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Os primeiros anos da Cia. City em São Paulo (1911-1915): a revisão de uma lacuna

Resumo

Este texto propõe o resgate histórico do desenvolvimento e da implantação dos primeiros projetos da City of San Paulo Improvements and Freehold Land Co Ltd, posteriormente conhecida como Cia. City, bem como de sua autoria, em face de lacuna observada no processo inicial de operação da companhia, entre 1912 e 1915. O Jardim América é considerado o primeiro projeto implantado pela Cia. City em São Paulo e teria sido gestado a partir de 1915. Nos anos anteriores, sua atuação teria se limitado à comercialização de lotes pequenos, já urbanizados, assim como tantas outras imobiliárias em operação naquele momento. Com base no exame e no cotejamento de fontes primárias, procurou-se demonstrar quando o quadro técnico da companhia começou a operar em São Paulo e quais as diretrizes iniciais que marcaram a elaboração e a implantação dos primeiros projetos, a saber, Pacaembu, Butantã, Alto da Lapa e a Garden City, denominada Jardim América em 1917.

Palavras-chave:
São Paulo; Século XX; Urbanização; Cia. City; Joseph Bouvard; Garden-City

Abstract

The present text proposes a historical review of the development and implantation of the first projects of the City of San Paulo Improvements and Freehold Land Co. Ltd., later known as Cia. City, together with its authorship, in view of the lacuna observed in the initial process of the company’s operation, between 1912 and 1915. Jardim América was considered the first project implemented by Cia. City in São Paulo and was developed in 1915. During the years prior to this, the company commercialized small previously urbanized lots, similar to many other real estate companies operating in São Paulo at the time. The review and collation of primary sources have demonstrated when the company’s technical framework began operating in São Paulo, and the initial guidelines that marked the design and implementation of the first projects, namely, Pacaembu, Butantã, Alto da Lapa and the Garden City, named Jardim América in 1917.

Keywords:
São Paulo; 20th century; Urbanization; Cia. City; Joseph Bouvard; Garden-City

Introdução

Este texto propõe o resgate do histórico do desenvolvimento dos primeiros projetos da Cia. City1 1 Cia. City foi o nome adotado pela City of San Paulo Improvements and Freehold Land Co Ltd em meados da década de 1920. , em face de lacuna observada no processo inicial de operação da companhia, entre 1912, quando foi autorizada a operar no Brasil (BRASIL (UNIÃO), 1912)BRASIL (UNIÃO). Decreto n. 9.439, de 13 de março de 1912. Concede autorização à City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited, para funcionar na República. DOU, Rio de Janeiro, 13 mar. 1912. p. 3598-3607. , e 1915, quando se deu o lançamento do projeto elaborado por Raymond Unwin para a área hoje conhecida como Jardim América (CIA. CITY, 2014)CIA. CITY. Cia. City, pronta para os próximos 100 anos de história. 2014. Disponível em: http://www.ciacity.com.br . Acesso em: 15 abr. 2015.
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, considerado pela historiografia vigente como o primeiro projeto implantado pela companhia em São Paulo. Embora se saiba, como resultado de várias pesquisas, que o Pacaembu foi a gleba que ensejou a elaboração do primeiro projeto, em geral se admite que ele foi abandonado em função de dificuldades técnicas impostas pela legislação urbanística naquele momento (BACELLI, 1982b BACELLI, R. A presença da Companhia City em São Paulo e a implantação do primeiro bairro-jardim, 1915-1940. 190p. 1982b. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982.; SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.; ANDRADE, 1998ANDRADE, C. R. M. de. Barry Parker, um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 486p. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 nov. 1998.; WOLFF, 1998WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. 1998. 255p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.)2 2 As datas referem-se às defesas das respectivas dissertações e teses. .

A referida lacuna seria constituída de anos de pouca ou inexpressiva atividade da companhia, em contraste com o enorme vulto da operação inicial - a aquisição de mais de 12 milhões de metros quadrados de terras urbanas em uma única transação. Segundo Bacelli (1982b BACELLI, R. A presença da Companhia City em São Paulo e a implantação do primeiro bairro-jardim, 1915-1940. 190p. 1982b. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982.) e Souza (1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.), nos anos anteriores, a Cia. City teria se dedicado apenas à comercialização de lotes pequenos, já urbanizados, como tantas outras imobiliárias então em operação na cidade. Inicialmente, teria sido realizada certa seleção no estoque de terras adquirido em fins de 1911, e a companhia teria se desfeito de lotes que se encontravam fora das áreas valorizadas do quadrante sudoeste de São Paulo. Ambos os autores assumem que, naquele momento, aquele setor já se constituía no vetor de crescimento mais valorizado da cidade.

O presente texto oferece interpretação diversa, apoiada nas informações contidas em um conjunto documental relativamente pouco explorado: (i) o livro Uma temerária aventura forense, de autoria de Plínio Barreto (1933 BARRETO, P. Uma temerária aventura forense. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1933. 574p. ), advogado que, em 1932, atuou na defesa da Cia. City no processo movido contra a companhia pela esposa de Édouard Fontaine de Laveleye, Amália Keating, numa tentativa de invalidar as transações de aquisição de terras realizadas em 1911, sob o argumento de que os contratos não continham sua assinatura3 3 Barreto desmontou essa argumentação em face de o regime de casamento em vigor, naquele momento, tanto no Brasil como na França, dispensar a assinatura da esposa em transações comerciais; além disso ele demonstrou que o casal havia apresentado documentos fraudados. Após vencer a disputa judicial, Barreto escreveu o livro, no qual relata o desenrolar do processo e sua estratégia de defesa com farta documentação, relativa inclusive à constituição da Cia. City. Laveleye viu nesse processo uma possibilidade de reerguer-se da falência de seu banco, o que não conseguiu, porém veio a falecer dois anos depois, em 1934, no Rio de Janeiro. ; (ii) o diário de obras da companhia, organizado desde 1912, que atesta, principalmente, que no período em questão as atividades do escritório não se limitaram a trabalhos administrativos e à intermediação da venda de lotes ou projetuais, mas se estenderam também à coordenação das obras de implementação dos primeiros loteamentos, como se verá adiante. O terceiro corpus documental utilizado foi o periódico Correio Paulistano, que, além das notícias cotidianas da cidade, publicava atas, decretos e outros documentos legislativos produzidos na Câmara Municipal e na Assembleia Estadual. Também foi possível acessar os relatórios da Cia. City expedidos em Londres, resultado das reuniões anuais do board da companhia.

Como resultado do cotejamento desse material, observou-se que desde a fundação da Cia. City a atividade foi constante com o propósito de desenvolver - e implementar - projetos de novos loteamentos. Nessa perspectiva, discernir entre projeto e obras possibilita compreender que, além de ter sido o primeiro projeto da empresa, desenvolvido entre 1912 e 1913, o Pacaembu foi também parcialmente implementado, mas projeto e obras foram abandonados em 1916 e retomados somente anos mais tarde (SIMONI, 2002SIMONI, L. N. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de São Paulo. 1840-1930. 2002. 294p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.). Testemunho dessas ações iniciais é a atual rua Traipu, cuja largura é maior do que as demais ruas do bairro por já se encontrar aberta quando Barry Parker assumiu o projeto, em 1917. Sua largura advém do atendimento à legislação vigente à época, uma das razões que inviabilizaram o prosseguimento das obras (SIMONI, 2002)SIMONI, L. N. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de São Paulo. 1840-1930. 2002. 294p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002..

Este artigo objetiva, assim, indicar como se organizou o quadro técnico da companhia e quando se iniciou a operação em São Paulo, com a participação de Joseph-Antoine Bouvard nos primeiros projetos: Pacaembu, Butantã, Alto da Lapa e a Garden City, que passou a se chamar Jardim América a partir de 1917. Também se apresenta o contexto em que tais projetos foram concebidos e alterados em virtude da crise geral advinda da Primeira Guerra.

1. Oportunidades na Pauliceia

Em 1910, o banqueiro belga Édouard Fontaine de Laveleye adquiriu o controle dos serviços de transporte em bondes, calçamento e distribuição de energia elétrica de Curitiba, no Paraná, negócio em que o arquiteto francês Joseph Bouvard tinha interesses pessoais, posto que participava do Conselho de Administração da companhia de Laveleye. Em março de 1911, depois de haver solicitado sua aposentadoria da Prefeitura do Sena, Bouvard acompanhou o belga ao Brasil para prospectar a contratação de um plano de melhoramentos para a capital paranaense.

