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Lógica pedagógica e pensamento reflexivo com base em John Dewey e Paulo Freire: uma mesma epistemologia, diferentes perspectivas ético-políticas

Pedagogical logic and reflexive thinking based on John Dewey and Paulo Freire: same epistemology, different ethical and political perspectives

Lógica pedagógica y pensamiento reflexivo basado en John Dewey y Paulo Freire: una misma epistemología, diferentes perspectivas ético-políticas

Resumo:

O artigo descreve possíveis interlocuções entre as pedagogias de John Dewey e Paulo Freire, por meio do viés epistemológico que as duas propostas apresentam. A curiosidade, nos dois autores, é impulso inicial para o conhecimento, com desdobramentos para o pensamento reflexivo e a lógica pedagógica. O encontro epistêmico entre a realidade objetiva e os sujeitos do conhecimento, juntamente com a crítica ao tradicionalismo em educação, é basilar no pensamento dos dois. Nas seções intituladas Pensamento e reflexão em John Dewey e A curiosidade epistemológica em Paulo Freire, apresentamos os argumentos principais relativos às epistemologias deweyana e freiriana para concluir que estão dentro de um viés antropológico bastante aproximado, mas diferem na perspectiva político-pedagógica.

Palavras-chave:
John Dewey; Paulo Freire; pensamento reflexivo; lógica pedagógica

Abstract:

The text describes viable interlocutions between John Dewey’s and Paulo Freire’s pedagogies through an epistemological approach presented by both thinkers. Curiosity is the initial impulse to knowledge for both authors, producing outcomes to reflexive thought and pedagogical logic. The epistemic intersection between objective reality and the subjects of knowledge, accompanied by the critique of traditionalist education, are basic in John Dewey and Paulo Freire’s thinking. In the sections titled Thought and reflection in John Dewey and Epistemological curiosity in Paulo Freire, we present the main arguments related to Deweyan and Freirian epistemologies in order to conclude that they are inside a sufficiently related anthropological bias, but differ in political and pedagogical perspectives.

Keywords:
John Dewey; Paulo Freire; reflexive thinking; pedagogical logic

Resumen:

Este artículo describe posibles diálogos entre las pedagogías de John Dewey y Paulo Freire, a través del sesgo epistemológico que presentan las dos propuestas. La curiosidad, en ambos autores, es el impulso inicial para el conocimiento, con consecuencias para el pensamiento reflexivo y la lógica pedagógica. El encuentro epistémico entre la realidad objetiva y los sujetos de conocimiento, junto con la crítica al tradicionalismo en la educación, es fundamental en el pensamiento de los dos. En los apartados titulados Pensamiento y reflexión en John Dewey y La curiosidad epistemológica en Paulo Freire, presentamos los principales argumentos relativos a las epistemologías deweyana y freireana para concluir que se encuentran dentro de un sesgo antropológico muy aproximado, pero difieren en la perspectiva político-pedagógica.

Palabras clave:
John Dewey; Paulo Freire; pensamiento reflexivo; lógica pedagógica

Introdução

Temos respostas quando nos perguntam sobre o que queremos dizer com pensamento reflexivo. Não obstante nosso envolvimento com as questões dos saberes pedagógicos e filosóficos, invocamos a sinonímia e respondemos utilizando os termos pensamento crítico, criticidade, reflexão. Quanto à outra expressão conceitual do título deste artigo - lógica pedagógica -, temos certa dificuldade para responder de pronto, por se tratar de uma expressão que invoca, de maneira mais articulada, a relação entre Filosofia e Educação, mais especificamente entre visão (ou escola) filosófica e intenção pedagógica. É na gênese de uma filosofia pedagógica como a de John Dewey que consolidamos melhor o que entendemos, hodiernamente, por pensamento crítico ou reflexivo. Por esse motivo e por diversas outras razões, sempre é possível aproximar os dois autores. A base epistemológica com que Paulo Freire concebe o conhecimento se alimenta da concepção deweyana porque este se situa numa perspectiva que faz par com a curiosidade epistemológica, com a inserção no mundo e com o encontro epistêmico entre a realidade objetiva e os sujeitos do conhecimento. De modo a viabilizar suas teses sobre a aprendizagem das crianças, esses são os pontos de partida e a alavanca da teoria pedagógica de John Dewey.

O presente artigo toma por base que há, na teoria pedagógica deweyana, conceitos articuladores que Paulo Freire conhece, resgata e prestigia. Tal afirmação não intenciona ratificar somente que Paulo Freire leu os textos deweyanos, pretende-se avançar e dizer que existem mais “continuidades” do que “descontinuidades” entre as duas propostas. Ainda mais, pretendemos dizer que as duas instâncias teórico-pedagógicas são detentoras, cada uma a seu tempo, de uma certa estabilidade; não são ou não apresentam teses oscilantes, o que facilita traçar, entre elas, aproximações e afastamentos. Afirmando que há mais aproximações do que afastamentos entre ambas, corremos menores riscos de apartar os dois autores e de solapar ou abafar o conteúdo inovador que trazem em suas teorias. Esse tipo de formulação facilita ressignificar posições diante de e entre filosofias clássicas, como é o caso de John Dewey e Paulo Freire. Não restam dúvidas de que, evidentemente, o distanciamento linear temporal entre essas teorias também favorece nossa perspectiva de análise, sendo o tradicionalismo educacional o alvo principal de crítica dos dois autores. É com fundamento nessas advertências reflexivas que apresentamos o texto a seguir.

Pensamento e reflexão em John Dewey

A teoria da investigação, ou seja, a lógica instrumentalista de John Dewey constrói-se com base em suas experiências como professor e coordenador dos departamentos de Filosofia, Pedagogia e Psicologia na Escola Laboratório de Chicago (Soler, 2019SOLER, L. G. A epistemologia instrumentalista de John Dewey e sua aplicabilidade na Escola Experimental da Universidade de Chicago. 2019. 117 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019., p. 49). As primeiras pistas sobre possibilidades investigativas aparecem na obra Como pensamos, na qual ele analisa o processo real e não somente formal do pensamento reflexivo, correto, chegando a conhecimentos ordenados e criticamente verificados, opositores do pensamento irrefletido, incorreto, que leva a concepções precipitadas e dogmáticas (Dewey, 1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas).).

A lógica pedagógica de John Dewey revela-se, na obra citada, quando o autor utiliza a expressão pensamento reflexivo para propor uma forma de desenvolver pedagogicamente a capacidade da criança para a reflexão. O filósofo estadunidense discorda da objeção de que a atitude mental científica não apresenta importância no ensino das crianças e dos jovens. Por isso, busca incorporar o moderno espírito científico, que é o método experimental, a determinadas atitudes presentes na infância, identificadas como a curiosidade, a imaginação e a investigação.

