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Motim: o 'pensamento relacional' do riso como contágio em uma dramaturgia de processo

Resumo:

O artigo traz uma reflexão sobre o processo de criação da montagem de rua intitulada Motim (2015), a partir do riso como ato biopotente e performativo. Parte-se da reflexão sobre como, em uma dramaturgia de processo (Kerkhove, 1997), deu-se o pensamento relacional para construção desta dramaturgia, conceitualizando o pensamento criativo como rede (Salles, 2006). A construção colaborativa de Motim partiu do riso através de três eixos investigativos: fisicalidade, memória e contágio. Com ênfase no contágio, discute-se como o pensamento relacional abordado por Salles instaurou-se na montagem de Motim e se potencializou pelo eixo investigativo do riso como contágio.

Palavras-chave:
Motim; Pensamento Relacional; Riso; Contágio; Dramaturgia de Processo

Abstract:

This paper discusses the creative process of the street performance Motim (Mutiny) (2015) from the perspective of laughter as a bio-potent performative action. We discuss how the relational thinking emerged within the framework of a process dramaturgy (Kerkhove, 1997), conceptualizing creative thinking as a network (Salles, 2006). The collaborative creative process of Motim started with three ways of approaching the act of laughing: physicality, memory and contagion. By focusing on contagion, we will discuss how relational thinking was installed in the creative process of Motim and was powered by the investigative aspect of laughter as contagion.

Keywords:
Motim; Relational Thinking; Laughter; Contagion; Process Dramaturgy

Résumé:

C'article a pour but faire un étude du processus créatif de la perfomance Motim (Émeute) (2015), en discutent l'acte de rire comme un acte bio puissant et performatif. On aborde comme dans une dramaturgie en processus la pensée relationnelle a émergé pour la construction de la dramaturgie, dans une compréhension de la pensée créative comme un réseau (Salles, 2006). Le processus créatif et collaboratif de Motim a eu comme base trois parcours pour aborder le rire: la physicalité, la mémoire et la contagion. En portant une attention particulière sur la contagion, on discute comment la pensée relationnelle a été presente dans le processus créatif de Motim et a été potentialisé par le sujet du rire comme contagion.

Mots-clés:
Motim; Pensée Relationnelle; Rire; Contagion; Dramaturgie en Processus

Introdução

O que pode a arte é lançar o vírus do poético no ar. E isso não é pouca coisa no embate entre diferentes tipos de força do qual resultam as formas sempre provisórias da realidade, em sua construção interminável (Rolnik, s.d.ROLNIK, Suely. A que vem este arquivo. In: ROLNIK, Suely. Arquivo para uma Obra-Acontecimento: projeto de ativação da memória corporal de uma trajetória artística e seu contexto. São Paulo: SESC/SP, Cinemateca Brasileira, Sociedade Amigos da Cinemateca, Brasilarte Contemporânea, s. d.).

O projeto Motim consistiu numa pesquisa com fins criativos, para montagem de uma performance de rua, contemplada pelo edital do Fundo de Cultura de Pernambuco ‒ Funcultura, em 2013, e foi desenvolvido pelo Coletivo Lugar Comum, ao longo do ano de 2014, e apresentado em 2015, em 4 diferentes bairros do Recife: Santo Antônio, Boa Vista, Várzea e Afogados.

A ideia motivadora da pesquisa e da performance partiu da pesquisadora e integrante do Coletivo, Roberta Ramos, a partir de uma relação afetiva com o ato de rir desde a infância, o que foi potencializado como assunto para uma criação por uma matéria jornalística na Revista Galileu (Tiraboschi, 2009TIRABOSCHI, Juliana. Erupções de histeria em massa continuam a acontecer. Revista Galileu, São Paulo, Edição 211, fev. 2009. Disponível em: <Disponível em: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG86197-8489-211,00-ERUPCOES+DE+HISTERIA+EM+MASSA+CONTINUAM+A+ACONTECER.html >. Acesso em: 18 mar. 2016.
http://revistagalileu.globo.com/Revista/...
), acerca do livro A Time to Dance, a Time to Die, do historiador John Waller, sobre epidemias de dança e riso em diferentes momentos históricos. O artigo relata que o historiador associa duas epidemias ‒ a de dançar até a morte, em 1518, na França, e a de alternar risos e choros de forma incessante, na Tanzânia, em 1963 ‒ a processos histéricos relacionados à religiosidade. Nas duas epidemias, o contágio é um elemento que evidencia o caráter cultural dos dois episódios, associados à forma como grupos sociais se relacionam, coletivamente, com suas crenças, e aos efeitos de imposições religiosas em seus comportamentos. No caso do riso, se levarmos em consideração a discussão de Georges Minois (2003MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Unesp, 2003.), em História do Riso e do Escárnio, podemos entender a alternância entre riso e choro nessa epidemia discutida pelo historiador, certamente, como um fenômeno atravessado pelas alternâncias de valorização e desvalorização do riso ao longo da história, associadas aos movimentos de menor ou maior repressão religiosa. Desde essa referência, o aspecto do riso como contágio foi um aspecto que interessou, e, posteriormente, esse interesse foi articulado com o pensamento sobre a possível potência de essa contaminação materializar um gesto político de valorização do riso, evidenciando, nele, um caráter performativo com a vida em diversas dimensões (política, pessoal, social). Uma vez que, em diversos contextos institucionais ‒ na Família, na Igreja, na Política, para ficar com alguns exemplos ‒ a seriedade e o pesar parecem ser os únicos comportamentos e sentimentos cabíveis, o riso se insurge como uma conduta corporal performativa (Butler, 1997BUTLER, Judith. Excitable Speech: a politics of the performative. New York: Routledge, 1997.), por instaurar possibilidades de atitudes não necessariamente referendadas pelos códigos corporais social e historicamente aceitos. A partir disso, a proposta foi assumida pelo Coletivo Lugar Comum, que compôs a maior parte do elenco11 1 O elenco, composto de 10 integrantes, inicialmente, foi constituído por 8 membros do Coletivo Lugar Comum ‒ Roberta Ramos, Maria Agrelli, Renata Muniz, Liana Gesteira, Priscilla Figuerôa, Conrado Falbo, Cyro Morais e Silvia Góes; e duas convidadas, Letícia Damasceno e Gabriela Santana, artistas e professoras do Curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco. Posteriormente, entretanto, impedimentos pessoais tornaram necessária a substituição temporária das artistas Renata Muniz e Priscilla Figuerôa pelas convidadas Drica Ayub e Iara Sales Agra. da performance e construiu de forma colaborativa essa performance ao longo de um ano, que incluiu leituras, oficinas práticas relacionadas ao tema do trabalho e laboratórios criativos, internos e externos, como descreveremos mais adiante.

As principais perguntas que nortearam a criação da performance foram: que dramaturgias corporais é possível criar a partir de um estado de corpo que se estabelece em meio ao ato de rir e à predisposição a alimentar a continuidade deste ato? E, por fim, de que forma essas dramaturgias corporais podem conferir à performance um caráter político, fortalecendo a importância do riso e do humor como movimento criador e rebeldia criativa?

O desdobramento dessas perguntas encaminhou a construção de Motim através de três eixos de pesquisa: o riso como fisicalidade, memória e contágio. Com ênfase neste terceiro aspecto, discutiremos como o 'pensamento relacional' instaurou-se na construção de Motim. A partir do foco na relação, essa criação estabeleceu seus procedimentos metodológicos através de uma construção dramatúrgica coletiva e de processo (Kerkhove, 1997KERKHOVE, Marianne (Org.). Nouvelles de Danse. Dossier: Danse et Dramaturgie. Bruxelles: Contredanse, 1997.), atuando em rede, promovendo espaços de trocas, tanto entre os artistas ‒ nos laboratórios corporais ‒, como com os transeuntes ‒ durante os ensaios na rua. Esse ambiente possibilitou a construção de um sistema aberto de criação e viabilizou processos de aprendizado mútuos ao longo de sua trajetória.