Nesse ínterim, na capital paulista, desenrolava-se o debate sobre as intervenções propostas para a área central da cidade - os Melhoramentos de São Paulo. A propósito de sua vinda ao Brasil, Bouvard foi convidado a visitar a cidade e opinar sobre as várias proposições em pauta. Observando as condições econômicas e comerciais que a capital paulista oferecia, supõe-se que a dupla Bouvard-Laveleye pôde pôr em andamento os planos originalmente concebidos para Curitiba, onde a proposta deles fora recebida com frieza, ensejando a elaboração de um plano para São Paulo. Desse modo, “com o fim de aproveitar a valorização que certos terrenos de S. Paulo obteriam em consequência da execução dos planos [elaborados por Bouvard], o Snr. Fontaine procurou entender-se com diversos proprietários de terrenos em S. Paulo” (BARRETO, 1933 BARRETO, P. Uma temerária aventura forense. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1933. 574p. , p. 182). Depois de seu regresso a Paris, apesar de ser lembrado nas discussões sobre a implantação e as alterações feitas no plano que elaborou para a cidade, Bouvard não interferiu mais nesse assunto.

No entanto, ele continuou ligado a seus negócios particulares no Brasil, numa clara inflexão de seu interesse por assuntos de caráter privado em detrimento do debate sobre as transformações em curso na capital paulista. De fato, sua proposta de loteamento no Pacaembu foi incluída no Relatório do Prefeito do ano de 1911 (SÃO PAULO (MUNICÍPIO), 1912)SÃO PAULO (MUNICÍPIO). Relatorio de 1911 apresentado à Camara Municipal de São Paulo pelo Prefeito sr. Raymundo Duprat. São Paulo: Vanorden, 1912. 81p. , em que se observa um exemplo da interferência da esfera privada sobre a esfera pública no gerenciamento da cidade.

O capital necessário para a constituição da companhia foi levantado por Laveleye em várias praças europeias. O maior aporte foi realizado pelo banco Boulton Brothers, cujo presidente, Lord Balfour of Burleigh, também estava à frente da São Paulo Railway. Bouvard preparou um relatório acompanhado de um quadro geral das aquisições (BARRETO, 1933 BARRETO, P. Uma temerária aventura forense. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1933. 574p. ), com o qual colocou os ingleses a par dos planos que elaborara com Laveleye. Assim, a fundação da Cia. City foi celebrada em Londres, em 25 de setembro de 1911. Logo em seguida, em dezembro, títulos da companhia foram lançados à venda na Europa. Em artigo que comentava os papéis em oferta em Paris, o Jornal do Brasil fez referência ao recém-organizado empreendimento como “uma nova sociedade ingleza, cujos membros principais e organizadores são francezes…” (ALMEIDA JUNIOR, 1912ALMEIDA JUNIOR, F. M. de. O escândalo do dia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 jan. 1912. De Paris, p. 4., p. 4). Na ocasião, Laveleye e Bouvard entraram em acordo quanto à distribuição dos lucros advindos dos negócios em São Paulo (BARRETO, 1933) BARRETO, P. Uma temerária aventura forense. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1933. 574p. , conforme ilustra o Gráfico 1, abaixo.

Gráfico 1
Distribuição de lucros da City entre Édouard Fontaine de Laveleye e Joseph-Antoine Bouvard

Em São Paulo, Horácio Sabino, principal sócio brasileiro, tornou-se procurador de Laveleye, enquanto Sancho de Barros Pimentel, ex-presidente da Província do Paraná4 4 O Paraná foi uma província do período imperial, transformado em estado sob a República, a partir de 1889. e sócio do banqueiro belga em outros negócios, apresentou-se como procurador da City of San Paulo Improvements and Freehold Land Co Ltd. Ambos assinaram, em janeiro de 1912, a escritura definitiva dos terrenos adquiridos meses antes. Finalmente, em março, a companhia foi autorizada pelo Governo Federal a iniciar suas operações no Brasil (BRASIL (UNIÃO), 1912)BRASIL (UNIÃO). Decreto n. 9.439, de 13 de março de 1912. Concede autorização à City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited, para funcionar na República. DOU, Rio de Janeiro, 13 mar. 1912. p. 3598-3607. com 45 lotes, distribuídos em 14 grandes glebas (BARRETO, 1933 BARRETO, P. Uma temerária aventura forense. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1933. 574p. ). É importante observar que a City contava com três sedes: em Londres, onde o board se reunia anualmente e onde se concentravam os assuntos financeiros; em Paris, onde se estabeleceu o escritório técnico, sob supervisão de Joseph Bouvard, e em São Paulo, palco das ações da companhia, onde haveria outro escritório técnico, subordinado a Paris. Assim, uma vez assegurado o lastro financeiro, adquirido o patrimônio fundiário e estabelecido o corpo diretor, o passo seguinte foi organizar o corpo técnico e administrativo no país, iniciando o andamento dos negócios.

Decidiu-se que a direção técnica do escritório brasileiro ficaria a cargo do filho de Bouvard, Roger, também arquiteto, enquanto ao engenheiro Louis Vergé caberia a parte administrativa. Ambos deveriam se transferir para São Paulo. De fato, Vergé veio ao Brasil em seguida à sua contratação. Porém, em virtude de problemas pessoais, Roger Bouvard permaneceu poucos dias aqui, retornando então a Paris, de onde passou a colaborar com seu pai na elaboração dos projetos. Essa situação teve desdobramento importante: a estruturação do escritório brasileiro demorou a efetivar-se em virtude da vacância da direção técnica.

Sozinho no Brasil, sem um diretor técnico, Vergé pouco pôde fazer quanto ao andamento dos trabalhos técnicos, ou seja, os levantamentos planialtimétricos das glebas adquiridas, e do desenvolvimento do rascunho do projeto do loteamento da gleba do Pacaembu, concebido por Joseph Bouvard, o que atrasou o cronograma de trabalho inicialmente proposto. Considerando-o “indolente” e “pouco confiável” (BARRETO, 1933 BARRETO, P. Uma temerária aventura forense. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1933. 574p. , p. 295-296), Herbert Guedalla, diretor do escritório londrino, escreveu a Édouard Fontaine de Laveleye em junho de 1912, pressionando-o a substituir Vergé por Douglas Gurd5 5 Carta de Herbert Guedalla a Édouard Fontaine de Laveleye, datada de 28 de junho de 1912 (BARRETO, 1933). . Dois arquitetos foram contratados para assumir a direção do departamento técnico em São Paulo no lugar de Roger Bouvard, Émile Rouch e Pierre Troy, os quais, entretanto, só chegaram ao Brasil em meados de setembro, causando demora nas providências que deveriam embasar o processo projetual. Presume-se que não houve uma ação coordenada para realizar o levantamento planialtimétrico antes disso e, portanto, a estruturação do escritório brasileiro demorou a se concretizar. Apesar disso, o Report of the Directors relativo ao ano de 1912 registra que “a avaliação original de Mr. Bouvard, de £4,756,887 está mantida, já que o preço da terra na cidade de São Paulo tem subido durante o período em retrospectiva” (SAN PAULO IMPROVEMENTS, 1913, p. 595-596), graças, aparentemente, ao clima de especulação que se instalou no mercado imobiliário paulistano desde que a notícia da aquisição do incrível montante de terras veio a público.

Sem a presença de um diretor técnico em São Paulo, era natural que os terrenos anteriormente loteados por Horácio Sabino, localizados na Vila América, ao longo da rua Bela Cintra, por exemplo, fossem postos à venda. Havia a necessidade de assegurar certa visibilidade sem, no entanto, empreender ações mais efetivas, o que foi mais tarde registrado em ata de reunião ocorrida em Londres (THE BRAZILIAN REVIEW, 1913)THE BRAZILIAN REVIEW. San Paulo Improvements. Company Meetings, Rio de Janeiro: San Paulo Improvements, p. 595-596, 10 jun. 1913..

Houve problemas também na Europa. A participação de Édouard Fontaine de Laveleye revelou-se conflituosa, o que resultou em seu afastamento. Pesou para isso a maneira como ele encaminhava os negócios em Paris. Há menções a um desacordo relativo à sua cota de participação na sociedade (BARRETO, 1933 BARRETO, P. Uma temerária aventura forense. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1933. 574p. ). Ao que parece, a relação entre Laveleye e Guedalla começou a se deteriorar desde o episódio da demissão de Vergé, em 1912, e se estendeu até 1915, quando, em plena guerra, a situação ficou insustentável: sem consultar Londres, Laveleye emitiu papéis da companhia na praça parisiense, oferecendo rendimentos incompatíveis com a política aprovada pelo Conselho Administrativo da City; com isso, os portadores de debêntures foram pagos com valores acima do programado. Adicionalmente, a negociação de Laveleye previa que a City arcaria com os impostos relativos a essa operação. Chegou-se a cogitar o encerramento da companhia, dada a delicada situação financeira desencadeada pelo desembolso acima do previsto, causado pela desastrada ação de Laveleye (LORD BALFOUR OF BURLEIGH, 1915)LORD BALFOUR OF BURLEIGH. Statement Regarding the Proposed Resolutions Submitted to the Holders of 6 Per Cent 1st Mortgage[w/proceedings of 1914]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited , 1915.. Mas Lord Balfour insistiu em que se honrassem os pagamentos aos acionistas franceses e se liquidassem em definitivo as pendências da companhia com o sócio belga. Não há uma afirmativa textual na documentação consultada, porém é evidente que Laveleye lucrava com a situação que criara, em razão de ele mesmo ser um dos maiores proprietários de debêntures na França.