Anísio Teixeira entende que John Dewey faz uma reformulação na lógica formal ao aprofundar a humanização da Ciência. Para ele, a origem e o funcionamento de todas as formas lógicas encontram-se, especificamente, no campo das atividades concretas de pesquisa e averiguação dos conhecimentos. Seu empenho é apresentar as origens da lógica, de um lado, a origem biológica e, de outro, a cultural (Teixeira, 1955TEIXEIRA, A. Bases da teoria lógica de Dewey. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 57, p. 3-27, jan./mar. 1955). Ou seja, essas formas se originam no processo de indagação, inquérito ou investigação e foram produzidas pela necessidade humana, com base em como a utilizamos no nosso modo de pensar e em que nos alicerçamos para conduzir inteligentemente a nossa vida e obter os conhecimentos e o saber.

Os dois elementos que constituem o ato de investigar, segundo ele, são o pensamento reflexivo e a indagação objetiva, sendo o ato de investigar um processo singular, capaz de possibilitar o conhecimento objetivo válido, que John Dewey define como a soma de proposições garantidas pela experimentação, sempre submetida à verificação e à ampliação, conforme as necessidades e descobertas atuais da investigação.

O conhecimento é a decorrência de um processo de indagação, o resultado de uma atividade que se inicia em uma situação de perplexidade e se conclui com a resolução desse problema ou dessa situação. Assim, a lógica de John Dewey e sua equivalente teoria do conhecimento tornam a operação experimental indispensável ao processo do conhecimento. Lógica não é a teoria do conhecimento adquirido, tampouco da sua comprovação, mas, sim, a teoria do processo de adquirir conhecimento.

Para Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas).), conhecer e pensar são ações diferentes. Algo que conhecemos, entendemos como seguro e verdadeiro, e sobre o que não precisamos pensar apresenta grande possibilidade de nos enganar, pois o admitimos sem colocar em dúvida. Segundo esse autor, o ato de pensar inicia pela dúvida e pela incerteza. É, antes de tudo, uma atitude prática, a presteza para agir com cautela. É a atitude que indaga, busca e investiga. Só assim, pelo seu processo crítico, o verdadeiro pensamento é revisto e ampliado, organizando as convicções sobre determinado estado de coisas.

As ideias ou os pensamentos são instrumentos em nossa investigação. Representam instrumentos para resolver os problemas e enfrentar um mundo ameaçador e uma existência precária. Por serem instrumentos, não há sentido em pregar a veracidade ou a falsidade deles. Podem ser eficazes, relevantes, danosos, econômicos, mas não verdadeiros ou falsos (Soler, 2019SOLER, L. G. A epistemologia instrumentalista de John Dewey e sua aplicabilidade na Escola Experimental da Universidade de Chicago. 2019. 117 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019., p. 52).

Segundo Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas).), não é possível dizer para alguém como deve pensar. Mas é possível ensinar alguém a pensar bem, a ter bons hábitos de reflexão. Há várias maneiras de pensar, o indivíduo que compreender quais são as melhores e o porquê provavelmente mudará sua forma de fazê-lo para uma mais eficiente. Na acepção deweyana, a melhor maneira de pensar é por meio do pensamento reflexivo, pois este é “a espécie de pensamento que consiste em examinar mentalmente o assunto e dar-lhe consideração séria e consecutiva” (Dewey, 1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 13). Outros processos mentais recebem o nome de pensamento, como, por vezes, o “curso desordenado de ideias que nos passam pela cabeça, automática e desregradamente” (Dewey, 1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 14). O que passa desse modo dificilmente tem algum valor, visto que são fantasias mentais, lembranças, impressões vagas e incompletas. É assim que pensam os tolos, diz o filósofo estadunidense.

O pensamento reflexivo não pode ser visto como um mero fluxo causal de coisas pensadas, ou como a simples sequência irregular de pensar. A reflexão é uma consequência, uma ordem consecutiva de ideias, em que uma se apoia na outra, naturalmente. As partes de um pensamento reflexivo não vêm e vão em um movimento caótico, elas derivam umas das outras e se sustentam entre si. Cada fase é um movimento de um ponto a outro e deixa um depósito, do qual se utilizará a próxima fase. Esse fluxo se transforma numa série. Portanto, o pensamento reflexivo é uma cadeia. Conforme Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 14), “há nele unidades definidas, ligadas entre si de tal arte que o resultado é um movimento continuado para um fim comum”.

Um segundo sentido atribuído ao ato de pensar, de acordo com Soler (2019SOLER, L. G. A epistemologia instrumentalista de John Dewey e sua aplicabilidade na Escola Experimental da Universidade de Chicago. 2019. 117 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.), pode ser aplicado a coisas que não são percebidas pelos sentidos. Pode-se dizer que algo é inventado, diferente de um rigoroso registro de observação. Acontecem, nesses casos, episódios imaginários, que apresentam alguma coerência pelo fato de estarem presos a um fio contínuo, em uma posição intermediária entre o pensamento fantasioso e o reflexivo. Segundo Dewey (1979), DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas).quando as crianças contam histórias imaginárias, embora algumas sejam confusas e outras se apresentem bem, existem nelas todos os graus de coerência interna, são articuladas, ocorrem em espíritos dotados de capacidade lógica e preparam o caminho para o pensamento encadeado; sendo assim, assemelham-se ao pensamento reflexivo.

Nessa perspectiva, Dewey (1979, DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas).p. 15) esclarece que “um pensamento ou ideia é a representação mental de algo não realmente presente; e pensar consiste na sucessão de tais representações”. O pensamento reflexivo apresenta um propósito. Sua direção deve conduzir a algum lugar, deve voltar-se a uma solução capaz de conceber uma substância exterior à corrente de imagens. Algo precisa ser desvendado mediante a aplicação do pensamento, e esse objetivo a ser alcançado define uma função reguladora da sequência de ideias.

A crença é o terceiro sentido de pensamento. Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 16) define esse significado de pensamento como o mais restrito em relação aos dois citados anteriormente, dado que “uma crença refere-se a algo além de si própria, por onde se aquilata o seu valor: faz uma afirmação sobre algum fato, princípio, ou lei”. Para Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 16), é desnecessário enfatizar a relevância da crença, pois “abrange toda matéria de que não temos conhecimento seguro, mas em que confiamos o bastante para nelas basear a nossa ação”.

Os pensamentos desenvolvem-se inconscientemente, desde causas obscuras e por canais não identificados, infiltram-se no espírito e tornam-se um elemento da nossa guarnição mental: “São por eles responsáveis a tradição, a instrução, a imitação, que, todas, dependem, de alguma forma, de autoridade, ou atendem à nossa própria vantagem, ou coincidem com alguma forte emoção nossa” (Dewey, 1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 17). Esses pensamentos, segundo Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas).), são preconceitos, ou seja, prejuízos, são conclusões atingidas como consequência da atividade mental pessoal, da observação, coleta e análise das provas.

Os pensamentos, tanto no primeiro como no segundo sentido, mesmo que moderados e que, em alguns instantes, causem-nos prazer e sejam uma necessária recreação, são prejudiciais, desviam a atenção do mundo real, resultando, na maioria das vezes, em perda de tempo. Ainda assim, nenhum dos casos pode intitular-se como algo que a mente possa aceitar, anunciar e acolher como base de ação. Nenhum deles pode ousar pretender a verdade; podem constituir uma realização emocional, porém, em nenhum momento, a conotação intelectual e prática.

