Acessibilidade / Reportar erro

Integração econômica vs. evitamento social: analisando relações de bairro entre a favela de Calabar e os condomínios de elite circundantes1 1 Este artigo foi realizado com bolsa de doutorado da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Resumo

Esta pesquisa analisa o impacto do efeito-território nas condições de vida de trinta habitantes de Calabar, uma favela localizada em uma área de classe alta em Salvador, Bahia. Foi adotado um arcabouço metodológico tripartite para explorar as dimensões materiais, sociais e simbólicas do efeito-território com base em um conjunto de entrevistas. Com relação à dimensão material, as interações entre classes por meio das relações empregatícias são fomentadas pela proximidade geográfica; no entanto, a segmentação em relação ao acesso a escolas, hospitais e lazer reforçou as hierarquias sociais. Na dimensão social, um alto grau de coesão e solidariedade resultou em implicações positivas nos processos de busca de emprego, acesso a recursos e fortalecimento da identidade territorial. No tocante à dimensão simbólica, a discriminação estatística resultou em efeitos deletérios na integração econômica. Em conclusão, a hipótese de um ambiente de oportunidades enriquecedoras deve passar por um escrutínio cuidadoso, visto que a integração econômica dos habitantes não cria pontes entre abismos sociais nem impede a discriminação por localização.

Palavras-chave:
Efeito-território; Pobreza urbana; Favela; Segmentação social; Estruturas de oportunidade; Estigma territorial

Abstract

This research assesses the impact of neighborhood effects on the well-being of thirty inhabitants in Calabar, a shanty-town set within an upper-class area of Salvador (Brazil). We adopted a threefold methodological framework in order to explore the material, social and symbolic dimensions of the neighborhood effects based on a set of interviews. With regard to the material dimension, cross-class interactions via the employment nexus are fostered through geographic proximity; however social segmentation regarding access to schools, hospitals and leisure activities have reinforced the social hierarchies. In the social dimension, a high degree of cohesion and solidarity has entailed positive implications for the job search processes, access to resources and a strengthening of territorial identity. With the symbolic dimension, statistical discrimination has entailed deleterious effects on economic integration. In conclusion, the hypothesis of an opportunity-enriching environment should be subjected to careful scrutiny since the economic integration of the inhabitants neither bridges the social distances nor impedes place-based discrimination.

Keywords:
Neighborhood Effects; Urban Poverty; Shanty Town; Social Segmentation; Opportunity Structures; Territorial Stigmatization

Introdução

Estudos contemporâneos realizados com o objetivo de examinar os processos involucrados na reprodução da pobreza urbana têm enfocado crescentemente a agregação de determinadas desvantagens estruturais no espaço e ressaltado que a concentração da pobreza em bairros segregados produz efeitos negativos tanto para as condições de vida dos seus moradores como para os recursos sociais, políticos e econômicos do lugar (GRAIF; GLADFELTER; MATTHEWS, 2014GRAIF, Corina; GLADFELTER, Andrew S.; MATTHEWS, Stephan A. Urban poverty and neighborhood effects on crime: incorporating spatial and network perspectives. Sociology Compass, v. 8-9, p 1140-155, 2014.; RIBEIRO; KOSLINSKI, 2009RIBEIRO, L. C. de Q.; KOSLINSKI, M.C. Efeito metrópole e acesso às oportunidades educacionais. Revista Eure, v. 35, n. 106, p. 101-29. 2009.; SAMPSON, 2012SAMPSON, Robert J. Chicago and the enduring neighborhood effect. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.). Essa dimensão microssocial da pobreza vem sendo explorada sob o conceito de efeito-território, ou seja, as desvantagens socioeconômicas que acometem as condições de vida de um indivíduo como resultado de sua inserção em determinado contexto socioespacial (SMALL; NEWMAN, 2001SMALL, Mario L.; NEWMAN, Katherine. Urban poverty after the truly disadvantaged: the rediscovery of the family, the neighborhood, and culture. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 27, p. 23-45, 2001.).

Kaztman (1999KAZTMAN, Ruben. Activos y estructura de oportunidades: estudio sobre las raíces de la vulnerabilidad social en Uruguay. Montevidéu: Oficina de la Cepal en Montevideo, 1999.) pleiteia uma aproximação “macrossocial” à pobreza urbana por intermédio da introdução do conceito de Activos, Vulnerabilidade y Estructuras de Oportunidades no contexto latino-americano. Segundo esse autor, as famílias que habitam os bairros segregados onde se concentram altas taxas de pobreza, desemprego e criminalidade dispõem de ampla gama de recursos materiais e não materiais passíveis de serem mobilizados para mitigar a sua situação de vulnerabilidade; no entanto, Katzman ressalva que sua mobilização se vê estreitamente condicionada pelas estruturas de oportunidades promovidas pelo Estado -mediante suas políticas sociais e habitacionais -, o mercado e a sociedade.

No contexto europeu, Häußermann (2003HÄUßERMANN, Hartmut. Armut in der Großstadt. Die Stadtstruktur verstärkt soziale Informationen zur Raumentwicklung, v. 3 e 4, p. 43-157. 2003.) argumenta que os modelos explicativos deveriam levar em consideração tanto os mecanismos e processos que reproduzem como os recursos sociais e institucionais que mitigam o efeito-território em um bairro segregado. Sua proposta metodológica busca analisar o efeito-território a partir das três dimensões mencionadas e identificar suas intercausalidades.

Este estudo qualitativo se norteia pela aproximação metodológica de Häußermann (2003HÄUßERMANN, Hartmut. Armut in der Großstadt. Die Stadtstruktur verstärkt soziale Informationen zur Raumentwicklung, v. 3 e 4, p. 43-157. 2003.) ao efeito-território, com vistas a indagar se o acesso a estruturas de oportunidades mais amplas - particularmente em termos de integração econômica do indivíduo - pode ser explicado com base nas articulações funcionais entre a população pobre da favela do Calabar e os bairros circunferentes da classe média e alta, a saber, Barra, Ondina e Graça.

