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Por que partem eles (agora)? O regresso à eterna pergunta

Why do they leave (now)? The return to the eternal question.

¿Por qué parten (ahora)? El regreso a la eterna pregunta

Resumo

Na sequência da integração europeia, os fluxos migratórios portugueses foram diminuindo, de tal forma que, na viragem do século, acreditou-se que Portugal tinha passado de “país de emigrantes” para “país de imigrantes”. Com efeito, nas últimas décadas do século XX, Portugal atraiu inclusive cidadãos do país que, tradicionalmente, recebeu as mais significativas levas de expatriados portugueses (o Brasil) e, no contexto global, passou a integrar o conjunto de países atrativos para os migrantes económicos. Não obstante, a recente crise económica que pautou os primeiros anos do século XXI veio pôr a descoberto que essa realidade não estava solidificada, pelo menos não tanto como alguns cientistas sociais defenderam. Isto porque novos fluxos migratórios emergiram no território nacional, particularmente visíveis em áreas de baixa densidade, como é o caso da maior parte do distrito da Guarda. Neste trabalho, tendo como pano de fundo a região da Guarda, procuram-se equacionar “as molas impulsionadoras” que estão, novamente, a impelir estes portugueses a procurarem melhores condições de vida longe do país, na tentativa de perceber até que ponto estes novos fluxos migratórios têm uma génese comum aos que os precederam ou se, pelo contrário, têm configurações particulares que os individualizam no panorama migratório português.

Palavras-chave
Migrações internacionais; Migrantes; Trajetórias pessoais; Integração profissional

Abstract

As a result of European integration, Portuguese migratory flows decreased in such a way that, at the turn of the century, it was believed that Portugal had gone from being a “country of emigrants” to “country of immigrants”. Indeed, in the last decades of the twentieth century, Portugal even attracted citizens of the country which traditionally received the most significant waves of Portuguese expatriates (Brazil) and, in the global context, became part of the set of countries attractive to economic migrants. However, the recent economic crisis that marked the first years of the 21st century has revealed this reality was not consolidated, at least not as much as some social scientists have argued. This is because new migratory flows have emerged in the national territory, particularly visible in low density territories as is the case in most of the district of Guarda. In this work, with the Guarda region as a backdrop, we seek to equate “the driving springs” that are, once again, impelling these Portuguese to seek better living conditions away from the country, in an attempt to understand the extent to which these new migratory flows have a common genesis to those who preceded them or, whether, on the contrary, they have particular configurations that individualize them in the Portuguese migratory panorama.

Key words
International migration; Migrants; Personal pathways; Employment integration

Resumen

Como resultado de la integración europea, los flujos migratorios portugueses disminuyeron, por lo que, a principios de siglo, se creía que Portugal había pasado de ser un país de emigrantes a uno de inmigrantes. De hecho, en las últimas décadas del siglo XX, Portugal atrajo incluso a ciudadanos del país que tradicionalmente había recibido las olas más significativas de expatriados portugueses (Brasil) y, en el contexto global, se convirtió en parte del conjunto de países atractivos para los migrantes económicos. Sin embargo, la reciente crisis económica que marcó los primeros años del siglo XXI reveló que esta realidad no se ha solidificado, al menos no tanto como algunos científicos sociales han argumentado. Esto se debe a que han surgido nuevos flujos migratorios en el territorio nacional, particularmente visibles en los territorios de baja densidad, como en la mayor parte del distrito de Guarda. En este artículo, con la región de Guarda como telón de fondo, buscamos combinar los resortes impulsores que, una vez más, están llevando a estos portugueses a buscar mejores condiciones de vida fuera del país, en un intento por comprender en qué medida estos nuevos flujos de migrantes tienen una génesis común a quienes los precedieron o si, por el contrario, tienen configuraciones particulares que los individualizan en el panorama migratorio portugués.

Palabras clave
Migraciones internacionales; Migrantes; Trayectorias personales; Integración profesional

Introdução

A 12 de abril de 2020, depois de ter tido alta hospitalar, após uma semana de internamento com passagem pelos cuidados intensivos, em consequência do agravamento dos sintomas associados à Covid-19, o primeiro-ministro inglês Boris Johnson surpreendeu o mundo com o seu agradecimento público, via Twiter, aos enfermeiros que o acompanharam nos momentos críticos. Para os media portugueses, mais do que a homenagem a cidadãos estrangeiros proferida por um governante cujo programa eleitoral incluiu medidas de restrição à entrada de migrantes laborais no Reino Unido, o aspeto mais enfatizado foi o facto de um desses profissionais ser cidadão nacional. Poucas horas depois era divulgado que o “Luís de perto do Porto”, nas palavras do primeiro-ministro inglês, era um jovem enfermeiro, de 29 anos, natural de Aveiro, que se tinha mudado para a Inglaterra em 2014 e, em 2016, foi trabalhar para o grupo hospitalar Guy e St. Thomas, onde viria a assistir o governante britânico. Este facto foi amplamente divulgado e alguns media trataram de fazer do profissional de saúde expatriado uma espécie de celebridade, também por ter recebido uma chamada do presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, que o próprio catalogou de “surreal” (CHAÍÇA, 2020CHAÍÇA, I. Luís Pitarma, o enfermeiro “celebridade” que tratou de Boris Johnson: “Gostava que nos encontrássemos outra vez”. Agencia Lusa, Lisboa, 23 abr. 2020. Disponível em: https://www.publico.pt/2020/04/23/sociedade/noticia/luis-pitarma-enfermeiro-celebridade-tratou-boris-johnson-gostava-encontrassemos-1913533. Acesso em: 21 maio 2020.
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).

No que a este trabalho importa, tal episódio serve para equacionar o quão efémeros foram os momentos ao longo da história, em que Portugal deixou de ser um país de emigração para se converter em país de imigração.

Embora nenhum cientista social tivesse ousado dizer que se tinha extinguido o secular “fado” da emigração na sociedade portuguesa, na viragem do século assistiu-se a um amplo consenso em aceitar que se tinha invertido o ciclo. Não obstante, os efeitos da crise global de 2007, primeiro, e a decorrente intervenção do FMI, depois, vieram desconstruir a tese de que, em resultado da chegada maciça de fluxos migratórios oriundos de várias regiões do mundo, a imigração superara, em definitivo e de forma consistente, os valores da emigração. Com efeito, a recente crise económica veio pôr a descoberto evidências de renovados fluxos migratórios que têm vindo a emergir no território português, particularmente visíveis em regiões de baixa densidade populacional do interior, como é o caso das áreas mais rurais do distrito da Guarda.

E é assim que, neste artigo, alicerçado nos contributos da sociologia das migrações, bem como na história da emigração portuguesa e tendo como pano de fundo a região da Guarda, se procuram equacionar “as molas impulsionadoras” que estão, outra vez, a impelir naturais desta região a procurarem melhores condições de vida longe do solo pátrio. A intenção, dessa forma, é aferir até que ponto estes fluxos migratórios mais recentes têm uma génese semelhante aos que os precederam, ou se, pelo contrário, possuem configurações particulares que os tornam singulares no panorama migratório português. Com esse propósito, realizaram-se oito entrevistas semiestruturadas com indivíduos que abandonaram recentemente a região na procura de melhores condições de vida para triangular os dados assim obtidos com as estatísticas macrossociais, no propósito de contribuir para o conhecimento desta realidade.

A diáspora portuguesa, numa perspetiva interdisciplinar

A emigração está longe de ser exclusiva da sociedade portuguesa. Na sua versão moderna, traduz um fenómeno social que emergiu após as primeiras vagas da Revolução Industrial pelo que cedo se tornou objeto para a consolidação teórica e afirmação científica das ciências sociais. Saint-Maurice (1997, p. 3) destaca, dentre os mais clássicos modelos interpretativos das migrações, o modelo de atração-repulsão (push-pull model) de Ravenstein, que coloca o enfoque no fator económico enquanto motor condicionante das migrações, ao formular que os indivíduos se deslocam na procura da maximização dos recursos e da minimização das desvantagens. Também a teoria do mercado de trabalho de Kindleberger analisa as migrações a partir das dinâmicas da oferta e da procura, articuladas com o fornecimento de mão de obra. Com efeito, para Kindleberger, os migrantes deslocam-se dos territórios onde a oferta de trabalho é inferior à procura, para locais onde a mão de obra disponível não consegue suprir as necessidades do mercado (SAINT-MAURICE, 1997SAINT-MAURICE, A. Identidades reconstruídas: cabo-verdianos em Portugal. Oeiras: Celta Editora, 1997.).