Em contrapartida, as crenças envolvem essa realização intelectual e prática, exigem investigação para que se descubra em que bases elas se sustentam. Para o autor, há dois tipos de crença: aquela que se fundamenta em uma primeira evidência, no que nossos olhos veem, mas não é comprovada por falta de coragem e de energia para investigar; e aquela que se apoia no estudo mais abrangente e no desejo de aumentar a área de observação e o raciocínio envolvendo conclusões com diferentes ideias e escolhas.

Nesse último modo de pensar, forma-se uma corrente ordenada de ideias, surgindo uma intenção e um fim regulador, como também um exame pessoal com investigação. Sendo assim, Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 18) nos esclarece que “[...] o pensamento reflexivo faz um ativo, prolongado e cuidadoso exame de toda crença ou espécie hipotética de conhecimento, exame efetuado à luz dos argumentos que a apoiam e das conclusões a que chega”. Todas as categorias de pensamento citadas podem produzir esse tipo de transmutação da crença (doxa) em reflexão. Nesse sentido, então, só é viável sustentar uma crença, em sólido alicerce de evidência e raciocínio, se houver uma dedicação consciente e voluntária.

O autor estadunidense reconhece que não é possível estabelecer uma linha divisória entre as diversas operações do pensamento. Bons hábitos de pensar só são possíveis caso estes não sejam confundidos com os diferentes tipos de pensamento. Para uma melhor elucidação dessa diferenciação, apresenta um exemplo de um pensamento que se encontra entre uma evidência e uma fantasia:

[...] um homem está a passear em um dia quente. O céu mostrava-se claro a última vez que o observara, mas agora repara que, enquanto se distraía a contemplar outras coisas, o ar tornou-se mais frio. Ocorre-lhe pensar que provavelmente irá chover; fitando o céu, vê uma nuvem escura a tapar o sol e apressa, então, o passo. Em tais condições poder-se-á dizer que houve um pensamento? Nem o ato de passear, nem a sensação de frio constituem pensamentos. Passear é um modo de dirigir a atividade; olhar e reparar são outros modos de atividade. A chuva provável foi, entretanto, alguma coisa sugerida. O nosso homem sente frio, pensa nas nuvens, olha para cima, percebe-as e, em seguida, pensa numa coisa que não vê: a tempestade. Essa possibilidade sugerida é o pensamento. (Dewey, 1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 19).

Esse pensamento - quando aceito como uma opção real de ocorrência - enquadra-se na finalidade do conhecimento e exige uma consideração reflexiva. O estudioso estadunidense quer dizer que, tanto no caso da fantasia quanto no da crença, o pensamento envolve a percepção de um fato, seguida de algo - não observado, mas trazido à mente mediante uma sugestão do objeto que foi visualizado.

A reflexão, enquanto processo, inicia quando começamos a inquirir a credibilidade, a garantia de que os dados existentes realmente evidenciam a ideia proposta, justificando aceitá-la. Nesse sentido, reflexão subentende que se crê - ou não se crê - em alguma coisa não por causa dela própria, mas, sim, por meio de outra - uma prova, uma garantia que fundamente a crença. Dito isso, é possível compreender que Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 21) define o pensamento como “a operação em virtude da qual os fatos presentes sugerem outros fatos (ou verdades), de tal modo que nos induzem a crer no que é sugerido, com base numa relação real nas próprias coisas, uma relação entre o que sugere e o que é sugerido”.

São exemplos dessa afirmação: uma nuvem sugere uma baleia, mas não significa uma baleia, porque não há ligação nem laço entre o que é visto e o que é lembrado; as cinzas sugerem e significam fogo porque são produzidas apenas por combustão. Há um elo entre coisas reais, em que uma se torna a garantia da crença na outra.

Assim, Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas).) assevera que, diferentemente de outras operações a que se dá o nome de pensamento, o pensar reflexivo abrange duas fases importantes: a primeira consiste em um estado de hesitação, dúvida, dificuldade mental, que origina o ato de pensar; e a segunda fase apresenta um ato de pesquisa para encontrar material que resolva a dúvida e esclareça a perplexidade. Para pensar verdadeiramente bem, é preciso estar disposto a manter e prolongar o estado de dúvida, que, segundo o autor, é o estímulo para uma investigação perfeita, em que ideias ou crenças só se firmam após terem descoberto as suas razões.

A capacidade de pensar é o que distingue a vida humana da vida dos outros animais. Dewey (1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 26) elenca três valores, que, juntos, compõem o pensamento reflexivo: (a) é uma capacidade que nos emancipa da ação impulsiva e rotineira, ou seja “converte uma ação puramente apetitiva, cega e impulsiva, em ação inteligente”; (b) é pelo pensamento que o homem aperfeiçoa, combina sinais artificiais que vão lhe indicar as consequências, assim como as formas de evitá-las e consegui-las; (c) o pensar enriquece as coisas de sentido, ou seja, aquele que reflete confere às coisas, aos fenômenos, um estado muito diferente do que simplesmente reações automáticas a estímulos que não trazem nenhuma significação. Os dois primeiros valores referem-se à natureza prática e proporcionam uma maior capacidade de controle e o terceiro mostra o enriquecimento do significado.

Entretanto, John Dewey alerta que o ato de pensar reflexivo precisa receber orientação educacional atenta e cuidadosa, para não se desenvolver por caminhos errados e conduzir a falsas crenças. Por esse motivo, ele cita algumas tendências que exigem constante ordenação e controle: (a) a má orientação do pensamento, proposta por Francis Bacon em sua Teoria dos Ídolos 1 1 Os Ídolos, segundo Francis Bacon (1561-1626), são noções falsas que invadem o intelecto e dificultam o acesso à verdade e o processo de instauração das ciências, visto que os homens não se dispõem a combatê-los. Por essa razão, o objetivo principal da Teoria dos Ídolos é conscientizar os homens das falsas noções que barram o caminho rumo à verdade. Segundo Bacon, são quatro essas entidades ilusórias que direcionam o espírito às falsas crenças: (a) da tribo - tentações para o erro que decorrem da natureza humana; (b) da caverna - erros provenientes de cada indivíduo, de sua caverna pessoal, de seus preconceitos; (c) do foro ou do mercado - erros que provêm da comunicação entre os homens e da linguagem, do mau uso da fala; (d) do teatro - originam-se da moda, dos espíritos da época, das doutrinas filosóficas e religiosas. , que o autor classifica como duas intrínsecas - uma que é comum à generalidade dos homens e outra que reside no temperamento e nos hábitos específicos de determinado indivíduo; e duas extrínsecas - que emergem das condições gerais da sociedade. Como exemplo, o pensador estadunidense menciona a tendência de acreditar que uma coisa existe quando há uma palavra que a exprime, ou que não existe se não lhe foi dado um nome, e a que provém das correntes sociais, temporárias e locais; (b) o método de John Locke, que apresenta as três categorias 2 2 A primeira categoria engloba o conjunto de homens que poucas vezes raciocinam, pegam o exemplo de um vizinho, dos pais, de um ministro de sua religião ou de quem quer que lhes agrade para não precisar refletir e examinar pessoalmente uma situação; a segunda classe trata dos homens que colocam a paixão no lugar da razão; e a terceira espécie é a dos que se guiam pela razão naturalmente, porém, prendem-se a uma determinada questão por não terem um senso maior das coisas, relacionam-se apenas com um determinado grupo de pessoas, leem apenas um gênero de livros, navegam apenas pequenas distâncias, não se aventuram em um alto nível de conhecimento (Dewey, 1979, p. 35). de homens e as maneiras de se enganar o pensamento, o qual, segundo o autor, é menos formal e mais elucidativo que o método de Francis Bacon.