O objetivo central consiste em investigar a potencial interferência de desvantagens estruturais - englobando altas taxas de desemprego, pobreza e crime - nas condições de vida e nas chances de integração socioeconômica dos seus moradores. Mediante trinta entrevistas semiestruturadas conduzidas na favela de Calabar, o estudo pretende responder às seguintes questões:

  1. Partindo da importância do contexto sociorresidencial, quais são os mecanismos operacionais e as causalidades que promovem um entendimento mais efetivo do impacto do efeito-território nas condições de vida de seus moradores?

  2. Pode ser comprovada a existência de articulações entre grupos socialmente distantes que abstraem do contexto as relações empregatícias e que podem atenuar as distâncias sociais entre a população do Calabar e seus vizinhos da classe média e alta?

O estudo empírico foi realizado em Salvador, na Bahia, na região Nordeste brasileira. A quarta maior cidade do país abriga estruturas de segregação macrossocial que se manifestam no dualismo centro-periferia, assim como configurações socioespaciais marcadas pela proximidade física entre grupos socialmente distantes na escala microurbana. O bairro popular do Calabar se insere em uma das regiões economicamente mais dinâmicas da cidade e apresenta grandes contrastes com os bairros vizinhos de classe média e alta no que se refere às condições habitacionais, de qualidade da infraestrutura urbana, do acesso a serviços urbanos e do status socioeconômica da população.

Este artigo é composto de cinco seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira seção, objetiva-se delinear os principais desenvolvimentos alcançados no campo de pesquisas centradas no conceito de efeito-território, em decorrência das contribuições da sociologia estadunidense, europeia e brasileira. Na segunda seção, introduz-se a metodologia utilizada no estudo qualitativo. Na terceira, retraça-se o perfil econômico e sociodemográfico da população do Calabar, enquanto na quarta se apresentam os principais resultados auferidos no estudo qualitativo, os quais serão objeto de discussão na quinta seção.

A abordagem do efeito-território dentro de uma perspectiva comparativa

O debate acerca do efeito da concentração espacial da pobreza em bairros segregados localizados nas porções centrais das grandes metrópoles estadunidenses se iniciou no final da década de 1980. Nesse contexto, a abordagem em torno da nova pobreza urbana ramificava-se em três aproximações distintas centradas no conceito de underclass que largamente influenciou as pesquisas posteriores sobre o efeito-território. São elas:

  1. Uma aproximação culturalista-conservadora que correlacionava a reprodução da pobreza da underclass afro-americana, habitante dos guetos centrais das grandes metrópoles estadunidenses, ora com sua incapacidade de adaptar-se ao sistema de ascensão social da sociedade dominante branca (LEWIS, 1968LEWIS, Oscar. The culture of poverty. In: MOYNIHAN, David Patrick (Org.). On understanding poverty: perspectives from the social sciences. Nova York: Basic Books , p. 187-220. 1969.), ora com o efeito “desincentivador” dos programas de transferência de renda, considerados demasiadamente generosos (MURRAY, 2015MURRAY, Charles. Losing ground: American social policy, 1950-1980. Nova York: Basic Books , 2015.).

  2. Uma aproximação tendencialmente mais liberalista que procurava demonstrar que a underclass afro-americana aderia de maneira majoritária ao sistema cultural e às aspirações socioeconômicas da sociedade dominante, mas que também postulava que os constrangimentos estruturais, em conjunção com as oportunidades de mobilidade socioeconômica historicamente restringidas desse grupo, teriam favorecido a emergência de um sistema de valores alternativo capaz de racionalizar e lidar com tais desvantagens (GANS, 1969GANS, Herbert. Culture and class in the study of poverty: an approach to anti-poverty research. In: MOYNIHAN, David Patrick (Org.). On understanding poverty: perspectives from the social sciences. Nova York: Basic Books, p. 229-59. 1969.; HANNERZ, 1969HANNERZ, Ulf. Soulside: inquiries into ghetto culture and community. Nova York: Columbia University Press, 1969.).

  3. Uma aproximação estruturalista que buscava, por um lado, inserir o processo de deteriorização socioeconômica da underclass afro-americana nas tendências mais amplas de reestruturação do mercado laboral, nas transformações sociodemográficas e nas alterações produzidas na composição de classe da população dos guetos das grandes metrópoles, e, por outro, explicar a reprodução da pobreza urbana e das desigualdades sociais à luz dos mecanismos historicamente enraizados de segregação institucionalizados no mercado imobiliário e nas políticas habitacionais (MASSEY; DENTON, 1993MASSEY, Douglas S.; DENTON, Nancy. American apartheid: segregation and the making of the underclass. Nova York: Harvard University Press, 1993.; WILSON, 1987WILSON, William J. The truly disadvantaged: the inner-city, the underclass and public policy. Chicago: University of Chicago Press , 1987.).

A vertente de estudos urbanos centrados no conceito de efeito-território tomou como ponto de partida a abordagem estruturalista da pobreza urbana tal como defendida por Wilson (1987WILSON, William J. The truly disadvantaged: the inner-city, the underclass and public policy. Chicago: University of Chicago Press , 1987.) no seu livro The truly disadvantaged: the inner-city, the underclass and public policy (SMALL; NEWMAN, 2001SMALL, Mario L.; NEWMAN, Katherine. Urban poverty after the truly disadvantaged: the rediscovery of the family, the neighborhood, and culture. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 27, p. 23-45, 2001.). Esse autor enfatizou o gradativo processo de isolamento social que acometeu a população pobre dos guetos de Chicago - trata-se da ausência de contatos com os grupos sociais e instituições representantes da sociedade dominante. Neste sentido, Wilson (1987WILSON, William J. The truly disadvantaged: the inner-city, the underclass and public policy. Chicago: University of Chicago Press , 1987.) discutiu criticamente as consequências deletérias desse processo para a integração socioeconômica da sua população por meio da análise dos padrões de sociabilidade e da influência dos grupos de pares e modelos de referência no seu comportamento (WILSON, 1987WILSON, William J. The truly disadvantaged: the inner-city, the underclass and public policy. Chicago: University of Chicago Press , 1987.).