Não obstante a sua pertinência, estes modelos macroeconómicos têm sido alvo de críticas por não permitirem articular o carácter macrossocial, de que todo o processo migratório se reveste com as complexas redes microssociais que o apoiam e reproduzem. Isto porque tais modelos imputam, aos potenciais migrantes, a capacidade de efetuar a análise custo-benefício da decisão migratória e investigações mais recentes têm apontado no sentido de que a decisão de migrar se baseia, antes de tudo, na informação que os atores conseguem processar e não tanto em informação factual sobre as reais condições patentes nas sociedades de acolhimento (PIRES, 2003PIRES, R. Migrações e integração: teoria e aplicações à sociedade portuguesa. Oeiras: Celta, 2003., p. 16).

Posteriormente, as teorias das migrações foram pautadas pela teoria social de Wallerstein, que enquadra esta problemática na sua clássica abordagem do sistema-mundo cristalizada na expansão da economia capitalista (GIDDENS, 1997GIDDENS, A. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997., p. 636). Segundo este modelo, as rotas migratórias estão associadas à dependência económica e social dos países periféricos em relação aos países do centro, tendo como mediadores os países da semiperiferia. Sociologicamente, este modelo é duplamente interessante. Primeiro por tentar explicar estes fluxos populacionais através das inter-relações que, não se esgotando no fator económico, se estabeleceram entre os diferentes Estados nacionais e, em segundo lugar, o que é mais importante no que concerne a este trabalho, pelo facto de este ser o primeiro modelo suficientemente elaborado para explicar, ainda que parcialmente, os fluxos demográficos que se têm originado e destinado de e para países semiperiféricos como Portugal.

No entanto, embora seja um modelo assaz abrangente para compreender as grandes correntes migratórias, o modelo de Wallerstein denota, também, algumas lacunas próprias dos modelos macrossociais e, por essa razão, outros autores têm procurado a explicação para as migrações nas relações microssociais que as sustentam. Eventualmente, com o intuito de conciliar os modelos que centram a análise na macroestrutura social (disparidades socioeconómicas entre territórios) com os modelos que focam nas relações microssociais (redes de conhecidos), Hindless e Ports (apud PIRES, 2003PIRES, R. Migrações e integração: teoria e aplicações à sociedade portuguesa. Oeiras: Celta, 2003., p. 69) defendem que, embora o ato de emigrar seja uma escolha individual, essa opção também é influenciada pela sociedade, quanto mais não seja porque o migrante tem a sua capacidade de iniciativa ancorada na dimensão espaciotemporal. Tal opinião é partilhada por Saint-Maurice (1997, p. 6), que também defende que a decisão de migrar é sempre pessoal, ainda que enquadrada no contexto próximo em que ocorre, que é indissociável da conjuntura económica, social, política e histórica. Ilustrando essa tese com a analogia entre migrações e matrimónio, na medida em que mesmo quando um casal reúne as condições para contrair matrimónio, a última decisão é sempre dos nubentes (SAINT-MAURICE, 1997SAINT-MAURICE, A. Identidades reconstruídas: cabo-verdianos em Portugal. Oeiras: Celta Editora, 1997., p. 5).

Apesar de relativamente abrangentes, as teorias das migrações clássicas parecem não resolver, por si sós, o dilema da emigração portuguesa. Ainda que as teorias mais recentes tenham devolvido aos migrantes alguma capacidade decisória, enquadrando a decisão de migrar no contexto próximo em que ocorre − família e conhecidos −, continua a não ser fácil operacionalizá-las no sentido de compreender a quase perene emigração portuguesa, em grande medida porque o contexto económico, político e histórico parece ter sempre determinado esse fluxo demográfico. Uma breve incursão pela história económica e social dos últimos dois séculos parece comprovar essa mesma teoria. O caso português é relativamente sui generis, no panorama europeu, distinguindo-se dos fenómenos similares que ocorreram nos outros países do Velho Continente, nomeadamente por três fatores: pelo facto de Portugal se ter visto na contingência de recorrer a forças de trabalho exógenas para suprir as necessidades de mão de obra decorrentes da emigração; pelo elevado contingente de pessoas que envolveu; e pela sua perenidade, que fez com que a emigração se tornasse num fenómeno estrutural que atravessou, transversalmente, a sociedade portuguesa dos últimos dois séculos, associada ao quase irrisório número de regressos (SERRÃO, 1982SERRÃO, J. A emigração portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982.; VENÂNCIO, 2000VENÂNCIO, J. O facto africano − Elementos para uma sociologia de África. Lisboa: Vega, 2000.; GRANGEIA, 2017GRANGEIA, M. L. Memórias e direitos na imigração portuguesa no Brasil do século XX. História (São Paulo), v. 36, 2017.; BRETTEL, 2019BRETTEL, C. B. Homens que partem, mulheres que esperam: consequências da emigração numa freguesia minhota. Etnográfica Press, 2019.). Ou seja, aparentemente, a emigração portuguesa não ficou a dever a ciclos conjunturais de excesso de mão de obra, decorrente de fenómenos como as sucessivas vagas da Revolução Industrial, como ocorreu em outros países europeus, nem se restringiu a um período específico, alavancada por algum tipo de crise humanitária ou ambiental que permitisse enquadrá-la nas “migrações de crise” (MOREIRA; BORBA, 2021), mas conviveu com a generalidade dos processos histórico-sociais dos últimos dois séculos.

Quer isto dizer que não se tem emigrado exclusivamente para fugir da miséria. Os trabalhos realizados sobre a emigração portuguesa são férteis em exemplos de pequenos proprietários rurais que emigraram, nomeadamente para o Brasil (ALVES, 2001ALVES, J. Terra de esperanças – O Brasil na emigração portuguesa. Portugal e Brasil − Encontros, desencontros, reencontros. Cascais: Câmara Municipal, VII Cursos Internacionais, 2001. p.113-128.; MARQUES, 2015MARQUES, J. Emigração portuguesa para o Brasil nos fins do século XIX. Cadernos de História, v. 16, n. 25, p. 292-317, 2015.), sendo lícito concluir, tal como o fez Pereira (1993PEREIRA, M. Liberdade e contenção na emigração portuguesa (1850- 1930). Emigração/imigração em Portugal. Actas do Colóquio Internacional sobre Emigração e Imigração em Portugal Séculos XIX-XX. Lisboa: Fragmentos, 1993. p. 9-16., p. 9), que estes fluxos migratórios têm de ser entendidos, mais do que como um ato de sobrevivência, como o produto de processos decisórios, individuais ou coletivos, que são indissociáveis das estratégias familiares enquadradas na estrutura patrimonial local e interdependentes da conjuntura económica.

Àqueles que assim partiram deve-se adicionar ainda uma categoria residual constituída por todos aqueles, por muito poucos que sejam, que ousaram abandonar a sua terra em busca de aventura, sofrendo de males de amor, por razões ideológicas, procurando valores que não encontravam no país (justiça, ordem, democracia e paz), ou simplesmente empurrados por alguma contingência pessoal, de quem parecem apenas recordar-se romancistas e poetas (PAULO, 2012PAULO, H. O exílio português no Brasil nas décadas de cinquenta e sessenta. Cadernos CERU, v. 23, n. 2, p. 33-50, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/56872. Acesso em: 13 maio 2021.).