Por essa razão, Dewey (1979)DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas). entende que não basta o conhecimento das melhores formas de pensamento para poder aperfeiçoá-lo. Sua posse não garante a capacidade de pensar corretamente. É preciso estar animado por certas atitudes que dominam o caráter do indivíduo. Segundo ele, são três as atitudes, que, cultivadas, desenvolvem o pensar reflexivo: (1) espírito aberto - representa uma atitude de estar aberto a novas perspectivas, abrir espaço para novas alternativas, fatos e ideias, não deixar que o medo inconsciente o afaste de novos contatos intelectuais que são indispensáveis à aprendizagem; (2) de todo o coração - envolve a relação emocional diante dos desafios, a disponibilidade do indivíduo de envolver-se com entusiasmo nas situações que surgem na vida, o interesse intelectual caminhando paralelamente ao interesse afetivo; (3) responsabilidade - atributo moral que, como a atitude anterior, é muito mais que um recurso intelectual, é uma atitude necessária na análise de novas possibilidades, porque examina as consequências das decisões tomadas para assumi-las com responsabilidade, visto que elas constituem escolhas realizadas pelo indivíduo.

Ao analisar a natureza do pensamento reflexivo, John Dewey apresenta os recursos inatos para o treino do pensamento, ou seja, as forças que agem sobre os seres humanos e para as quais é possível retornar quando surge o desafio de desenvolver o poder de pensar bem. São eles: (I) a curiosidade; (II) a sugestão; (III) a ordem.

A curiosidade é uma tendência em destaque na infância, dado que “para as crianças o mundo inteiro é novo” (Dewey, 1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 45). Mas todo ser humano saudável recebe um novo contato como um deslumbre, um encantamento. Moreira (2002) MOREIRA, C. O. F. Entre o indivíduo e a sociedade: um estudo da filosofia da educação de John Dewey. Bragança Paulista: EdUSF, 2002.acrescenta que a curiosidade é um fator básico da interação do organismo com o meio e que cada órgão dos sentidos está, de forma natural, acessível para ser acionado, para inter-relacionar-se. Ou seja, “esse processo de interação constitui a própria estrutura daquilo que se chama experiência” (Moreira, 2002MOREIRA, C. O. F. Entre o indivíduo e a sociedade: um estudo da filosofia da educação de John Dewey. Bragança Paulista: EdUSF, 2002., p. 145) e, por conseguinte, é o componente básico dos princípios que se aperfeiçoarão em ato de pensar reflexivo.

John Dewey alerta que a curiosidade nas manifestações primeiras da infância não configura um ato de pensar, pois é apenas um transbordar de vitalidade, uma expressão enorme de alegria orgânica. As atividades da criança curiosa quase nada têm de intelectual, o que há é uma inquietação fisiológica. Contudo, é essa atividade que dá o impulso, que traz a força, o vigor para as operações intelectuais. Esse é o primeiro nível da curiosidade. O segundo nível é aquele que desenvolve essa curiosidade mediante estímulos sociais, é a necessidade do contato com o outro, evidenciando a linguagem como instrumento para ampliar a experiência. A curiosidade intelectual apresenta-se como o último nível, pois eleva-se dos dois planos anteriores - o orgânico e o social -, ao controlar o interesse de descobrir, por si mesma, as respostas que nascem do contato com as pessoas e com as coisas.

Ao falar da sugestão, John Dewey se refere ao processo de conexão da experiência presente com a anterior, por meio de alguma coisa ou da qualidade comum que ocorre independentemente da vontade do indivíduo. Para ele, “tudo que foi experimentado acorre-nos em união com outro objeto, qualidade ou acontecimento” (Dewey, 1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 49). Sendo assim, acrescenta que “o ter ideias não é tanto o que fazemos, mas o que nos acontece” (Dewey, 1979DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas)., p. 49).

A sugestão apresenta diferentes aspectos, como a facilidade com que ela surge ao se apresentarem objetos e fatos; a extensão mostra que o melhor hábito mental é o que encontra sua posição de equilíbrio entre a pobreza e a superabundância de sugestões que se manifestam. A profundidade que trata da qualidade dos pensamentos dos homens, que, quando reentrantes, podem penetrar até a origem do problema. Para que as sugestões se convertam em reflexão, é necessária outra dimensão, a propriedade da ordem. Para John Dewey (1979,DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Atualidades Pedagógicas). p. 55), “temos pensamento reflexivo apenas quando a sucessão é tão controlada que se torna uma sequência ordenada, rumo a uma conclusão, que contém a força intelectual das ideias precedentes”. Força intelectual é o que se entende pela força de dar a uma ideia o valor da crença e convertê-la em ser digna de crédito.

John Dewey considera que uma atividade reflexiva envolve duas situações: uma pré-reflexiva, que expõe a situação confusa, embaraçosa, e mostra o problema a ser resolvido, a origem da questão que a reflexão deve responder; e outra pós-reflexiva, que mostra a situação já esclarecida, apresentando a experiência direta da satisfação. Entre os dois limites, encontram-se as várias fases do ato de pensar: (a) uma situação indeterminada de dúvida; (b) a constituição de um problema - perceber que a situação requer investigação; (c) a determinação da solução - levantamento de hipóteses; (d) o raciocínio - desenvolvimento das consequências da solução escolhida; e (e) a verificação da hipótese levantada por meio da experimentação e de observação posterior.

Dewey conclui que a situação inicial que desencadeia uma investigação não é uma elaboração intelectual ou puramente cognitiva. Ela é, sim, existencial, é uma situação de fato, uma circunstância que envolve o indivíduo que investiga e os elementos do ambiente natural e social no qual ele está inserido. Para pensar verdadeiramente bem, o agente do conhecimento precisa estar disposto a manter e prolongar o estado da dúvida, que é o estímulo para uma investigação perfeita, na qual nenhuma ideia seja aceita, nenhuma crença se firme positivamente, sem que as verdadeiras justificativas tenham sido descobertas.