A idade avançada de Joseph-Antoine Bouvard, somada à recusa de seu filho Roger de transferir-se para São Paulo, indício de seu desinteresse pela companhia fundada pelo pai, e o comportamento pouco ético de Laveleye, que culminou em seu desligamento da sociedade, são fatores que podem ter definido o futuro dos sócios franceses no negócio, com seu paulatino distanciamento ao longo do período inicial da companhia, entre 1912 e a conflagração da Primeira Guerra, em 1914, de modo que, ao falecer em 1920, Bouvard era o único francês na City, ainda ocupando o cargo de vice-presidente, uma clara deferência ao fato de ter sido seu idealizador. Na direção oposta, nota-se, na correspondência e nos relatórios, crescente envolvimento dos ingleses, o que pode ter corroborado a decisão a respeito da colaboração de Raymond Unwin e Barry Parker.

2. Primeiras ações e estratégias

Segundo as pesquisas precedentes (BACELLI, 1982b BACELLI, R. A presença da Companhia City em São Paulo e a implantação do primeiro bairro-jardim, 1915-1940. 190p. 1982b. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982.; SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.; ANDRADE, 1998ANDRADE, C. R. M. de. Barry Parker, um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 486p. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 nov. 1998.; WOLFF, 1998WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. 1998. 255p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.), o primeiro passo para a consecução do negócio foi garantir a posse das glebas no quadrante sudoeste da cidade, onde se encontrariam as terras mais valorizadas e com melhores perspectivas de ocupação. Para esses autores, as terras fora desse quadrante, ao sul e a leste, foram adquiridas somente para viabilizar a compra em bloco, com o objetivo de conseguir um preço global mais favorável. Assim, elas teriam sido descartadas logo após o início da operação da companhia. De acordo com Souza (1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.), entre 1912 e 1915 as ações iniciais da Cia. City resumiram-se à venda de terrenos “brutos”6 6 É o termo utilizado por essa autora para referir-se às glebas vendidas sem projeto de parcelamento. - aqueles que demandariam muito investimento para que se tornassem vendáveis (BACELLI, 1982b BACELLI, R. A presença da Companhia City em São Paulo e a implantação do primeiro bairro-jardim, 1915-1940. 190p. 1982b. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982.; SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.), ou que não despertariam interesse por conta de sua localização. Já estavam em curso tanto a venda de terrenos da Vila América e da Vila Nova Tupy, áreas loteadas por Horácio Sabino e Cincinato Braga, mas com refação do arruamento pela equipe da Cia. City, como a elaboração do projeto do Pacaembu, que não teria seguido adiante em decorrência da necessidade de arruamentos em curva (BACELLI, 1982b BACELLI, R. A presença da Companhia City em São Paulo e a implantação do primeiro bairro-jardim, 1915-1940. 190p. 1982b. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982.; SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.; ANDRADE, 1998ANDRADE, C. R. M. de. Barry Parker, um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 486p. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 nov. 1998.; WOLFF, 2001WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001.). Simoni (2002SIMONI, L. N. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de São Paulo. 1840-1930. 2002. 294p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.) oferece razões distintas para a paralisação do projeto e das obras; essa autora apresenta elementos que demonstram que os trabalhos em campo - medições, estaqueamentos e movimentos de terra - já estavam sendo realizados. Em termos de projetos de loteamento, haveria somente a elaboração do projeto do Jardim América, aberto às vendas em 1915 e considerado, segundo os autores citados, a mais importante área da companhia, que lhe destinou atenção especial. Souza (1988, p. 56)SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988. revela que “é justamente no quadrante Oeste da cidade que a companhia City adquire seus terrenos, conforme notícia nos prospectos de emissão de debêntures. É mais precisamente no vetor SUDOESTE que realizará seu primeiro empreendimento - o ‘Jardim América’” (grifo do original).

O quadro-resumo a seguir reúne as cronologias apresentadas nas pesquisas acima mencionadas. Incluiu-se, além disso, a cronologia da Cia. City, presente no catálogo promocional da empresa publicado por volta de 1975-1980 (CIA. CITY, 2014)CIA. CITY. Cia. City, pronta para os próximos 100 anos de história. 2014. Disponível em: http://www.ciacity.com.br . Acesso em: 15 abr. 2015.
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, cujas datas constam no site da companhia na internet.

Cotejados os autores, pode-se observar no Quadro 1 a lacuna referida anteriormente. Ao que parece, não houve produção projetual significativa nos primeiros anos, logo após a organização da companhia. Ainda que se suponha que os problemas relacionados com a organização do escritório brasileiro tenham tomado todo o ano de 1912, resta a questão: de que se ocupou a City, detentora de mais de 30% da área da cidade, entre 1913 e 1915? A própria City não oferece informação a respeito dos anos iniciais, anteriores à Primeira Guerra Mundial, e mesmo consultas feitas ao arquivo da companhia, na busca dos projetos originais dos primeiros bairros-jardim implantados em São Paulo, mostraram-se infrutíferas. Três anos parecem tempo demasiado para a organização administrativa de uma companhia com tamanho patrimônio e considerável lastro financeiro, captado nas bolsas de Londres e das principais capitais europeias.

Quadro 1
Cronologia dos primeiros loteamentos da Cia. City

Souza (1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.) e Wolff (1998WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. 1998. 255p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.) acompanham a cronologia proposta por Bacelli (1982b BACELLI, R. A presença da Companhia City em São Paulo e a implantação do primeiro bairro-jardim, 1915-1940. 190p. 1982b. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982.), em face do pioneirismo desse autor. Dado o objeto de estudo das autoras, a primeira examinando as relações entre o capital financeiro e a Cia. City, e a segunda analisando a arquitetura realizada no Jardim América, é compreensível que tenham assumido Bacelli como referência quanto ao histórico daquele bairro. Sua pesquisa, justamente sobre a constituição da Cia. City, e a documentação disponível à época o levaram a afirmar que o Jardim América fora o primeiro empreendimento da companhia, no que foi seguido pelas pesquisas posteriores.

A pesquisa de Andrade (1998ANDRADE, C. R. M. de. Barry Parker, um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 486p. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 nov. 1998.) é mais abrangente e apresenta datas um tanto diversas das indicadas pelos demais autores, mas, infelizmente, não aprofunda a questão, já que focaliza um período posterior, ao tratar da estada de Barry Parker no Brasil.

Essa cronologia, adotada por outros autores (TOLEDO, 1981TOLEDO, B. L. de. São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Duas Cidades, 1981. ; SIMÕES JR., 1995SIMÕES JR., J. G. Anhangabaú: história e urbanismo. 1995. 220p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.; CAMPOS NETO, 1999CAMPOS NETO, C. M. Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São Paulo. 1999. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.; SEGAWA, 2000SEGAWA, H. M. Prelúdio da metrópole. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. ), passou a ser questionada apenas mais recentemente, quando, a partir da virada do século, à medida que os acervos foram disponibilizados em formato digital, as pesquisas foram beneficiadas pelo maior volume de informação.

Cabe ressaltar, ainda, certa dificuldade que pesquisadores encontram no acervo da Cia. City e em sua organização. Segundo Wolff (1998WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. 1998. 255p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998., p. 76, nota 2), esta foi concebida “para atender às necessidades dos negócios imobiliários da empresa” […], “o que limita o acesso a documentos […] e não se localizem necessariamente [aqueles] referidos em outros estudos”. Do mesmo modo, a pesquisa que origina este texto não conseguiu acesso aos mapas consultados por Wolff, mas, por outro lado, foi possível ter acesso ao diário de obras e alguns dos Reports for the Directors da década de 1910.