A partir dessas considerações, as pesquisas sobre o efeito-território ganharam forte relevância na sociologia estadunidense; em sua maioria, elas objetivavam verificar as duas hipóteses de Wilson relativas à concentração espacial de determinadas desvantagens estruturais no bairro e dos efeitos deletérios do isolamento social (GRAIF; GLADFELTER; MATTHEWS, 2014GRAIF, Corina; GLADFELTER, Andrew S.; MATTHEWS, Stephan A. Urban poverty and neighborhood effects on crime: incorporating spatial and network perspectives. Sociology Compass, v. 8-9, p 1140-155, 2014.).

Contudo, estudos mais recentes vêm desafiando as relações de causalidade entre o contexto sociorresidencial e as condições de vida dos habitantes dos bairros segregados. Nessa linha de argumentação, Small e Newman advogam por uma aproximação condicional ao efeito-território, ao postular que o contexto sociorresidencial interfere de forma heterogênea na vida do indivíduo.

Recentemente, assiste-se à emergência de modelos explicativos multidimensionais que visam eliminar o hiato entre a aproximação estruturalista de Wilson (1987WILSON, William J. The truly disadvantaged: the inner-city, the underclass and public policy. Chicago: University of Chicago Press , 1987.) e o individualismo metodológico. Centrando o foco analítico nos atributos econômicos e sociodemográficos do indivíduo, a segunda aproximação metodológica ao efeito-território recorre a modelos de regressão para controlar estatisticamente o impacto das variáveis intervenientes atreladas à escala do indivíduo ou da família em relação às desvantagens estruturais concentradas na escala do bairro, como altos níveis de pobreza, desemprego e violência, entre outras.

De acordo com a proposta metodológica de Sampson (2012SAMPSON, Robert J. Chicago and the enduring neighborhood effect. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.), os mecanismos sociais, psicológicos, organizacionais e culturais que operam na escala do bairro devem ser visualizados como fatores intermediadores entre a estrutura e a agência que promovem valiosos insights sobre os processos de reprodução da pobreza nas grandes cidades. Destarte, o efeito-território não pode ser considerado como a simples consequência da agregação espacial de indivíduos que compartilham a mesma situação de vulnerabilidade social - em termos de níveis de renda e de educação, por exemplo -, nem como o resultado automático das desvantagens estruturais que se concentram na escala do bairro, como o desemprego e a criminalidade, por exemplo; ele deve ser examinado à luz dos processos sociais, organizacionais e institucionais que envolvem aspectos da vida coletiva da comunidade.

No âmbito da sociologia europeia - limitando aqui o enfoque analítico às contribuições dos países da Europa Ocidental e Central -, a aproximação à nova pobreza urbana se enquadra no conceito mais amplo de exclusão social. Essa abordagem transcende uma tradição teórica mais estruturalista se comparada com as explicações tendencialmente culturalistas, centradas no indivíduo como unidade analítica da sociologia estadunidense, considerando, em particular a teoria de desorganização social e a sociologia do desvio (NIESZERY, 2013NIESZERY, Andrea. Soziale Segregation, Quartierseffekte und Quartierspolitik. Ein deutsch-französischer Vergleich. 2013. 343 F. Tese (Doutorado em Geografia). Mathematisch-Naturwissenschaftliche Fakultät II. Humboldt-Universität zu Berlin, Berlin 2013). O conceito de exclusão social assenta-se em uma análise multidimensional da deprivação relativa e visa examinar o processo gradativo de marginalização do indivíduo em termos de sua participação nos sistemas econômico, político-institucional e sociocultural da sociedade dominante (PAUGAM, 2008PAUGAM, Serge. Die elementaren Formen der Armut. Hamburgo: HIS. 2008.).

Apesar do enquadramento estruturalista da questão da pobreza urbana, com enfoque nos processos de reestruturação do mercado laboral, nas transformações societais e na reconfiguração dos sistemas de bem-estar social, a análise das causalidades centrada no aumento das disparidades socioeconômicas e na polarização socioespacial das grandes cidades europeias tem sido largamente influenciada pelo conceito estadunidense do efeito-território (ATKINSON; KINTREA, 2002ATKINSON, Rowland; KINTREA, Keith. Area effects: what do they mean for British housing and regeneration policy? European Journal of Housing Research, v. 2, n. 2, p. 147-66. 2002.).

As pesquisas desenvolvidas no que diz respeito a essa temática, sustentadas por um desenho metodológico ora quantitativo, ora qualitativo, comprovam um potencial impacto negativo do contexto sociorresidencial nas condições de vida do indivíduo, ainda que este não alcance dimensões similares àquelas observadas no contexto estadunidense. Existe um largo consenso de que o efeito-território deve ser considerado como um momento explicativo secundário na abordagem da reprodução das desigualdades sociais, com a indicação de maior relevância dos fatores macroestruturais e do desempenho socioeconômico do indivíduo (NIESZERY, 2013NIESZERY, Andrea. Soziale Segregation, Quartierseffekte und Quartierspolitik. Ein deutsch-französischer Vergleich. 2013. 343 F. Tese (Doutorado em Geografia). Mathematisch-Naturwissenschaftliche Fakultät II. Humboldt-Universität zu Berlin, Berlin 2013).

Similarmente ao contexto europeu, o interesse de examinar o impacto do efeito-território na sociologia brasileira surgiu apenas em períodos mais recentes, desde a década de 2010 (ANDRADE; SILVEIRA, 2013ANDRADE, Luciana T.; SILVEIRA, Leonardo S. Efeito-território. Explorações em torno de um conceito sociológico. Civitas, v. 13, n. 2, p. 381-402. 2013.). Contudo, a pobreza urbana e as causas da segregação com base em critérios de renda vêm sendo discutidas desde o processo acelerado de urbanização na década de 1940; este produzia a separação física entre as classes média e alta que se instalaram nas regiões centrais da cidade ou bem no vetor de expansão em direção aos subúrbios mais próximos - ambos concentrando a maior parte dos postos de emprego e os serviços urbanos de qualidade mais alta - e os assentamentos informais das camadas baixas em vastas áreas periféricas. Nessas regiões agregava-se uma série de desvantagens estruturais, como a falta de oportunidades de emprego e de transporte urbano, assim como deficiências significativas no que diz respeito ao acesso a serviços urbanos (ROBERTS, 2005ROBERTS, Bryan R. Globalization and Latin American Cities. International Journal of Urban and Regional Reserach, Hoboken, N.J., v. 29, n. 1, p. 110-23. 2005.).