Seja o conjunto de razões que têm impelido os portugueses a expatriar-se de índole individual ou social, o certo é que a emigração, também pelo peso que assumiu na sociedade portuguesa (não haverá virtualmente uma família que não tenha sido, ainda que colateralmente, tocada por este fenómeno), tem estado ensombrada por diversos mitos, que se têm perpetuado (se bem que com algumas nuances) por meio de processos reprodutivos e autorregeneradores, dos quais se salientam o “mito da fortuna” e o “mito do eterno retorno” (MONTEIRO, 1994MONTEIRO, P. Emigração o eterno mito do retorno. Oeiras: Celta, 1994.). O eterno “mito da fortuna rapidamente amealhada” (ALVES, 2001ALVES, J. Terra de esperanças – O Brasil na emigração portuguesa. Portugal e Brasil − Encontros, desencontros, reencontros. Cascais: Câmara Municipal, VII Cursos Internacionais, 2001. p.113-128.; ARROTEIA; FISS, 2007ARROTEIA, J.; FISS, R. Traços da comunidade portuguesa em Pelotas. População e Sociedade, v. 14, p. 171-191, 2007.; LISBOA, 2009LISBOA, W. T. Selvagens, brutos ou heróis? Os “brasileiros de torna-viagem” e a construção identitária do Brasil em Portugal. R@U: Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCAR, v. 1, n. 2, p. 94-104, jul./dez. 2009.), obviamente, não é exclusivo da sociedade portuguesa. Quando um indivíduo isoladamente ou no seio familiar tem decido expatriar-se, tem-no feito, na maioria das vezes, mais do que em busca de melhores condições de vida, aspirando à riqueza. Para confirmar esta tese bastaria atentar na atração que desempenhou o longínquo Oeste Americano para as sociedades anglo-saxónicas ou o eldorado para os espanhóis. Atração que, na versão portuguesa, terá, por certo, raízes no passado colonial, nas fortunas dos mineiros ou provenientes das plantações de açúcar, cuja veracidade ficou registada para a posteridade através dos palácios e casarões edificados por aqueles que tiveram sucesso em tais empreendimentos, que se reproduziu ao longo da história, replicando-se na imigração além Pirenéus, mais recente (BRETTEL, 2019BRETTEL, C. B. Homens que partem, mulheres que esperam: consequências da emigração numa freguesia minhota. Etnográfica Press, 2019.).

Não obstante, se a procura do enriquecimento é comum a todos os migrantes, seja qual for a sua nacionalidade, credo ou cultura, a originalidade do caso português reside na articulação desse mito com o “mito do eterno retorno”. Ao longo dos tempos, a possibilidade do regresso pairou sobre toda a vida do emigrante português e influenciou todo o seu percurso migratório. Numa primeira fase, durante a integração no país de acolhimento, refletiu-se em estratégias económicas orientadas não para um investimento imediato na melhoria da sua qualidade de vida, mas para um acumular riqueza que lhe permitisse materializar essa ascensão social após o regresso à sua comunidade de origem (LISBOA, 2009LISBOA, W. T. Selvagens, brutos ou heróis? Os “brasileiros de torna-viagem” e a construção identitária do Brasil em Portugal. R@U: Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCAR, v. 1, n. 2, p. 94-104, jul./dez. 2009.; ALVES, 2001ALVES, J. Terra de esperanças – O Brasil na emigração portuguesa. Portugal e Brasil − Encontros, desencontros, reencontros. Cascais: Câmara Municipal, VII Cursos Internacionais, 2001. p.113-128.). Esta vontade em regressar assumiu, particularmente na emigração oitocentista para o Brasil, contornos dramáticos, em especial quando articulada com o mito da fortuna. Isto porque, se se assumia a facilidade em acumular riqueza, o regresso sem fortuna tendia a ser imputado diretamente às características pessoais e morais do próprio emigrante, de tal forma que uma imensa maioria, na contingência do não sucesso, optava por jamais regressar (ALVES, 2001ALVES, J. Terra de esperanças – O Brasil na emigração portuguesa. Portugal e Brasil − Encontros, desencontros, reencontros. Cascais: Câmara Municipal, VII Cursos Internacionais, 2001. p.113-128.). A ajuizar por estudos sobre emigração para outros destinos (MONTEIRO, 1994MONTEIRO, P. Emigração o eterno mito do retorno. Oeiras: Celta, 1994.), por razões que se prenderão com outras variáveis, como as redes de relações sociais e familiares que, entretanto, se vão tecendo nos países de acolhimento, parece que o regresso definitivo tem sido sucessivamente adiado e raramente tem acontecido.

No entanto, se expatriar-se para sobreviver foi o drama de ontem e continua a ser o fado de milhões de portugueses espalhados pelos quatro cantos do mundo, a emigração esteve longe de ser um fenómeno homogéneo. Não o foi quanto aos destinos, nem o foi quanto à classe socioeconómica e ao projeto migratório dos próprios indivíduos que tomaram um dia essa drástica decisão. Reside justamente nessa heterogeneidade a fundamentação para que, no ponto seguinte, se revisite a história da emigração portuguesa.

Revisita à história da emigração portuguesa

Se forem omitidas as migrações coloniais, por esses fluxos populacionais se contextualizarem no âmbito dos direitos e deveres para com o Estado-nação, segundo Serrão (1982)SERRÃO, J. A emigração portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982., na historiografia clássica das migrações podem distinguir-se cinco ciclos longos.

O primeiro ciclo que se estendeu até cerca de 1868 teve como destino essencialmente o Brasil. Este ciclo migratório foi suportado pelas redes familiares ou de conhecimento e, por essa razão, o mecanismo principal foi a mítica “carta de chamada” (Marques, 2015MARQUES, J. Emigração portuguesa para o Brasil nos fins do século XIX. Cadernos de História, v. 16, n. 25, p. 292-317, 2015.). Apesar disso, este tipo de migração era economicamente questionável, pois o preço das passagens e a distância tornavam o retorno improvável. No que diz respeito ao perfil dos migrantes, tratava-se de jovens do sexo masculino, a generalidade com idades que rondavam os catorze, quinze anos que, de um modo geral, sabiam ler e escrever, pois destinavam-se à atividade comercial. Tratou-se do célebre período dos “caixeiros portugueses” (Alves, 2001ALVES, J. Terra de esperanças – O Brasil na emigração portuguesa. Portugal e Brasil − Encontros, desencontros, reencontros. Cascais: Câmara Municipal, VII Cursos Internacionais, 2001. p.113-128.).

O segundo ciclo, de 1869 a 1918, caracterizou-se por um crescimento contínuo da emigração com destino às Américas do Sul e do Norte, inserido no contexto global europeu de explosão demográfica, que atingiu o apogeu por volta de 1911-13. Diz-nos o autor que, no último quartel do século XIX, o país começou a perder a guerra movida, pelas elites, à emigração, porventura, fruto da facilidade de adquirir viagens a bordo dos transatlânticos e da ação de “engajadores”. Com efeito, os números desta vaga são avassaladores, cerca de um terço dos estrangeiros estabelecidos no Brasil, neste período, tinham nacionalidade portuguesa (Grangeia, 2017GRANGEIA, M. L. Memórias e direitos na imigração portuguesa no Brasil do século XX. História (São Paulo), v. 36, 2017., p. 6). No que diz respeito ao perfil destes migrantes, Serrão (1982)SERRÃO, J. A emigração portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982. refere que, inicialmente, era muito semelhante ao do ciclo anterior, no entanto, perto do seu fim foi significativa a percentagem de indivíduos casados. O aumento do número de indivíduos casados reflete também o incremento do número das mulheres, em particular de casadas, alavancado pela emigração de famílias (permitido pelo Estado brasileiro), mas também por processos de reagrupamentos familiares. Dessa forma, esposas, mães, filhas, noras e sogras engrossaram o contingente de portugueses que emigraram para o Brasil, cujas histórias, devido à invisibilidade social da mulher, estão agora a merecer a atenção dos investigadores sociais (Matos; Truzzi; Conceição, 2018MATOS, M. I.; TRUZZI, O.; CONCEIÇÃO, C. Mulheres imigrantes: presença e ocultamento (interiores de São Paulo, 1880-1930). Revista Brasileira de Estudos de População, v. 35, n. 3, 2018., p. 3). Relativamente às profissões, estas passaram a ser mais diferenciadas do que no ciclo anterior (SERRÃO, 1982SERRÃO, J. A emigração portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982.).