As informações contidas nos Engineers Dept. Weekly Reports (OELSNER, 1923OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923.) - Relatórios Semanais do Departamento de Engenharia -, preparados entre 1912 e 1923, foram cotejadas com aquelas obtidas em periódicos especializados e com as presentes nos Reports of the Directors expedidos em Londres (CARTER, 1913CARTER, H. E. City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Report of the Directors [1912]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited, 1913. ; 1914CARTER, H. E. City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Report of the Directors [1913]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited , 1914.; 1916bCARTER, H. E. City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Report of the Directors [1915]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited ., 1916b [13 dez.].; 1916aCARTER, H. E. City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Report of the Directors [1914]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited . 1916a [8 maio].; 1917CARTER, H. E. City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Report of the Directors [1916]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited ., 1917), com a finalidade de montar um quadro mais rico do movimento da companhia naqueles primeiros anos, em que transparecem as diretrizes estabelecidas, as dificuldades enfrentadas e as decisões tomadas pela direção. Foi possível verificar alguns procedimentos preliminares que podem ser considerados diretrizes da atuação da Cia. City em São Paulo no período anterior à contratação de Raymond Unwin e que colocam em xeque a ideia de que, já em 1912, o setor sudoeste da cidade era reconhecidamente mais valorizado.

Tendo superado os percalços iniciais, algumas providências foram tomadas para garantir o andamento dos negócios. Não se tratava de fazer estoque de terras e aguardar o crescimento da cidade para promover as vendas conforme o fluxo do mercado. Ao contrário, a City era um empreendimento que deveria oferecer retorno imediato e constante, pois havia a necessidade de remunerar os compradores das debêntures emitidas em fins de 1911. Portanto, era preciso “fazer girar” todo um plano de negócios, baseado em uma perspectiva de vendas estimada por Joseph-Antoine Bouvard e anunciada aos ingleses no citado relatório de setembro de 1911 (Lancé a Londres…, 1911)LANCÉ A LONDRES… L'Étoile du Sud, Rio de Janeiro, 3 dez. 1911. Noticies financières, p. 2-3.. Constatou-se que não houve, de imediato, a opção pela venda dos terrenos adquiridos nos quadrantes leste e sul da cidade, como defendido por Souza (1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.), e, muito menos, que o modelo de implantação das novas áreas a lotear, mais tarde conhecido como “padrão City”, já estivesse definido e pronto para ser implementado.

Souza (1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.) corrobora as afirmações de Bacelli (1982aBACELLI, R. PMSP - SMC. Jardim América: História dos bairros de São Paulo. São Paulo: PMSP/DPH, 1982a. 133 p. (v. 20)., p. 35), para quem “a preocupação primeira” da companhia “concentra-se na estruturação dos bairros-modelo”, com a existência de uma divisão prévia dos loteamentos em função da localização das glebas. Bacelli baseia-se no Resumo estatístico de Obras e serviços públicos feitos pela Cia. City7 7 Souza (1988), Anexo 3. , segundo o qual Jardim América, Pacaembu e Anhangabaú seriam bairros de “primeira classe” e dirigidos a uma parcela da população de alto poder aquisitivo; Alto da Lapa, Bela Aliança e Alto dos Pinheiros seriam destinados à “classe média”; enquanto a Vila Romana e o Butantã seriam bairros operários (BACELLI, 1982aBACELLI, R. PMSP - SMC. Jardim América: História dos bairros de São Paulo. São Paulo: PMSP/DPH, 1982a. 133 p. (v. 20)., p.35). Observe-se, entretanto, que o autor utilizou relatório elaborado em abril de 1937, quando o modelo projetual e de desenho das glebas introduzido por Barry Parker em 1917 já estava plenamente vigente e consolidado havia duas décadas.

Inversamente à ideia de que o Jardim América seria a área mais nobre e valorizada do patrimônio adquirido pela Cia. City em 1911, o que se constatou da análise das fontes primárias foi que o Pacaembu era considerado “o principal distrito residencial de alta classe pertencente à companhia” (LORD BALFOUR OF BURLEIGH, 1914, p. 2)LORD BALFOUR OF BURLEIGH. Proceedings at the Second Ordinary General Meeting [1913]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited, 1914., para o qual deveriam se voltar todas as atenções. Barry Parker, inclusive, foi originalmente contratado para elaborar um projeto para essa gleba.

O cuidado com o patrimônio fundiário da City se materializa em quatro diretrizes, discutidas a seguir, algumas das quais mantidas por tempo considerável. São elas (i) o levantamento do patrimônio adquirido; (ii) a promoção de negócios a varejo; (iii) a manutenção de bom relacionamento com a administração pública; e, associada a esta última, (iv) o bloqueio de iniciativas semelhantes por parte de terceiros.

2.1 Levantamento do patrimônio adquirido

Apurou-se que mesmo as áreas que não foram objeto de tratamento, isto é, não receberam “alterações na forma de parcelamento e arruamento”, conforme Souza (1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988., p. 65), foram, em conjunto com as demais, objeto de novo levantamento, com vistas a apurar eventuais desvios ou incompatibilidades entre os terrenos e suas escrituras (OELSNER, 1923OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923.). Assim é que se podem encontrar, no diário de obras, anotações relativas a acertos ou eventuais litígios existentes quanto à demarcação dos terrenos, como a seguinte: “Implantação final do Alto da Mooca limite vizinho nos é favorável” (OELSNER, 1923, n.p.)OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923.. Essa nota, datada do final de 1915, revela que a companhia não se desfez rapidamente desses terrenos; ao contrário, houve expressivo investimento de sua parte na execução desses levantamentos. Isso se deve à preocupação, sempre presente, com a manutenção do valor das glebas e com o controle estrito das propriedades da companhia no país.

As plantas elaboradas no Brasil poderiam ser arquivadas, para controle das vendas, e, ainda, remetidas à Inglaterra, onde representavam a concretização do patrimônio imobiliário brasileiro aos olhos dos sócios-acionistas ingleses (OELSNER, 1923OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923.). O ano de 1913 foi inteiramente dedicado a levantamentos e à conferência de glebas e lotes em paralelo ao desenvolvimento do projeto do Pacaembu. Com base nesse primeiro levantamento, foram adquiridos alguns lotes esparsos, comprados por razões estratégicas, a fim de preservar o valor de lotes contíguos, segundo documento daquele mesmo ano: “Posso afirmar que nossa política futura será adquirir, de tempos em tempos, qualquer extensão de terra que nos pareça necessária para valorizar e auxiliar no desenvolvimento de nosso presente patrimônio” (LORD BALFOUR OF BURLEIGH, 1913, p. 2)LORD BALFOUR OF BURLEIGH. Proceedings at the First Ordinary General Meeting [1912]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited. 1913..

Assim, constatou-se que até a chegada de Barry Parker, em 1917, ainda não havia a decisão, por parte da companhia, de dispor de terrenos localizados fora do quadrante oeste da cidade. Essa iniciativa tinha sua razão principal, ao que parece, no controle do patrimônio adquirido e na manutenção de seu valor.

2.2 Negócios a varejo

Os terrenos de menor porte foram também objeto de levantamentos, como aqueles originalmente pertencentes a Horácio Sabino e Cincinato Braga, respectivamente Vila América e Vila Nova Tupy, além de outros distribuídos por diversos bairros, em sua maioria lotes isolados.

Embora não houvesse grandes melhoramentos a realizar nas propriedades de Sabino e Braga, pois o arruamento já havia sido decidido, formulando um sistema de ruas que simplesmente dava “sequência ao preexistente desenho urbano em tabuleiro de xadrez” (WOLFF, 2001WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001., p. 77-78), tardou-se a efetivar-se um fluxo de vendas mais constante justamente pelas operações de levantamento. Parece razoável supor que a companhia, necessitando fazer caixa, ingressasse no mercado imobiliário paulistano e, para tornar-se conhecida, passasse a realizar negócios de compra, venda e aluguel de imóveis, ou seja, “negócios a varejo”. Ademais, tais ações não demandavam trabalho por parte da equipe técnica, cuja organização inicial encontrou dificuldades, como já relatado.

Por outro lado, essa opção pode indicar uma atitude pouco perspicaz dos franceses, em especial do gerente Louis Vergé, que aparentemente não compreendeu o vulto da operação concebida por Bouvard e Laveleye e tratou a companhia como uma imobiliária comum (Figura 1, à esquerda), que reconheceria o Pacaembu como única gleba de grande valor agregado. Isso é comprovado pelo fato de que, em 1913, quando do lançamento desse bairro, houve tratamento diferenciado, com a instituição, inclusive, de um concurso para a escolha dos nomes de suas ruas (Figura 1, à direita). Um modelo de vendas mais agressivo e elaborado só seria efetivado para as vendas dos lotes do Jardim América, depois da intervenção de Barry Parker.

Figura 1
Anúncios da Cia. City, 1913.