Um dos desafios para a construção de Motim foi reconhecer a polifonia do grupo responsável por essa criação. Essa pesquisa se materializou em uma performance por meio das ideias, do trabalho e contribuição de 13 pessoas, sendo 10 performers e uma figurinista, uma iluminadora e um músico que compôs a trilha sonora. Nosso interesse em criar um corpo não submisso a normas, propondo resistência a um corpo biopolítico, esteve presente no processo de criar a dramaturgia da obra.

No Coletivo Lugar Comum, a dramaturgia de processo tem sido a realidade recorrente, como reportaremos mais adiante, e isso inclui o processo de investigação para construção de Motim, ainda que a ideia motivadora e conceitos iniciais tenham partido de um desejo de um dos membros do coletivo.

O Riso como Ato Biopotente e Performativo

Motim conserva a polissemia dessa palavra. O termo refere-se a um ato de rebeldia. E, ao mesmo tempo, é um rumor alto provocado não só por vozes, mas por grandes gargalhadas, o prazer do corpo em estado de riso. Este título foi escolhido não exatamente por ser índice do que se desejava construir nos resultados dramatúrgicos da performance. Mas por constituir metáfora do poder que se desejava conferir ao ato de rir, bem como da legitimidade de ação que a ele se pretendia restituir, de forma que, nesse motim, o riso é pensado como a principal arma.

Foi, portanto, premissa desta pesquisa uma política de valorização da importância do riso, sobretudo pela sua capacidade de estabelecer laços sociais baseados no compartilhamento afetivo, na predisposição aos atos criativos, na dimensão lúdica das relações, e nas experiências de prazer e de alegria que evidenciam, acima de tudo, a legitimidade do próprio corpo. Bergson (2001BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2001.) realça a significação social do riso, argumentando que, como uma espécie de gesto social, sua função é justamente o desvio da vida de suas diretrizes mecânicas, objetivas e rígidas, em situações, por exemplo, como as cerimônias. No campo da Psicanálise, Kupermann (2003KUPERMANN, Daniel. Ousar Rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), a partir, sobretudo, de Freud, associa o riso, através dos jogos e gracejos, com a produção do prazer. E realça, ainda, a dimensão ética do riso, que consiste em não ser uma reação resignada, mas sim rebelde, frente à "crueldade das circunstâncias reais" (Freud apud Kupermann, 2003, p. 56). Essa ética da produção do prazer parece estar relacionada ao que, sob a óptica filosófica, Daniel Lins (2008LINS, Daniel. A alegria como força revolucionária. In: FURTADO, Beatriz; LINS, Daniel (Org.). Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008. P. 45-57.) identifica com a ética da alegria como força revolucionária. Contrapondo-se à estagnação, à morte, "[...] a alegria, como o desejo, é uma ética e estética do efêmero" (Lins, 2008, p. 53). A associação dessa alegria, que inclui o riso, com os atos criativos, deve-se ao espaço que ambos abrem ao inútil, ao desvio de funções ou utilidades imediatas, priorizando a produção de prazer, compartilhamento de alegria, afirmação do presente e da vida: "A ética e a estética da alegria supõem uma boa dose de loucura não psiquiátrica, de poesia, de arte, isto é, do inútil" (Lins, 2008, p. 54).

A relevância do ato de rir para várias dimensões dos indivíduos e das coletividades ‒ estética, cognitiva, política, corporal, etc. ‒ motivou essa pesquisa criativa. Porém, isso não implicava necessariamente um foco em produzir o riso ou abordar o cômico na arte; mas, sobretudo, produzir uma discursividade artística acerca do ato de rir que compreendesse e reforçasse sua relevância, e o redimisse dos rótulos de imoralidade e banalidade aos quais é associado como estratégia ideológica ao longo da história da humanidade (Minois, 2003MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Unesp, 2003.).

Um aspecto importante a destacar nesse projeto era o profundo envolvimento e interesse dos participantes para com o tema motivador. Além do prazer pela ação de rir, reconhece-se a potência criativa e política de um projeto artístico em que o riso e o humor não são abordados apenas para dar ênfase a uma descontração generalizada. Isso seria, conforme Kupermann (2003KUPERMANN, Daniel. Ousar Rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), reforçar um humor acrítico e gratuito, e "[...] proporcional à falência de projetos comuns e ao desinvestimento das possibilidades de transformação social" (Kupermann, 2003, p. 17). Ao contrário de resignação, o humor ou o riso que motivava a pesquisa estava associado a uma rebeldia criativa, que pressupõe a existência de outras opções "à disposição do sujeito frente ao peso do real, que não a resignação masoquista" (Kupermann, 2003, p. 27). E uma dessas opções é o prazer de compartilharmos subtextos, inteligências e compreensões através do riso.

Dessa forma, era interesse comum a abordagem do riso com um viés político (ou micropolítico) que convergisse, através de um projeto coletivo, com o desejo de compartilhamento de uma visão crítica acerca das conotações negativas conferidas ao ato de rir no decorrer da história, e, como pressuposto, ao próprio corpo. A repressão do riso está relacionada com o gesto adestrado pelo biopoder (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 14. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001.), o poder que "toma de assalto" a própria vida, agindo sobre o corpo, regulando e normalizando os comportamentos e (Machado apud Foucault, 2002FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 17. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2002.) pressupostos dos constructos ideológicos das sociedades disciplinares, como as define Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.; 2001FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 14. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001.; 2002FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 17. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2002.).

A esta repressão do riso e a tudo que a ela se relaciona, as motivações políticas das investigações de Motim relacionavam-se, ainda, com o que Hakim Bey (2004BEY, Hakim. Taz: zona autônoma temporária. 2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/Hakim_Bey_TAZ.pdf >. Acesso em: 21 mar. 2016.
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) chama de TAZ (Zona Autônoma Temporária), uma espécie de rebelião de confronto não direto, que se dissolve para refazer-se em outro lugar: "A sublevação temporária é o que se abre como possibilidade, experiências de pico que mostram, em rápidos momentos de suspensão, como a vida pode ser vivida de forma diferente" (Oliveira, 2007OLIVEIRA, Lúcia Maciel Barbosa. Corpos Indisciplinados: ação cultural em tempos de biopolítica. São Paulo: Beca, 2007., p. 33).

Pensando em criar momentos de suspensão, a performance foi criada para acontecer em deslocamento, começando em um ponto do bairro e terminando em outro, como um cortejo, realizando cenas específicas em espaços diferentes na cidade, aparecendo e desaparecendo da vista dos passantes na rua. Essa maneira de acontecer possibilitava a criação de instantes de estranhamento e ludicidade para o cidadão que estava imerso em seu percurso cotidiano.

A variedade de espaços públicos pelos quais se desejava circular tinha, igualmente, um duplo viés político. Por um lado, estabelecia coerência com o caráter potencial de Motim, com sua valorização pública do riso, como uma Zona Autônoma Temporária, a partir de "[...] fissuras do poder, momentos de suspensão que, ao serem deflagrados, devem desaparecer para reaparecer sob nova forma, em outra área" (Oliveira, 2007OLIVEIRA, Lúcia Maciel Barbosa. Corpos Indisciplinados: ação cultural em tempos de biopolítica. São Paulo: Beca, 2007., p. 33). E, por outro, apontava o desejo de maior alcance do resultado da pesquisa, tornando-o acessível a variados públicos pertencentes a diferentes contextos geográficos e sociais, além de intervir diretamente sobre a rotina dos transeuntes, com a compreensão de que um trabalho artístico apresentado na rua pode fazer "vibrar a paisagem circundante" ou criar "um parêntese de tempo suspenso no tumulto urbano" (Clidière, 2008CLIDIÈRE, Sylvie. Exterior Danse. Ballettanz. Das Jahrbuch, 2008., p. 13). Um espectador da performance comentou que Motim era "um rasgo de riso pela cidade" (Siqueira, 2015SIQUEIRA, Bruno. [Depoimento informal depois de Motim]. Recife, 2015.), como algo que acontece, modifica o espaço, e vai embora deixando seu vestígio inscrito na memória.

