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Planos de Composição em Ato: possibilidades poéticas do cotidiano

Plans de Composition en Action: possibilités poétiques du quotidien

Resumo:

Este artigo discute a noção de ação performativa como planos de composição em ato, deslocando a ideia de presença para processos relacionais, nos quais a intensidade da experiência vivida se atualiza no jogo construído a cada instante. Para tanto, apoiamo-nos na experiência de uma pesquisa desenvolvida pelo Núcleo Fuga! como processo criativo que busca fabricar enquadres que tensionam o nexo entre real e ficcional. Desse modo, a partir dos procedimentos escolhidos, artistas e público articulam convites e modos de relação mediados por uma poética híbrida entre dança, teatro e performance, tentando, assim, abrir a escuta às dramaturgias instantâneas que o cotidiano oferece. Tal intento parte do pressuposto de que o Real e a Ficção são planos sobrepostos, existentes numa zona virtual que, ao ser atualizada em ações poéticas pelos artistas em cena, dispara composições cartográficas apoiadas nas relações corpo-ambiente-dramaturgia.

Palavras-chave:
Composição em Ato; Virtual; Presença; Ficção; Realidade

Résumé:

Cet article discute la notion d'action performative en tant que plans de composition en action, déplaçant l'idée de présence vers celle de processus relationnels, dans lesquels l'intensité de l'expérience vécue s'actualise dans le jeu construit à chaque instant. A cette fin, nous nous appuyons sur l'expérience d'une recherche développée par le Núcleo Fuga! comme processus créatif qui cherche à fabriquer des perspectives capables de déployer un lien entre le réel et le fictif. De cette forme, à partir des procédures choisies, les artistes et le public articulent des invitations et des formes de mise en relation à travers une poétique hybride entre la danse, le théâtre et la performance. Ils essaient, ainsi, d'ouvrir leur écoute aux dramaturgies instantanées que le quotidien propose. Partant du présupposé que le Réel et la Fiction sont des plans superposés, existants dans une zone virtuelle que, lorsqu'elle est actualisée par les artistes sur la scène par des actions poétiques, déclenche des compositions cartographiques basées sur les relations corps-environnement-dramaturgie.

Mots-clés:
Composition en Action; Virtuel; Présence; Fiction; Réalité

Abstract:

This paper discusses the notion of performative action as compositional plans in action, shifting the idea of presence to relational processes in which the intensity of lived experience is refreshed in the game framed in each moment. To this end, we draw from a research experience developed by Núcleo Fuga! as a creative process that aims to engender framings that strain the bond between real and fictional. Hence, in a flow from the chosen procedures, artists and public articulate enticements and modes of relationship mediated by hybrid poetics of dance, theater and performance, intending, as consequence, to open the senses to the instant dramaturgies that habit offers. That process is fed by the underlying assumption that Real and Fiction are overlapping plans in a virtual space in which poetic action is refreshed by the artists at play, shooting cartographic compositions supported by the relations between body, environment and dramaturgy.

Keywords:
Composition-in-Action; Virtual; Presence; Fiction; Reality

Começos são sempre provisórios (Christine Greiner)1 1 Em palestra realizada no Itaú Cultural, São Paulo, no dia 09 de agosto de 2015. .

Este trabalho pretende discutir a experiência da ação performativa O que você está fazendo agora [?]2 2 Funções específicas de pesquisa/criação - concepção e desenvolvimento: Núcleo Fuga!. Direção Geral: Flávio Rabelo. Coordenação de pesquisa do movimento: Ana Clara Amaral. Assistência de pesquisa do movimento: Dora de Andrade. Em Ação: Ana Clara Amaral, Bruna Reis, Camila Fersi, Dora de Andrade, Flávio Rabelo, Gabriela Giannetti e Roberto Rezende. - desenvolvida pelo Núcleo Fuga!3 3 O Núcleo Fuga! é um dos grupos vinculados ao Laboratório Fuga, espaço de experimentação transdisciplinar que explora contaminações poéticas entre as linguagens do teatro, da dança e da performance, sob a coordenação geral de Renato Ferracini do LUME Teatro. Dentre as obras artísticas já realizadas nesse laboratório, destacam-se: 1) Fuga! (2007 - Prêmio Funarte Myriam Muniz); 2) Después (2013 - Prêmio Funarte Klauss Vianna). Atualmente os artistas pesquisadores do Núcleo Fuga! dedicam-se ao Projeto cAsa que tem a intervenção O que você está fazendo agora?, como uma das ações em andamento. . Construída entre a dança, a performance e o teatro, essa ação tem, como dispositivos de criação, alguns procedimentos utilizados para fabricar enquadres poéticos que tencionem a relação entre Real e Ficcional, tentando abrir a escuta às dramaturgias instantâneas que o cotidiano oferece e (re)criar ações a partir do que já está acontecendo4 4 Grande parte da apresentação realizada no FEVERESTIVAL 2015 (Festival Internacional de Teatro de Campinas) está disponível em: <https://youtu.be/P2Ck9c-tlnA>. A ação ocorreu no dia 30 de janeiro de 2015, no Terminal Central de Campinas/SP. Imagens de Leonardo Lee. .

Para tanto, conforme será problematizado ao longo do texto, partimos do entendimento de que o Real e a Ficção são planos sobrepostos, completamente imbricados e interdependentes, existentes numa zona virtual (Lévy, 1996LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996.) que, em ação poética5 5 Estamos considerando, principalmente, ações poéticas realizadas por artistas da cena/corpo, aqueles que executam a criação em ato compartilhado enquanto atuam, dançam, performam. , é atualizada pelos artistas. Assumimos, ainda, em nossa proposta de pesquisa cênica, que a performatividade em jogo não está, necessariamente, vinculada e/ou restrita aos artistas proponentes da ação, mas busca, por vezes, apenas emoldurar, espelhar e ecoar o que já está no espaço e nos corpos que o ocupam, disparando composições cartográficas apoiadas nas relações corpo-ambiente-dramaturgia.

