com as categorias e subcategorias:

Aspectos físicos

Satisfação com a saúde: A saúde foi considerada importante, mas tem ficado comprometida pela impossibilidade de manutenção de estilo de vida saudável, sendo difícil conciliar atividades que priorizam a saúde com as que são exigidas pelo trabalho acadêmico;

Satisfação com o sono: A qualidade e a duração do sono foram avaliadas como insatisfatórias, mais uma vez pela dificuldade de conciliar atividades escolares, sono e lazer;

Satisfação com a alimentação: O horário das refeições foi considerado reduzido, seja por causa da grade curricular, que sobrecarrega o aluno de atividades, seja por causa de aulas que extrapolam os horários definidos, ocupando parte do horário das refeições, seja por causa do tempo excessivo despendido em deslocamentos para realizar as atividades práticas. Essa situação é agravada ainda pelas filas que se têm de enfrentar para acesso ao Restaurante Universitário (RU), pelo alto preço das refeições em outros restaurantes e pela incompatibilidade entre os horários comerciais de supermercados e a demanda dos estudantes. Assim, frequentemente tem-se que optar por uma alimentação precária, composta de alimentos como sanduíches, macarrão, enlatados, etc.;

Prática de atividades físicas: O desejo e a necessidade de praticar esportes são frustrados pela falta de horários compatíveis para frequentar academias e pela inadequação do centro esportivo universitário para atender aos estudantes.

Estrutura de relevância desta dimensão para o grupo:

– Grade curricular organizada em período integral como principal obstáculo para a satisfação da qualidade de vida em relação aos aspectos físicos, dificultando ou até mesmo impedindo a prática de atividades físicas, a observação de cuidados com a alimentação e a saúde, e a garantia da qualidade e duração do sono;

– Oferta precária de infraestrutura em relação a serviços oferecidos pelo município e pela universidade voltados para alimentação, lazer e prática de exercícios físicos.

Aspectos psicológicos

Momentos angustiantes: Desilusão diante da expectativa de que a entrada na universidade garantisse um ritmo de vida mais tranquilo do que o vivenciado no período pré-vestibular. Cobrança permanente da família em relação ao alcance de objetivos tais como obtenção de boas notas; construção, ainda durante o curso, de currículo competitivo; enfim, expectativa de sucesso absoluto em qualquer atividade. Frustração relacionada às dificuldades de manutenção de padrão de vida com lazer e tempo para realização de atividades físicas. Sentimento de solidão causado pelo afastamento de parentes e amigos e ambiente doméstico. Dúvidas quanto à própria formação para se tornar um bom médico;

Momentos gratificantes: Finalização de atividades ao longo dos semestres com obtenção de boas notas; realização de seminários e conclusão de projetos; envolvimento em atividades com a comunidade; reconhecimento do mérito por pacientes e professores; organização e/ou participação em festas; amor pela medicina; possibilidade de usufruir o que a escola tem a oferecer (centro acadêmico, convívio com pessoas);

Expectativa de futuro: Realização do projeto de vida de ser um bom médico, alcançar objetivos profissionais, garantir a participação em residência que realmente habilite o concluinte a exercer suas funções com competência, responsabilidade e segurança. Expectativa negativa de que a qualidade de vida continue no mesmo padrão ou piore. Oportunidade de participação na reforma do currículo e na consolidação do curso, através do centro acadêmico;

Memória e concentração: Modernização das estratégias de ensino-aprendizagem, evitando-se as aulas expositivas tradicionais; dificuldade de concentração, principalmente nos finais de tarde e noite.

Estrutura de relevância desta dimensão para o grupo:

– Competitividade entre estudantes de Medicina que os impulsiona a se envolver em vários projetos além dos deveres curriculares, tendo em vista a vida profissional futura, as exigências do mercado de trabalho e a oportunidade de inserção em residência médica no final do curso;

– Medicina como sonho, como meta de vida, cujo alcance implica esforço. Reafirmação de que é característica dos estudantes de Medicina essa busca incessante, na qual vale sacrificar sua qualidade de vida;

– Valorização do potencial participativo e criativo dos estudantes;

– Críticas às aulas expositivas.