O terceiro ciclo, de 1919 a 1932, não permite identificar uma tendência unívoca. No período, entre guerras, a emigração pôde “dar um passo em frente para recuar dois atrás”, talvez por se viver a transição entre a Primeira República e o Estado Novo e as pessoas terem optado por esperar para ver até que ponto essa mutação sociopolítica iria se traduzir na melhoria da qualidade de vida dos portugueses. Os principais destinos deste fluxo foram as Américas do Sul e do Norte e o principal mecanismo desencadeador as viagens em transatlânticos (cada vez mais rápidos e cómodos). No que se refere ao perfil desta leva de migrantes, Serrão (1982)SERRÃO, J. A emigração portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982. afirma que continuou a ser significativo o número de jovens solteiros do sexo masculino, embora na fase final do ciclo tenha passado a ser cada vez mais significativa a percentagem de mulheres, como resultado dos processos de reagrupamentos familiares referidos anteriormente. O epílogo do terceiro ciclo deu-se quando o Brasil, durante o governo provisório de Getúlio Vargas (1930-1934) e em consequência da crise mundial, adotou políticas anti-imigratórias, fechando as portas à emigração (GRANGEIA, 2017GRANGEIA, M. L. Memórias e direitos na imigração portuguesa no Brasil do século XX. História (São Paulo), v. 36, 2017., p. 8).

O quarto ciclo, de 1934 a 1948, consubstanciou o período histórico a que hoje chamaríamos estado de graça do Estado Novo, em que Portugal experimenta laivos de crescimento económico, num período em que a maior parte da Europa caminhava a passos largos para a guerra total, desencorajando as migrações transatlânticas. Os principais fluxos migratórios convergiram significativamente, e pela primeira vez, para as colónias africanas catapultados pelas tentativas de implementar políticas de colonatos em África (PIRES, 2003PIRES, R. Migrações e integração: teoria e aplicações à sociedade portuguesa. Oeiras: Celta, 2003.). Não obstante, quando o Brasil reabriu suas portas para a emigração, os principais fluxos migratórios portugueses, apesar de menos significativos do que outrora, reorientaram-se para o colosso sul-americano. No que diz respeito aos atores desta migração, continuou a ser significativa a proporção de jovens solteiros, embora agora em idades que rondavam os vinte anos, ao que estarão associadas as obrigações militares (ALVES, 2001ALVES, J. Terra de esperanças – O Brasil na emigração portuguesa. Portugal e Brasil − Encontros, desencontros, reencontros. Cascais: Câmara Municipal, VII Cursos Internacionais, 2001. p.113-128.).

O quinto e último ciclo, estudado por Serrão (1982)SERRÃO, J. A emigração portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982., de 1949 a 1973, porventura o mais analisado e esmiuçado de todos, foi singular na história da emigração portuguesa. A partir de 1949 assistiu-se a uma subida constante dos fluxos migratórios, particularmente a partir de 1960, então associados a outro evento: à “Guerra Colonial”.

Foi neste período que se deu a machadada final na histórica emigração para o Brasil, isto porque este novo contingente de emigrantes destinou-se sobretudo para a Europa além Pirenéus. Se na primeira metade do século XX só o Brasil tinha acolhido 54% dos emigrantes portugueses, entre 1960 e 1967 o destino de 63% dos expatriados portugueses foi a França (GRANGEIA, 1917, p. 13). Este novo destino distinguiu-se dos anteriores por um fator determinante: a proximidade, o que permitiu que inclusive aqueles que não teriam oportunidade de adquirir uma viagem transatlântica pudessem, agora, com maior ou menor facilidade, dar o salto para lá da mítica barreira dos Pirenéus e que se refletiu, porventura, nas maiores taxas de emigração de sempre, embora os números conhecidos reflitam a emigração legal e não a real.1 1 Estes números são tão impressionantes que, segundo Gonçalves e Machado (2002), entre 1960 e 1974, de acordo com as estatísticas disponíveis, saíram de Portugal à procura de melhores condições de vida 1.478.786 portugueses (incluindo os indocumentados), ou seja, cerca de um sexto (16,6%) da população residente em 1960 (8.889.392). O perfil desta nova leva de emigrantes não difere muito do identificado em épocas anteriores: adultos jovens, mas não tão jovens como aqueles que um século atrás tinham rumado ao Brasil, na casa dos vinte/trinta anos, que se foram ocupar mormente na construção civil, trabalhos públicos, higiene e serviços domésticos. O que terá contribuído para a construção social do estereótipo, desde então associado aos emigrantes portugueses em França, de maçons (operários da construção civil) no masculino e concierges (empregadas domésticas) no feminino (LOPES, 1996LOPES, S. O “maçon” e a “concierge”: a inserção laboral dos portugueses no ramo da construção civil em França. Atas do III Congresso Português de Sociologia. Lisboa: Celta Editora, 1996. Disponível em: https://aps.pt/wp-content/uploads/2017/08/DPR49269d4a30fec_1.pdf. Acesso em: 12 maio 2021.
https://aps.pt/wp-content/uploads/2017/0...
; LEANDRO; NOSSA; BOAVIDA, 2008LEANDRO, M. E.; NOSSA, P. N.; BOAVIDA, M. J. Na encruzilhada da família e do género em contexto migratório. Configurações. Revista Ciências Sociais, v. 4, p. 27-64, 2008.). De notar que a taxa de clandestinidade subiu significativamente a par da evolução da “Guerra Colonial” travada em três frentes e, se numa primeira fase o destino destes emigrantes portugueses foi predominantemente a França, cedo a Alemanha e a Suíça se tornaram atrativas. Até meados da década de 1970 este padrão parece ter-se mantido com a particularidade de aumentar muito o número de mulheres que partiam.

Como é sabido, a história dos portugueses expatriados não termina no quinto ciclo de Serrão (1982)SERRÃO, J. A emigração portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982., embora 1975 marque, precisamente, o estancar da emigração massiva que, a partir desta data, assume valores muito mais modestos, na ordem dos 10.000 por ano, como é visível no Gráfico 1.

GRÁFICO 1
Emigração permanente Portugal – 1976-2002

No entanto, em meados da década de 1980, a emigração voltou a assumir valores significativos, com o ressuscitar de “velhos destinos” (espaço europeu e os Estados Unidos da América), aos quais se juntaram territórios que, embora atrativos, ao longo da história da emigração portuguesa nunca foram demandados por um número significativo de portugueses, como é o caso do Canadá e da Austrália (Peixoto, 1999PEIXOTO, J. A mobilidade internacional dos quadros − migrações internacionais, quadros e empresas transnacionais em Portugal. Oeiras: Celta Editora, 1999.).

Importa, ainda, referir que dentro do espaço europeu a França legou o seu protagonismo como destino de eleição da emigração portuguesa a países como Inglaterra, Suíça e Alemanha, que passaram então a ser as estações derradeiras das rotas migratórias portuguesas (GOIS; MARQUES, 2018GÓIS, P.; MARQUES, J. Retrato de um Portugal migrante: a evolução da emigração, da imigração e do seu estudo nos últimos 40 anos. e-cadernos CES, v. 29, 2018.).

E assim se chega a meados da década de 1990 em que, pela primeira vez na história recente de Portugal, as entradas superaram as saídas. É necessário ter alguma cautela ao analisar estes dados, pois tendem a refletir apenas tanto a emigração como a imigração legais, não compreendendo muitas vezes aqueles que, de forma mais ou menos marginal ou sazonal, continuaram a demandar melhores condições de trabalho no seio da Europa sem fronteiras, fruto de saídas que, de temporárias, facilmente se transformavam em permanentes (Baganha; Peixoto, 1996BAGANHA, M.; PEIXOTO, J. O estudo das migrações nacionais: ponto de intersecção disciplinar. In: Ferreira, J. et al. (org.). Entre a economia e a sociologia. Oeiras: Celta Editora, 1996. p. 233-239.; Barreto, 1997BARRETO, A. Tempo de mudança. Lisboa: Relógio d’Água, 1997.; Marques, 2009MARQUES, J. “E continuam a partir”: as migrações portuguesas contemporâneas. Ler História, v. 56, p. 27-44, 2009.). De qualquer forma, mais do que uma inversão algo discutível, o que é certo é que nunca como nesse período se assistiu, na história de Portugal, a tamanho equilíbrio entre a imigração e a emigração (Gráfico 2).