Inicialmente, é preciso afirmar que, no desenvolvimento desta pesquisa artística, apoiamo-nos numa concepção das artes da cena como linguagem, que permite a experimentação não padronizada do movimento humano, promovendo uma complexa experiência estética, tanto para os que executam quanto para os que olham os corpos em ação. Nessa perspectiva, a cena pode ser motriz inicial para derivações, diálogos e estéticas híbridas, colocando a experiência do corpo e do próprio acontecimento cênico além da noção espetacularizada da arte e estabelecendo, assim, uma poética relacional em que o espectador é um conviva da experiência artística.

De modo geral, a performance O que você está fazendo agora [?] pesquisa territórios de experimentação cênica que tensionam o diálogo entre arte e vida cotidiana. Nesse sentido, exploram-se dois campos de investigação que estão paradoxalmente vinculados: o primeiro é a casa em seus movimentos íntimos; o segundo são os espaços públicos em seus movimentos aleatórios - transversalmente a esses dois espaços, o próprio cotidiano, em seus detalhes mais insignificantes, considerados como matéria poética de inspiração e de expressão.

O processo de pesquisa/criação, assim, desloca-se a partir das tensões surgidas entre a sobreposição desses dois territórios. Nessas trilhas, por um lado, o ambiente da casa, suas sutilezas, rastros e ecos criam impressões como cenário sensível e transitório para disparar os movimentos pesquisados. Por outro lado, se a casa revela aos artistas envolvidos os seus movimentos de intimidade e de pertencimento, os artistas se desafiam a atualizá-los no meio do espaço público - por entre os terminais urbanos (Imagem 1), espaços de passagem e/ou de pequenas esperas, impessoais e imprevisíveis. Essas vêm sendo as tensões disparadoras do processo, assumido, desde o início, como um manifesto ao cotidiano, em suas dinâmicas e mobilidades.

Imagem 1:
Apresentação no dia 30 de janeiro de 2015, no Terminal Central de Campinas/SP, dentro do Invasão Urbana do FEVERESTIVAL 2015 (Festival Internacional de Teatro de Campinas).

A ação performativa tem seu Programa apoiado em três procedimentos: 1) as cartografias corporais - a apropriação de padrões de comportamento e movimentação cotidianos, que são espelhados, enquadrados e ecoados pelos artistas, que os transformam em movimentos de dança; 2) composição de pequenas instalações com objetos cotidianos previamente escolhidos pelos artistas, que se instauram pelo espaço como Assemblages itinerantes; 3) narrativas em deriva, realizadas na terceira pessoa do presente - o fluxo narrativo é disparado tanto pelas Assemblages criadas quanto pelas cartografias corporais, como quem contorna o espaço presente do aqui e agora, ao mesmo tempo em que investiga a atualização de memórias e ainda a recriação de um universo de fabulação e depoimento pessoal. Os três procedimentos são utilizados em dosagens e intensidades variadas, como estratégias de abordagem e infiltração no espaço (Imagem 2).

Assumida pelos artistas como um jogo, a ação tem caráter duracional, variando em fases de maior e menor visibilidade e interferindo e recompondo o próprio cotidiano a partir de suas dinâmicas. Vem sendo executada em espaços fechados (saguões, corredores e espaços de convivência)6 6 Participando da Sessão de Arte do VI ENELIM (Encontro Internacional de Estudos da Linguagem. Pouso Alegre/MG; outubro de 2015), do Lume 30 anos 30 horas (Sede do Lume Teatro. Campinas/SP; abril de 2015) e da Ocupação na galeria do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro/RJ; novembro de 2014). e em espaços abertos, privilegiando os terminais e pontos de ônibus, estações de metrô, rodoviárias, aeroportos7 7 Participando do FEIA 16 (Festival do Instituto de Artes da Unicamp. Campinas/SP; setembro de 2015) e do XI Festival Internacional de Teatro de Campinas - Feverestival (Invasão Urbana. Terminal Central. Campinas/SP; janeiro de 2015). . A pesquisa em dança apoia-se na conscientização e exploração do movimento, por meio da Técnica Klauss Vianna de dança e educação somática, articulada a alguns princípios da mímese corpórea do LUME Teatro e a procedimentos do Cambar Coletivo, como as cartografias corporais e as narrativas em derivas.

Imagem 2:
Apresentação no dia 30 de janeiro de 2015, no Terminal Central de Campinas/SP, dentro do Invasão Urbana do FEVERESTIVAL 2015 (Festival Internacional de Teatro de Campinas).

Assim, estar em cena é visto como um convite ao experienciar-se em ato. Nesse sentido, aquilo que se cria é também o que se vive, o que pulsa em cada corpo como força de vida e expressão. Apostamos nessa perspectiva por considerá-la capaz de abrir precedentes para aquilo que é também nosso desejo neste trabalho: a investigação das dimensões invisíveis dos corpos, expressas nas tramas dos espelhamentos afetivos. Aciona-se, com isso, derivas virtuais que nos provocam a experimentar a composição em ato como uma possibilidade de gerar e intensificar relações de diferenças.