Dessa forma, essa suspensão, esse parêntese, proporcionado pelo riso, constituía o modo pelo qual o discurso seria restituído ao corpo, apropriando-se este do que ele pode, sua potência (Deleuze, 1988DELEUZE, Gilles. Abecedário. P. Poder. 1988. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n20pTYFSiP8 >. Acesso em: 21 mar. 2016.
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). E, assim, "[...] quando, como diz o rap, parece que 'tá tudo dominado', no extremo da linha se insinua uma reviravolta" (Pelbart, 2007PELBART, Pal. Biopolítica. Sala Preta, São Paulo, n. 7. p. 57-65, 2007., p. 58), e a vida, que parecia sob controle, dominada, submetida ao poder, "[...] revela, no processo mesmo de sua expropriação, sua potência indomável" (Pelbart, 2007, p. 58).

Apesar de todas essas questões inquietadoras e motivadoras da construção de Motim constituírem, inevitavelmente, um conceito prévio ao processo da pesquisa, ver-se-á mais adiante como isso não implicou que esta performance fosse fruto de uma dramaturgia de conceito, que Kerkhove (1997KERKHOVE, Marianne (Org.). Nouvelles de Danse. Dossier: Danse et Dramaturgie. Bruxelles: Contredanse, 1997.) contrapõe à dramaturgia de processo. Além das razões que exploraremos em itens posteriores, ligadas à construção coletiva, processual e em rede, que conferem a Motim uma dramaturgia de processo, apontaremos aqui, também, seu caráter performativo como um dos elementos dessa processualidade.

A performatividade a que nos referimos é a expansão do conceito de performativo que Butler (1997BUTLER, Judith. Excitable Speech: a politics of the performative. New York: Routledge, 1997. apud Setenta, 2008SETENTA, Jussara Sobreira. O Fazer-Dizer do Corpo: dança e performatividade. Salvador: Edufba, 2008.) promove a partir da teoria dos atos de fala de Austin (1990 apud Setenta, 2008)12 2 Conforme Setenta (2008), a teoria dos atos de fala "parte da premissa de que falar é uma forma de ação", e os enunciados performativos (que o autor distingue dos constatativos) aqueles em que, ao se dizerem, uma ação é realizada, de forma que sua expressão linguística não consiste apenas em "dizer algo", mas em "fazer algo" (Austin, 1990 apud Setenta, 2008, p. 21). . O ato de fala passa a ser entendido, na proposta de Butler, como um "ato corpóreo", entendendo os dizeres do corpo em suas condutas, e a performatividade é entendida como a possibilidade de politizar a conduta corporal, instaurar condutas inaugurais, desnaturalizando as condutas normativas, através de um "[...] fazer-dizer que não 'comunica' apenas uma idéia [sic], mas 'realiza' a própria mensagem que comunica" (Setenta, 2008, p. 31).

A partir da proposição de Butler, Setenta identifica e discute as possibilidades de um fazer-dizer do corpo que dança, de forma a entender que este tem a potência de, em cada projeto poético, inventar "modos próprios de proferir idéia [sic]" (Setenta, 2008, p. 32), e nestes modos próprios estar inscrita a própria ideia e suas implicações (micro)políticas do/para o corpo e os sujeitos. Assim, seja na vida, seja na dança, a performatividade opera no "dissenso" entre mundos, o que está posto e os que são inscritos como possibilidade (Rancière, 2005bRANCIÈRE, Jacques. Sobre Políticas Estéticas. Barcelona: Bellaterra, 2005b. ):

As ações corporais organizadas na fala performativa indicam a possibilidade de ocorrer relações e/ou conexões entre diferentes elementos numa ação de troca e compartilhamento de informações. Os proferimentos performativos reestruturam as condições de possibilidade do ato de fala para viabilizar a ocorrência de outras falas que questionem a existência de um contexto dado e atuem para a inauguração de novos contextos (Setenta, 2008SETENTA, Jussara Sobreira. O Fazer-Dizer do Corpo: dança e performatividade. Salvador: Edufba, 2008., p. 37).

Em Motim esses modos próprios de proferir ideias apontam, ainda, para uma provisoriedade em cada projeto poético, de forma que investigar um fazer-dizer do corpo, próprio a cada conceito/problema/tema proposto, constitui não menos do que justamente aquilo que interessa construir ao longo de uma pesquisa com fins de criação artística.

Dessa forma, os conceitos que nortearam, inicialmente, a pesquisa de Motim, discutidos anteriormente, não asseguram o modo como isso iria aprontar-se nos e pelos corpos, de forma que o próprio conceito foi transmudado. Tudo o que envolveu o processo ‒ novas leituras e debates; os experimentos para a construção da dramaturgia corporal; e a inscrição dos artistas na interpretação de como se sentiam implicados no gesto político que viria a ser o Motim ‒ concorreu para o entendimento de que as questões que norteiam uma pesquisa criativa, principalmente quando o campo dessa experimentação é o corpo e suas relações (com a cidade/cultura, entre performers, e com o público), precisam constantemente ser revistas e reformuladas. O diálogo entre os pressupostos teóricos aqui levantados e as práticas dos laboratórios de corpo realizados em sala de ensaio e nas ruas foi se retroalimentando ao longo do processo. Alguns conceitos instigaram a criação de práticas corporais, e, às vezes, alguns exercícios de corpo suscitaram conceitos que foram incorporados ao processo, como iremos detalhar neste artigo posteriormente.

Perguntas Norteadoras e os Nortes que se Apontam no Processo

Através das leituras que antecederam o início da pesquisa, identificou-se o conceito de riso bom, conforme Propp (1992PROPP, Wladímir. Comicidade e Riso. São Paulo: Ática, 1992.), como norteador do percurso investigativo. O riso bom, conforme Propp, consiste em uma disposição de espírito de perceber e criar o cômico, que nasce de uma inclinação a um movimento criador e benevolente. Isso não constitui, entretanto, de acordo com Kupermann (2003KUPERMANN, Daniel. Ousar Rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), uma atitude resignada frente à vida, mas sim rebelde frente às investidas do poder em exercer controle sobre a produção de prazer pelos indivíduos. No entanto, a arma de tal rebeldia é a capacidade de reconhecer e/ou instaurar situações de humor em circunstâncias em que o que se espera é uma atitude, ritualizadamente, séria e cerimoniosa, de pesar e de extrema reverência. A partir dessas referências, formulou-se a pergunta: que estado de corpo é possível acessar através do riso bom ou da disposição a reconhecer ou criar situações de humor? E, a partir dela, desencadearam-se as demais perguntas citadas no início do artigo, que impulsionaram a investigação de uma dramaturgia que permitisse um estado de riso contínuo, articulado ao seu viés político.

A partir do referencial teórico anterior à pesquisa, as "expectativas de ocorrência" (Zamboni, 2006ZAMBONI, Silvio. A Pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores Associados, 2006., p. 63) eram de que as ocorrências associadas a ou decorrentes do ato de rir estabelecessem um estado de corpo cuja consciência se verteria em uma "consciência do corpo", favorecendo a tomada de decisões nos processos de improvisação, não a partir da consciência reflexiva do corpo como um objeto exposto, mas através de um estado de consciência em que houvesse buracos, descentramentos e abertura para o inconsciente (Gil apud Silva, 2009SILVA, Hugo Leonardo. Poética da Oportunidade: estruturas coreográficas abertas à improvisação. Salvador: Edufba, 2009., p. 107).