Anteriormente à formação da Cia. City, Horácio Sabino adotava, para a promoção de seus terrenos, a venda a prestações (ANDRADE; CARVALHO; SOARES NETTO, 2009 ANDRADE, C.; CARVALHO, C. V. de; SOARES NETTO, P. Horácio Sabino: urbanização e histórias de São Paulo. São Paulo: A&A Comunicação, 2009. 168p.). Esse sistema foi incorporado pela companhia e, “implantado em grande escala, associado a fornecimento de empréstimos para construções e a campanhas promocionais bem elaboradas, seria parte da estratégia de sucesso da [sua] estrutura comercial futura” (WOLFF, 2001WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001., p. 78)8 8 Na ata da Segunda Reunião Geral Ordinária, referente ao ano de 1913, há referências ao sistema como recurso para sustentar as vendas e enfrentar o período de depressão econômica. Cf. LORD BALFOUR OF BURLEIGH, Proceedings at the Second Ordinary General Meeting [1913], 1914, p. 2. .

2.3 Aproximação com a administração pública

Outra diretriz inicial da companhia diz respeito a seu relacionamento com a administração municipal, aspecto observado por Bacelli (1982aBACELLI, R. PMSP - SMC. Jardim América: História dos bairros de São Paulo. São Paulo: PMSP/DPH, 1982a. 133 p. (v. 20).) e Souza (1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.). Essa proximidade se estende igualmente à esfera estadual. Nos documentos da Cia. City várias referências a essa estratégia revelam os interesses da companhia, como se depreende do trecho a seguir:

As relações de nossa Companhia com o Estado e a Municipalidade são de caráter os mais cordiais e a Companhia combinou em ceder ao Estado o terreno requerido para a construção de um reservatório de água na Lapa. Acreditamos que em retorno a Companhia será brindada com condições favoráveis para o suprimento de água nesse e em outros distritos (CARTER, 1914CARTER, H. E. City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Report of the Directors [1913]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited , 1914., p. 2).

Quando a crise se instalou na City, em razão dos negócios desastrados de Laveleye seguidos da eclosão da Primeira Guerra Mundial, e cogitou-se sua liquidação, um dos argumentos utilizados pelos partidários da manutenção dos negócios era a boa relação com as autoridades municipais, de quem “a Companhia tem recebido o melhor tratamento” (LORD BALFOUR OF BURLEIGH, 1915, p. 3)LORD BALFOUR OF BURLEIGH. Statement Regarding the Proposed Resolutions Submitted to the Holders of 6 Per Cent 1st Mortgage[w/proceedings of 1914]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited , 1915.. A parceria com a municipalidade paulistana era muito valorizada, de modo que se contava com seu auxílio para o futuro.

Essa proximidade repercutiu em ações da municipalidade que, já em 1912, visavam beneficiar e valorizar as propriedades da companhia. Caso exemplar foi a abertura do belvedere da rua Rio de Janeiro (Figura 2), que, saliente-se, não fazia parte das glebas adquiridas em 1911: a área para sua implantação foi objeto de processos de desapropriação com rápida aprovação na Câmara Municipal, enquanto algumas das ações necessárias para a implementação do Plano Bouvard demoravam a ser decididas. Essa postura da companhia liga-se intimamente à diretriz examinada a seguir.

Figura 2
Localização do belvedere da rua Rio de Janeiro em relação aos terrenos da City of San Paulo Improvements no Pacaembu

2.4 Bloqueio de potenciais concorrentes

A manutenção de boas relações com os agentes da administração pública possibilitou o bloqueio de outras iniciativas que pudessem competir com a companhia. A título de exemplo, cita-se o caso de um empreendedor que solicita autorização à Prefeitura para abrir arruamento na região do Pacaembu: “Remetteram-se à Prefeitura as indicações e requerimentos apresentados em sessão de hontem: […] Os papeis relativos à proposta do dr. Francisco de Salles Camargo, para abertura de ruas no Pacaembu, nos termos do parecer da Commissão de Obras, de 20 do corrente” (CORREIO PAULISTANO, Expediente…, 1911, p. 4)CORREIO PAULISTANO. Expediente do dia 19 de julho. São Paulo: Câmara Municipal, 23 jul. 1911. p. 4..

Provavelmente, o interessado, o Sr. Salles Camargo, teve seu pedido negado ou “engavetado”, pois não se encontrou mais notícia a respeito. Isso é indicativo de ações de neutralização de outros investidores que, tomando como exemplo as operações da City, muito comentadas à época, desejassem atuar nos mesmos moldes, reduzindo, ainda que virtualmente, as projeções de lucros da companhia.

3. Os primeiros projetos

Segundo Bacelli (1982aBACELLI, R. PMSP - SMC. Jardim América: História dos bairros de São Paulo. São Paulo: PMSP/DPH, 1982a. 133 p. (v. 20)., p. 34), “a primeira tentativa de implantação de um loteamento se dá quando em 1915 a diretoria inglesa contrata o escritório dos afamados arquitetos Barry Parker e Raymond Unwin para projetá-lo em uma área localizada além do perímetro urbano da cidade”.

Como se viu, essa afirmação, associada à crença de que a City era uma companhia inglesa que abrira uma filial em São Paulo, corroborou a construção de uma história, compartilhada pela própria empresa, de que, constituída em 1911, a City só começou a operar em 1915, o que absolutamente não corresponde aos fatos. Gerou-se, desse modo, uma lacuna em sua história, que só recentemente pôde ser revista, pois o diário de obras, que contém anotações de 1912 até 1923, comprova que muito trabalho foi realizado entre esse ano e 1915, quer na forma de levantamentos das propriedades adquiridas, quer na formulação de projetos de loteamentos, ou ainda na execução de obras, como abertura de ruas, terraplanagem, estaqueamento, cobertura e nivelamento com pedras, construção de aparatos de captação de águas pluviais e mesmo plantio de árvores ao longo das ruas.

A documentação levantada mostra que os projetos do Pacaembu e do Alto da Lapa, assim como o do Butantã, precederam o Jardim América. Este último loteamento constituiu-se como a primeira iniciativa da companhia a se concretizar, porque, embora o antecedesse enquanto projeto, o Pacaembu sofreu diversas revisões e restrições, chegando, finalmente, ao ponto de ser arquivado em 1916.

A omissão da companhia e de outros agentes ligados a ela - públicos ou privados - a respeito dos intensos trabalhos executados desde 1912, tanto em nível de projetos como de obras, pode estar relacionada com as dificuldades financeiras decorrentes da recessão causada pela Primeira Guerra, que levou à paralisação de várias frentes de trabalho. Seria uma situação constrangedora para a companhia, que não se coadunava com a pujança e a organização propaladas desde a estada de Parker em São Paulo. Como já se comentou, houve um momento em que se cogitou o encerramento de suas atividades em razão do quadro econômico recessivo. Em termos concretos, isso significou a devolução de inúmeros lotes cujos adquirentes não conseguiram honrar seus compromissos.

Nesse contexto, a contratação de Barry Parker em 1917 pode ter sido parte de uma estratégia de reinvenção. Parker promoveu nova remodelação do desenho da Garden City, alterado anteriormente por Raymond Unwin, para formas mais sinuosas e orgânicas, inclusive no tocante à dimensão e ao número de lotes. Ao contrário de Unwin, que preservou o caráter inicial daquele empreendimento, isto é, um loteamento dirigido à classe operária, em conformidade com as origens do ideário garden city, Parker propôs destiná-lo à classe média. É possível que, para que não restassem memórias do primeiro e malsucedido empreendimento, o nome tenha sido alterado para Jardim América, uma homenagem à esposa de Horácio Sabino.

Em linhas gerais, os desenhos dos primeiros loteamentos seguem o padrão projetual de Bouvard, distantes das diretrizes “sitteanas”, mais orgânicas. Contudo, fosse em virtude da insistência de Victor da Silva Freire, diretor de Obras Municipais, que, como outras pesquisas demonstram, estava a par das novas correntes projetuais em desenvolvimento na Europa (SIMÕES JR., 2009SIMÕES JR., J. G. A urbanística germânica e sua influência na construção dos paradigmas do urbanismo no Brasil (1870-1920). São Paulo, 2009. p. 1-21.); fosse pelo contato de Bouvard com tais tendências, e talvez querendo oferecer algo próximo ao que os sócios ingleses já conheciam, observa-se nesses primeiros projetos uma hibridação dos conceitos haussmannianos, plenamente dominados por Bouvard, e pitorescos, advindos do movimento Cidades-Jardim. Essa tentativa de reelaboração de sua matriz projetual, aliada aos problemas anteriormente relatados, pode ter colaborado para que Bouvard renunciasse à coordenação do escritório técnico, permanecendo apenas como membro do Conselho Administrativo da Cia. City até seu falecimento, em 1920.