Entretanto, durante o período do modelo de substituição de importação (entre 1930 e 1980), a relação “simbiótica” entre o mercado laboral e informal consolidava certa interdependência funcional entre os grupos socioeconomicamente distantes. Outrossim, essas relações se estenderam a partir dos vínculos empregatícios, nomeadamente no setor dos serviços pessoais realizados nos apartamentos e mansões das camadas média e alta, uma dinâmica que não perdeu sua relevância até o presente, conforme demonstraremos neste estudo.

Desde a década de 1990, os estudos urbanos crescentemente deslocaram o foco de interesse para a análise das repercussões da reestruturação do mercado de trabalho, da desindustrialização e da residualização das políticas sociais na organização socioespacial das grandes metrópoles (TORRES et al., 2003TORRES, Haroldo da Gama et al. Pobreza e espaço: padrões de segregação em São Paulo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 47, p. 1-32, 2003.). Investigam-se ora as causas e consequências da segregação e da pobreza, ora as estratégias do indivíduo de mitigar ou superar as situações de vulnerabilidade por intermédio da mobilização de determinados recursos (não)materiais no âmago do sistema de suporte primário (família, vizinhança e amigos) ou dentro das organizações comunitárias e instituições filantrópicas radicadas no bairro.

O fato de que o contexto sociorresidencial pode exercer um efeito independente na integração econômica do indivíduo (RIBEIRO; LAGO, 2001RIBEIRO, L. C. de Q.; LAGO, Luciana C. A oposição favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 1, p. 144-54. 2001.), no seu desempenho escolar (RIBEIRO; KOSLINSKI, 2009) e nos seus padrões de sociabilidade (MARQUES, 2010MARQUES, Eduardo C. L. Redes sociais, segregação e pobreza. São Paulo: Editora da Unesp, 2010.) apenas recentemente vem sendo reconhecido nos estudos urbanos brasileiros, dada a prevalência de uma aproximação à pobreza urbana baseada exclusivamente em critérios econômicos.

Considerações metodológicas

Recorre-se aqui à proposta metodológica tridimensional de Häußermann (2003HÄUßERMANN, Hartmut. Armut in der Großstadt. Die Stadtstruktur verstärkt soziale Informationen zur Raumentwicklung, v. 3 e 4, p. 43-157. 2003.), que leva em consideração tanto os distintos potenciais endógenos do bairro, entendidos como a disponibilidade dos recursos institucionais potencialmente mobilizáveis pelos seus moradores (produzindo um efeito-território “positivo”), como suas deficiências, deflagradas sobretudo no quadro dos serviços urbanos (provocando um efeito-território “negativo”).

Em contraste com o contexto socioespacial alemão, a partir do qual esta proposta metodológica foi concebida (NIESZERY, 2013NIESZERY, Andrea. Soziale Segregation, Quartierseffekte und Quartierspolitik. Ein deutsch-französischer Vergleich. 2013. 343 F. Tese (Doutorado em Geografia). Mathematisch-Naturwissenschaftliche Fakultät II. Humboldt-Universität zu Berlin, Berlin 2013), enfatiza-se neste estudo a forte relevância das redes sociais e institucionais em face de sua função de facilitar ou dificultar a integração socioeconômica do indivíduo pobre.

Conforme as considerações de Häußermann (2003HÄUßERMANN, Hartmut. Armut in der Großstadt. Die Stadtstruktur verstärkt soziale Informationen zur Raumentwicklung, v. 3 e 4, p. 43-157. 2003.), a dimensão material do efeito-território remete à localização geográfica do bairro em relação ao conjunto da cidade, com o exame da percepção subjetiva do indivíduo acerca das suas possibilidades de acesso ao mercado laboral e ao transporte público. Essa dimensão tem em vista, além da existência e da qualidade dos serviços urbanos, a infraestrutura comercial, social e cultural do bairro, assim como as condições habitacionais dos moradores. Por último, avalia-se o impacto de diferentes formas de intervenção por meio das políticas urbanas, caso houver, como os programas de revitalização do bairro, a implementação de postos de polícia e de saúde, entre outras.

A dimensão social engloba três determinantes estreitamente interligadas, quais sejam: a composição das redes sociais dos habitantes, a capacidade de eficácia coletiva da comunidade e a influência de grupos de pares e modelos de referência dentro dos processos de socialização no ambiente da escola e da vizinhança. Segundo Sampson (2012SAMPSON, Robert J. Chicago and the enduring neighborhood effect. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.), a eficácia coletiva combina coesão social e confiança mútua com a expectativa compartilhada de controle social informal, conceito compreendido, neste contexto, como a maneira como os vizinhos podem contar com o apoio de outrem para manter a ordem pública, monitorar e vigiar as crianças e adolescentes em conformidade com práticas, normas e sanções coletivamente estabelecidas.

Com respeito à estrutura das redes sociais, analisa-se, em primeiro lugar, a participação do indivíduo nas diferentes esferas de sociabilidade no intuito de avaliar se, nas suas interações cotidianas, ele recorre preponderantemente a vínculos sociais locais ou extralocais (MARQUES, 2010MARQUES, Eduardo C. L. Redes sociais, segregação e pobreza. São Paulo: Editora da Unesp, 2010.). Em nosso caso, faz-se distinção entre as esferas de sociabilidade primárias - a família, os amigos e os vizinhos -, caracterizadas por alto grau de localismo e de redundância estrutural, e as esferas de sociabilidade secundárias - o trabalho, os estudos, as associações (não)leigas e o lazer. Pressupõe-se que estas últimas ampliam o espectro e a diversidade dos vínculos sociais dos entrevistados, com implicações importantes para sua integração econômica (BRIGGS, 1998BRIGGS, Xavier de S. Brown Kids in White Suburbs: Housing Mobility and the Many Faces of Social Capital. Housing Policy Debate, v. 9, n. 1, p. 177-221. 1998.).