A curiosidade epistemológica em Paulo Freire

São muitos os pontos de contato entre John Dewey (1859-1952) e Paulo Freire (1921-1997) quanto ao tema da produção do conhecimento, como resultado do processo de investigação da realidade. O ponto de partida da aproximação teórica preferencial é a noção de “curiosidade epistemológica” em Paulo Freire e a tríade deweyana “curiosidade, imaginação e investigação”. Em John Dewey, identificam-se as compreensões de que o conhecimento se inicia pela perplexidade e pela necessidade de prolongar o estado de dúvida (enquanto estímulo para a pesquisa) e inquerir a credibilidade dos dados da realidade. A curiosidade, portanto, ocupa uma função fundamental na teoria do conhecimento desse filósofo. O mesmo sentido podemos afirmar sobre a concepção filosófica de Paulo Freire, fixada na expressão “curiosidade epistemológica”.

Segundo Freire (2021eFREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021e., p. 155), homens e mulheres estão “imersos na realidade”, vivenciando a “pura sensibilidade de suas necessidades”. Assim como afirma John Dewey, os sujeitos, para Freire (2021eFREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021e., p. 154), são confrontados diariamente com situações problemáticas que conformam uma “experiência existencial”. A existência, portanto, é o terreno fértil, em que nascem a perplexidade e a curiosidade. Nesse sentido, os sujeitos têm a possibilidade de “atuar sobre a realidade objetiva e de saber que atuam”, tomando essa realidade como “objeto de sua curiosidade” (Freire, 2021aFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021a., p. 109). Em outras palavras, para Freire (2021aFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021a., p. 84), tomar a realidade significa “pôr-se em face do ‘não eu’, curiosamente”. Trata-se do desencadear de um processo de investigação do em-si do objeto, tornando-o um para-outro, nesse caso, um objeto da curiosidade.

Portanto, como afirma Freire (2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 75), trata-se de uma “subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade”, produzida por um “sujeito de ocorrências”, que se relaciona dialeticamente com a realidade. O educador pernambucano aponta que não nos relacionamos com a realidade como autômatos, mas nela interferimos objetiva e subjetivamente, respondendo às nossas curiosidades e perplexidades diante da existência. Tal é a importância da curiosidade para Freire (2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 54), uma vez que esta ocupa o lugar de “fundante da produção do conhecimento”. Indo além, assegura que a “curiosidade é já conhecimento”, pois existem “perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós [...] que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar” (Freire, 2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 75). A pergunta insistente ou, como diria John Dewey, o estado de dúvida representa a forma de estar no mundo própria dos seres humanos.

Além disso, a curiosidade é já conhecimento, porque “nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo” (Freire, 2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 30). Um processo de “conhecer o mundo” que envolve curiosidade, imaginação e investigação, enquanto meios de captação, compreensão e uso das legalidades e propriedades da realidade objetiva. Ou seja, a curiosidade enquanto “manifestação presente à experiência vital, [...] histórica e socialmente construída e reconstruída” (Freire, 2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 33). Um processo de resposta a algum carecimento humano ou questão existencial. Assim, uma curiosidade que “terminou por se inscrever historicamente na natureza humana e cujos objetos se dão na História”, “uma curiosidade em constante disponibilidade” (Freire, 2021eFREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021e., p.138-139). Ainda, uma curiosidade humana que “gera, indiscutivelmente, achados que, no fundo, são ora objetos cognoscíveis em processo de desvelamento, ora o próprio processo relacional, que abre possibilidades aos sujeitos” (Freire, 2020cFREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2020c., p. 71).

Paulo Freire dedicou sua vida como educador para, entre outros aspectos, libertar a curiosidade dos educandos(as) das amarras da educação “bancária”: “com a curiosidade domesticada, posso alcançar a memorização mecânica do perfil deste ou daquele objeto, mas não o aprendizado real ou o conhecimento cabal do objeto” (Freire, 2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 83). Nesse sentido, a “construção do conhecimento ou a produção do conhecimento do objeto implica o exercício da curiosidade” (Freire, 2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 83).

Contudo, como é possível identificar, a curiosidade “é já conhecimento” quando está associada a um processo de “tomar distância” do objeto, ou seja, quando a curiosidade assume uma posição epistemologicamente metódica diante do objeto. Dessa forma, o autor pernambucano está incluindo a curiosidade como parte do processo de investigação do objeto ou, como diria John Dewey, inserida como elemento fundamental do próprio “ato de investigar”. Trata-se de transformar a curiosidade, antes um movimento vital do ser humano, em um procedimento metódico e epistemologicamente exigente. Por meio da “curiosidade epistemológica”, o sujeito, “tomando distância, dele [do objeto] se aproxima”, resultando “reconhecê-lo [objeto] como conhecimento” (Freire, 2020cFREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2020c., p. 72).

Segundo Freire (2020c, FREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2020c.p. 236), ao “objetivar tal objeto [...] dele eu me distancio e, simultaneamente, oriento minha curiosidade”, ou seja, “minha mente vai mudando a qualidade dos enfoques e dos tratamentos”. Dessa forma, a curiosidade epistemológica é uma curiosidade orientada, resultado de um processo de distanciamento metodológico do objeto analisado. Objetivar algo significa torná-lo foco da crítica que busca a razão de ser da coisa. Portanto, para o pensador pernambucano, a curiosidade epistemológica representa “um adequar-se entre mente e circunstâncias”, que “burila, [...] apura, aprimora e instrumenta a si mesma; ela se faz, ela toda, direção e ação coincidindo sobre um objeto”, ou, ainda, que “incide sobre as relações do objeto e sobre suas relações com o objeto” (Freire, 2020cFREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2020c., p. 236).

A subjetividade, por meio da curiosidade epistemológica, adquire maior consciência sobre a natureza (razão de ser) do objeto objetivado e, também, maior consciência-de-si, enquanto sujeito que objetiva subjetivações e subjetiva objetivações. As afirmações do educador brasileiro coincidem, nesse sentido, com as formulações de Georg W. F. Hegel (1770-1831) sobre a necessidade de ultrapassar os limites sensíveis da realidade, assim como alcançar a consciência-de-si enquanto parte da experiência do espírito (gênero humano). Acerca da curiosidade epistemológica e da consciência-de-si, cabe acrescentar que, para Freire (2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 85), quanto “mais faço estas operações com maior rigor metódico tanto mais me aproximo da maior exatidão dos achados de minha curiosidade”. Nesse processo epistemologicamente metódico, “quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica” (Freire, 2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 40).

Nesse sentido, uma curiosidade desprovida de criticidade, ou seja, sem o devido distanciamento, mesmo que ainda incipiente, é uma curiosidade “ingênua”, conforme aponta Freire (2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 33): “na verdade, a curiosidade ingênua que, ‘desarmada’, está associada ao saber o senso comum”, pois a curiosidade ingênua produz, necessariamente, um “saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito” (Freire, 2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 39).