Em paralelo ao Pacaembu, outras frentes de trabalho foram abertas: uma parte da atual City Butantã, que poderia ser considerado seu embrião; o Alto da Lapa e a Garden City, área correspondente ao atual Jardim América.

Esse pequeno trecho do Butantã foi o primeiro projeto implementado pela City of San Paulo Improvements de que se tem notícia até o momento, antecedendo os demais loteamentos. O primeiro desenho para a área data de 25 de outubro de 1913, poucos dias antes da promulgação da Lei n. 1.749, que instituía os perímetros central e urbano para a cidade de São Paulo (SIMONI, 2002SIMONI, L. N. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de São Paulo. 1840-1930. 2002. 294p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.). O projeto é de simples elaboração, com quatro ruas paralelas entre si e perpendiculares em relação a duas outras que saem da estrada do Butantã em direção ao rio Pinheiros, constituindo, em termos formais, um arruamento nos moldes dos que já vinham sendo implantados em São Paulo.

É difícil estabelecer com precisão as razões da escolha do arruamento dessa área, correspondente a somente uma pequena parte das terras da companhia, como primeiro empreendimento da City nos terrenos recém-adquiridos, mas duas hipóteses podem ser lançadas. A primeira delas seria justificar a implantação de um ramal ferroviário na região do vale do rio Pinheiros, que pode estar referido no Relatório do Prefeito de 1911 como a “via de circunvalação” proposta por Victor da Silva Freire (SÃO PAULO (MUNICÍPIO), 1912)SÃO PAULO (MUNICÍPIO). Relatorio de 1911 apresentado à Camara Municipal de São Paulo pelo Prefeito sr. Raymundo Duprat. São Paulo: Vanorden, 1912. 81p. . O novo loteamento poderia justificar a implantação de uma estação naquele ponto, visando à valorização das terras da companhia, uma das diretrizes da operação em São Paulo. A segunda hipótese, que pode ser conjugada à primeira, seria forçar a ampliação do perímetro urbano em direção ao rio Pinheiros, o que de fato ocorreu, e pode ser observado na planta da cidade de 1914, conforme Simoni (2002SIMONI, L. N. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de São Paulo. 1840-1930. 2002. 294p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.), o que levaria também à valorização das glebas onde hoje se encontram o Jardim América e parte do Alto de Pinheiros.

O Pacaembu, pensado por Joseph-Antoine Bouvard como uma continuação do aristocrático bairro de Higienópolis, destinado à elite paulistana, era a principal gleba a ser trabalhada, uma vez que Victor da Silva Freire a incluíra em seu programa de desenvolvimento da cidade constante no Relatório do Prefeito de 1911 (SÃO PAULO (MUNICÍPIO), 1912)SÃO PAULO (MUNICÍPIO). Relatorio de 1911 apresentado à Camara Municipal de São Paulo pelo Prefeito sr. Raymundo Duprat. São Paulo: Vanorden, 1912. 81p. . Pode-se afirmar que ambos, City e Pacaembu, nasceram juntos. A data provável de sua elaboração deve ficar entre agosto de 1911, quando Bouvard retorna a Paris, e março de 1912, quando Louis Vergé e Roger Bouvard embarcam rumo ao Brasil, pois Vergé trouxe o projeto consigo e o apresentou às autoridades locais.

A equipe técnica brasileira esteve envolvida com levantamentos, trabalhos de campo e locação de limites - provavelmente cercas - de 1913 até meados de 1914, quando houve o agravamento da crise financeira no Brasil e a eclosão da guerra na Europa era iminente (OELSNER, 1923OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923.). Em agosto de 1914, a equipe estava ocupada com o movimento de terra em áreas contíguas à propriedade da família Álvares Penteado, no Pacaembu, quando os trabalhos e o projeto foram suspensos por ordens superiores (OELSNER, 1923)OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923.. Não foi possível apurar as razões exatas para isso, mas supõe-se que tenha havido uma revisão de diretrizes diante do quadro de crise, quando se optou por centrar esforços na gleba da Garden City. O projeto do Pacaembu, porém, não foi abandonado. Ao contrário, foram feitos esforços para levá-lo a cabo até 1916, e sua retomada se deu no ano seguinte, sob os cuidados de Barry Parker, que considerou o traçado de Bouvard porque parte das ruas já havia sido aberta. Essa é a razão para a maior largura de boa parte da atual rua Traipu em relação às demais vias do bairro, já que ela foi pensada para tornar-se a continuação da avenida Paulista.

A terceira gleba escolhida para compor os trabalhos iniciais de urbanização das propriedades adquiridas pela Cia. City, e cujo projeto foi desenvolvido em paralelo com o projeto do Pacaembu, foi o Alto da Lapa. Desde o início, ele esteve vinculado à ideia de urbanização suburbana (CARTER, 1913CARTER, H. E. City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Report of the Directors [1912]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited, 1913. ), tirando partido da proximidade da área industrial da Lapa, abaixo da ferrovia e junto ao rio Tietê. O ramal ferroviário citado acima nasceria de um desvio da São Paulo Railway a partir de estação a ser implantada nesse bairro. Cogitou-se também, como atrativo, imediatamente prover a localidade de uma linha de bondes e, para isso, em 1913, foi firmado um acordo com a Light, embora não tenha sido possível precisar quando os bondes chegaram.

O mesmo processo observado no Pacaembu e na Garden City ocorreu mais tarde no Alto da Lapa. Como algumas ruas já se encontravam abertas, Barry Parker considerou-as na formulação de seu projeto e, assim, tais permanências podem ser atualmente observadas quando se compara o desenho do bairro com as plantas mais antigas, elaboradas sob a direção de Joseph-Antoine Bouvard (Figura 3). Trata-se de uma constatação importante porque demonstra que o desenho orientado por Bouvard, já de volta a Paris, não foi abandonado e não se constituiu em mero estudo, mas, ao contrário, permaneceu como o projeto oficial para a área até 1917, quando este passou à supervisão pessoal de Barry Parker. Como ocorreu com relação ao Pacaembu, o projeto e as obras do Alto da Lapa foram paralisados. Porém, neste caso, a interrupção foi motivada pelo agravamento da crise deflagrada pela Primeira Guerra Mundial.

Figura 3
Alto da Lapa: alterações elaboradas por Barry Parker sobre o projeto de Bouvard

Na historiografia paulistana, consolidou-se a ideia de que Raymond Unwin concebeu, em 1915, o primeiro projeto para a área e que eventuais registros anteriores a essa data seriam “rascunhos ou embriões”, ou experiências de menor significado, tomadas como “esboços” eventualmente atribuídos a Bouvard, dadas suas características próximas a “um urbanismo que buscava criar eixos monumentais” (WOLFF, 2001WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001., p. 128), nitidamente filiadas à estética “Beaux-Arts” (ANDRADE, 1998ANDRADE, C. R. M. de. Barry Parker, um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 486p. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 nov. 1998., p. 245).

A inacessibilidade a outras fontes durante a época em que as pesquisas precedentes foram realizadas pode ter induzido os autores à ideia de que a companhia se preparara para operar no Brasil, desde o início, mediante a implantação de um “padrão refinado” (SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.), inovador e aristocrático, elaborado por urbanistas renomados, com a escolha daquela gleba, entre o espigão da Paulista e o rio Pinheiros, como área preferencial. Isso implica afirmar que se reconhecia, ali, o melhor quinhão entre os terrenos adquiridos, com a melhor localização e as melhores declividades, enfim, todas as qualidades desejáveis para um loteamento voltado à elite. Essa ideia, contudo, não corresponde ao que se verifica na documentação a que tivemos acesso, de acordo com a qual o Pacaembu era, com efeito, o loteamento concebido para esse papel.

Paralelamente à elaboração dos três projetos anteriormente abordados, desenvolvia-se, no escritório da companhia, o projeto que mais tarde se tornou conhecido como “Jardim América”. Até 1915, ele integrou o grande empreendimento de circunvalação da área urbanizada da capital, por meio de novo ramal ferroviário, pelo qual se estabeleceria a ligação entre a Lapa e o Ipiranga, sem que recebesse maior atenção do que os demais projetos citados (OELSNER, 1923OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923.), em virtude de se tratar de empreendimentos voltados às classes operárias e aos estratos médios da população.

De fato, Andrade (1998ANDRADE, C. R. M. de. Barry Parker, um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 486p. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 nov. 1998., p. 245-246) observa que a presença de fotos “do loteamento já aberto e com as primeiras casas sendo construídas” (Figura 4), “indica que o empreendimento já vinha sendo implantado antes mesmo da chegada de Parker a São Paulo”.