Talvez aqui devamos problematizar o que chamamos de experiência ou composição em ato. Trabalhamos forças que existem na relação entre dois ou mais corpos e que não são mediados por protocolos expressivos a priori; força - na definição em Física Clássica - é algo que se efetiva na relação entre dois ou mais corpos e só pode ser mensurada no efeito que causa neles. Em última análise, pesquisamos maneiras de inventar relações, modos de convite a relações qualitativamente potentes. Convites e modos relacionais mediados pela poética híbrida entre dança, teatro e performance. Esse campo de forças deve emergir a partir da materialidade dos corpos envolvidos, e tão somente dos corpos envolvidos. Não existe uma forma específica e codificada a priori para uma dança ou uma atuação. Pouco importa se o atuador tem uma perna ou duas, se ele é gordo ou magro, se tem experiência prévia em artes cênicas ou não. Perguntas práticas emergem, como: com este corpo específico, o atuador pode convidar à força, ou seja, promover e efetuar uma relação qualitativamente ampliada? Ou como: com estes corpos específicos, podemos trabalhar a materialização de um convite ao encontro, poético e inventivo, com o outro, sem um protocolo expressivo-estético a priori? Ou: se ele existir, como pode estar a serviço da construção de um encontro qualitativamente potente? Nesse contexto, podemos pensar a ação presencial cênica para além da acepção comum de uma arte coletiva e defini-la, de forma mais precisa, como um território de composição em ato a partir de um coletivo que comunga o mesmo tempo-espaço. Mais ainda, que essa efetuação gerada no encontro entre corpos possa intensificar, de forma qualitativamente mais potente, todos os corpos envolvidos na composição. Pensamos o encontro como gerador de efeitos de presença. Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.) lembra-nos de que o conceito de presença se define pela relação de materialidades que geram, nessa composição, efeitos de presença. Ele pressupõe pensar experiências de presença ou, ainda, efeitos de presença em que qualquer tipo de relação afetiva com seus elementos materiais "tocará" os corpos que estão em relação de modos específicos e variados, ou seja, essa inter-relação material entre-corpos está sempre sujeita a efeitos de maior ou menor intensidade (Gumbrecht, 2010).

Como realizamos essa busca? Tomemos como exemplo um corpo espetacular. Temos aqui várias partes envolvidas: os atores, o tempo, o espaço, o público, o figurino, o cenário, a luz, os procedimentos de criação, as técnicas (de atuação, vocais, relacionais etc.). Há, na composição de um espetáculo cênico, muitas partes envolvidas, cada qual um corpo em si absolutamente complexo. Pensemos esses procedimentos de criação e esse conjunto de técnicas como protocolos expressivos. A questão problemática: como, a partir de todas essas presenças - o público, os atores, o espaço de encenação, o tempo, e os protocolos expressivos -, podemos gerar efeitos de presença no processo de composição em ato de um corpo-espetacular que busca uma postura de intensificação de potência? Como efetuar uma postura ético-política de compor um espetáculo no qual todas as partes envolvidas ampliem a capacidade de ação no mundo? Esse é o nosso campo problemático de investigação e há algumas consequências positivas nessa postura. Uma delas é verificar que os protocolos expressivos são apenas uma parte-corpo a entrar na composição do espetáculo, ou seja, a meta não é aplicação sine qua non de qualquer tipo de protocolo, assim como não são objetivo do acontecimento cênico o ator, o espectador, o espaço, a luz ou mesmo a dramaturgia, mas a composição de um evento poético cênico em ato desses corpos na busca de ampliação de potência. É nessa problemática - a maneira de composição, o como compor de forma inventiva - que se instaura nosso campo de investigação. Como lançar os protocolos nessa zona de composição? Já que Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofreniav. 4. Tradução de Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.) definem a arte e a criação como uma composição complexa de matérias de expressão, uma outra pergunta análoga, porém mais instigante, apresenta-se: como inserir os protocolos numa zona de inventividade?

Quando falamos de inventividade, não nos referimos ao novo - "a busca do novo é muito velha", como diria nosso amigo Fernando Villar, professor de artes cênicas da UnB, em comunicação pessoal (2005) -, mas à disposição de inventar outros modos de composição. Inventar, nesse caso, seria uma capacidade composicional cuja postura ético-política propõe ampliação de potência de todas as partes envolvidas. O ato de invenção não se vincula à busca do novo, mas está relacionado a como compor. É nesse campo que os problemas da área de artes presenciais são os mesmos de outras áreas. Pensar que o artista e o campo das artes já solucionaram o problema da composição e já aboliram os protocolos expressivos, alçando seu fazer numa suposta liberdade criativa, é uma visão absolutamente romântica da arte presencial. Podemos dizer que as artes presenciais são, como todas as outras áreas, um campo no qual os protocolos, na condição de modos de operação de processos criativos, colocam-se de uma forma muito contundente, mesmo que sejam protocolos temporários. Dizemos ainda que esses protocolos medeiam a maioria dos modos de produção cênica na atualidade, ou seja, existe um modo de criação cênica em que são determinadas as funções dos atores, diretores, espaço, texto, luz, som, dramaturgia cênica e até mesmo maneiras organizadas de recepção, de fazer sentir e até mesmo um modo protocolar de fazer pensar. Existe uma construção mediada, transversalizada e hierarquizada pelos protocolos. É uma composição? Sim, é uma composição. Possui efeito de presença? Sim, possui. No entanto, é um efeito de presença e uma composição reconhecida, normatizada, organizada, capturada e que busca afirmar o mesmo. Vale afirmar que a questão não é negar os protocolos, pois são corpos necessários na composição. Impossível realizar um concerto de Rachmaninoff com apenas duas aulas de piano. Se não praticarmos o processo de reconstrução para que as mãos e o corpo, como um todo, componham com o piano, não tocaremos Rachmaninoff. Os protocolos, como técnicas, são absolutamente necessários. O problema é: como colocar esses protocolos em composição inventiva? Seria um grave erro buscar uma resposta definitiva para essa questão, pois essa postura nos levaria a uma espécie de meta-protocolo. Esse assunto, antes de nos levar a possíveis respostas, nos insere, diretamente, num campo ético-político (ou, ainda, ético-micropolítico) inventivo de outros modos possíveis de composição, e investigar esses outros modos composicionais posiciona nosso foco de atenção nos elementos processuais. Talvez sejam os próprios processos composicionais que nos darão pistas sobre seus outros modos de operação. Em outras palavras: é o próprio processo de criar um evento cênico que engendra o corpo-espetáculo. Para deixar ainda mais complexo: a obra final é ela mesma um processo.