Em segundo lugar, busca-se explorar se, e como, os entrevistados encontram oportunidades empregatícias tanto no próprio bairro como nos condomínios vizinhos da classe média alta. Examina-se particularmente a importância de pessoas-chave dentro de determinadas redes sociais que possam atuar como intermediários nos serviços realizados nos condomínios. Por fim, procura-se examinar se os habitantes recorrem preponderantemente a bonding ties ou bridging ties para obter suporte (não)material.

Neste sentido, Briggs (1998BRIGGS, Xavier de S. Brown Kids in White Suburbs: Housing Mobility and the Many Faces of Social Capital. Housing Policy Debate, v. 9, n. 1, p. 177-221. 1998.) estabelece distinção entre, de um lado, um tecido social denso organizado a partir de vínculos entre iguais, proporcionando coesão social, fortalecimento identitário, solidariedade intragrupal e estabilização da situação quotidiana, por meio de redes estruturalmente redundantes (bonding ties), e, de outro, vínculos suscetíveis de promover pontes entre indivíduos e grupos sociais que alavancam sua mobilidade econômica e social. Esses são os bridging ties, que operam uma inclusão em redes sociais mais diversificadas e territorialmente dispersas.

A abordagem da influência dos grupos de pares e modelos de referência social nos processos de socialização principalmente de crianças e adolescentes se justifica em atendimento à hipótese de Wilson (1987WILSON, William J. The truly disadvantaged: the inner-city, the underclass and public policy. Chicago: University of Chicago Press , 1987.) do isolamento social. Nesse sentido, pressupõe-se um enfraquecimento da legitimidade dos canais “formais” de mobilidade social, como a frequência da escola, a obediência às normas legais vigentes, o respeito à vida dos outros moradores, etc., considerando a influência de jovens e adultos afiliados ao tráfico de drogas nos locais analisados.

A integração do conceito de eficácia coletiva dentro do arcabouço metodológico de Häußermann é de particular interesse, dado que implica um impacto significativo da criminalidade e da violência na organização social da comunidade e na saúde física/mental do indivíduo. Para avaliar a capacidade de controle social informal na escala da comunidade, recorre-se ao índice composto de eficácia coletiva, elaborado por Sampson (2012SAMPSON, Robert J. Chicago and the enduring neighborhood effect. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.).

Assim, o índice de expectativas compartilhadas de controle social será avaliado valendo-se de uma tipologia composta de cinco itens na escala Likert; essa escala será utilizada no roteiro de questões aplicado nas entrevistas com o objetivo de verificar o nível de concordância do entrevistado com determinadas afirmações. Neste caso específico, os habitantes foram solicitados a se posicionar acerca da disposição de se engajarem em ações coletivas na vizinhança a partir da simulação de situações distintas, sobre crianças e acontecimentos na proximidade.

Os outros indicadores são:

  • índice de coesão/confiança social, que investiga o grau de desconfiança que prevalece entre os vizinhos de um dado bairro. Os entrevistados foram solicitados a se pronunciar acerca de situações como ajudar os vizinhos e outras;

  • índice de violência observada na vizinhança, que se baseia em questões como registrar/presenciar briga violenta entre vizinhos e outras situações;

  • índice de vitimização pessoal, cuja medição requer que o entrevistado responda a questões relacionadas à ocorrência de crime contra ele ou sua família.

Na dimensão simbólica, abordam-se mecanismos distintos de discriminação e de estigmatização territorial que potencialmente afetam de maneira negativa as condições de vida do indivíduo e sua integração no mercado laboral. Outrossim, com base na percepção subjetiva do indivíduo, indaga-se se ele visualiza a inserção do seu bairro de residência em uma região economicamente dinâmica sobretudo como vantagem - considerando maiores chances de integração socioeconômica - ou constrangimento - considerando a maior visibilidade das clivagens econômicas entre os grupos socialmente distantes e a existência de barreiras físicas de dispositivos de segurança nos condomínios.

O estudo qualitativo foi conduzido no bairro popular de Calabar. Como pode ser depreendido na Figura 1, que retrata a distribuição de grupos sociais em termos de renda familiar no município de Salvador em adaptação aos distritos censitários, o bairro em apreço está localizado no sudoeste da capital baiana, circundado pelos bairros de classe alta Barra, Ondina e Graça.

Figura 1
Distribuição espacial de grupos sociais em termos de renda em Salvado

O Calabar, como vetor de expansão da classe média e alta, emergiu no final da década de 1940 quando esses grupos sociais se deslocaram das porções centrais em direção à faixa litorânea da cidade; convém ressaltar que essa região se caracteriza pelo uso funcional do espaço que pode ser classificado como “misto”, por abranger as funções residencial, comercial e de lazer (público).

O mapa foi elaborado com o uso do software ArcGIS (versão 10) a partir do arquivo vetorial (formato shapefile) dos bairros de Salvador feito pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (ConderCONDER; INFORMS. Painel de informações: dados socioeconômicos do município de Salvador por bairros e prefeituras-bairro/Sistema de Informações Geográficas Urbanas do Estado da Bahia. Salvador: Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Sistema de Informações Geográficas Urbanas do Estado da Bahia, 2016.). A distribuição dos grupos sociais, apoiada no critério de renda média familiar, se baseia nos dados divulgados pelo Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD) relativos ao Censo de 2010.