Figura 4
Anúncio de loteamento no Pacaembu

Andrade (1998ANDRADE, C. R. M. de. Barry Parker, um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 486p. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 nov. 1998.) sugere que Unwin teria sido contratado por sugestão de Joseph-Antoine Bouvard e de Victor da Silva Freire, pois há notícias de que, em 1913, o diretor de Obras Municipais visitou algumas cidades-jardim, Letchworth entre elas, e pode ter sugerido a Douglas Gurd, o gerente local, que contratasse Raymond Unwin, uma referência dentro das balizas teóricas de Freire.

Contudo, embora as relações com a administração municipal fossem extremamente cordiais, essa proximidade não parece ter garantido ou justificado, sozinha, a adoção dessa medida. O mais provável é que os desentendimentos entre a diretoria em Londres e o primeiro gerente, Louis Vergé, em conjunção com a impossibilidade de Roger Bouvard se estabelecer no Brasil e com os problemas concernentes à remuneração das debêntures na França causados por Laveleye, tenham desgastado irremediavelmente a relação entre Londres e Paris. A situação, agravada pela recessão econômica generalizada em decorrência da Primeira Guerra, deve ter levado a diretoria inglesa a procurar alternativas à altura da reputação que o nome de Joseph-Antoine Bouvard ainda inspirava.

Os documentos consultados não citam uma justificativa direta para a contratação de Unwin; portanto, até o momento, só se podem sugerir algumas possibilidades com o apoio do material disponível. Sem dúvida, a falta de sintonia entre ingleses e franceses é uma das principais razões, mas talvez não a causa imediata. O que se estranha é que essa decisão tenha sido tomada em meio ao processo de implantação do projeto de Bouvard.

Não se tratava de dispensar um projeto, fosse por discordância de seus fundamentos, fosse em face de uma questão estética ou de “de gosto”, e contratar outro em seguida. Os relatórios mostram que, em todas as áreas examinadas neste texto, as obras andavam em bom ritmo e havia certa pressa em colocar os terrenos à venda, pois era preciso realizar lucros para pagar os acionistas, e o principal e primeiro projeto posto em andamento, o Pacaembu, encontrava dificuldades para ser aprovado.

Considerando-se os projetos em andamento, parece que a opção possível recaía sobre o Lote 3 - a gleba onde se implantava a Garden City -, não por suas qualidades, mas quase que por exclusão. O Alto da Lapa localizava-se muito distante do centro da cidade, em uma área praticamente isolada, dependente do ramal ferroviário que a companhia não conseguiu emplacar junto a São Paulo Railway.

O Pacaembu, gleba em que a companhia investiu muitos recursos, tendo inclusive iniciado as obras de implantação e avançado com elas, antes mesmo que o projeto fosse aprovado, ficou em espera, conforme os documentos da diretoria deixam entrever, tanto pela dificuldade em atender a legislação vigente (SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988.; ANDRADE, 1998ANDRADE, C. R. M. de. Barry Parker, um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 486p. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 nov. 1998.; WOLFF, 1998WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. 1998. 255p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.) como pela demanda de muito capital, que escasseava no contexto da crise brasileira agravada pela guerra (SIMONI, 2002SIMONI, L. N. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço urbano no município de São Paulo. 1840-1930. 2002. 294p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.).

O investimento nas glebas a leste da cidade, nas proximidades do Ipiranga, igualmente distantes, só teria sentido caso se efetivasse o ramal ferroviário, e talvez sua não concretização tenha levado a companhia, mais tarde, a decidir por sua venda. Finalmente, restavam os lotes 3, 15, 42 e 44, muito próximos à avenida Paulista e que se configuravam, no entender dos empreendedores da City, como a continuidade da Vila América, ou seja, a área correspondente, em termos atuais, ao quadrante formado pelas ruas Augusta, Estados Unidos e avenidas Rebouças e Paulista - ao que parece, um sucesso de vendas. Deve ter pesado, também, o fato de terem sido originalmente propriedades de Horácio Sabino e Cincinato Braga, os fiéis sócios brasileiros, a quem a diretoria inglesa devotava muito respeito e que, em determinado momento, devem ter auxiliado a companhia em suas dificuldades, nos anos iniciais da guerra. Veja-se a deferência com que Lord Balfour os cita, quando, em 1915, diante da crise, se avaliava a possibilidade de encerrar as atividades da City:

O que particularmente pesou na decisão daqueles que tinham que considerar quais eram as melhores propostas foi o grande montante de capital em mãos de pessoas de certa influência no Brasil, que já fizeram tudo o que lhes era possível para auxiliar a Companhia. Seria uma política muito insensata excluí-los agora, mesmo que isso pudesse ser feito, quando sua participação acionária representava meramente um remoto resíduo que poderia converter-se em algum valor somente depois que os proprietários de debêntures tivessem sido reembolsados. […] Não foi culpa dos acionistas em São Paulo se eles não foram capazes de ajudar-nos ainda mais; as circunstâncias têm sido totalmente adversas para eles, mas nós não devemos perder a esperança de que sua assistência será de grande valia em tempos de maior normalidade (LORD BALFOUR OF BURLEIGH, 1915, p. 3 - tradução nossa)LORD BALFOUR OF BURLEIGH. Statement Regarding the Proposed Resolutions Submitted to the Holders of 6 Per Cent 1st Mortgage[w/proceedings of 1914]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited , 1915..

Desse modo, parece que seria sensato, ao diminuir as atividades da companhia no Brasil, concentrar esforços na gleba com maiores chances de realização de lucros, considerada a continuidade de uma área em que as vendas iam bem e que, ao mesmo tempo, agradasse às pessoas que tinham interesses reais e haviam se empenhado muito para a organização e o êxito da City desde o seu início. Entende-se, portanto, que a escolha não se deu pelas qualidades da gleba, e sim pelas possibilidades financeiras factíveis no quadro de recessão vigente.

As obras prosseguiram e, nos relatórios de obra (OELSNER, 1923OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923.), vão cessando, a partir de meados de 1915, as referências às demais glebas; os trabalhos se concentram então, cada vez mais, na Garden City. As obras de implantação do projeto de Bouvard-Rouch estavam bem avançadas quando, em 1915, decidiu-se pela contratação de Unwin. Estaqueavam-se e abriam-se ruas, executavam-se sarjetas e demais peças necessárias à drenagem superficial e ao escoamento de águas, distribuía-se cascalho sobre o leito das ruas, procedia-se ao plantio de árvores (OELSNER, 1923)OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923..

Naquele momento, foram realizadas várias reuniões da diretoria londrina com a finalidade de discutir “esquemas alternativos” (LORD BALFOUR OF BURLEIGH, 1915)LORD BALFOUR OF BURLEIGH. Statement Regarding the Proposed Resolutions Submitted to the Holders of 6 Per Cent 1st Mortgage[w/proceedings of 1914]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited , 1915., tanto para solucionar o problema financeiro causado pela emissão, sem a anuência do board, de títulos livres de impostos por Laveleye, o que atingiu o andamento dos trabalhos no Brasil, como, provavelmente, para solucionar outro problema que se arrastava desde o início da guerra, em meados de 1914: havia, novamente, um vácuo na gerência técnica brasileira, pois o arquiteto Émile Rouch, braço direito de Bouvard no Brasil, retornara à França às vésperas do início do conflito mundial. Foi nesse contexto que ocorreu a contratação de Raymond Unwin.

Encontrou-se documento dirigido à Prefeitura solicitando a alteração no projeto aprovado anteriormente. Nesse ofício endereçado ao prefeito Washington Luís, as justificativas para a adoção das alterações são bastante específicas, inserindo a proposta de Unwin em uma esfera de “modernidade”. Esse documento é importante porque redimensiona o projeto elaborado por esse arquiteto perante a história do bairro: fica claro que Unwin, que o elabora à distância, como Miller (2012MILLER, M. Barry Parker: before and after Jardim America. In: 15th IPHS CONFERENCE. 2012. São Paulo: IPHS/FAUUSP/FAUUPM. [2012] p. 1-17.) sublinha, tomou como base para a sua proposta o projeto de Bouvard-Rouch. Mais do que isso, ele teve que obrigatoriamente considerar a porção já implementada do projeto, o que é explicitado no ofício citado (Figura 5).

Figura 5
Relação de proximidade entre a Vila América e a Garden City, com as alterações elaboradas por Raymond Unwin em 1915 sobre o projeto de Bouvard

A peça gráfica que acompanha o ofício mostra com bastante nitidez como Unwin logrou transformar o desenho muito geométrico de Bouvard-Rouch em um desenho mais orgânico, com ruas curvas e traçados sinuosos. Mas também é clara a manutenção da estrutura original do projeto, o que explicita não se tratar de algo totalmente novo, e sim de uma adaptação de uma estrutura existente.