Um exemplo do que estamos chamando de processo ou de composição em ato, fora do contexto das artes presenciais, para nos proporcionar o tão sonhado, e impossível, distanciamento do objeto: compramos um livro sobre como surfar; fizemos a leitura do início ao fim; além do livro, ainda temos um conhecimento muito profundo do atrito da prancha com a água e do corpo com o vento; após muitos cálculos exatos, sabemos os tamanhos das ondas e a velocidade do vento naquele momento e realizamos um estudo minucioso sobre o equilíbrio dos corpos; munidos de todas essas informações, pegamos nossa prancha e surfamos? Não! Por quê? Porque existe uma espécie de conhecimento presencial do processo da ação de surfar que se dá na composição em ato entre a prancha, a onda, o vento, o corpo, o equilíbrio, o atrito e todo o treinamento técnico, erros e acertos anteriores da busca desse surfar. Existe a invenção em ato de um corpo-prancha-vento-onda-técnica-do-surf que nos faz surfar e que se dá na composição entre as materialidades de suas partes, tão complexas quanto a própria composição: antes da invenção do corpo-ato-de-surfar, precisaríamos ter treinado, construído esse outro corpo como técnica (ou protocolo) do surfar; precisaríamos da prancha, da onda e do vento, porque, sem esses elementos, não surfamos. É com todos esses artefatos, que estão dispersos, que precisamos construir e compor um só corpo. Composição é o ato ontogenético da ação, uma ontogênese da ação em ato. Nesse sentido, a composição é um processo, que podemos chamar de conhecimento e que emerge da ação de experimentação, gerando efeitos de presença. O que interessa, no entanto, não são os efeitos de presença em si, mas aqueles que possuam o ethos de uma relação intensa que amplie, qualitativamente, a capacidade de potência das partes envolvidas.

Imagem 3:
Apresentação no dia 30 de janeiro de 2015, no Terminal Central de Campinas/SP, dentro do Invasão Urbana do FEVERESTIVAL 2015 (Festival Internacional de Teatro de Campinas).

Tendo em vista tais características e as dificuldades que este tipo de abordagem implica, comprometendo nossas certezas aos limites entre público e privado, à noção de intimidade, do espaço do outro e do campo relacional (Imagem 3), foi inevitável uma aproximação mais intensificada com reflexões e práticas relacionadas ao campo da arte da performance. Principalmente, no que se refere à articulação de procedimentos criativos, com a vida do próprio artista, assumindo que, muitas vezes, a preparação para as ações performáticas se dá no dia a dia, fora da sala de trabalho, no viver cotidiano. Não há como temer ou rejeitar a noção de uma certa preparação para alguma coisa em favor da (im)possibilidade constante do cotidiano ser 'elevado'8 8 É comum que se pense o estado de criação artística como algo elevado, acima do cotidiano. Interessa-nos, também, pesquisar outras abordagens que prevejam criação como uma fissura, abismo, escavação, arqueologia, cartografia. em potência performativa e do corpo se estabelecer como território de experiências, quando, dessa maneira, arte e vida se misturam completamente. Ou seja, trata-se, nesse campo impreciso e arriscado, de assumir, cada vez mais, a prática do performer/criador como um conjunto de práticas (CsO - Deleuze; Guattari, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofreniav. 4. Tradução de Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.), engajado em um certo modo de existir, que vai definindo ou preparando o performador em ato e ampliando a concepção da própria arte e de seus dispositivos para criar.

Assim, por exemplo, o trinômio treinar-ensaiar-apresentar pôde ser reconfigurado pela noção de acontecimento, de ação intensificada como experiência disparada pela criação, troca e execução de Programas Performativos. Performar passa a ser, portanto, atuar nesses modos de existir, nos modos como se concebem a própria vida e suas experiências criadoras. Interessa-nos, aqui, pensar experiências para criar além de gêneros artísticos, refazendo um percurso entre arte e vida cotidiana, como potência criativa de memória, imaginação e ação poética.

Sendo assim, lançamos mão de algumas dessas questões para nos provocar os seguintes questionamentos: quais as condições necessárias para estar em cena? Quais as condições necessárias para dançar/atuar/performar? A partir dessas questões, propomo-nos a criar situações cotidianas para dançar, aproveitar essas situações cotidianas para dançar e, ainda, provocar o olhar a perceber tais situações como dança: como a sua casa dança? Quais e quantas danças o seu cotidiano revela e produz?

Foram esses questionamentos que levaram à escrita e execução dos primeiros Programas Performativos realizados em grupo, porém, individualmente, nas casas dos artistas envolvidos. Esses primeiros materiais experimentados foram reorganizados em novos Programas executados coletivamente em eventos presenciais. O que tivemos, assim, foi o surgimento de uma rede de Programas Performativos que, aos poucos e a partir das experiências vividas, apontava as direções da pesquisa e os próximos desafios aos artistas envolvidos9 9 Vídeo-dança realizado a partir dos primeiros Programas Performativos compartilhados. Disponível em: <https://youtu.be/gNU2VsBiIOY>. . Sobre os Programas Performativos, vale afirmar, com base em Eleonora Fabião (2013FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: o corpo-em-experiência. Revista Ilinx, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276 >. Acesso em: 29 jul. 2015.
http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistad...
, p. 4), que "[...] muito objetivamente, o programa é o enunciado da performance: um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser realizado pelo artista, pelo público ou por ambos sem ensaio prévio".

Dessa maneira, podemos pensar os Programas como as estruturas previamente elaboradas do que será executado, contendo, em si, tanto a ideia de direções a serem seguidas quanto a de movimento e experiência. Há, pois, um traçado, mas há também previsto o vazio do 'aqui e agora' e o risco dos movimentos a ele inerente. Fabião (2013FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: o corpo-em-experiência. Revista Ilinx, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276 >. Acesso em: 29 jul. 2015.
http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistad...
, p. 4) destaca, ainda, a importância da objetividade nessa elaboração dos Programas; em suas palavras, "[...] proponho que quanto mais claro e conciso for o enunciado - sem adjetivos e com verbos no infinitivo - mais fluida será a experimentação. Enunciados rocambolescos turvam e restringem, enquanto enunciados claros e sucintos garantem precisão e flexibilidade".