Foram realizadas trinta entrevistas semiestruturadas com pessoas abordadas aleatoriamente na rua, no período de janeiro a maio de 2018, com cerca de meia hora de duração, em distintos locais do bairro e em diferentes horários. Para assegurar maior grau de representatividade, a amostra integra pessoas de perfis socioeconômicos variados. A fim de evitar qualquer viés na seleção da amostra, o perfil sociodemográfico dos entrevistados abrange todas as faixas etárias entre 16 e 65 anos, que correspondem a diferentes ciclos de socialização e de aquisição dos recursos necessários à reprodução social.

Intencionalmente, não se focalizava o grupo social em geral considerado mais vulnerável: crianças, adolescentes e mães-chefes de família com crianças. Esse reducionismo metodológico teria evocado uma imagem enviesada da composição socioeconômica do bairro e, portanto, não permitiria cumprir a premissa de heterogeneidade e condicionalidade do efeito-território (Small, 2004SMALL, Mario L. Villa Victoria: the transformation of social capital in a Boston barrio. Chicago: University of Chicago Press, 2004.). Contudo, observa-se uma variabilidade relativamente baixa dentro do grupo dos entrevistados no que tange ao nível de renda (entre um e dois salários mínimos de renda familiar), ao grau de escolaridade (nível médio incompleto até completo) e ao status ocupacional (aproximadamente um terço dos entrevistados se autodeclarou desempregado).

O interlocutor foi solicitado, em primeiro lugar, a fornecer dados relativos à renda familiar, status ocupacional, nível de escolaridade, idade, gênero, estado civil e número de filhos. Na sequência, aplicou-se no bairro um questionário semiaberto, que se encontra no anexo deste trabalho. Para o objetivo deste estudo, integraram-se as observações de campo auferidas principalmente como resultado da participação em reuniões da associação comunitária, durante as quais se providenciaram importantes insights sobre o contexto sociorresidencial e a organização socioinstitucional do bairro.

Diante do exposto, cabe salientar que a representatividade do estudo, considerando o número reduzido de entrevistas, apresenta claras limitações metodológicas e não permite o postulado de relações causais mais conclusivas e generalizáveis, suscetíveis de facilitar a comparação com outros bairros com a mesma situação de proximidade a locais de classe média e alta em Salvador ou em outras cidades, já que os dados qualitativos não foram complementados por uma análise quantitativa do efeito-território.

O perfil econômico e sociodemográfico da população do Calabar

As origens da ocupação informal do Calabar podem ser retraçadas até a década de 1950, quando fluxos migratórios de famílias pobres oriundas do interior do estado da Bahia começaram a invadir as terras vazias pertencentes à Santa Casa de Misericórdia com a autoconstrução de barracos de madeira e moradias improvisadas. Em virtude de sua inserção geográfica em uma das regiões mais prósperas da cidade já naquela época, a comunidade teve que lutar para resistir contra as tentativas de expulsão dos seus habitantes por parte do governo e de empresas imobiliárias desde a década de 1960. A forte mobilização da população, por intermédio da associação de moradores e de outros grupos culturais nos anos de 1970 e 1980, se traduziu em substanciais melhorias na infraestrutura e nos serviços urbanos no bairro, ao mesmo tempo que os movimentos de resistência impediram sua expropriação e expulsão pelo governo municipal, que tentava converter a área em uma avenida ligando o bairro vizinho Federação à Ondina.

Em termos político-administrativos, o bairro do Calabar compõe, com Altos das Pombas, Federação e Campo Santo, a Área de Ponderação AP-28. A população desses quatro bairros experimentou forte crescimento nominal, de 15.888 em 2000 para aproximadamente 20.000 em 2010, dos quais 6.484 vivem em Calabar. Cerca de 1.700 domicílios particulares permanentes se distribuem ao longo de uma área geográfica de 5,4 quilômetros. O local acusava densidade demográfica bruta de 35.612 hab./km2 em 2000, que passou para 38.726 hab./km2 em 2010 - isso corresponde a quase cinco vezes a média da densidade demográfica bruta de Salvador, estimada em 8.801 hab./km2.

Parte substancial das moradias constitui-se de casas autoconstruídas de dois pavimentos e se localiza em áreas de alto risco ambiental, ou seja, no vale não drenado ou nas áreas de encostas e de alta declividade, o que provoca alagamentos periódicos e deslizamentos de terra na época de chuva.

Em 2010, o rendimento nominal médio dos responsáveis por domicílios particulares permanentes alcançou R$ 1.029,3 no Calabar, R$ 1.048,7 no Alto das Pombas, R$ 2.276,3 na Federação, R$ 6.585,3 na Barra, R$ 7.614,9 na Ondina e R$ 7.772,1 na Graça.

A proporção de responsáveis por domicílios particulares permanentes sem rendimento totalizava 17,9% em 2010, com o registro de uma leve subida em relação a 2000 (16,6%), o que demonstra disparidade de renda entre o Calabar e os bairros vizinhos. A isso deve ser acrescentada uma elevada taxa de desemprego entre jovens de 18 a 24 anos, que alcançou um patamar de 39,10% em 2010.

O bairro comporta alta proporção de habitantes que se autodeclaram pardos ou negros, totalizando 88,89% em 2010, enquanto, nos bairros vizinhos, essa proporção chegou a 89,29% no Alto das Pombas, 79,58% na Federação, e, comparativamente, 50,80% na Ondina, 44,28% na Barra e apenas 37,82% na Graça.

Concernente ao nível de escolaridade, usando como base de cálculo a variável Anos de Estudo do Chefe de Domicílio, 5,80% não possui instrução ou possui menos de um ano de estudos, 8,07% se situa na faixa de um a três anos de estudos, 12,63% na faixa de quatro a sete anos, 7,25% na faixa de oito a dez anos, 6,08% na faixa de onze a catorze anos. Em comparação, apenas 1,52% da população estava matriculada em uma instituição de ensino superior, em contraste com a média da Barra, de 46,02%, Ondina, com 37,88%, e Graça, com 42,86%. A taxa de analfabetismo da população acima de 15 anos alcançou 7,45% em 2010 e aproximadamente 35% da mães-chefes de família com criança não concluíram o ensino fundamental.