Apreciando o desenho resultante da intervenção de Unwin, uma segunda hipótese para a sua contratação vem à tona. A companhia havia recomprado vários lotes para futura revenda em razão da alta taxa de inadimplência, fruto do contexto de uma crise financeira agravada pela guerra e no momento em que a Garden City foi desvinculada da Vila América - originalmente, a Garden City era tratada nos relatórios de obra como extensão dessa vila. A intenção da companhia foi enfatizar essa autonomia e expressá-la fisicamente, ou, ainda, espacialmente, como estratégia para revitalizar as vendas. Nesse sentido, o desenho de Unwin diferencia-se em termos conceituais do de Bouvard-Rouch. Enquanto o projeto original busca ser uma continuação natural do arruamento da Vila América, o desenho de Unwin acata as diretrizes municipais quanto à localização de novas ruas em relação às existentes e procura diferenciar completamente o novo arruamento em relação à Vila América. Embora Unwin não tenha alterado o parcelamento proposto pelo primeiro projeto, Oelsner (1923OELSNER, A. C. (org.). Engineers Dept. Weekly Reports 1912-1923. São Paulo: City of S. Paulo Improvements & F. L. Co. Ltd., 1923.) cita que se chegou a desenhar algo nesse sentido.

Ao mesmo tempo, um Relatório da Diretoria anunciava aos acionistas, em Londres, que Unwin havia sido contratado para organizar a propriedade localizada no distrito da Vila América “em linhas Garden City” (CARTER, 1917CARTER, H. E. City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Report of the Directors [1916]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited ., 1917, p. 1). Mas, àquela altura, provavelmente Barry Parker já havia sido contratado para vir a São Paulo, “para estudar e projetar um plano para a propriedade de Hygienópolis” (CARTER, 1918CARTER, H. E. City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited. Report of the Directors [1917]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company, Limited ., 1918., p. 1). Parker, contando com a vantagem de conhecer o sítio onde se implantava o projeto, assim como a realidade das relações sociais e econômicas na capital paulista, fará novas alterações no projeto da Garden City, redirecionando-a a um público de maior poder aquisitivo, o que culminou na criação do nome “Jardim América” e na inauguração do discurso oficial da atuação da Cia. City, que se consolidou ao longo do tempo.

4. Conclusões

Procurou-se demonstrar neste artigo como se iniciou a operação da Cia. City no Brasil e que o primeiro projeto, de caráter “aristocrático”, teria sido concebido para o Pacaembu, o que já fora afirmado por Andrade (1998ANDRADE, C. R. M. de. Barry Parker, um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 486p. 1998. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 3 nov. 1998.). Porém, teria sido o Butantã o primeiro arruamento implantado. A apreciação dos empreendimentos do Butantã, do Pacaembu e do Alto da Lapa revela que houve significativo empenho e volume de trabalho produzido naqueles primeiros anos, em que, sob a coordenação de Joseph-Antoine Bouvard, em Paris, assessorado por Émile Rouch, em São Paulo, se abriram várias frentes de trabalho.

Todas essas ações estavam ligadas à implantação de ramal ferroviário - a “linha férrea de circunvalação” prevista por Victor da Silva Freire, incluída no “Diagramma da rede geral de viação proposta pela Diretoria de Obras Municipaes” (SÃO PAULO (MUNICÍPIO), 1912)SÃO PAULO (MUNICÍPIO). Relatorio de 1911 apresentado à Camara Municipal de São Paulo pelo Prefeito sr. Raymundo Duprat. São Paulo: Vanorden, 1912. 81p. . Entende-se que, como estratégia para viabilizar o anel proposto pelo diretor de Obras Municipais, e com vistas a criar demanda para esse empreendimento, houve a abertura do arruamento do Butantã, em uma pequena parte da vasta gleba adquirida às margens do rio Pinheiros.

Também foi possível verificar que as obras de implantação dos loteamentos ocorriam em paralelo ao desenvolvimento dos projetos, sinalizando o grande montante de recursos investidos, os quais tinham de ser recuperados com a venda de lotes. Por outro lado, a crise deflagrada pela Primeira Guerra Mundial, que ocasionou a devolução de muitas propriedades adquiridas - lotes e casas -, e as atitudes pouco sérias de Édouard Fontaine de Laveleye converteram-se em obstáculos ao desenvolvimento dos trabalhos, o que acarretou, principalmente, a descapitalização da companhia, episódio em que a atuação dos sócios brasileiros foi fundamental para a manutenção do empreendimento.

As contratações de Raymond Unwin e Barry Parker podem estar vinculadas a um esforço de “refundação” da Cia. City, recomeço que se fixou como o início oficial de sua história.

Agradecimentos

Agradeço a Mervyn Miller por, gentilmente, ceder imagens dos documentos de seu acervo pessoal.

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  • WOLFF, S. F. S. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001.
  • 1
    Cia. City foi o nome adotado pela City of San Paulo Improvements and Freehold Land Co Ltd em meados da década de 1920.
  • 2
    As datas referem-se às defesas das respectivas dissertações e teses.
  • 3
    Barreto desmontou essa argumentação em face de o regime de casamento em vigor, naquele momento, tanto no Brasil como na França, dispensar a assinatura da esposa em transações comerciais; além disso ele demonstrou que o casal havia apresentado documentos fraudados. Após vencer a disputa judicial, Barreto escreveu o livro, no qual relata o desenrolar do processo e sua estratégia de defesa com farta documentação, relativa inclusive à constituição da Cia. City. Laveleye viu nesse processo uma possibilidade de reerguer-se da falência de seu banco, o que não conseguiu, porém veio a falecer dois anos depois, em 1934, no Rio de Janeiro.
  • 4
    O Paraná foi uma província do período imperial, transformado em estado sob a República, a partir de 1889.
  • 5
    Carta de Herbert Guedalla a Édouard Fontaine de Laveleye, datada de 28 de junho de 1912 (BARRETO, 1933) BARRETO, P. Uma temerária aventura forense. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1933. 574p. .
  • 6
    É o termo utilizado por essa autora para referir-se às glebas vendidas sem projeto de parcelamento.
  • 7
    Souza (1988)SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988., Anexo 3.
  • 8
    Na ata da Segunda Reunião Geral Ordinária, referente ao ano de 1913, há referências ao sistema como recurso para sustentar as vendas e enfrentar o período de depressão econômica. Cf. LORD BALFOUR OF BURLEIGHLORD BALFOUR OF BURLEIGH. Proceedings at the Second Ordinary General Meeting [1913]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited, 1914., Proceedings at the Second Ordinary General Meeting [1913], 1914, p. 2.
  • 1
    The name “Cia. City” was adopted by the City of San Paulo Improvements and Freehold Land Co Ltd in the mid-1920s.
  • 2
    The dates refer to when the respective dissertations and theses were defended.
  • 3
    Barreto demolished this argument in view of the fact that the marriage laws in force at that time, both in Brazil and in France, dispensed with the wife's signature in commercial transactions. He further demonstrated that the couple had submitted fraudulent documents. After winning the legal dispute, Barreto wrote the book, in which he reported on the progress of the case and his defense strategy with a considerable amount of documentation, including that regarding the constitution of Cia. City. With this process, Laveleye saw the possibility of recovering from the liquidation of his bank, which he was unable to manage, and two years later, in 1934, he died, in Rio de Janeiro.
  • 4
    This, and all other non-English citations hereafter, have been translated by the author.
  • 5
    During the imperial period Paraná was a province, and was transformed into a state under the Republic, from 1889.
  • 6
    A letter from Herbert Guedalla to Édouard Fontaine de Laveleye, dated June 28, 1912 (BARRETO, 1933) BARRETO, P. Uma temerária aventura forense. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1933. 574p. .
  • 7
    The term is used by this author in reference to plots of land sold without installment plans.
  • 8
    Souza (1988)SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano, o caso da Companhia City. 1988. 183p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Administração de Empresa de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988., Appendix 3.
  • 9
    In the minutes of the Second Ordinary General Meeting, referring to the year 1913, there are references to the system as a resource to sustain sales and face the period of economic depression. Cf. LORD BALFOUR OF BURLEIGHLORD BALFOUR OF BURLEIGH. Proceedings at the Second Ordinary General Meeting [1913]. London: City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited, 1914., Proceedings at the Second Ordinary General Meeting [1913], 1914, p. 2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2019
  • Aceito
    01 Jun 2020
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