Se, para John Dewey, a curiosidade possui um lugar de destaque no trinômio curiosidade - imaginação - indagação, é necessário investigar como os sentimentos e a imaginação comparecem na reflexão freiriana. Antes da exposição indicada, cabe uma forte advertência: o educador brasileiro afirma que a imaginação não pode substituir a realidade como objeto. Para Freire (2021aFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021a., 109-110), a “transformação de uma realidade simplesmente imaginada seria um absurdo”, principalmente porque a consciência “não é fazedora arbitrária da objetividade”. A imaginação, portanto, não substitui a objetividade, na qual homens e mulheres estão imersos, condicionados e determinados. Uma posição teórico-epistemológica que atende claramente aos pressupostos realistas da filosofia freiriana, que, ao lado da sua dialeticidade, conformam uma determinada forma de figurar o ser e o mundo objetivo, na famosa expressão de Hegel.

Registrada a necessária advertência, qual o lugar da imaginação em Paulo Freire? Por maior e mais profundo que seja o exercício de “tomar distância”, enquanto prática científica, inevitavelmente os sujeitos mobilizam sua intuição, suas emoções e sua imaginação como formas de apreensão do objeto (Freire, 2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 85). O afastamento (distância) do objeto que o objetiva (aproxima, conhece-o melhor), por ser um movimento da consciência, não está isento das demais interpelações do subjetivo. A imaginação é, também, um instrumento da consciência para destacar da objetividade (da situação existencial, como diz John Dewey) o objeto do nosso interesse. Reitera-se a advertência de que o objeto é obrigatoriamente destacado da realidade e não simplesmente imaginado 3 3 A imaginação é uma “absorção calorosa e íntima do alcance pleno de uma situação”. Dewey distingue o imaginativo do imaginário da seguinte forma: o imaginário é “arbitrário” e “excêntrico”, enquanto o imaginativo é “duradouramente familiar com respeito à natureza das coisas” (Kaplan, 2010, p. 41). Enquanto a imaginação é “alimentada por uma matéria de vida que, sob a sua influência, assume uma forma rejuvenescida, composta e ampliada”, o imaginário “permanece como um fim [em] si” (Dewey, 2010, p. 465). . Conforme Freire (2020bFREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2020b., p. 136), “nos tornamos hábeis para imaginativa e curiosamente ‘tomar distância’ de nós mesmos, da vida que portamos e para nos dispormos a saber em torno dela”.

A discussão de Paulo Freire sobre a relação entre emoções e ciência demarca, com maior clareza, as influências do pós-modernismo dos anos 1980 e 1990 em sua reflexão filosófica. Trata-se da reprodução da conhecida crítica pós-moderna à suposta arrogância da ratio moderna, que teria hipostasiado o racional, o objetivo, em detrimento do subjetivo. Diz Freire (2020cFREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2020c., p. 199): “foi esta rigorosidade metódica ou sua mitificação, ou também a mitificação da maior exatidão dos achados, na modernidade, que negou a importância dos sentidos, dos desejos, das emoções, da paixão nos procedimentos ou na prática de conhecer”. Contudo, a advertência de cunho pós-moderno não produziu o abandono da racionalidade como instrumento de investigação da realidade, como se pode observar nos irracionalistas do século 20. O que Paulo Freire propõe é a mobilização da subjetividade em todas as suas dimensões: “desenvolver a mente epistemologicamente curiosa orienta-se para desenvolver emocional e racionalmente a capacidade de indagar” (Freire, 2020cFREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2020c., p. 238), ou seja, desenvolver a capacidade de mobilizar emoções e razão sem hierarquizá-las.

A proposta freiriana de desenvolvimento das capacidades emocionais e racionais que sustentam o exercício de inquirição da realidade (John Dewey) se justifica pela natureza da atividade científica. Segundo Freire (2020cFREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2020c., p. 238):

[...] o(a) cientista lida com algo paradoxal”: sua “curiosidade sabe que não existe ponto de chegada”, mas “trabalha estabelecendo hipóteses para buscar e encontrar [; contudo,] em meio a seus achados, descobre coisas que não procurava nem havia suposto.

A pesquisa desafia as hipóteses dos sujeitos com descobrimentos e exigências teórico-metodológicas novas - o que, inevitavelmente, mobiliza emocional e imaginativamente o indivíduo.

Cabe, por fim, discutir o terceiro termo do trinômio do filósofo estadunidense, a indagação. Como salientado no tópico que tratou das contribuições de John Dewey, o ato de pensar reflexivo se aproxima do processo de investigação científica. Portanto, para esse filósofo, o pensar reflexivo configura-se por pensamentos ordenados e criticamente verificados, ou seja, o processo real do pensamento correto. Um pensamento fundado na atitude que indaga, busca e investiga a razão de ser das coisas.

Foi possível aproximar John Dewey e Paulo Freire nos temas da curiosidade e da imaginação, mas o que pensa o filósofo pernambucano sobre o exercício da indagação? Aqui, o melhor caminho teórico está no conceito freiriano de “tomar distância”, que já compareceu neste texto associado à curiosidade epistemológica. Trata-se, inclusive, de um conceito assíduo em diferentes escritos freirianos. Primeiramente, cabe inserir o conceito “tomar distância” em sua perspectiva realista. Para o educador, os sujeitos estão imersos em uma realidade que os condiciona, muitas vezes mitologizada, envolta em penumbras que dificultam a captação das verdadeiras razões de ser das coisas (Freire, 2021aFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021a.). Uma realidade que é construída por homens e mulheres, mas não como gostariam, uma vez que outras forças operam para além das escolhas singulares. Por isso, as noções de imersão, emersão e inserção são tão presentes nas suas obras, para caracterizar os diferentes tipos de relação entre os indivíduos singulares e a totalidade.

De outra forma, Paulo Freire, assim como Karl Marx (1818-1883), defende que os indivíduos se defrontam com situações-problemáticas nas quais se envolvem “independentemente” da sua consciência, sendo a “condição concreta” que os desafia (Freire, 2021aFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021a.). Para o homem e a mulher, como dito anteriormente, “o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida” (Freire, 2021bFREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021b., p. 55). Trata-se, portanto, de uma realidade herdada de gerações anteriores e que estabelece um conjunto de condicionamentos que não foram, conscientemente, escolhidos pelas novas gerações de sujeitos sociais. Dessa forma, é possível identificar, na história humana, consideráveis “permanências” ou estruturas socioeconômicas que transitam entre as gerações e que as desafiam constantemente.

Segundo Freire (2021aFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021a., p. 81), “no contexto teórico, ‘tomando-se distância’ do concreto, se analisam criticamente os fatos que neste se dão”; acrescenta, ainda, que a “análise envolve o exercício da abstração através da qual, por meio de representações da realidade concreta, procuramos alcançar a razão de ser dos fatos”; em outros termos, razão de ser dos fatos ou “compreensão de sua ‘estrutura profunda’”. A expressão “tomar distância”, portanto, diz respeito ao exercício de análise crítica dos processos que se desenvolvem por detrás da aparência fenomênica. Refere-se, também, ao desvelamento de uma essência que está encoberta por uma espessa penumbra que oculta, mas, igualmente, manifesta sua presença. Em síntese, para Freire (2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 83), “tomar distância” significa a “capacidade crítica [...] de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de ‘cercar’ o objeto ou fazer uma aproximação metódica, [...] capacidade de comparar, de perguntar”. Ou, em outras palavras, o exercício de descodificar ou cindir o objeto codificado, ainda oculto pela aparência fenomênica, uma discussão metodológica realizada em profundidade em Pedagogia do oprimido (Freire, 2021eFREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021e.).