Aspectos sociais

Satisfação com relações sociais: Sentimento de isolamento e preconceito em relação aos estudantes de outros cursos, em face da dificuldade de esses grupos acolherem o "jeito de ser" do estudante de Medicina. Convivência rica e próxima entre estudantes e professores;

Satisfação com relações sexuais: Relações amorosas associadas com a vida estudantil, com o curso, trazem dificuldades de manter relacionamentos com pessoas de outras áreas, quando há sentimento de incompreensão. Opinião compartilhada por poucos sobre as vantagens de se relacionar com pessoas de outras áreas;

Administração do tempo: Dificuldade muito grande de organizar o tempo, devido ao horário integral do curso e ausência de intervalos para descanso ou realização de outras atividades acadêmicas extracurriculares (áreas verdes);

Realização de tarefas: Necessidade de construir novas formas de realizar as tarefas escolares, que atualmente ocorrem de forma árdua e assistemática. Ao longo do curso, melhor coordenação entre as necessidades de alcançar a aprendizagem e a adoção de estratégias para garantir maior eficiência nos estudos. Envolvimento intenso e constante em projetos de ensino, pesquisa e extensão, com vistas à obtenção de um currículo competitivo. Excesso de tarefas acadêmicas com prejuízos para o lazer, a alimentação e as atividades físicas;

Religiosidade: Existência de praticantes de diferentes correntes religiosas e de aceitação dessa diversidade. Presença de ceticismo/cientificismo na medicina bloqueia a vivência da espiritualidade/religiosidade na universidade.

Estrutura de relevância desta dimensão para o grupo:

– Disponibilidade e organização do tempo cruciais para uma boa qualidade de vida;

– Restrição das relações sociais entre membros do curso de Medicina e outros existentes na Ufop;

– Melhor administração do tempo e mais facilidade na escolha de atividades a serem realizadas com o avanço do curso, mas sempre à custa de sacrifício, pois o aprendizado continua árduo;

– Vivência religiosa muito presente e tida como importante, mas não discutida nos espaços formais e informais de convivência estudantil.

Aspectos ambientais

Mudança de cidade: Presença de grande número de estudantes de outras cidades e estados. Vivência inicial com dificuldades relacionadas à cidade de Ouro Preto (infraestrutura), seguida de adaptação. Cidade pequena, favorecendo a criação de laços;

Saída da casa dos pais/nova moradia: Confronto com a necessidade de construir um novo padrão de cuidado de si mesmo e administração das relações com os pais, parentes e amigos, marcadas pelas mudanças pessoais. Valorização da convivência com pessoas de culturas diferentes numa mesma república. Aprendizado em cuidar da economia doméstica;

Condições de moradia: Moradias estudantis como possibilidade de construção de nova sociabilidade, baseada em modelo libertário e consciente de projeto de vida. A universidade provê moradia que melhora a qualidade de vida;

Lazer: Momentos de lazer raros, frequentemente associados ao consumo de álcool e à realização de festas.

Estrutura de relevância desta dimensão para o grupo:

– Concentração de relacionamentos sociais e amorosos entre os próprios estudantes de Medicina, por causa do estilo de vida e da forma de organização do tempo que os diferencia de outros grupos;

– Construção de uma comunidade estudantil que gere um novo padrão de sociabilidade, convivência e colaboração entre os grupos;

– Existência de boa estrutura de apoio ao estudante na Ufop por meio de bolsas, de atendimento à saúde, alimentação e moradia.

Em relação ao questionário, a Tabela 1 mostra os resultados obtidos.