Resultados da pesquisa

Dimensão material

Na dimensão material do efeito-território, as vantagens locacionais emanam majoritariamente da proximidade dos entrevistados com as oportunidades empregatícias que surgiram com demanda local dos moradores dos condomínios vizinhos, situados nos bairros Barra, Graça e Ondina, por serviços pessoais, como porteiro, faxineira, diarista, eletricista, etc. Essas oportunidades concentram-se a uma curta distância de Calabar, fato que beneficia tanto os indivíduos empregados como os moradores dos condomínios, uma vez que estes últimos não precisam arcar com as despesas de deslocamento dos seus funcionários.

Do mesmo modo, os entrevistados apontam o Shopping Barra e o Hospital Fundação José Silveira como os principais polos de emprego da região, ao mesmo tempo que destacam as vastas oportunidades em termos de integração econômica proporcionadas pelo mercado laboral informal. Estas consistem principalmente na venda de frutas, lanches, bebidas e outros produtos perecíveis em pontos estratégicos dos bairros vizinhos, como nas praias do Porto da Barra, Morro do Cristo e Farol da Barra, mas também na entrada dos condomínios fechados, como o depoimento seguinte corrobora:

Você pode ver, Calabar é uma maravilha para a venda de produtos. Aonde você vai, tem oportunidades para vender. Claro, na maioria é frutas, legumes e lanches, mas é bem isso que os moradores dos condomínios querem comprar! É tudo fresco e baratinho e temos uma demanda bem estável. Ainda mais no verão, onde o Porto da Barra é tão cheio de gente que você pode botar toda sua família para trabalhar para os turistas! (João, 54 anos, vendedor ambulante)

A grande demanda por produtos perecíveis e serviços pessoais nos condomínios vizinhos contrasta com a escassez de empregos no bairro do Calabar, restritos à oferta dos pequenos estabelecimentos de comércio familiar, os quais, similarmente à atividade de vendedor ambulante, não promovem o direito ao seguro-desemprego e à aposentadoria. As vantagens locacionais registradas no acesso ao mercado de trabalho e ao transporte público também podem ser confirmadas no acesso à infraestrutura e aos serviços urbanos concentrados no entorno geográfico do Calabar, compensando a ausência de uma escola de segundo grau e as deficiências qualitativas no tocante aos cuidados de saúde no bairro.

Contudo, a proximidade com os hospitais da rede privada não se traduz automaticamente em benefícios para a maioria dos entrevistados, dadas as altas despesas decorrentes de um tratamento hospitalar privado que não podem ser custeadas pela população residente do Calabar. No entanto, uma série de melhorias importantes foi realizada, segundo os entrevistados, no que diz respeito à infraestrutura básica, contrastando com uma situação anterior em que a população sofria com a carência de acesso aos sistemas de esgoto, coleta de lixo, eletricidade e até água encanada. Globalmente, a infraestrutura comercial, social e cultural recebe uma avaliação positiva conquanto alguns dos entrevistados tenham mencionado o gradativo declínio das atividades culturais no bairro.

Abstraindo-se das relações empregatícias, a maioria dos entrevistados constata que existem poucas articulações sociais com os moradores dos condomínios vizinhos de classe média e alta. Ao mesmo tempo, eles não visualizam os espaços públicos, como a avenida Centenário e as praias da Barra e Ondina, como localidades capazes de promover acesso compartilhado e igualitário às estruturas de lazer e de fomentar as articulações entre os grupos socialmente distantes. Fortes tendências de segmentação também foram enfatizadas na menção ao uso das estruturas de playground distribuídas ao longo da avenida Centenário. Mesmo que o espaço seja acessível para os moradores do Calabar e dos bairros vizinhos, os entrevistados comentaram que os habitantes da Barra, Graça e Ondina não querem que suas crianças interajam com as crianças do Calabar.

Dimensão social

Deslocando o foco para a dimensão social, convém ressaltar que não se discerne uma tendência generalizada de confinamento dos vínculos sociais dos entrevistados ao contexto local, que, em alinhamento com o postulado de Wilson, teria conferido maior grau de localismo à estrutura das suas redes sociais. Ao contrário, observa-se uma abertura expressiva dessas redes para os bairros vizinhos do Calabar, dinâmica que se traduz em maior dispersão territorial e diversidade interna das redes sociais dos entrevistados. Essa estrutura incrementa as chances de obter informações vitais sobre vagas de emprego e facilita o acesso a recursos (não)materiais no entorno geográfico.

O maior grau de abertura pode ser corroborado particularmente entre os entrevistados que precisam se deslocar diariamente para os bairros vizinhos em uma trajetória casa-estudo ou casa-trabalho. Entretanto, uma estrutura mais encapsulada das redes sociais pode ser confirmada no caso dos entrevistados atualmente desempregados, das pessoas idosas ou dos atuantes no mercado informal local.

O acesso a informações sobre vagas de emprego se vê estreitamente condicionado ao contato íntimo e frequente com pessoas-chave que já trabalham nos condomínios vizinhos, destacando-se a função pivotal do porteiro, com frequência procurado pelos moradores dos condomínios quando surgem demandas por faxineiras, eletricistas, jardineiros, etc., conforme demonstra a citação seguinte:

Meu irmão trabalha neste condomínio ao lado da rua. Ele é porteiro e ganha um bom dinheiro. Mas o mais importante é que ele me conseguiu um emprego como jardineiro no mesmo condomínio e arrumou outro para meu filho como eletricista. É tudo questão de contato e quase todos os moradores destes condomínios precisam de algum serviço barato a alguém em que podem confiar. (Alberto, 43 anos, jardineiro)

Ao mesmo tempo, os bonding ties tornam-se relevantes na intermediação para trabalhos no mercado informal oferecidos no bairro. Pode-se inferir, portanto, que é precisamente o grupo de entrevistados com maior articulação em meio às esferas de sociabilidade primárias, como família, amigos e vizinhos, que se beneficia da proximidade do Calabar com aqueles condomínios e da oferta local de empregos no setor do mercado informal. Também se torna evidente que os bridging e bonding ties trazem vantagens exclusivamente para a integração econômica das pessoas com um nível de educação mais baixo, enquanto aquelas com maior nível de educação enfrentam problemas mais incisivos de discriminação, conforme será demonstrado adiante.