Às demais questões, as respostas ou expectativas seriam advindas do processo investigativo no corpo, das experimentações e do processo de escrita de um nexo dramatúrgico. Os laboratórios e jogos para a produção de um estado de riso deveriam, a partir de criação de movimentos pela improvisação, gerar as cenas que comporiam a dramaturgia da obra, como explicaremos mais à frente. No entanto, no que tangia ao viés político do trabalho, nosso interesse era intervir, através da valorização do riso e do prazer, no modo como as pessoas (público) se relacionam com seu cotidiano, com o poder, incentivando uma recusa ao controle sobre a produção de prazer. Dessa forma, uma expectativa de ocorrência era anterior ao processo de pesquisa e de criação: vislumbrávamos o espaço público como favorável para viabilizar os efeitos políticos de nossa performance. Dessa forma, desde o início (e o que foi levado adiante até o final), a performance deveria acontecer em diferentes espaços públicos, que seriam definidos ao longo do processo criativo, como parte dos laboratórios nas ruas, a fim de identificar a possibilidade de afetar públicos diversos, de diferentes contextos geográficos e sociais.

A partir das questões norteadoras e das expectativas de ocorrências, foi estabelecida uma rotina de trabalho, que incluía, além das experimentações em oficinas e laboratórios, a revisão bibliográfica. Acerca do riso, foram revisados estudos a partir de diferentes perspectivas de estudo: histórica (Minois, 2003MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Unesp, 2003.); filosófica (Bergson, 2001BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2001.), cognitiva (Verrone, 2009VERRONE, Alessandro Bender. Uma Abordagem Cognitiva do Riso. 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia) ‒ Programa de Pós-graduação em Filosofia e Metodologia da Ciência, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2009.); psicanalítica (Kupermann, 2003KUPERMANN, Daniel. Ousar Rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.); literária (Bakhtin, 1987BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.); teatral; performática (Baehr, 2008BAEHR, Antonia. Rire/Laugh/Lachen. Paris: Lachen: 2008.), entre outros. Sobre o corpo e sua potência, foram estudados textos filosóficos, numa perspectiva contemporânea, que partem da discussão acerca da intervenção do poder sobre o corpo do indivíduo e como, em reviravoltas que se dão ao longo da história, o corpo se insurge contra o poder, afirmando sua potência (Pelbart, 2007PELBART, Pal. Biopolítica. Sala Preta, São Paulo, n. 7. p. 57-65, 2007.; Lins, 2008LINS, Daniel. A alegria como força revolucionária. In: FURTADO, Beatriz; LINS, Daniel (Org.). Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008. P. 45-57.; Foucault, 2002FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 17. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2002.; Bey, 2004BEY, Hakim. Taz: zona autônoma temporária. 2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/Hakim_Bey_TAZ.pdf >. Acesso em: 21 mar. 2016.
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).

Dentre esses estudos, um deles, a leitura do artigo A alegria como força revolucionária: ética e estética da alegria, de Daniel Lins (2008LINS, Daniel. A alegria como força revolucionária. In: FURTADO, Beatriz; LINS, Daniel (Org.). Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008. P. 45-57.), deslocou o interesse do riso bom (Propp, 1992PROPP, Wladímir. Comicidade e Riso. São Paulo: Ática, 1992.) para o riso que se manifesta como prática da alegria compreendida como força revolucionária (Lins, 2008).

Contrariamente à parcela da filosofia antiga13 3 Conforme Lins (2008, p. 45), sobretudo em Fedro, de Platão. que traduz a alegria como mania, ou delírio e loucura, o valor conferido à alegria a partir do século XVII, com Espinosa, identifica-a como um "aumento da potência somada à realização do desejo" (Lins, 2008LINS, Daniel. A alegria como força revolucionária. In: FURTADO, Beatriz; LINS, Daniel (Org.). Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008. P. 45-57., p. 46). Outros significados positivos posteriores são atribuídos à alegria, conforme Lins, por Leibniz, Nietzsche, Bergson, e Clément Rosset. Este último pensa a alegria como "[...] uma graça irracional que permite aceitar o real em toda sua crueldade" (Lins, 2008, p. 47). E, a partir dessas referências, a alegria é compreendida como uma criação ética, estética e social, que pressupõe cuidados de si e do outro (Lins, 2008), e que, como prática, realiza-se na arte, no riso e no sagrado, não buscando, neste último, uma "ontologia qualquer, um absoluto qualquer", mas, já numa perspectiva deleuziana, o sagrado que "já nasceu órfão, desejante, rizomático e não arborescente" (Lins, 2008, p. 48).

Em todas essas perspectivas filosóficas retomadas por Lins (2008LINS, Daniel. A alegria como força revolucionária. In: FURTADO, Beatriz; LINS, Daniel (Org.). Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008. P. 45-57.), e nas demais perspectivas teóricas mencionadas anteriormente, o que chama a atenção é o valor positivo conferido à alegria (e aqui podemos estender ao riso), o que, historicamente, em muitos momentos, é posto em xeque, a fim de exercer controle sobre o corpo do indivíduo (Foucault, 2002FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 17. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2002.), sobretudo, controle sobre a produção de prazer e de acesso ao conhecimento do corpo que advenha da experiência, do devir, e não da abstração, a exemplo da visão dualista platônica, que Nietzsche entende como uma má compreensão do corpo (Nietzsche, 2009NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Dessa forma, reagir a esse controle, e afirmar a alegria e o riso, representa reconhecer e defender neles uma "força revolucionária" (Lins, 2008, p. 48). Acrescentamos, ainda, que essa ética da alegria associa-se à razão nômade, por conduzir-nos a uma afirmação da vida, fora da passividade, num movimento constante e criativo que ama o novo (Lins, 2008), que concilia o exercício da vida com o conhecimento da verdade (Lins, 2008). E, como tal, movimenta-se em resistência à morte (Lins, 2008).

Este foi o redirecionamento conceitual feito ao longo da pesquisa, mas que não chega a contradizer os interesses iniciais, apenas melhor situa por quais caminhos (históricos e filosóficos) o riso se politiza e se mune de valor positivo, e, portanto, melhor situa as razões para valorizá-lo como ato biopotente e performativo.

Através da revisão bibliográfica e já a colocando em relação com as experimentações, identificou-se que havia, na pesquisa prática, três caminhos a serem investigados: o riso como fisicalidade, como memória e como contágio. Isso porque, ao investigar o impulso que levava o corpo a entrar em estado de riso, detectamos três maneiras de isso acontecer. Às vezes acessamos o riso estimulando movimentos de respiração e de vibração do corpo, ou seja, a partir de uma provocação física. Foi possível também acessá-lo relembrando experiências pessoais, muitas advindas de memórias da infância. E uma terceira maneira foi instaurada por uma contaminação a partir do riso do outro, por empatia. Compreendendo esses impulsos do riso desenvolvemos diferentes exercícios que potencializassem esses processos.

O primeiro eixo dizia respeito a buscar, através de exercícios, verificar o riso como predisposição fisiológica. O elenco observou que o riso era composto pela repetição de uma vocalidade e uma respiração específica, que disparam um estado vibratório no corpo. E essa repetição leva a um processo cíclico de catarse e cansaço. Dessa forma, este eixo compreendeu exercícios de repetição de gestos; repetição de sonoridades vocais, Yoga do Riso14 4 Prática proposta e difundida pelo médico indiano Madan Kataria, que, valendo-se de exercícios de respiração do Yoga a fim de provocar o desejo de rir, tem como pressuposto os benefícios do ato de rir à saúde, independentemente de haver uma motivação emocional. ; e vibração corporal que possibilitassem esses ciclos de catarse e cansaço a partir do acumulo de risadas. Outra premissa foi trabalhar com sensações estimulantes de prazer, a partir do toque. Fizemos então exercícios de toque entre os performers, abrindo a percepção dos poros da pele como bocas; de imaginação da existência de bocas em partes isoladas do corpo; exercícios de manipulação, em dupla, de partes corporais com o estímulo do riso. Outros laboratórios foram propostos visando a criar contaminações especulares, tais como acontece com as ações em que o neurônio-espelho condiciona a repetir ações presenciadas. Segundo o neurocientista Ramachandran, existem alguns neurônios de comando motor que se excitam ao observarem outra pessoa realizando uma ação. Esse sistema é possibilitado pela existência de neurônios-espelhos, que nos possibilita a realização da imitação de gestos pela observação, uma habilidade de nos colocarmos no lugar de outrem, um processo que chamamos de empatia (Ramachandran, 2014). A partir desses pressupostos realizamos exercícios como uma roda de memorização e reprodução do acúmulo dos risos produzidos15 5 Exercício apelidado por nós de MemoRia. ; e outras práticas em que o estado de riso foi estimulado, ou mantido no tempo, pela observação do ato de rir do outro.