O tema do distanciamento em relação ao objeto é conexo com a categoria de objetivação. Em Karl Marx, a objetivação significa pôr algo no mundo, um processo dialético de ideação consciente e de objetivação do idealizado no mundo - o pôr teleológico. Tudo que existe e está no mundo é um ente/ser objetivo ou objetivado. E, como já dito, os sujeitos em sua existência objetivam subjetividades e subjetivam objetividades. Freire (2021aFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021a., p. 119) aponta que é necessário tomar “suficiente distância da realidade a fim de objetivá-la e conhecê-la criticamente” e acrescenta: “sem essa objetivação, mediante a qual igualmente se objetivam, estariam [homens e mulheres] reduzidos a um puro estar no mundo, sem conhecimento de si mesmos nem do mundo” (Freire, 2021a,FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021a. p. 107). Cabe lembrar que, para o educador brasileiro, intervir no mundo significa conhecê-lo. Para haver intervenção no e conhecimento do mundo, é preciso que o ser e o mundo sejam objetividades. Assim, objetivar algo significa torná-lo foco da curiosidade epistemológica do sujeito, consiste em tornar algo objeto. Em outras palavras, reconhecer aquele fenômeno como um objeto digno da investigação das razões de ser da sua existência. Além disso, representa o reconhecimento de uma realidade externa à consciência que, nesse sentido, existe independentemente da vontade do indivíduo. Uma realidade externa que exige um exercício de desvelamento da “estrutura profunda” que a determina e condiciona.

Dessa forma, em nosso entendimento, a indagação em Paulo Freire está justamente na capacidade do sujeito de, tomando distância do objeto, “objetivá-lo”, ou seja, questioná-lo sobre sua natureza, sua gênese e seu desenvolvimento; isto é, a estrutura que o torna necessário e viável. O indagar freiriano é muito similar ao indagar deweyano, no sentido de que ambos não se contentam com o simples plano da doxa na explicação dos processos sociais. Conforme Freire (2021cFREIRE, P. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021c., p. 62), o “conhecimento [...] não pode reduzir-se ao nível de pura opinião (doxa) sobre a realidade. Faz necessário que a área da simples doxa alcance o logos (saber) e, assim, canalize para a percepção do ontos (essência da realidade)”; nessa lógica, afirma que a “mudança de percepção não é outra coisa senão a substituição de uma percepção distorcida da realidade por uma percepção crítica da mesma” (Freire, 2021cFREIRE, P. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021c., p. 80). Para John Dewey, o ato de pensar reflexivo também significa afastar-se da simples doxa em direção ao logos, no sentido de que mesmo as crenças devem estar assentadas sobre um sólido alicerce de evidências e raciocínio, como demonstrado neste artigo.

O exercício reflexivo da indagação ôntica, proposto por Paulo Freire e John Dewey, é necessário e distinto dos fenômenos negacionistas que se multiplicam mundo afora, inclusive no Brasil. Freire (2021cFREIRE, P. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021c., p. 51) alerta que “quanto mais [o sujeito] se distancia da realidade, mais se aproxima da captação mágica ou supersticiosa da realidade”; por isso, cabe um esforço para “substituir a captação mágica por uma captação cada vez mais crítica e, assim, ajudando-o [o sujeito] a assumir formas de ação também críticas” (Freire, 2021cFREIRE, P. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021c., p. 92). Trata-se de um exercício da consciência para desvelar, como afirma Freire (2020bFREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2020b., p. 41), o “problema pela apreensão clara e lúcida de sua razão de ser”, ou seja, é preciso tomar o “mal-estar como objeto de minha curiosidade” (Freire, 2020bFREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2020b., p. 43); do mesmo modo, para John Dewey, as situações existenciais desencadeiam a investigação.

No processo de curiosidade - imaginação - indagação diante da realidade, a teoria e a prática se retroalimentam no desvelamento da objetividade e na construção do autoconhecimento ou da consciência-de-si no e com o mundo. Para superar a consciência “ingênua” sobre o ser e o mundo e sustentar crenças em sólidos alicerces (John Dewey) ou, ainda, para transformar os parâmetros da própria prática social, teoria e práxis devem necessariamente se desenvolver de forma dialética e unitária, enquanto unidade e complementariedade entre distintos. Por isso, em nosso entendimento, Paulo Freire e John Dewey estão convencidos de que curiosidade, imaginação e indagação (questionamento ou objetivação) são momentos inerentes ao processo de dialetização entre teoria e prática. Não é possível questionar-se sobre o mundo ou mesmo intervir nele, seja objetivamente ou por meio das ideias (crenças), sem que as duas dimensões, teoria e prática, estejam imbricadas.

A proposta epistemológica de Paulo Freire e a de John Dewey produzem, inevitavelmente, um desdobramento político-ideológico. Para o autor pernambucano, desvelar (consciência) e transformar (prática) a realidade significam também “superar a relação [...] de ‘aderência’ do oprimido ao opressor para, ‘tomando distância dele’, localizá-lo fora de si [oprimido]” (Freire, 2020bFREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2020b., p. 68). Considerando os elementos já discutidos sobre o conceito de “tomar distância”, fica evidente que é necessário objetivar (cercar, cindir, observar, perguntar etc.) também as relações sociais nas quais os sujeitos estão imersos. Em outras palavras, objetivar e compreender o que e por que se pensa de determinada forma (consciência) e como e por que se faz algo (prática). Significa igualmente “tomar distância” da própria luta de classes, enquanto se está imerso nela, para compreender as condicionantes e os determinantes que orientam os grupos sociais para esta ou aquela direção. E compreender como os opressores se alojam nas consciências dos(as) oprimidos(as), como assumem o controle dos corpos e espíritos, transformando-se no padrão de humanidade para as classes subalternas.

Além disso, apenas nesse quadro filosófico é que se pode compreender a permanente luta de Freire (2021aFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021a., p. 150) contra a educação “bancária”: “a prática da educação como pura transferência de um conhecimento que somente descreve a realidade, [bloqueando] a emergência da consciência crítica, reforçando assim o ‘analfabetismo político’”. A construção da consciência crítica, portanto, implica o processo de abandono das práticas descritivas da realidade, assumindo, educadores(as)-educandos(as) o compromisso com a promoção de uma curiosidade metódica, politicamente inquietante. Ainda refletindo sobre a relação entre a prática e a teoria no processo educacional, afirma Freire (2021dFREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021d., p. 118) que:

[...] o exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o conhecimento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o para quê, o como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem são exigências fundamentais de uma educação democrática.