Não podemos esquecer, contudo, que, em se tratando do território de criação artística, toda objetividade precisa ser banhada nas 'singularidades em jogo', para que, dessa forma, provoquem, como diz Fabião, "precisão e flexibilidade" (2013FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: o corpo-em-experiência. Revista Ilinx, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276 >. Acesso em: 29 jul. 2015.
http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistad...
, p. 4). Então, estamos apostando na necessidade de uma certa dose de ambiguidade no enunciado dos Programas; para possibilitar que algo do outro (que irá executar a proposta) possa se expressar10 10 Geralmente os Programas são criados pelos próprios artistas que irão executá-lo, mas também há a possibilidade de escrita compartilhada, em que, em rede, artistas trocam Programas como parte do desenvolvimento de pesquisas poéticas. No Brasil, nos último anos, tal prática vem sendo pesquisada e difundida por diversos artistas e coletivos; entre eles, o que mais influenciou as reflexões aqui apresentadas, foi o Cambar Coletivo. Para saber mais a respeito, ver página disponível em: <www.cambarcoletivo.com>. . Ou ainda: consideramos que os enunciados dos Programas, por mais objetivos que sejam, sempre deixaram certos vazios que só em ato se revelarão. Isso sempre convocará dúvidas, levando o executor a se expressar através das decisões que será convocado a tomar.

Vale destacar, ainda, que por vezes a elaboração prévia do que se irá fazer pode surgir apenas segundos antes do fato em si, visto que, em se tratando também de Performance Art, abre-se muito espaço para os impulsos, acasos e para a espontaneidade. Por conta desses aspectos, os Programas, geralmente, são refeitos e ajustados a partir do que já foi experimentado, e seus enunciados podem, inclusive, ser escritos após a execução da ação. De uma forma geral, conforme Fabião (2013FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: o corpo-em-experiência. Revista Ilinx, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276 >. Acesso em: 29 jul. 2015.
http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistad...
, p. 4):

Programa é motor de experimentação porque a prática do programa cria corpo e relações entre corpos; deflagra negociações de pertencimento; ativa circulações afetivas impensáveis antes da formulação e execução do programa. Programa é motor de experimentação psicofísica e política. Ou, para citar palavra cara ao projeto político e teórico de Hanna Arendt, programas são iniciativas.

Durante os encontros da pesquisa, procuramos gerar nossas iniciativas a partir da ideia de Corpo em Espinosa (2011ESPINOSA, Baruch de. Ética Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 238 p.)11 11 Por sua vez, a noção de Corpo em Espinosa exerce forte influência na forma como Deleuze (2002) conceitua os Territórios. Para Deleuze, os Territórios preveem, em seu agenciamento, os movimentos constantes de desterritorialização e reterritorialização - sempre entre os fluxos das linhas molares, moleculares e de fuga. . Corpo não apenas humano: uma palavra, um afeto ou um pensamento podem ser chamados de Corpo em Espinosa. O Corpo seria, então, uma forma individualizada no espaço. Contudo, essa forma individualizada estrutura-se como um sistema dinâmico de extrema complexidade, "originária e essencialmente relacional" (Chauí, 2011CHAUÍ, Marilena. Desejo, Paixão e Ação na Ética de Espinosa São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 73), com movimentos internos e externos regidos por dois aspectos: ser constituído de outros corpos menores e coexistir com outros corpos externos. Sobre o Corpo em Espinosa, diz-nos Deleuze (2002DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002., p. 1):

Como Espinosa define um corpo? Um corpo qualquer, Espinosa o define de duas maneiras simultâneas. De um lado, um corpo, por menor que seja, sempre comporta uma infinidade de partículas: são as relações de repouso e de movimento, de velocidades e de lentidões entre partículas que definem um corpo, a individualidade de um corpo. De outro lado, um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que também define um corpo na sua individualidade. Na aparência, são duas proposições muito simples: uma é cinética, e a outra é dinâmica. Contudo, se a gente se instala verdadeiramente no meio dessas proposições, se a gente as vive, é muito mais complicado e a gente se torna então espinosista antes de ter percebido o por quê.

Nesse caminho de abordagem, por ser essa singularidade dinâmica e relacional, o corpo e a ideia de corpo se fortalecem no âmbito da densidade de suas conexões, passando a ser "[...] mais forte, mais potente, mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas relações com os outros corpos, isto é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções corporais" (Chauí, 2011CHAUÍ, Marilena. Desejo, Paixão e Ação na Ética de Espinosa São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 73).

A escolha da sobreposição dos espaços paradoxais de pesquisa (a intimidade da casa e o anonimato dos espaços públicos) surge como uma aposta nessa ideia na qual o território de potência para o corpo em arte seria o da ampliação dos graus de complexidade do sistema relacional no qual ele se insere (Imagem 4).

Imagem 4:
Apresentação no dia 30 de janeiro de 2015, no Terminal Central de Campinas/SP, dentro do Invasão Urbana do FEVERESTIVAL 2015 (Festival Internacional de Teatro de Campinas).

Ainda de um ponto de vista conceitual, um dos dispositivos impulsionadores desse processo de criação se apoia nas reflexões de Pierre Lévy (1996LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996.) acerca das camadas de visibilidade e invisibilidade que constituem os seres. Em seu texto principal sobre o assunto, o livro O que é o Virtual?, Lévy (1996) articula outra noção sobre o humano, na qual os corpos são vistos como adensamentos provisórios num fluxo de virtualizações e atualizações. Assim, para Lévy, a noção de sujeito passa a existir além dos limites da carne ou da psique, diluindo-se numa multiplicidade pela qual os limites do corpo deixam de ser a sua morada exclusiva. Somos, a partir do que o autor nos sugere, esse fluxo eterno e constante entre virtualizações e atualizações.