A partir de um estado de corpo em predisposição a rir, era o interesse verificar como o corpo se move em condições de composição através de improvisação. Isso foi interessante para o trabalho, porque o estado de corpo criado no ato de rir necessita de certa liberdade para articular o movimento. E verificamos que a composição de cenas por meio de movimentos improvisados contribui para o fluxo do estado de riso instaurado.

Imagem 1
‒ Notas de processo criativo de uma das performers de Motim.

O eixo do riso como memória compreendia acessar o conjunto de referências relacionadas às memórias que possuímos relacionadas ao ato de rir: pessoais, coletivas, artísticas (seja no campo da performance, dança, teatro, ou no campo literário). Utilizaram-se, nesse eixo, textos e leituras que desconstruíam, através de várias modulações do riso, os significados produzidos pela linguagem verbal; laboratórios corporais sobre rir de si mesmos a partir de memórias da infância (com relatos pessoais com fotos); ações coletivas de gestos e músicas que são de repertório coletivo (Imagem 1).

O aspecto do contágio esteve presente, de alguma forma, em todos os exercícios e laboratórios dos três eixos. Entretanto, no eixo do riso como contágio, a ênfase recaiu mais fortemente sobre os dispositivos de contaminação, através do foco no olhar, sobremaneira na relação entre performers, e performers e público. Alguns exercícios tais como a fila do contágio do riso, técnica de triangulação16 6 Trabalhada pelo ator Arilson Lopes na oficina Corpo cômico, oferecida como parte do processo de construção de Motim, e com ênfase nas técnicas e princípios utilizados pelo palhaço. , ganharam maior espaço nesse eixo (Imagem 2).

Imagem 2
‒ Imagem de ensaio de Motim na Praça da Várzea

É importante realçar que a separação entre essas três abordagens e/ou dimensões do riso é apenas para fins de sistematização e organização de exercícios ao longo do processo, uma vez que o aspecto do contágio está relacionado tanto ao riso explorado em sua fisicalidade quanto ao riso motivado pelo compartilhamento de memórias, de forma que a copresença dos três aspectos em todo o processo reafirmam essa inseparabilidade. Não é possível dissociar, por exemplo, o riso explorado em seu aspecto físico das relações de contágio, que, nesse caso, poderão ser ativadas através, simplesmente, do som das risadas, fenômeno relacionado aos neurônios-espelho (Verrone, 2009VERRONE, Alessandro Bender. Uma Abordagem Cognitiva do Riso. 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia) ‒ Programa de Pós-graduação em Filosofia e Metodologia da Ciência, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2009.); da mesma forma, o contágio é atravessado pelo compartilhamento de memórias pessoais, individuais e coletivas.

Ficou claro, ao fim dessa primeira etapa da pesquisa, que resultou no formato apresentado na primeira temporada de Motim17 7 Em 2015, o Coletivo Lugar Comum aprovou um projeto, junto ao Funcultura (PE), para nova temporada do trabalho, que será realizada no segundo semestre de 2016. Para os participantes, a ocasião de uma nova temporada não prescinde de retomar e dar continuidade à pesquisa, a fim de que um dos objetivos da pesquisa, encontrar formas de afetar o público pelo propósito (micro)político da performance amplie suas possibilidades de alcance. , que os caminhos para buscar responder a uma das inquietações iniciais ‒ a de encontrar/testar como se mover em estados corporais de riso ‒, só tenham sido levados a cabo parcialmente18 8 Através, por exemplo dos desdobramentos dos exercícios trabalhados pela residência artística do Coletivo Lugar Comum com a artista curitibana Michelle Moura, com ênfase na repetição de pulso, gesto, até a transformação por acessar a condição de exaustão e contato com aspectos do transe. . Em parte, tais desdobramentos foram pouco explorados. Por um lado, isso aconteceu porque alguns laboratórios, usados para buscar esse estado de riso, acabaram sendo usados na própria estrutura da cena (a exemplo do que chamamos a fila do riso); por outro lado, porque criamos um roteiro que tentava tornar coerente a relação entre conceitos escolhidos desde o início do processo e as referências (bibliográficas e corporais) descobertas ao longo do processo, como discutiremos mais adiante. Tal roteiro buscava, ainda, construir nexos dramatúrgicos nos níveis macro e micro da obra, de forma que ela pudesse produzir sentido tanto para o público que o acompanhasse do início ao fim, quanto para os transeuntes que veriam, fortuitamente, apenas um de seus trechos. Dessa forma, embora esse roteiro tenha sido fruto do processo, e não uma estrutura anterior e imposta previamente, entendemos que ele se configurou como uma estrutura que se sobrepôs, em alguns momentos, a uma estruturação dramatúrgica que poderia provir dos próprios corpos em movimento.

Por que Motim? Compreender e criar dramaturgias de processo

As teorizações sobre dramaturgia no campo da dança que usam expressamente o termo advindo do campo do Teatro são relativamente recentes, mas já trazem contribuições importantes sobre as especificidades que se devem levar em consideração quando esse conceito migra ao campo da dança (Hércoles, 2005HÉRCOLES, Rosa Maria. Formas de Comunicação do Corpo: novas cartas sobre a dança. 2005. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) ‒ Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2005.). Numa compreensão mais ampla, que já se aproxima, no Teatro, ao sentido pós-brechtiano19 9 Isto é, compreende, para além de um texto de origem, "os meios cênicos empregados pela encenação" (Pavis, 1999, p. 113). , na dança, o termo vem sendo atribuído ao que, por um lado, refere-se à atividade daquele (e o seu fazer) que, junto ao coreógrafo e/ou diretor de um espetáculo, colabora para que uma obra estabeleça um nexo em sua unidade e em consonância com os sentidos que se querem produzir em um projeto poético; e, por outro, à própria urdidura desse nexo, como produto ou resultado do fazer dramatúrgico como ofício20 10 Ainda que a realidade de contar com a figura específica do dramaturgista não seja tão comum em realidades de produção artística como a brasileira. . Ainda que a realidade de contar com a figura específica do dramaturgista não seja tão comum na realidade de produção artística do Brasil, a atividade, entendida em sentido amplo, inevitavelmente, existe, mesmo que realizada pelo próprio coreógrafo e/ou diretor, ou coletivamente, em projetos de criação colaborativa. Outro deslocamento de compreensão do conceito que, na dança, tem sido paralelo às transformações ocorridas historicamente à medida que a dança buscava sua autonomia como linguagem, é considerar o protagonismo das ações corporais em cena na composição dramatúrgica. E desse deslocamento parece vir a tendência a usar termos como dramaturgia do corpo, ou dramaturgia do movimento (Tourinho, 2009TOURINHO, Lígia Losada. Dramaturgias do Corpo: protocolos de criação das artes da cena. 2009. Tese (Doutorado em Artes) ‒ Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2009.), que se reportam, à esteira de Setenta (2008SETENTA, Jussara Sobreira. O Fazer-Dizer do Corpo: dança e performatividade. Salvador: Edufba, 2008.), à importância do corpo e do movimento na produção de nexo de um trabalho e de seu modo próprio de proferir ideias; ao mesmo tempo que remove a responsabilidade da produção desse nexo de elementos como um texto ou um roteiro anterior, que estabeleceria, previamente, a estrutura da obra.