GRÁFICO 2
Estimativa dos saldos migratórios dos movimentos permanentes Portugal − 2000-2018

Com efeito, a meio da primeira década do século XXI, Portugal ocupava um lugar sui géneris na escala da União Europeia: era ao mesmo tempo receptor e emissor de migrantes. Fruto da conjuntura económica enquadrada por obras estruturais, Expo 98 primeiro e estádios para o Euro 2004 depois, Portugal atraiu operários pouco qualificados, mas não conseguiu estancar a saída de portugueses (Peixoto, 2004PEIXOTO, J. País de emigração ou país de imigração?: Mudança e continuidade no regime migratório em Portugal. Lisboa: SOCIUS, 2004. (SOCIUS Working Papers, n. 2).; Gois; Marques, 2018).

Posteriormente, a crise internacional de 2007 e a intervenção do FMI em 2011 vieram desencadear saldos migratórios significativamente negativos, como o país não conhecia há décadas (Gráfico 2).

GRÁFICO 3
Variação do número de habitantes na população residente Distrito da Guarda − 1900-2019

Histórias recentes da perene emigração do distrito da Guarda contadas na primeira pessoa

Como vimos anteriormente, as regiões do interior centro de Portugal, como é o caso da região da Guarda, raramente ao longo da história de Portugal conseguiram dar sustento e fixar todos os que por lá nasceram. Numerosos contingentes de indivíduos naturais desta região integraram os esforços expansionistas do reino, da mesma forma que integraram a generalidade dos fluxos migratórios dos diferentes ciclos da história da emigração portuguesa (Nazareth, 1985NAZARETH, J. A demografia portuguesa do século XX: principais linhas de evolução e transformação. Análise Social, v. 21(87/88/89), p. 963-980, 1985.; Amaro, 2019AMARO, A. Emigração e desenvolvimento em Portugal: o caso da província da Beira Alta (1890-1939). Desenvolvimento Socioeconômico em Debate, v. 5, n. 1, p. 4-24, 2019.). Com efeito, a análise da evolução da população residente no distrito da Guarda ao longo do século XX (Gráfico 3) reflete os efeitos dos diferentes fluxos migratórios descritos no ponto anterior, com a particularidade de, no espaço intercensitário de 1970 e 1981, a região ter recebido um contingente de 18.810 indivíduos que regressaram das ex-colónias, fruto da descolonização e, ainda assim, ter tido um crescimento negativo (OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, N. A integração dos “retornados” no interior de Portugal: o caso do distrito da Guarda. In: VI CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA. MUNDOS SOCIAIS: SABERES E PRÁTICAS. Atas [...]. Lisboa: Associação Portuguesa de Sociologia, 2008.).

Neste ponto, colocando de lado os dados macrossociais, pretende-se refletir as expectativas, estratégias e sentido com que os indivíduos que partiram recentemente da região da Guarda para o estrangeiro, com fim laborais, legitimam essas suas decisões e experiências. Com esse propósito, reuniram-se oito histórias pessoais que, por serem semelhantes quanto à estratégia, mas díspares quanto à forma, podem ser consideradas histórias-tipo e que se passam a apresentar.

Pires (2003, p. 77) defende que, por norma, os fluxos migratórios têm essencialmente três tipos de origem: a lenta acumulação de experiências migratórias individuais entre sociedades com uma longa história de relacionamento, nomeadamente quando há contracorrentes de retorno com um efeito de demonstração positivo, e a progressiva construção de redes sociais unindo origem e destino; ações intensivas e organizadas de recrutamento de migrantes que permitem superar os custos de informação e de insecurização, bem como os constrangimentos materiais e (quando os há) políticos da deslocação; e a ocorrência de episódios de desorganização extensiva e intensiva da ordem social nas áreas de partida. Parece que o reacender da emigração portuguesa no distrito da Guarda pode ter sido alavancado, exatamente, pelas duas primeiras causas mencionadas.

A história pessoal de Jorge, 47 anos, que vivenciou em 2008 a sua primeira experiência profissional na Suíça, parece confirmar essa tese. Isto porque sua partida reflete as dinâmicas migratórias comuns nas décadas áureas da emigração portuguesa para a Europa:

“Bem, um senhor (que já trabalha na Suíça há 26 anos), que conhece o meu pai perguntou-lhe se eu estaria disponível para trabalhar no estrangeiro […] Eu não estava a gostar do trabalho em que estava, vi que só tinha vantagens e decidi arriscar […] Por novidade, a gente vai conhecer uma cultura diferente, modos de vida diferentes, caras novas, espaços novos, ambiente […]. E ganha-se bem, e depois ainda há as gorjetas”. (Jorge, nome fictício, empregado em hotelaria na Suíça)

Assim, à primeira vista, a explicação do entrevistado para a sua partida tem um fundo comum com as razões com que Emídio, 79 anos, justificou sua partida para França em 1964:

“Toda a gente via a vida complicada e emigravam para procurar dias melhores. Aqui era comum ver um casal a trabalhar a terra para colher a terças e até à quarta parte”. (Emídio, nome fictício, aposentado da construção civil em França)

Coincidente é ainda o facto de, em ambos os casos, se partir no masculino, embora com nuances significativas que podem fazer toda a diferença, em relação à legalidade, por exemplo. Enquanto o emigrante da década de 1960 partiu com passaporte de coelho,2 2 Designação popular e jocosa com que se definia o facto de se partir “a salto”, transpondo as fronteiras ilegalmente. como o próprio intitula a sua forma clandestina de emigrar, viu-se na contingência de pagar ao passador 3 3 “Passador” era a designação atribuída aos engajadores que, nos períodos áureos da emigração para a Europa, mediante pagamento antecipado, se comprometiam a ajudar os potenciais migrantes a transpor ilegalmente as fronteiras da Espanha e da França. cerca de 8 mil escudos (que pediu emprestado a juros e cujo fiador foi o sogro). Partiu sem qualquer tipo de bagagem, “com a roupa que se levava no corpo”, e demorou cerca de 76 horas a chegar à França (na região parisiense), o que, nas palavras do entrevistado, foi muito bom, porque outros houve que demoraram até oito dias. Como incidente mais marcante, destaca que, em Espanha, ficou 24 horas fechado numa “corte”, alimentado a pão, água e chocolate e que a maior parte da viagem foi efetuada em camiões, até perto da fronteira de França, transposta a pé.

O entrevistado ainda se recorda de detalhes daquela que, para ele, foi a experiência mais marcante da sua vida (pelo que significou em termos de sedimentação do seu projeto de vida) e explica o itinerário e os processos, com pormenores. Segundo ele, primeiro combinava-se com um passador (que ia recrutando pessoas pelas aldeias até angariar um número que rondasse as quarenta), depois era da responsabilidade dos migrantes deslocarem-se pelos seus meios (na maior parte dos casos a pé) até junto à fronteira nos arredores de Vilar Formoso. A transposição da fronteira luso-espanhola era efetuada a pé, assim como a dos Pirenéus que, por norma, era transposta à noite “por sítios em que, se visse, não passava nem de dia”. Posteriormente, já em França, os imigrantes eram novamente transportados de camião até a região parisiense onde deveriam ficar por sua conta e risco e onde Emídio, apesar “de não falar uma palavra de francês” (ia apenas munido de uma direção escrita num pedaço de papel), acabou por se conseguir dirigir a casa de conterrâneos que o ajudaram a encontrar trabalho. Emídio recorda-se ainda que os passadores se encontravam organizados em rede. O que os angariou e auxiliou a transpor a fronteira com a Espanha não era o mesmo que os levou à França, foi rendido por espanhóis (aos quais mal viu a cara) que, por sua vez, foram revezados por franceses (que se limitaram a introduzir os clandestinos nos compartimentos de carga dos camiões e a abandoná-los, algures, nos subúrbios de Paris). Posteriormente, já em França, havia pessoas que a troco de algum dinheiro acabavam por arranjar trabalho a quem o procurava. De resto, Emídio reconhece que teve muita sorte, pois foi em finais de setembro, arranjou trabalho em inícios de outubro e, em março, veio buscar a família, logo após ter conseguido o passaporte de “três meses”.