DISCUSSÃO

Em seu clássico estudo sobre a profissão médica, Freidson15 já mostrava o papel que as instituições de formação médica exercem na construção de valores e significados que são partilhados, fazendo com que a profissão eduque a si mesma, de forma autossuficiente e segregada. Ao analisar as avaliações da qualidade de vida dos estudantes de Medicina no que se refere aos aspectos físicos e psicológicos, é possível notar a influência de características marcantes da profissão e da estrutura organizacional do currículo do curso em suas vidas. Esse é um dos aspectos de destaque apresentados pelos recentes estudos sobre a qualidade de vida dos estudantes de Medicina no Brasil1,5. Dentre os estudantes de Ouro Preto, encontram-se avaliações semelhantes às desses estudos, nas quais a dificuldade de organização e adequação do tempo para atender às necessidades da formação – relacionadas à excessiva carga horária das atividades curriculares ou às exigências pessoais de alto desempenho e competitividade – se apresenta como o principal obstáculo para manter uma desejável qualidade de vida. Os resultados foram concordantes entre os dados obtidos durante as discussões do grupo focal e as respostas coletadas do questionário oferecido aos participantes do grupo. Observou-se uma carga horária elevada em horas/aula que, no entanto, não impede a disponibilização de mais de 12 horas semanais para atividades extracurriculares, na opinião de mais da metade dos entrevistados. A "falta de tempo" é vislumbrada como responsável pela impossibilidade de manter níveis desejáveis de descanso, lazer, trabalho e alimentação.

Importa destacar que as escolas de Medicina brasileiras passam por um paradigmático período de mudanças16 para atender às orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais, na perspectiva de consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). A construção dos novos projetos pedagógicos para as escolas ainda apresenta desafios, entre os quais os assinalados nas pesquisas sobre a qualidade de vida dos estudantes, principalmente o de conciliar as necessidades de formação médica com um adequado uso do tempo, permitindo ao estudante usufruir melhor condição de vida e saúde.

Em Ouro Preto, um agravante apresentado pelos estudantes se refere a questões de infraestrutura, tanto da universidade, quanto do município, que não propiciam condições para a prática de atividades físicas e de lazer ou, até mesmo, a compra de produtos comestíveis, uma vez que o comércio local tem horários incompatíveis com os da escola. O mesmo problema de horário se verifica no restaurante universitário, utilizado por 67% dos entrevistados neste trabalho.

Voltando aos clássicos estudos das profissões15,17,18, pode-se destacar a forte influência das mecanismos de profissionalização dos médicos e das modalidades de inserção no mercado de trabalho e na escala de prestígio profissional em nossa sociedade nos aspectos psicológicos descritos pelos estudantes. Assim, é marcante em suas falas a representação da medicina como uma meta, um sonho, cujo alcance exige esforço, talvez maior do que o de outras profissões; algo pelo qual se justifica sacrificar a própria qualidade de vida, sendo essa percepção, muitas vezes, apontada como característica desse grupo profissional.

Quanto às questões pedagógicas, ficou clara nas discussões do grupo a dificuldade em lidar com aulas expositivas, o que parece estar correlacionado com as resistências às mudanças no processo de ensino-aprendizagem comuns ao ambiente universitário16. Isto pode ainda ter origem nas dificuldades de adaptação ao ambiente e às exigências da universidade1,5,19, que se diferenciam das experiências anteriores dos acadêmicos no ensino médio e nos cursos de preparação para exames vestibulares.

Com efeito, o processo de tornar-se médico "com conhecimento e jeito de médico" ultrapassa a proposta de uma grade curricular. O aluno vivencia um processo de socialização que, além da aquisição de saberes técnicos e habilidades, se constrói em comportamentos e valores dominantes dessa profissão, por meio de exemplos dos próprios professores médicos ou do comportamento da sociedade frente aos "doutores"20.

A discussão sobre a construção de estratégias que possam ter influência na melhoria do padrão de qualidade de vida de estudantes, como valorização de relacionamentos interpessoais e prática de atividades físicas e de lazer8, passa necessariamente pela consciência da estrutura de um arquétipo que espelha um comportamento da classe profissional, que se inicia no período da graduação, mas que pode se manter durante a residência médica e a vida profissional.

Esse padrão de comportamento poderia estar associado ao sentimento de isolamento dos alunos do curso de Medicina em relação aos de outros cursos, assim como à dificuldade de se relacionarem afetivamente com pessoas de ambientes diversos.