Marianne Van Kerkhove (1997KERKHOVE, Marianne (Org.). Nouvelles de Danse. Dossier: Danse et Dramaturgie. Bruxelles: Contredanse, 1997.) diferencia dois tipos de processo de criação dramatúrgica: um primeiro, que nomeia de dramaturgia de conceito, quando a estrutura é definida previamente pelo dramaturgo e/ou pelo encenador; e um segundo, de processo, no qual a construção é processual e pode contar com uma "[...] multiplicidade de vozes, o material humano dos artistas que participam do processo e de uma variedade de materiais de diversas origens como: textos, movimentos, imagens de filmes, idéias [sic], objetos, etc." (Tourinho, 2009TOURINHO, Lígia Losada. Dramaturgias do Corpo: protocolos de criação das artes da cena. 2009. Tese (Doutorado em Artes) ‒ Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2009., p. 93).

Assim como a inexistência de um roteiro determinante da construção do nexo da obra, a dramaturgia de processo também parece ser uma realidade que prevê uma não fixação de regras ou ordem nas etapas do protocolo de criação de uma obra na contemporaneidade:

As dramaturgias com caráter de processo parecem ser um tipo de modo de fazer dramaturgia que se propõe a elaborar uma obra cênica através de recursos atribuídos ao processo de criação. Ou ainda, parece ser a padronização de leis e procedimentos dispostos à execução de uma determinada tarefa artística, espetáculo. A perspectiva atual das dramaturgias contemporâneas parece dizer respeito a protocolos de criação. Para cada processo podem ser adotados protocolos distintos. Não há como assumir um formato fixo de protocolo. Múltiplas podem ser as formas de se estabelecer a(s) dramaturgia(s) de um espetáculo. E o texto dramático, indiscutivelmente, é tido como uma possibilidade tanto quanto qualquer outra (Tourinho, 2009TOURINHO, Lígia Losada. Dramaturgias do Corpo: protocolos de criação das artes da cena. 2009. Tese (Doutorado em Artes) ‒ Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2009., p. 93-94).

É importante realçar que as dramaturgias de processo já parecem ser um protocolo comum dentro das práticas de criação dos coletivos artísticos. Sua estrutura funcional menos hierárquica e seu interesse pela criação coletiva que valorize as singularidades justificam sua opção pelas criações coletivas e plurivocais. Por esses motivos, a dramaturgia de processo já tem sido uma prática recorrente nas criações do Coletivo Lugar Comum.

Como reflexo dessa construção processual, as relações com a potência micropolítica do riso e as razões para os performers se amotinarem foram sendo questionadas e compreendidas ao longo do processo criativo do trabalho, bem como a definição das ações desse Motim. Por que Motim? era a pergunta de um dos performers, Conrado Falbo, em um determinado momento do trabalho de criação, a fim de que se pudesse compartilhar e ter claras, coletivamente, quais eram as realidades da cidade, do país, da política atual, das situações de precariedade etc., frente às quais se gostaria de, coletiva mas singularmente, disparar risos como ato de rebeldia, o que viria a ser determinante para a escolha de percursos na cidade, ações, ritmos, explosões, conteúdos políticos locais, que constituiriam o nexo dramatúrgico de Motim.

Imagem 3
Cartografias escritas por uma das performers.

A fim de tentar responder a essa pergunta, uma das artistas, a pesquisadora-docente-artista Gabriela Santana, propôs que se esboçassem cartografias (Imagem 3) das imagens, expectativas, compreensões, até aquele momento, do Motim para cada um, e essas cartografias contribuíram para fazer vir à tona e dialogarem os variados olhares, percursos, formas, intensidades do processo e a relação de cada um com esse processo.

Dramaturgia de Processo, Contágio e a Criação em Rede

Converge com a dramaturgia de processo a compreensão que Cecília Salles apresenta do pensamento criativo como 'rede', assim compreendendo "[....] a criação como rede de conexões, cuja densidade está estreitamente ligada à multiplicidade das relações que a mantém" (Salles, 2006, p. 17). Segundo a autora, as características dos processos de criação em rede são a dinamicidade, inacabamento, não linearidade, interação e transformação.

Em Motim, o eixo do contágio potencializa a característica dessa criação em rede, sendo este um dos aspectos que tem importância, como princípio da conexão, responsável pela interatividade, como explica Kastrup:

Kastrup (2004, p. 81), referindo-se ao princípio da conexão, fala que essas interações da rede se dão por contato, contágio mútuo ou aliança, crescendo por todos os lados e em todas as direções. É importante pensarmos nessa extensão do pensamento criador, no nosso caso, sendo ativada por elementos exteriores e interiores ao sistema de construção (Salles, 2006SALLES, Cecília Almeida. Redes da Criação: construção da obra de arte. 2. ed. São Paulo: Horizonte, 2006., p. 25).

Como princípio norteador de todo processo, a relação, o contágio, todos os exercícios e laboratórios investiram, fortemente, em estabelecer conexão ‒ de motivações culturais e de estímulo físico ‒ entre os performers e entre estes e o público. Um lema de uma das residências artísticas realizada com o Coletivo ao longo do período de construção de Motim, com a artista Micheline Torres, parece traduzir o que, nessa criação em rede, aconteceu no período criativo: roubar, compartilhar, emprestar.

O conjunto das referências levado por cada um, os exercícios, imagens, etc., e ainda as brechas de interação com o contexto local e nacional, alimentou, através do princípio da simultaneidade (Salles, 2006SALLES, Cecília Almeida. Redes da Criação: construção da obra de arte. 2. ed. São Paulo: Horizonte, 2006.), as conexões entre os performers, e performers e público, na identificação de razões para rir e compartilhar inteligências através do riso:

[...] nossas indagações recaem sobre como os processos criativos interagem com a cultura. Como se constrói a obra nesse contexto de intensas interações? Com quem dialoga, de que modo, para quê? Essas são algumas perguntas que fazemos ao pensar no tempo e no espaço da criação. Isto nos leva a não poder discutir esses processos de modo descontextualizado, mas imersos nessa atmosfera. De modo mais específico, isto nos leva a acompanhar os modos como se travam as interações com a cultura (Salles, 2006SALLES, Cecília Almeida. Redes da Criação: construção da obra de arte. 2. ed. São Paulo: Horizonte, 2006., p. 40).

O conjunto de informações, textos, discussões, oficinas, vídeos, opiniões de artistas que vieram para assistir ao processo, em um ensaio aberto previsto no projeto, configurou o modo como, nesse processo, cada um se alimentava do outro (Imagem 4). Um corpo poroso, um corpo que diz sim, que se coloca receptivo às mudanças de intenções, de acordo com a relação que estabelece com o espectador e com os acontecimentos da cidade, num estado de presença intenso e provisório, como trataremos a seguir, para a multiplicidade desse conjunto, das propostas, de outros artistas, para a rua, para a cidade, para a cultura:

Devemos pensar, portanto, a obra em criação como um sistema aberto que troca informações com seu meio ambiente. Nesse sentido, as interações envolvem também as relações entre espaço e tempo social e individual, em outras palavras, envolvem as relações do artista com a cultura, na qual está inserido e com aquelas que ele sai em busca (Salles, 2006SALLES, Cecília Almeida. Redes da Criação: construção da obra de arte. 2. ed. São Paulo: Horizonte, 2006., p. 32).

Imagem 4
Notas de uma das performers.

O contágio, a conexão, as trocas, ganham espaço propício em lugares como a rua, as praças, mercado, e, dessa forma, entendemos que os lugares escolhidos para realizar o Motim favoreceram a relação como princípio norteador da pesquisa.