Nessa abordagem de Lévy (1996LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996.), há um aspecto que nos interessa: o autor nos coloca no meio de um movimento de transformação constante, revelando as dinâmicas que põem a ideia de sujeito atrelada a uma processualidade que se recria no embate entre os agenciamentos efetivados.

Por um lado, a entidade carrega e produz suas virtualidades: um acontecimento, por exemplo, reorganiza uma problemática anterior e é suscetível de receber interpretações variadas. Por outro lado, o virtual constitui a entidade: as virtualidades inerentes a um ser, sua problemática, o nó de tensões, de coerções e de projetos que o animam, as questões que o movem, são uma parte essencial de sua determinação (Lévy, 1996LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996., p. 15-16).

Vivemos, cotidianamente, assim, entre a criação de atuais (a passagem de um virtual para um atual - ou seja, sua atualização) e a problematização de virtuais (a passagem de um atual para um virtual - sua virtualização). Seria o mesmo que dizer que nosso corpo se expressa a partir do atrito íntimo com o que o move e o paralisa, envolto num emaranhado de linhas de materialidades diversas. A nossa expressão vai ganhando forma a partir dos graus de composição - aberturas, fissuras, enlaces, sobreposições - que cada corpo é capaz (ou não) de agenciar.

A atualização ia de um problema a uma solução. A virtualização passa de uma solução dada a um (outro) problema. Ela transforma a atualidade inicial em caso particular de uma problemática mais geral, sobre a qual passa a ser colocada a ênfase ontológica. Com isso, a virtualização fluidifica as distinções instituídas, aumenta os graus de liberdade, cria um vazio motor. Se a virtualização fosse apenas a passagem de uma realidade a um conjunto de possíveis, seria desrealizante. Mas ela implica a mesma quantidade de irreversibilidade em seus efeitos, de indeterminação em seu processo e de invenção em seu esforço quanto a atualização. A virtualização é um dos principais vetores da criação de realidade (Lévy, 1996LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996., p. 18).

Por ser o movimento problematizador, a virtualização pode estar associada às nossas dinâmicas de desterritorialização. Podemos, ainda, associar a virtualização com as passagens do interior para o exterior e vice-versa (efeito Moebius): os instantes de passagem; não o interior, nem o exterior, mas o que acontece entre eles.

Pensando na estrutura do nosso Programa Performativo, encontramos, nas reflexões de Lévy, o desenho do território onde realidade e ficção se enlaçam. Ao considerarmos as dinâmicas entre virtuais e atuais, temos que aceitar que o corpo que se põe em ação performativa - e que, com isso, recria-se - estaria envolto numa movimentação ainda mais intensa e complexa na qual real e ficção se misturam, visto que se inserem num duplo processo de virtualização.

Se, em nosso cotidiano, já seríamos um eterno território de passagem, o corpo-em-arte seria aquele que intensifica seus fluxos. "A arte é difícil de definir por estar quase sempre na fronteira da simples linguagem expressiva, da técnica ordinária (o artesanato) ou da função social muito claramente designável. Ela fascina porque põe em prática a mais virtualizante das atividades" (Lévy, 1996LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996., p. 78).

O território da arte nasceria, segundo o autor, da confluência das três grandes correntes de virtualização do ser humano - as linguagens, as técnicas e as éticas -, deflagrando, assim, processos relacionais que acionam virtualizações de virtualizações. A partir desse entendimento, um ator em cena, por exemplo, estaria, então, atualizando um complexo jogo entre forças, e a potência da sua presença estaria atrelada a como ele consegue articulá-las: tanto as do nível das significações perceptíveis, conscientes e visíveis - o nível de percepção da obra de arte -, quanto as das sensações microperceptivas, inconscientes e invisíveis - o nível de sensação da obra de arte. Cada um desses níveis se articula com uma complexidade própria e a relação agenciada entre eles é complexa ao infinito, como nos diz Lévy (1996LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996., p. 78-79):

A virtualização, em geral, é uma guerra contra a fragilidade, a dor, o desgaste. Em busca da segurança e do controle, perseguimos o virtual porque nos leva para regiões ontológicas que os perigos ordinários não mais atingem. A arte questiona essa tendência, e portanto virtualiza a virtualização, porque busca num mesmo movimento uma saída do aqui e agora e sua exaltação sensual. Retoma a própria tentativa de evasão em suas voltas e reviravoltas. Em seus jogos, contém e libera a energia afetiva que nos faz superar o caos. Numa última espiral, denunciando assim o motor da virtualização, problematiza o esforço incansável, às vezes fecundo e sempre fadado ao fracasso, que empreendemos para escapar à morte.

Quando pensamos no caso das artes presenciais, atualizar esse complexo jogo de virtualizações seria o mesmo que se diluir a cada ação a ponto de tudo o que acontece passar a ser fruto do corpo coletivo que se constrói.

Uma cena, assim, passa a ser vista como um agenciamento que inclui o corpo do ator dentro dela, mas, em si, forma outro corpo maior, do qual o ator é apenas uma parte. Então, o ator, por mais que seja o proponente ou executor da ação, deve-se diluir ativamente entre os outros elementos constituintes desse corpo para que sua presença crie, em ato, a organicidade do todo. Quando isso ocorre, a ação cênica transforma-se num acontecimento, na qualidade de um corpo coletivo. E um corpo coletivo, se for realmente coletivo, assim como todos os outros corpos fazem, irá lutar para se perseverar na existência12 12 Todo corpo está, segundo Espinosa (2011), carregado de seu Conatus, que se define como o seu esforço de continuar existindo. (Espinosa, 2011ESPINOSA, Baruch de. Ética Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 238 p.). Isso não significa apenas que esse corpo coletivo irá lutar para não se desfazer; significa, também, que esse encontro ou arranjo será experimentado e percebido por suas partes como um momento de intensificação e expansão da vida.