Um aspecto relevante em relação à qualidade de vida dos estudantes da Ufop é o distanciamento relativo da família. Entre os alunos que têm famílias bastante afastadas da cidade, 61% dos entrevistados as visitam somente em feriados prolongados ou férias. Em recente estudo sobre o perfil dos estudantes de graduação da Ufop14, a carência de "relacionamento familiar" compareceu como principal agente estressante, seguido da "adaptação a novas situações (cidade, moradia, separação da família, entre outras)" na vida acadêmica. Assim, seria interessante elaborar estratégias de reforço das relações pessoais com amigos e familiares8, criando-se estratégias que viabilizem essas práticas.

Em relação à religiosidade, verificou-se que não é comentada no ambiente estudantil, mas vivenciada em outros espaços da cidade. A natureza científica e o caráter laico da universidade corroboram esse comportamento, mas não impedem que grupos se identifiquem e discutam temas correlatos entre si. A vivência da religiosidade (ou espiritualidade) pode ser também um caminho para o enfrentamento do estresse gerado pelas atribulações da vida acadêmica8.

Um diferencial apresentado pelo grupo de estudantes desta pesquisa é a valorização de um espírito participativo que faz com que se estabeleça uma cumplicidade entre alunos, professores e gestores, no sentido da construção de um projeto colaborativo de consolidação de um curso de Medicina que alcance alto patamar em termos de excelência da formação. Justificativa razoável para isso pode ser o fato de a escola abrigar, no momento, um número relativamente restrito de ingressantes no curso de Medicina (40 alunos a cada semestre) e por terem os estudantes uma interação muito próxima com os professores e com a comunidade. Esse padrão de interpretação pode também estar associado ao modelo de gestão da escola, que permite a representação estudantil em todas as esferas de administração dos cursos oferecidos.

CONCLUSÃO

A percepção da qualidade de vida pelo estudante de Medicina da Ufop acompanha as avaliações sobre o tema apresentadas nos estudos publicados com estudantes brasileiros. Reflete o modelo socialmente construído da profissão médica e das expectativas que gera.

Os depoimentos e as estruturas de relevância que deles emergiram apontam um grupo em transformação, sobre o qual incidem as mudanças recentes em movimento na estrutura curricular da formação médica: propostas de novos modelos pedagógicos que convivem com as resistentes formas de ensinar e aprender pautadas nas aulas expositivas e na valorização de conteúdos e práticas centrados em cargas horárias excessivas.

O desafio que se apresenta é o de renovar as dinâmicas, mas sem perder de vista o guia que as lidera: o processo de socialização que ocorre dentro e fora dos muros escolares e que tem nítida relação com o exercício da profissão da forma como está instituído e consagrado.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Professores Adriana Maria de Figueiredo e Gustavo Meirelles Ribeiro participaram do design, elaboração e execução da pesquisa, análise dos dados e escrita do artigo.

Graduando do sexto período do curso de medicina Ana Luiza Martins Reggiani, Bruno de Araujo Pinheiro, Gabriela Oliveira Leopoldo, Jessica Almeida Horta Duarte, Ligia Barros de Oliveira, Luisa Martino Avelar participaram do design e elaboração do projeto, da discussão teórica, da seleção dos sujeitos da pesquisa, do convite para a participação no grupo focal e da organização desse grupo.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram à Revista Brasileira de Educação Médica não haver conflito de interesses no presente manuscrito.

AGRADECIMENTO

Os autores agradecem às professoras Dra. Célia Maria Fernandes Nunes e Dra. Regina Magna Bonifácio de Araújo (Instituto de Ciências Humanas e Sociais, UFOP), à acadêmica Valéria de Oliveira Gomes (curso de Pedagogia, UFOP) e ao acadêmico José Antônio Oliveira Júnior (curso de Letras, UFOP), integrantes do NESFE - Núcleo de Estudos Sociedade, Família e Escola - ICHS/ UFOP - pela coordenação e execução do grupo focal realizado neste estudo.

Recebido em: 12/11/2013

Aprovado em: 29/08/2014

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  • 2. Minayo MCS,
  • 3. Silva FB,
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  • 5. Alves JGBMT,
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  • ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
    Adriana Maria de Figueiredo
    Universidade Federal de Ouro Preto/ Escola de Medicina
    Campus Universitário Morro do Cruzeiro – Ouro Preto
    CEP: 35400-000 – MG
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Aceito
      29 Ago 2014
    • Recebido
      12 Nov 2013
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