O Contágio como Metodologia

A partir do interesse em articular uma criação de forma colaborativa e coletiva, a metodologia instaurada em Motim investiu em um procedimento relacional, atuando em rede, assumindo o contágio como princípio norteador em suas estratégias criativas. Essa metodologia foi sendo compreendida ao longo de sua construção, sem um direcionamento prévio, mas articulada em um processo guiado pelo que Salles nomeia de tendencialidade:

As interações são norteadas por tendências, rumos ou desejos vagos. O artista, impulsionado a vencer o desafio, sai em busca da satisfação de sua necessidade, seduzido pela concretização desse desejo que, por ser operante, o leva à ação, ou seja, à construção de suas obras. A tendência é indefinida, mas o artista é fiel a esta vagueza. O trabalho caminha para um maior discernimento daquilo que se quer elaborar (Salles, 2006SALLES, Cecília Almeida. Redes da Criação: construção da obra de arte. 2. ed. São Paulo: Horizonte, 2006., p. 33).

Além de conectar-se intimamente com o objeto da pesquisa, que pressupõe o riso como relação, a consolidação dessa metodologia pensada em rede também tem sua construção baseada na forma de organização e atuação do Coletivo Lugar Comum. Desde sua formação, em 2007, o Coletivo se instaurou como um espaço de compartilhamento entre artistas que atuavam de forma independente na cidade do Recife. Assim, o cotidiano do coletivo foi se configurando a partir de um rodízio de aulas entre os seus integrantes, um espaço não hierarquizado e alternado de saberes, sem um diretor, professor ou coreógrafo fixo, com procedimentos de treinamentos corporais e de criação que são conduzidos por diferentes integrantes, de acordo com cada proposta trabalhada.

Esse modo de operar do Coletivo foi replicado no processo de Motim, contando com uma pluralidade de agentes que compartilharam exercícios cênicos, trabalhos corporais e vocais, que influenciaram na construção do corpo-riso para a performance, estabelecendo um ambiente de contágio com diferentes referências. Também percebemos que eventos e acontecimentos da cidade influenciaram diretamente para o pensamento do trabalho e sua poética. Ao analisar esse processo, entendemos que a metodologia investiu em espaços de contágio e trocas que aconteceram em três âmbitos: entre performers e referências/cultura/cidade; entre os próprios performers-criadores; e entre performers e público.

Contágio entre Performers e Referências/Cultura/Cidade

Ao longo de seu processo criativo, o elenco de Motim participou de oficinas e residências que contribuíram para a criação de procedimentos de composição para a cena, bem como trouxeram referências de diversas áreas para seu pensamento dramatúrgico. A oficina Corpo/Riso/Cômico, com Joice Aglae (de Minas Gerais); a oficina Corpo Cômico, ministrada por Arilson Lopes (de Pernambuco) trouxeram para o trabalho referências dos universos do bufão selvagem e do clown. A residência Meu corpo, minha política, com Micheline Torres (do Rio de Janeiro), introduziu alguns exercícios cênicos de Grotowski. A residência com Michelle Moura (do Paraná) levou referências do músico Steve Reich, de composição sonora por meio de repetições de sons individuais. E a oficina Práticas em Dança ‒ Corpomapa, com Liria Morais (da Bahia), contribuiu para a relação de construção do corpo em relação à cidade, imaginando corpo também como arquitetura, e a cidade como sistema circulatório ou uma estrutura anatômica como o corpo.

A relação com a cidade e seus movimentos políticos e estéticos também influenciaram para a construção da performance Motim. Entre os anos de 2013 a 2015, Recife foi habitada por uma série de manifestações e movimentos que tinham como foco discutir mobilidade urbana, a revitalização de espaços culturais e espaços públicos e todo um processo de urbanização da cidade. Nesse período, o movimento Passe Livre realizou uma série de manifestações contra o aumento de passagens de ônibus, em prol de melhorias do transporte público e pelo passe livre de estudantes e sofreu forte opressão da polícia estadual.

Outro acontecimento importante para o processo foi o Movimento Ocupe Estelita, que surgiu em defesa de um espaço da cidade, o Cais José Estelita, que foi vendido em leilão irregular para empreiteiras que têm o projeto de construir 12 espigões na beira do rio da cidade. Posteriormente, o Estelita assumiu um espaço mais amplo de discussão sobre a cidade e sua urbanização, instaurando-se como um forte movimento de resistência, aglutinando milhares de pessoas, tais como urbanistas, juristas, ativistas, estudantes, professores, intelectuais, artistas, políticos e outros perfis de habitantes, de várias classes sociais e faixas etárias da cidade e até hoje tem forte atuação na cidade e com visibilidade internacional.

Alguns artistas integrantes do Coletivo Lugar Comum tiveram uma intensa participação nas ações do Movimento Ocupe Estelita ao longo desses dois anos, principalmente em 2014, participando de reuniões, realizando atividades de dança nos eventos, contribuindo para funcionamento do acampamento e participando das manifestações, que sofreram forte repressão por parte da Polícia Militar do Estado. Podemos ainda citar uma outra mobilização, que reúne mais especificamente artistas da cidade e se chama Movimento Ocupe Parque. O Movimento tem pressionado a Prefeitura de Recife a dar continuidade à reforma do Teatro do Parque, que, neste ano, faria 100 anos e está fora de funcionamento por má administração de sua reforma (Imagem 5). É dentro desse contexto de resistência social, política e cultural que a pesquisa e a montagem de Motim tomaram corpo e foram às ruas com seu riso rebelde e transgressor, incorporando a ideia de que "[...] ocupar a cidade de uma nova maneira permite a criação de elos sociais diferentes e a transgressão do que aparentemente não pode ser transgredido" (Oliveira, 2007OLIVEIRA, Lúcia Maciel Barbosa. Corpos Indisciplinados: ação cultural em tempos de biopolítica. São Paulo: Beca, 2007., p. 93).

Imagem 5
Cena de Motim em frente ao Teatro do Parque

Esse contexto contribuiu para a escolha de localidades onde o trabalho desenvolveu sua pesquisa e suas apresentações. Também influenciou na elaboração de um dos trechos da trilha sonora, que teve como um dos princípios de construção a articulação do conceito de paisagem sonora, assumindo sons e discursos da cidade, com a gravação em áudio de notícias e sonoridades que a habitam.

Contágio entre Performers-Criadores

O processo criativo também foi intensamente permeado pelas contribuições que os próprios integrantes do elenco levaram para os laboratórios. Assim, a metodologia abarcou também as referências de formação de corpo e de treinamentos corporais que os próprios performers-criadores propuseram ao longo da pesquisa. A partir do entendimento dos eixos norteadores fisicalidade, memória e contágio, identificados ao longo da pesquisa, alguns participantes do elenco levaram exercícios que atravessavam esses aspectos, e muitos deles foram articulados em cena.

A professora e artista Letícia Damasceno, por exemplo, levou sua pesquisa com os objetos relacionais de Lygia Clark para alguns laboratórios, o que contribuiu para o pensamento dos poros da pele como várias bocas do corpo. Outra referência usada no processo foi a prática do Contato Improvisação, que é umas das linhas de investigação do Coletivo Lugar Comum, desde 2011. Exercícios propostos por alguns performers, bem como a vivência do elenco em Jams de Dança e no encontro Contato Coletivo, contribuíram para a inclusão dessa prática em uma das cenas da performance.

Outro ponto de contágio identificado nesse processo entre os performers foi a conexão com a pesquisa Trânsito Coletivo, que estava sendo desenvolvida pelo Coletivo Lugar Comum simultaneamente à criação de Motim. Trânsito Coletivo foi uma pesquisa teórico-prática que tinha como intuito discutir o estado de presença em espaços de passagem, como rodoviárias, aeroportos, metrôs etc. Assim, sua realização contribuiu fortemente para alguns aspectos da criação de Motim, como a reflexão sobre presença cênica, o pensamento sobre performance e como habitar os espaços públicos da cidade.