Nos momentos em que a presença do ator consegue abrir e manter a sensação coletiva de um presente que poderia ser eterno, de um agenciamento com força suficiente para se perceber conjuntamente como um único organismo, o que se percebe é, exatamente, a intensidade da expressão das forças de expansão da vida.

O acontecimento artístico é, assim, sempre duplo ao quadrado: ele é atual, mas mantém linhas de afetação na zona de potência microperceptiva da virtualidade, podendo ser transformado como própria atualidade, no percurso do acontecer, em processo e fluxo de transformação. Enquanto o acontecimento se efetiva, ele pode se transformar. A potência inerente aos acontecimentos é o que faz com que eles não se repitam, mesmo dentro de uma mesma estrutura - virtualizações de virtualizações.

Sempre haverá o espaço em potência de transformação, repleto de acasos e surpresas imponderáveis. Assim, o próximo acontecimento, mesmo que aparentemente igual ao anterior, não o será. Apenas nas macropercepções há repetição. Quanto mais próximos da zona de potência e em contato com as micropercepções, mais dentro do momento presente (famoso aqui e agora) e suas especificidades nos colocamos. Cada acontecimento, como já afirmamos, vai gerar e ser gerado por diferenças e singularidades em vizinhança.

Vale destacar, contudo, que não há paralelismo simétrico entre os pares atual e o virtual e visível e invisível. Eles estão sobrepostos, mas, como a atualização prescinde a vontade, efetivando-se pelo que é necessário acontecer, atualizamos tanto coisas visíveis quanto invisíveis. O virtual não dá conta exclusivamente do invisível, pois há muitos invisíveis que são da ordem do atual. Um afeto, por exemplo, na condição de estado do corpo, é uma atualização que se produz num campo de forças visíveis e invisíveis, embora quem carregue o virtual sejam as coisas ditas atualizadas.

Esses limites, tensões e sobreposições são expressos na relação corpo - espaço - tempo: entre o eu, o outro e o mundo que nos trespassa. Um fora do corpo que não é transcendental e um dentro que não é essencial - uma relação num campo imanente. Imanência como devir e processo de subjetivação, como se, no lugar de tentar fixar-se em algo que somos, a tentativa fosse de pensar em tudo o que não somos, mas podemos vir a ser.

Devir ligado à potência, ao processo de busca de potência, à fuga da relação causa/efeito. Supomos ser esse o paradoxo da presença do corpo-em-arte: não apenas a afirmação do meu corpo, ou do meu eu, mas também o oposto, na criação de outras possibilidades de presença. Talvez a capacidade de presença de um performer corresponda à que ele tem de desaparecer e se diluir, de se tornar invisível. Nesse processo, as noções de sujeito e identidade se diluem, assim como real e ficção se confundem. Singularidade seria, justamente, o ponto de potência da zona de imanência. Um acontecimento.

Imagem 5:
Apresentação no dia 30 de janeiro de 2015, no Terminal Central de Campinas/SP, dentro do Invasão Urbana do FEVERESTIVAL 2015 (Festival Internacional de Teatro de Campinas).

A partir da concepção do corpo-em-arte como singularidade em potência de produção de acontecimentos, é possível falar da criação em arte como de processos de desaceleração, lapidação de imagens, organização de imagens e virtuais. Tais processos são acionados por memórias que constroem esse mesmo corpo na experiência/acontecimento, memórias que não relembram o passado mas respondem ao presente - um presente que já é passado recriado, virtualizado. Memórias que são disparadoras de estados de vida, que criam temporalidades a partir de linhas de experiência no tempo e no espaço. Criam-se temporalidades e, com isso, podem-se inventar outros mundos e outros espaços de vida. Criam-se outros planos de realidade. Nesse âmbito, a arte sai do campo da fabulação ou da fantasia para se colocar no campo da realidade. O real é a experiência de definição de atuais, em um movimento que retorna à memória, recriando-a; são sempre atualizações sobre atualizações. O corpo da experiência opera sempre em composições transitórias singulares em composição. Perceber-se nesse plano composicional é escolher: escolhe-se a partir das necessidades de um presente singular que, em cada experiência, atualiza novos planos de memória recriada (Imagem 5). Nesse sentido, interessa-nos pensar nas escolhas como fricções do real ou aquilo que se coloca em ação e que qualifica a experiência para qualificar a memória criadora. O presente pressiona a memória. Tudo o que vivemos pressiona a memória. O presente singulariza a memória, que dança escolhas a partir das necessidades do que é experienciado, de modo que se possa pensar a criação de experiências artísticas como processos de subjetivação, modos de constituir-se, modos de habitar o real - sempre sob a perspectiva de processos artísticos de abertura para criar lugares de fluxos alterados, de desaceleração e de acessos aos virtuais presentes em cada corpo.