Obviamente que, em pleno século XXI, Jorge teve o seu processo migratório muito mais facilitado. Depois de tratar da documentação, partiu da Guarda a 12 de dezembro, “numa carrinha, como essas que levam todas as semanas os emigrantes e a bagagem para França”, chegou à Suíça a 13 de dezembro.

Também o seu destino laboral, ao contrário do de Emídio, já estava traçado, logo à partida. Jorge foi aliciado para ir trabalhar no ramo da hotelaria (o mesmo em que já trabalhava em Portugal), numa estância de ski situada no Cantão Francês, junto à vila de Verbier, a cerca de 2.100 metros de altitude. A integração profissional também não lhe opôs grandes obstáculos, pois, de entre os nove colaboradores daquela empresa, apenas o proprietário e o cozinheiro eram de nacionalidade suíça. Os restantes, seis homens (curiosamente todos da região da Guarda) e uma senhora, eram portugueses.

Se é verdade que do confronto entre a história do emigrante da década de 1960 e do profissional do ramo hoteleiro do século XXI ressalta uma diferença significativa, o facto de Jorge ter uma profissão qualificada e Emídio ser, aquando da partida, indiferenciado não significa que esse nível de qualificação seja um padrão atual. A história de Bruno, 40 anos, que foi para França trabalhar na sazonal “apanha da maçã” confirma essa mesma ideia.

Confrontado com uma situação de inatividade laboral, Bruno recorreu no início do outono de 2008 a esta estratégia económica, mobilizando os contatos de um amigo que já havia sido recrutado e que ficou também ele incumbido de angariar outros interessados. Para abraçar este desafio, Bruno teve de despender apenas o custo da viagem, cerca de 250 euros.

Desta experiência, Bruno recorda, acima de tudo, a dureza das condições de trabalho:

“O horário era das 06 da manhã às 20 com o objetivo a cumprir de 12 paletes de maçãs. Não dava tempo para parar, nem para descansar, ou fumar um cigarrinho. Descanso, apenas ao domingo…”. (Bruno, nome fictício, empregado sazonal na agricultura)

Relativamente às condições de trabalho, ele labutava junto a 150 trabalhadores portugueses, inclusive encarregados; os patrões eram espanhóis. A propósito das contas finais, Bruno continua a sentir-se lesado por lhe terem descontado o valor do alojamento (que consistia num contentor que partilhava com outros quatro trabalhadores), da água, do aquecimento e da eletricidade. Como positivo, cita o facto de ter contrato e descontos.

Quando inquirido se voltaria a repetir esta experiência a resposta é imediata:

“se estiver na mesma situação (desempregado), voltava. Pelo dinheiro, porque vai-se fazer o trabalho que os franceses não querem, como no tempo da emigração. Apenas para arranjar algum dinheiro! (Bruno, empregado sazonal na agricultura)

Mas nem só das condições de trabalho se queixa Bruno. O emigrante temporário português do século XXI, talvez por ter partido, então, de um país que também recebe levas de imigrantes, porventura por possuir maiores níveis de habilitações académicas, de certeza por o nosso país se ter aproximado dos níveis de vida dos congéneres europeus, estava em condições de questionar valores universais a que porventura os seus pares das décadas de 1960 e 1970 não terão atribuído a mesma importância, a discriminação de que diz ter sido alvo. Com efeito, embora os imigrantes portugueses tenham usufruído de um estatuto privilegiado, quando confrontado com o de outras comunidades migrantes em França, por serem considerados “bons trabalhadores” e “brancos honorários”, a verdade é que foram ganhar a vida para uma terra que, para a sociedade de acolhimento, não é deles (Delon, 2019DELON, M. Des “Blancs honoraires”? Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 3, p 4-28, 2019.):

“Para além das condições de trabalho, que já esperava, o que mais custa é a forma como somos tratados. Pela primeira vez na minha vida senti xenofobia, por parte das pessoas que trabalhavam na fábrica (que estava associada à quinta para a qual apanhava as maçãs), fizeram-me sentir inferior…”. (Bruno, empregado sazonal na agricultura)

A procura de trabalho sazonal temporário na agricultura além-fronteiras, embora pareça à primeira vista anacrónica, principalmente quando se fala na convergência económica do nosso país com os parceiros da União Europeia, não é inusitada. A história migratória de Paulo, 39 anos, apesar de pulverizada aqui e ali com um pouco de romantismo e aventura, ilustra essa ideia. Paulo, tal como Bruno, foi em 2003 “juntar algum dinheiro” nas campanhas agrícolas em França. Mas não gostou, “o trabalho era duro, e se saísse da quinta gastava mais dinheiro do que aquele que amealhava”, embora tenha sido justamente uma dessas saídas que mudou completamente a sua vida, ao acabar recrutado pela Legião Estrangeira:

“Numa saída a um domingo, único dia que tínhamos livre, eu e dois colegas, também portugueses, envolvemo-nos numa rixa num bar, com uns rapazes franceses, que nos disseram que não podíamos estar ali, e partimos aquilo tudo. Veio a polícia e levou-nos para a esquadra. Lá disseram-nos que tínhamos de pagar os estragos, ou íamos presos. Ao outro dia apareceu um senhor (mais tarde vim a saber que era sargento da Legião) e disse-nos que podia haver outra solução […]. Assinámos os papéis, fomos buscar as nossas coisas à quinta e um carro veio buscar-nos! (Paulo, nome fictício, militar na Legião Estrangeira Francesa).

Entre comissões, com muitas histórias de viagens por três continentes e de alguns cenários de guerra e combates, Paulo que se “safou do serviço militar em Portugal” ponderou várias vezes deixar a mítica instituição militar, para encontrar alguma ocupação civil em França, mas a verdade é que agora, com cidadania francesa à sua mercê, começa a ter a reforma nos seus horizontes.

Mas não são apenas estes casos que deixam transparecer uma certa continuidade entre destinos do passado e atuais rotas migratórias. Se, nesta parcela de Portugal, foi significativo o número de portugueses que, em meados do século passado (maioritariamente entre as décadas de 1950 e 1970), sucumbiram ao apelo africano (OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, N. A integração dos “retornados” no interior de Portugal: o caso do distrito da Guarda. In: VI CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA. MUNDOS SOCIAIS: SABERES E PRÁTICAS. Atas [...]. Lisboa: Associação Portuguesa de Sociologia, 2008.), parece que assim que começaram a sarar as feridas abertas com o conturbado processo de descolonização, e a par de fluxos migratórios em sentido inverso, de pronto apareceu novamente quem ousasse demandar África. Esse foi o caso de Rui, nome fictício, 50 anos, que partiu em março de 2007 com destino ao país que o viu nascer.

Rui, licenciado em administração, a exercer atividade ao nível da contabilidade de uma empresa da área da construção civil, foi convidado pelo seu empregador para acompanhar os empreendimentos da empresa em Angola. Munido de grandes doses de curiosidade por conhecer a terra que “os seus pais tanto amaram” e consciente da possibilidade que o governo angolano dava aos naturais da “Angola Colonial” de obterem a nacionalidade angolana, Rui, tal como o pai fez um dia, decidiu abraçar o desafio africano. As justificativas de Rui para ter decidido aceitar essa experiência migratória (domínio da língua, passado histórico comum, ganhos salariais, vontade de conhecer a África e novas culturas) não diferem muito das molas impulsionadoras com que os migrantes ultramarinos justificam as suas opções migratórias (Oliveira, 2008OLIVEIRA, N. A integração dos “retornados” no interior de Portugal: o caso do distrito da Guarda. In: VI CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA. MUNDOS SOCIAIS: SABERES E PRÁTICAS. Atas [...]. Lisboa: Associação Portuguesa de Sociologia, 2008.; Santos, 2020SANTOS, R. A. Tourism, emigration, and cooperation: a strategy for growth and sustainable development in a community of portuguese-speaking member states. In: CASTANHO, R. A. Cross-Border Cooperation (CBC) strategies for sustainable development. Hershey, PA: IGI Global, 2020. p. 192-215.).