Em síntese, o pensar correto (John Dewey), na educação democrática, exige um estado permanente de dúvida e questionamento (O quê? Para quê? Como? Quem?), enquanto estímulos existenciais da investigação (a conquista de conhecimentos ordenados e criticamente verificados), o que não pode se dar no contexto de uma educação “neutra” (Paulo Freire), e sim comprometida com a sustentação racional e científica das crenças individuais e coletivas. Da mesma forma que prática e teoria, inter-relacionadas, retroalimentam-se, também a educação progressista ou democrática deve assumir que as consciências e as práticas se transformam em comunhão: “devemos evitar [...] primeiro educar as pessoas para serem livres, para depois podermos transformar a realidade. Não. Devemos, o quanto possível, fazer as duas coisas simultaneamente” (Freire; Shor, 2021FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021., p. 279). Em outras palavras, “mudamos nossa compreensão e nossa consciência à medida que estamos iluminados a respeito dos conflitos reais da história”, mas “isto não é a mesma coisa que mudar a realidade em si” (Freire; Shor, 2021FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021., p. 289).

Portanto, o exercício de “tomar distância” da realidade vivida representa um elemento central, mas não único, do processo de transformação da realidade. Não basta mudar a consciência para a realidade se alterar, pois as tentativas podem esbarrar nos limites impostos pelas consciências “ingênuas” e dominadas pelo opressor, “precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente” (Freire, 2020aFREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020a., p. 33). É necessário objetivar e subjetivar a luta política pela libertação dos(as) oprimidos(as), pois não existe neutralidade na vida cotidiana, ou “estamos sendo seres da pura adaptação à realidade, miméticos ou, pelo contrário, atuantes, curiosos, capazes de correr risco, transformadores” (Freire, 2021dFREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021d., p. 105). Nesse sentido, os dois inquietos pensadores caminham juntos ao defenderem que o trinômio curiosidade - imaginação - indagação sustenta a inteligência do pensar correto como instrumento da atualização das possibilidades que o meio social fornece ao sujeito.

Considerações finais

Para o intuito de articulação das ideias, no presente artigo, conforme anunciamos no início do texto, partimos da ideia bastante geral de que as duas perspectivas pedagógicas - de John Dewey e Paulo Freire - encontram-se ancoradas em uma crítica ao aspecto do tradicionalismo em educação. Isso, em última análise, e aparentemente bastante óbvio, significa dizer que estamos lidando com dois paradigmas de cunho progressista. Avançamos na tematização, em seguida, quando damos corpo ao texto, afirmando que os dois autores restabelecem a perspectiva de humanização da ciência, uma vez que, para ambos, o conhecimento é decorrência de um processo de indagação. Dizendo de outro modo, afirmamos, com a autorização dos dois pedagogos, que a capacidade de pensar é o que distingue a vida humana. Ambos transferiram o eixo da reflexão pedagógica para o mundo da experimentação cotidiana.

Mais alguns pilares colocamos na argumentação quando sinalizamos que inquirir a realidade objetiva é posição de partida do sujeito do conhecimento, a ponto de existir inexoravelmente a conexão entre realidade e sujeitos. Prosseguimos analisando que se trata de uma subjetividade curiosa aquela que questiona, põe em dúvida as condições objetivas. Seguramente, John Dewey e Paulo Freire nos autorizam a realizar tal inferência, e a pedra de toque para esse discernimento é a curiosidade (epistemológica, no caso do segundo) e a lógica pedagógica (no caso do primeiro).

Com efeito, em termos de linhas gerais do pensamento dos dois autores, a mudança de paradigma e de filosofia educacional prospera na direção de que ambas as propostas são progressistas e inovadoras relativamente ao que há de tradição na educação. Juntos, em nossa argumentação, os dois pensadores defendem o trinômio curiosidade - imaginação - indagação. Resta avaliar, entretanto, em que linhas diferirão. John Dewey, apesar de ter várias de suas teses aproveitadas pelos educadores socialistas, não foi o que podemos considerar um pensador coletivista; ele foi, antes, um liberalista social. O educador brasileiro, ao contrário, é um propugnador de ideais por objetivar e subjetivar a libertação dos oprimidos e um abnegado defensor de uma utopia social sem desigualdades materiais entre os sujeitos.

Referências

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  • FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra , 2021d.
  • FREIRE, P. Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021e.
  • FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2021.
  • KAPLAN, A. Introdução. In: DEWEY, J. Arte como experiência Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes , 2010. p. 5-49.
  • MOREIRA, C. O. F. Entre o indivíduo e a sociedade: um estudo da filosofia da educação de John Dewey. Bragança Paulista: EdUSF, 2002.
  • SOLER, L. G. A epistemologia instrumentalista de John Dewey e sua aplicabilidade na Escola Experimental da Universidade de Chicago 2019. 117 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.
  • TEIXEIRA, A. Bases da teoria lógica de Dewey. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 57, p. 3-27, jan./mar. 1955
  • 1
    Os Ídolos, segundo Francis Bacon (1561-1626), são noções falsas que invadem o intelecto e dificultam o acesso à verdade e o processo de instauração das ciências, visto que os homens não se dispõem a combatê-los. Por essa razão, o objetivo principal da Teoria dos Ídolos é conscientizar os homens das falsas noções que barram o caminho rumo à verdade. Segundo Bacon, são quatro essas entidades ilusórias que direcionam o espírito às falsas crenças: (a) da tribo - tentações para o erro que decorrem da natureza humana; (b) da caverna - erros provenientes de cada indivíduo, de sua caverna pessoal, de seus preconceitos; (c) do foro ou do mercado - erros que provêm da comunicação entre os homens e da linguagem, do mau uso da fala; (d) do teatro - originam-se da moda, dos espíritos da época, das doutrinas filosóficas e religiosas.
  • 2
    A primeira categoria engloba o conjunto de homens que poucas vezes raciocinam, pegam o exemplo de um vizinho, dos pais, de um ministro de sua religião ou de quem quer que lhes agrade para não precisar refletir e examinar pessoalmente uma situação; a segunda classe trata dos homens que colocam a paixão no lugar da razão; e a terceira espécie é a dos que se guiam pela razão naturalmente, porém, prendem-se a uma determinada questão por não terem um senso maior das coisas, relacionam-se apenas com um determinado grupo de pessoas, leem apenas um gênero de livros, navegam apenas pequenas distâncias, não se aventuram em um alto nível de conhecimento (Dewey, 1979, p. 35).
  • 3
    A imaginação é uma “absorção calorosa e íntima do alcance pleno de uma situação”. Dewey distingue o imaginativo do imaginário da seguinte forma: o imaginário é “arbitrário” e “excêntrico”, enquanto o imaginativo é “duradouramente familiar com respeito à natureza das coisas” (Kaplan, 2010, p. 41). Enquanto a imaginação é “alimentada por uma matéria de vida que, sob a sua influência, assume uma forma rejuvenescida, composta e ampliada”, o imaginário “permanece como um fim [em] si” (Dewey, 2010, p. 465).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2023
  • Aceito
    12 Set 2023
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