Contágio Performer e Público

A relação de contaminação entre performer e público também se configurou como importante estratégia de metodologia para o trabalho. Ao promover os laboratórios em espaços públicos começou-se a perceber a necessidade de construir um corpo poroso, que pudesse se relacionar com os transeuntes e compor com eles. Esse estado de corpo poroso foi denominado pelos performers-criadores de corpo sim (um corpo que diz sim). Para evocação desse estado poroso, aberto, desse "corpo sim", foi essencial a articulação de um corpo interdisciplinar, que não se utiliza de uma técnica especifica, mas de diferentes referências de trabalho corporal (da dança, do teatro, do circo, da música) podendo agregar elementos de diferentes linguagens artísticas para construir o seu fazer-dizer.

Trazer para o trabalho de preparação corporal técnicas e práticas de diferentes linguagens proporcionou ao elenco um estado cênico flexível, que estava receptivo a mudanças de tônus e de presença. Isso possibilitou que o elenco também tivesse essa receptividade em relação aos acontecimentos da rua e uma atenção maior para contracenar com imprevistos ao longo do trajeto da performance.

Outro fator importante para estabelecer-se esse diálogo com o público foi a estratégia de criar para algumas cenas jogos de composição, com regras muito simples, e com gestualidade cotidiana, que foram rapidamente assimiladas por quem acompanhava a performance (Imagem 6). Assim, em muitos momentos os espectadores e passantes da rua se incorporavam ao elenco fazendo coro em algumas cenas. E, nesse sentido, o uso do riso como principal ferramenta corporal contribuía imensamente para a participação do público, por configurar-se um gestual cotidiano e conhecido pelo público. "Por uma empatia sinestésica, os espectadores sentem uma comunhão de movimentos possível e se deslocam conjuntamente [...]" (Bardet, 2015BARDET, Marie. A Filosofia da Dança: um encontro entre dança e filosofia. São Paulo: Martins Fontes: 2015., p. 77). Nesse sentido, Motim contribui para uma desierarquização do saber, aproximando o público do fazer do artista, e potencializando o espaço de uma partilha do sensível, da qual fala Rancière (2005aRANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005a.).

Imagem 6
Cena de Motim na Rua Sete de Setembro

A partir desses três âmbitos de Contágio trabalhados na metodologia, podemos identificar a discussão de princípios que reforçam o discurso de Salles sobre o conceito de rede dentro do processo de criação: "[...] simultaneidade de ações, ausência de hierarquia, não linearidade e intenso estabelecimento de nexos" (Salles, 2006, p. 10).

Considerações Finais

O viés político de Motim deu-se, a um só tempo, através do entendimento da arte como forma de tornar público um posicionamento político acerca de uma questão que parecia relevante, o riso; a forma como se acredita ser produtiva a ação política ao fazer artístico, através de ações pacíficas; e, ainda, as estratégias de acessibilidade dessa construção artística e desse posicionamento: o espaço público e a gratuidade.

Atrelado às variações de formas com que o Motim se configura como uma ação de suspensão, desaparecendo para reaparecer sob nova forma, estão as escolhas pela linguagem da performance e seu caráter provisório e por uma estrutura dramatúrgica relativamente móvel, que contaram com cenas que se alternaram de um lugar a outro, tendo relação com a alternância das nuances dos estados corporais desenvolvidos ao longo dos laboratórios.

O exercício de refletir sobre a pesquisa em dança/arte revela todas as ausências, na escrita, do processo vivenciado, deixando claro que há signos flutuantes (Gil, 1997GIL, José. Metamorfoses do Corpo. 2. ed. Lisboa: Relógio d'Água, 1997.) no processo criativo que jamais estarão comportados a esse exercício. Porém, o esforço de continuar a discutir os caminhos percorridos desvela, igualmente, que o percurso investigativo ainda não se concluiu, uma vez que essa tentativa faz reconhecer, por exemplo, que uma das questões, relacionada a investigar o fazer-dizer a ser proferido a partir dos estados de riso, ainda poderá encontrar resultados.

Dessa forma, a dramaturgia de processo estende seus sentidos, ainda, para uma temporalidade mais alargada, que corresponde a etapas diferentes de retomar e continuar a pesquisa, para dar a ver, posteriormente, uma nova etapa desse processo em rede. Assim, diferentemente da ideia de um espetáculo pronto, entendemos que a temporada de 2016 desse trabalho representa dar continuidade às perguntas, à criação em rede, a valorizar, novamente, o processo, para a construção de um modo próprio de proferir ideias que possam aproximar ainda mais dos pontos de conexão entre performers, a cultura, o público, de modo que esse projeto atinja seus propósitos de valorizar o ato de rir como suspensão, como ato que aproxima as pessoas do seu corpo, e lhe restitui a potência.

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  • ZAMBONI, Silvio. A Pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores Associados, 2006.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    O elenco, composto de 10 integrantes, inicialmente, foi constituído por 8 membros do Coletivo Lugar Comum ‒ Roberta Ramos, Maria Agrelli, Renata Muniz, Liana Gesteira, Priscilla Figuerôa, Conrado Falbo, Cyro Morais e Silvia Góes; e duas convidadas, Letícia Damasceno e Gabriela Santana, artistas e professoras do Curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco. Posteriormente, entretanto, impedimentos pessoais tornaram necessária a substituição temporária das artistas Renata Muniz e Priscilla Figuerôa pelas convidadas Drica Ayub e Iara Sales Agra.
  • 2
    Conforme Setenta (2008), a teoria dos atos de fala "parte da premissa de que falar é uma forma de ação", e os enunciados performativos (que o autor distingue dos constatativos) aqueles em que, ao se dizerem, uma ação é realizada, de forma que sua expressão linguística não consiste apenas em "dizer algo", mas em "fazer algo" (Austin, 1990 apud Setenta, 2008SETENTA, Jussara Sobreira. O Fazer-Dizer do Corpo: dança e performatividade. Salvador: Edufba, 2008., p. 21).
  • 3
    Conforme Lins (2008, p. 45), sobretudo em Fedro, de Platão.
  • 4
    Prática proposta e difundida pelo médico indiano Madan Kataria, que, valendo-se de exercícios de respiração do Yoga a fim de provocar o desejo de rir, tem como pressuposto os benefícios do ato de rir à saúde, independentemente de haver uma motivação emocional.
  • 5
    Exercício apelidado por nós de MemoRia.
  • 6
    Trabalhada pelo ator Arilson Lopes na oficina Corpo cômico, oferecida como parte do processo de construção de Motim, e com ênfase nas técnicas e princípios utilizados pelo palhaço.
  • 7
    Em 2015, o Coletivo Lugar Comum aprovou um projeto, junto ao Funcultura (PE), para nova temporada do trabalho, que será realizada no segundo semestre de 2016. Para os participantes, a ocasião de uma nova temporada não prescinde de retomar e dar continuidade à pesquisa, a fim de que um dos objetivos da pesquisa, encontrar formas de afetar o público pelo propósito (micro)político da performance amplie suas possibilidades de alcance.
  • 8
    Através, por exemplo dos desdobramentos dos exercícios trabalhados pela residência artística do Coletivo Lugar Comum com a artista curitibana Michelle Moura, com ênfase na repetição de pulso, gesto, até a transformação por acessar a condição de exaustão e contato com aspectos do transe.
  • 9
    Isto é, compreende, para além de um texto de origem, "os meios cênicos empregados pela encenação" (Pavis, 1999PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999., p. 113).
  • 10
    Ainda que a realidade de contar com a figura específica do dramaturgista não seja tão comum em realidades de produção artística como a brasileira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2016
  • Aceito
    18 Set 2016
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