Se em relação aos três exemplos anteriores se podem identificar algumas coincidências significativas com as migrações portuguesas tradicionais das décadas de 1960 e 1970, substancialmente diferentes parecem ser as partidas dos indivíduos que podemos integrar no processo de globalização mais recente, como é o caso de Nuno, 34 anos, que vive e trabalha em Burgos, Espanha. Nuno ancora a génese da sua experiência migratória num intercâmbio entre formandos do curso de Eletricidade de Instalações do Instituto de Emprego e Formação Profissional e do seu congénere espanhol. Como a sua capacidade de trabalho foi valorizada e na época não era inusitado as empresas de construção civil espanholas recrutarem trabalhadores especializados em Portugal, principalmente nas regiões fronteiriças (Monteiro; Queirós, 2009MONTEIRO, B.; QUEIRÓS, J. Entre cá e lá. Notas de uma pesquisa sobre a emigração para Espanha de operários portugueses da construção civil. Configurações. Revista Ciências Sociais, n. 5/6, p. 143-173, 2009.), desde logo ficou a promessa de integrar os quadros da empresa assim que terminasse a sua formação. Isso veio a acontecer em 2006, quando o empresário espanhol (com quem tinha estagiado) lhe propôs condições laborais e salariais muito superiores às que poderia esperar em Portugal e ainda o desafiou a levar um colega do mesmo curso.

O sucesso profissional que Nuno e o colega Tiago experimentaram em Espanha é visível diretamente no facto de ambos terem frequentado, no país vizinho (ao encargo do empregador), o curso de formação profissional em técnicos de elevadores e, indiretamente, no facto de Nuno continuar a “fazer vida por lá”. Embora Nuno se apresse a explicar que esse facto, porventura, deve-se ao seu bom domínio da língua espanhola e à proximidade cultural, até porque é natural do concelho raiano do Sabugal e também porque as suas redes de relacionamento em Burgos começaram por se tecer com jovens e até com alguns portugueses, em especial estudantes, que se encontravam ao abrigo do programa “Erasmus”. Mas, ainda assim, é possível detetar no discurso de Nuno alguma tensão:

“[…] aquilo agora também está mal. Na região onde estou, vive-se muito da construção civil e agora aquilo está mal. Mas nós tivemos sorte, tivermos muita sorte”. (Nuno, nome fictício, eletricista de instalações)

Se a história do Nuno, por si só, não fosse suficiente para alertar para o facto de que o único país com quem Portugal partilha fronteiras terrestres, apesar de ser o recordista do desemprego na União Europeia e se encontrar numa situação económica, relativamente, semelhante à portuguesa, até há bem pouco tempo continuava a atrair trabalhadores portugueses, principalmente das regiões fronteiriças, as histórias pessoais de Inês e Manuel, mais do que reforçar essa ideia, vêm por a nu outro fenómeno migratório recente, a emigração massiva de profissionais de enfermagem (Pereira, 2015PEREIRA, C. Vidas partidas. Enfermeiros portugueses no estrangeiro. Lisboa: Lusodidacta, 2015.).

Inês, nome fictício, aos 24 anos, recém-licenciada em enfermagem, frustrada por não encontrar na região da Guarda ocupação compatível com as suas habilitações académico-profissionais (exercia a sua atividade profissional de forma sub-remunerada num lar de idosos), foi desafiada, por uns colegas, a ir trabalhar na ilha de Tenerife. Como as condições propostas eram francamente vantajosas, um contrato de trabalho que previa a passagem a contrato sem termo, decidiu consubstanciar esse projeto e partiu para a ilha balnear acompanhada pelo namorado Manuel, nome fictício, mecânico de automóveis de profissão. A partida para terras espanholas significou um impulso no projeto de vida comum, que tardava a materializar-se em Portugal, e também Manuel não demorou para encontrar ocupação no mesmo setor de atividade que integrava em Portugal. Hoje permanecem naquele território insular porque, nas suas palavras:

“se é verdade que o nível de vida é mais elevado, lá podemos usufruir de uma estabilidade profissional que aqui tardaríamos a conseguir”. (Inês, enfermeira, e Manuel, mecânico de automóveis)

Inês e Manuel introduziram-nos noutra nuance da emigração recente, que agora também se faz em família (Lopes; Teixeira, 2014LOPES, J.; TEIXEIRA, R. Geração Europa?: um estudo sobre jovem emigração qualificada para França. População e Sociedade CEPESE, Porto, v. 22, p. 97-119, 2014.). Prática não muito comum ao longo da história da emigração portuguesa, pois partia-se essencialmente no masculino e o reagrupamento familiar dava-se posteriormente, mas que parece integrar as opções migratórias desta última leva de emigrantes. Ideia confirmada pela história pessoal de Miguel, nome fictício, 48 anos, professor de história, residente há 18 anos na Alemanha, que, a par da história da Inês, ilustra a nova leva de emigração qualificada para a Europa.

Miguel, apesar de ser licenciado em história, decidiu concorrer para o cargo de professor de português na Alemanha, para juntar-se à esposa que tinha tido “um convite irrecusável de uma multinacional alemã”, o que se veio a materializar em novembro de 2001, quando ficou colocado em Munique. Relativamente à dificuldade de se adaptar à língua e a vivências culturais tão díspares da cultura portuguesa, Miguel explicou como contornou o principal obstáculo, o incipiente (quase nulo) domínio da língua alemã: “Com os alunos e com os encarregados de educação relaciono-me, naturalmente, em português, aos colegas e aos responsáveis alemães dirijo-me em inglês” (Miguel, nome fictício, professor). No que diz respeito às vivências do quotidiano, o entrevistado defende que, embora sua partida tenha significado mudanças estruturais no seu modo de vida que implicaram algum receio de não se conseguir adaptar e algum medo do desconhecido, acabou por se acomodar sem maiores dificuldades, até porque para ele “o Homem é um animal de hábitos”. Miguel vai mais longe e defende que estar em Munique até certo ponto não é muito diferente de viver numa metrópole em Portugal, onde a esposa (secretária de administração com um bom domínio de línguas, particularmente da alemã) terá mais facilidade de encontrar uma ocupação compatível com a que tem na Alemanha. Aliás, a história de Miguel permite ainda explorar outro aspeto que condiciona significativamente as decisões dos migrantes temporários. É que Miguel era, de entre os entrevistados, o único que já tinha passado pela etapa escolar dos filhos. Com efeito, quando o filho mais velho estava prestes a atingir a idade escolar, à imagem do que aconteceu com as levas de emigrantes das décadas de 1960 e 1970 (Leandro; Rodrigues, 2007LEANDRO, M. E.; RODRIGUES, V. T. Da migração dos pais à escolarização dos filhos. O caso dos portugueses em França. Revista Portuguesa de Educação, v. 20, n. 1, p. 99-128, 2007.), Miguel deparou-se com o recorrente dilema da educação dos filhos: se na cultura do país de origem, ou de acolhimento? Etapa que, nas palavras de Miguel, poderia ter significado a rutura na sua experiência migratória, porque:

“Se ele (o filho mais velho) se adaptasse ao sistema de ensino alemão, e tivesse sucesso, a vida passaria por permanecer na Alemanha […] Mas se sentisse muitas dificuldades, por ser estrangeiro, aí teria de concorrer para Portugal, para que ele pudesse ter futuro” (Miguel, nome fictício, professor)

Miguel replica assim um aspeto já abordado neste trabalho, a questão da discriminação que os migrantes aparentemente continuam a vivenciar, isto porque, enquanto agente do ensino, depara-se com o facto de a maioria dos seus alunos de origem estrangeira ser direcionada para o sistema de ensino profissionalizante, embora também refira que em termos institucionais nunca foi alvo de qualquer espécie de discriminação:

“Bem, possuo uma licenciatura e um mestrado, as pessoas com que me relaciono profissionalmente também são professores e tratam-me com toda a dignidade”. (Miguel, professor)