Nesta ação performativa, buscamos a articulação de um plano de experiência que acione e escancare o fluxo de memória criativa, produzindo discursividades também em fluxo, transitórias. Para tanto, as escolhas dos materiais que são a base para esse experienciar-se atuam a partir de um mergulho em alguns dispositivos que permitam entrar em fluxo de memória para produzir um plano de experiência e, quem sabe, planos de vida. A questão que surge agora é: quais planos de vida se produzem no fluxo do tempo da experiência da ação performativa? É possível pensar esse trânsito em diversos planos, diversos fluxos? São singularidades em fluxo de tempo. Memórias criando e recriando corpos/experiências/passagens. Planos composicionais, em que o real e o ficcional se sobrepõem, jogo da imanência. Confronto necessário com o que está acontecendo aqui e agora. O real é tudo e é nada, são pontos de atualização que reverberam em outras e outras atualizações. Invenções. O real é o entre, o que se atualiza nas relações, trânsito de atualizações e virtualizações. O real é aquilo que produz outra lógica, outra velocidade, são planos de realidade construídos sobrepostos aos planos de ficção. Há, aqui, a tentativa de ativação de um campo de potência não nomeada, que foge aos símbolos ou ao plano do simbólico, uma invisibilidade real, concreta e vivida que torna o corpo parte de uma experiência de abertura de novos espaços, novas dimensões de corpo e de vida. O real passa a ser encarado como múltiplo potencial, campo de empoderamento e partilha, que pode ser inventado no entre, nas relações e no vivido. Ao experimentar nas casas e em espaços públicos, esta ação busca potencializar os corpos em sua relação com o espaço e com o outro e, a partir da exploração do movimento, inventar e livremente associar informações mnemônicas e atuais/cotidianas de forma criativa, promovendo outros arranjos e lógicas na dinâmica de comportamento/ocupação/relação entre corpos e espaço. Nesta pesquisa, lançamos o olhar a esses elementos em suas manifestações cotidianas, naquilo que pode disparar modos de criar danças que desvelem e acionem esse cotidiano como potência poética e criativa.

Referências

  • CHAUÍ, Marilena. Desejo, Paixão e Ação na Ética de Espinosa São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofreniav. 4. Tradução de Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
  • ESPINOSA, Baruch de. Ética Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 238 p.
  • FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: o corpo-em-experiência. Revista Ilinx, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276 >. Acesso em: 29 jul. 2015.
    » http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276
  • GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.
  • LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996.
  • RABELO, Flávio. Afetos: a Alegria do corpo em atrito na ação performativa. In: KEFALÁS, Eliana; LIMA DE MORAES, Giselly; PEPE, Cristiane Marcela (Org.). Leitura Literatura e Mediação. Campinas: Leitura Crítica, 2014. P. 101-112.
  • 33
    Este texto inédito também encontra-se publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Em palestra realizada no Itaú Cultural, São Paulo, no dia 09 de agosto de 2015.
  • 2
    Funções específicas de pesquisa/criação - concepção e desenvolvimento: Núcleo Fuga!. Direção Geral: Flávio Rabelo. Coordenação de pesquisa do movimento: Ana Clara Amaral. Assistência de pesquisa do movimento: Dora de Andrade. Em Ação: Ana Clara Amaral, Bruna Reis, Camila Fersi, Dora de Andrade, Flávio Rabelo, Gabriela Giannetti e Roberto Rezende.
  • 3
    O Núcleo Fuga! é um dos grupos vinculados ao Laboratório Fuga, espaço de experimentação transdisciplinar que explora contaminações poéticas entre as linguagens do teatro, da dança e da performance, sob a coordenação geral de Renato Ferracini do LUME Teatro. Dentre as obras artísticas já realizadas nesse laboratório, destacam-se: 1) Fuga! (2007 - Prêmio Funarte Myriam Muniz); 2) Después (2013 - Prêmio Funarte Klauss Vianna). Atualmente os artistas pesquisadores do Núcleo Fuga! dedicam-se ao Projeto cAsa que tem a intervenção O que você está fazendo agora?, como uma das ações em andamento.
  • 4
    Grande parte da apresentação realizada no FEVERESTIVAL 2015 (Festival Internacional de Teatro de Campinas) está disponível em: <https://youtu.be/P2Ck9c-tlnA>. A ação ocorreu no dia 30 de janeiro de 2015, no Terminal Central de Campinas/SP. Imagens de Leonardo Lee.
  • 5
    Estamos considerando, principalmente, ações poéticas realizadas por artistas da cena/corpo, aqueles que executam a criação em ato compartilhado enquanto atuam, dançam, performam.
  • 6
    Participando da Sessão de Arte do VI ENELIM (Encontro Internacional de Estudos da Linguagem. Pouso Alegre/MG; outubro de 2015), do Lume 30 anos 30 horas (Sede do Lume Teatro. Campinas/SP; abril de 2015) e da Ocupação na galeria do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro/RJ; novembro de 2014).
  • 7
    Participando do FEIA 16 (Festival do Instituto de Artes da Unicamp. Campinas/SP; setembro de 2015) e do XI Festival Internacional de Teatro de Campinas - Feverestival (Invasão Urbana. Terminal Central. Campinas/SP; janeiro de 2015).
  • 8
    É comum que se pense o estado de criação artística como algo elevado, acima do cotidiano. Interessa-nos, também, pesquisar outras abordagens que prevejam criação como uma fissura, abismo, escavação, arqueologia, cartografia.
  • 9
    Vídeo-dança realizado a partir dos primeiros Programas Performativos compartilhados. Disponível em: <https://youtu.be/gNU2VsBiIOY>.
  • 10
    Geralmente os Programas são criados pelos próprios artistas que irão executá-lo, mas também há a possibilidade de escrita compartilhada, em que, em rede, artistas trocam Programas como parte do desenvolvimento de pesquisas poéticas. No Brasil, nos último anos, tal prática vem sendo pesquisada e difundida por diversos artistas e coletivos; entre eles, o que mais influenciou as reflexões aqui apresentadas, foi o Cambar Coletivo. Para saber mais a respeito, ver página disponível em: <www.cambarcoletivo.com>.
  • 11
    Por sua vez, a noção de Corpo em Espinosa exerce forte influência na forma como Deleuze (2002DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.) conceitua os Territórios. Para Deleuze, os Territórios preveem, em seu agenciamento, os movimentos constantes de desterritorialização e reterritorialização - sempre entre os fluxos das linhas molares, moleculares e de fuga.
  • 12
    Todo corpo está, segundo Espinosa (2011ESPINOSA, Baruch de. Ética Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 238 p.), carregado de seu Conatus, que se define como o seu esforço de continuar existindo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2016

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2015
  • Aceito
    31 Dez 2015
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