No que a este trabalho concerne, se os primeiros exemplos relatados trilharam na tipologia de Pires (2003)PIRES, R. Migrações e integração: teoria e aplicações à sociedade portuguesa. Oeiras: Celta, 2003. a lenta acumulação de experiências migratórias individuais entre sociedades com uma longa história comum, Nuno, Inês e Miguel introduziram-nos numa outra dimensão das migrações contemporâneas. Cohen (2005, p. 33-37) refere que, no âmbito dos estudos das migrações contemporâneas, são agora evidentes pelo menos oito tipos: 1) migrações de trabalhadores legais, cujo maior fluxo se destinava nas últimas décadas do século passado à Ásia, nomeadamente a região do Golfo Pérsico; 2) migrações de trabalhadores ilegais ou indocumentados, constituídas por todos aqueles que procuram fugir da miséria na rota das regiões mais desenvolvidas, Europa e Estados Unidos da América; 3) migração de refugiados e de pessoas deslocadas, cuja característica principal é constituir um grupo também difícil de definir por englobar grosso modo pessoas que fogem do seu país de origem, devido aos seus antecedentes ou às suas opiniões políticas (Moreira; Borba, 2021MOREIRA, J. B.; BORBA, J. H. Invertendo o enfoque das “crises migratórias” para as “migrações de crise”: uma revisão conceitual no campo das migrações. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 38, 2021.); 4) migração feminina independente, original não só porque as mulheres parecem não ter tido muita visibilidade ao longo dos tempos nos estudos migratórios, mas, principalmente, porque nunca como agora foi tão significativo o movimento internacional de mulheres de forma independente, alimentando não só a economia de serviços global (enfermeiras, babysitters e hospedeiras, por exemplo), como também a indústria do sexo (Pereira, 2015PEREIRA, C. Vidas partidas. Enfermeiros portugueses no estrangeiro. Lisboa: Lusodidacta, 2015.; Matos; Truzzi; Conceição, 2018MATOS, M. I.; TRUZZI, O.; CONCEIÇÃO, C. Mulheres imigrantes: presença e ocultamento (interiores de São Paulo, 1880-1930). Revista Brasileira de Estudos de População, v. 35, n. 3, 2018.); 5) trabalhadores migrantes especializados passageiros, sendo cada vez mais significativo o grupo de trabalhadores migrantes internacionais passageiros altamente especializados que se destacam de outros grupos por ser dado aceite por todos os intervenientes no processo que estes trabalhadores não estão a deixar o seu lugar de origem para sempre; 6) trabalhadores migrantes especializados de longa duração, aos quais é oferecida a possibilidade de instalação permanente e acesso à cidadania pelos Estados de admissão; 7) movimentos internos em grande escala, de que a litoralização de Portugal é exemplo; 8) turismo − embora não sejam considerados trabalhadores migrantes, os turistas contribuem, por um lado, para efeitos culturais importantes, ao mesmo tempo que sustentam outras formas de emigração.

As últimas histórias migratórias narradas, a da enfermeira Inês e a do professor Miguel, são passíveis de serem enquadradas nos grupos 4 e 5 da tipologia de Cohen (2005)COHEN, R. Globalização, migração internacional e cosmopolitismo quotidiano. Globalização e migrações. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. p. 25-44.. Isto porque, no caso do Miguel, a esposa já se encontrava naquele país com uma situação profissional estável, para onde tinha partido sozinha, apenas munida de um projeto profissional aliciante. Mas é precisamente a partir da tipologia de Cohen (2005)COHEN, R. Globalização, migração internacional e cosmopolitismo quotidiano. Globalização e migrações. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. p. 25-44. que se termina esta revisita à emigração no distrito da Guarda, com a narração da(s) história(s) migratória(s) do José, 41 anos, engenheiro mecânico, que oscila entre as categorias 5 e 6.

José, embora nunca tenha passado “pelo drama do desemprego”, pois até exercia funções de grande responsabilidade numa empresa de componentes de automóveis da cidade da Guarda, foi convidado por um dos parceiros comerciais da sua antiga empresa para trabalhar para eles. Essa ocupação previa fixar residência em Valladolid (Espanha), o que para José nem era novidade, uma vez que já realizara um “Erasmus” na Suécia durante o qual fora convidado a frequentar, naquele país escandinavo, um mestrado no ramo automóvel que viria a concluir. Como as condições propostas eram vantajosas (salário muito superior ao que usufruía na cidade da Guarda, ao qual se acresciam subsídio de alojamento, automóvel da empresa e alguns dias de dispensa, se necessitasse para tratar de algum assunto pessoal em Portugal) e a despeito das boas condições contratuais e pessoais de que usufruía, decidiu aceitar “o desafio”. Aliás, do discurso de José transparece uma perspetiva em relação ao trabalho cada vez menos inusual no panorama laboral português. É que José não concebe uma perspetiva de emprego para toda a vida, sendo que sua experiência laboral estende-se da Suécia, onde deu os primeiros passos no mundo laboral, ao Porto, passando pela península de Setúbal, Guarda, Valladolid e mais recentemente Santiago do Chile. José encarna perfeitamente um nicho de profissionais altamente qualificados que adotam uma postura laboral à escala supranacional na procura constante de realização profissional por via de melhores condições e desafios cada vez mais exigentes (Lopes; Teixeira, 2014LOPES, J.; TEIXEIRA, R. Geração Europa?: um estudo sobre jovem emigração qualificada para França. População e Sociedade CEPESE, Porto, v. 22, p. 97-119, 2014.; Gomes, 2019GOMES, R. M. (coord.). A mobilidade académica e a emigração portuguesa qualificada. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019.).

Considerações finais

Portugal tem sido do ponto de vista migratório um país de todos os fluxos. Desses fluxos destacam-se, para além das seculares emigrações: o retorno de África; o regresso de alguns emigrantes europeus nas décadas de 1980 e 1990; a migração de cidadãos dos PALOP; da Europa de Leste; do Brasil; e de algumas regiões asiáticas que começaram a demandar Portugal nas últimas décadas do século passado. A revisita à emigração portuguesa realizada neste texto permitiu concluir que esse secular fenómeno associado à portugalidade esteve adormecido, mas não extinto. Também fruto da crise que Portugal atravessa, em pleno século XXI, é cada vez mais usual encontrar habitantes da região da Guarda que continuam a recorrer a esta estratégia de mobilidade social. Aparentemente já não se parte para fugir da miséria, como antigamente, mas, em muitos casos, trilham-se rotas já outrora calcorreadas por emigrantes de outros tempos e, frequentemente, mobilizam-se as redes de conhecimento e/ou familiares para materializar projetos migratórios que de temporários facilmente passam a permanentes.

Não obstante, importa também referir que se identifica um contingente cada vez mais significativo de migrantes, cujas diásporas deverão ser contextualizadas no fenómeno da globalização, por serem detentores de habilitações académicas ou competências profissionais acima da média, mas também aqui fica um amargo de boca porque paira nestas partidas a sensação de que o país continua a não ter capacidade de absorver os profissionais qualificados, o que é um péssimo indicador da economia portuguesa.

Com efeito, no que diz respeito aos fluxos migratórios mais recentes, é significativa a migração de indivíduos com elevados níveis de qualificações, com especial enfase para os profissionais de saúde que não encontram colocação em Portugal, como é o caso do Luís, o enfermeiro que acompanhou o internamento do primeiro ministro inglês, que desencadeou toda este reflexão, mas será certamente reflexo de uma nova mentalidade laboral, como a que o programa de intercâmbio europeu de estudantes universitários Erasmus fomenta, e cujo impacto na circulação de trabalhadores no âmbito da União Europeia continuará a ser certamente significativo.

  • 1
    Estes números são tão impressionantes que, segundo Gonçalves e Machado (2002GONÇALVES, A.; MACHADO, J. C. Destino: Europa. História, n. 42, p. 38-43, 2002.), entre 1960 e 1974, de acordo com as estatísticas disponíveis, saíram de Portugal à procura de melhores condições de vida 1.478.786 portugueses (incluindo os indocumentados), ou seja, cerca de um sexto (16,6%) da população residente em 1960 (8.889.392).
  • 2
    Designação popular e jocosa com que se definia o facto de se partir “a salto”, transpondo as fronteiras ilegalmente.
  • 3
    “Passador” era a designação atribuída aos engajadores que, nos períodos áureos da emigração para a Europa, mediante pagamento antecipado, se comprometiam a ajudar os potenciais migrantes a transpor ilegalmente as fronteiras da Espanha e da França.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2020
  • Aceito
    29 Jun 2021
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