Com respeito à mobilização das redes pessoais para acessar recursos (não)materiais, esboça-se um deslocamento dentro do sistema primário de suporte e reciprocidade. Segundo as entrevistas, essa dinâmica resulta da perda de confiança no vizinho, da forte influência do tráfico de drogas nas relações sociais em tempos anteriores e da difusão de um estilo de vida mais individualista que mina a capacidade de engajamento pelo bem-estar coletivo da comunidade.

Esse enfraquecimento da confiança no vizinho foi parcialmente recompensado pela participação ativa do indivíduo em redes associativas, como igrejas evangélicas e associações de moradores, que proporcionam ampla gama de recursos (não)materiais a seus membros, como a concessão de microcréditos, a distribuição de cestas básicas e o suporte emocional. Avaliando a capacidade do sistema primário de suporte e reciprocidade de promover tipos distintos de suporte, como o cuidado de crianças, o empréstimo de alimentos básicos, a vigilância da casa do vizinho e o suporte emocional, corrobora-se a mesma tendência de enfraquecimento da solidariedade entre os vizinhos que, em compensação, fortaleceu as redes tecidas entre os membros da família e entre amigos. Uma dinâmica similar atestando a perda de confiança no vizinho evidencia-se quando se perguntou aos entrevistados com quem geralmente passam seu tempo de lazer. Nesse caso, a maioria apontou o grupo de parentes e amigos.

Examinando a capacidade de controle social informal da comunidade com base no índice sintético de eficácia coletiva elaborado por Sampson (2012SAMPSON, Robert J. Chicago and the enduring neighborhood effect. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.), observa-se que, dentro do indicador “expectativas compartilhadas de controle social informal”, persiste a percepção da influência negativa de grupos de pares e modelos de referência afiliados ao tráfico de drogas no comportamento dos grupos mais jovens. Mecanismos de controle social informal e de manutenção da ordem pública englobam o monitoramento de crianças e adolescentes infratores e, caso exista maior grau de intimidade, a sanção de comportamentos infratores. Globalmente, existe uma forte disposição de intervir de forma corretiva quando crianças e adolescentes estão “à toa” na rua em vez de estarem na escola ou quando desrespeitam adultos ou pessoas idosas na via pública.

Contudo, cabe ressalvar que a disposição voluntária de intervir em prol do bem-estar coletivo da comunidade depende largamente da atitude e do comportamento dos infratores menores e dos pais. A maioria dos entrevistados confirmou não interferir quando os pais são conhecidos por não aprovar a intromissão corretiva por terceiros. A mesma observação foi corroborada em situações em que as crianças ou adolescentes desrespeitaram adultos ou pessoas idosas na via pública.

A maioria dos entrevistados afirma não interferir em assuntos considerados privados - como briga entre casais e parentes - diante do medo de retaliação ou do receio da deteriorização dos laços vicinais. No entanto, argumentam que não hesitariam em fazê-lo em defesa da manutenção da escola, do posto de saúde e do posto policial no Calabar, mesmo controlando o grau de participação em redes associativas. Examinando o “grau de coesão e confiança social” no bairro, observa-se forte concordância na resposta “As pessoas aqui se dispõem a ajudar seus vizinhos”.

Ainda assim, parte dos entrevistados ressalva que a credibilidade e a confiança nos vizinhos erodiram ao longo dos últimos anos em decorrência da emergência de um estilo mais individualista de vida e também de intrigas e inveja, que, em alguns casos, motivaram roubos de bens materiais praticados pelo próprio vizinho.

Os entrevistados enfatizaram o grande progresso em termos de combate ao crime organizado atribuído à implementação da Base Comunitária de Segurança (BCS) no Calabar, que restaurou a confiança entre os vizinhos e promoveu a revalorização da imagem do bairro tanto na percepção subjetiva dos moradores como na mídia televisiva. Por unanimidade, os entrevistados declararam não sofrer mais nenhuma das formas de violência que costumavam assolar a população, como tentativa de homicídio, acerto de contas entre facções rivais e brigas com armas de fogo.

A implementação da BCS em 2011 também diminuiu a influência de grupos de pares e modelos de referência social afiliados ao tráfico de drogas no bairro, particularmente mediante o oferecimento de uma gama diversificada de atividades para os adolescentes pela própria polícia comunitária, assim como de estratégias de combate preventivo ao crime desenvolvidas junto aos líderes comunitários, às igrejas evangélicas e às numerosas instituições e associações, como a Biblioteca e a Escola Livre.

Segundo os depoimentos, a situação de segurança atual contrasta substancialmente com um período anterior, quando o tráfico de drogas e a presença de duas facções criminosas rivais exerceram forte influência no comportamento sobretudo das crianças e dos adolescentes do bairro. Junto ao engajamento das distintas instituições radicadas no bairro, os entrevistados perceberam como altamente positivo o maior contato com pessoas não locais em suas trajetórias casa-trabalho e casa-estudos, ao mesmo tempo que a maior exposição a grupos de pares não locais, principalmente no ambiente escolar, foi avaliada como importante em razão da disseminação de modelos de referência social que valorizam a educação como caminho primordial para uma mobilidade socioeconômica ascendente.

Dimensão simbólica

Analisando a dimensão simbólica do efeito-território, comprovam-se fortes evidências de estigmatização territorial dos entrevistados, apesar das substanciais melhorias em termos de segurança comunitária e dos grandes esforços empreendidos por sua população para lutar contra a imagem (televisiva) de um bairro acometido pelo tráfico de drogas. Diante da perpetuação desses estigmas, os entrevistados recorrem a estratégias distintas para dissociar-se de uma imagem midiática do bairro como bastião do tráfico de drogas e da violência: distinguir o trabalhador “honesto” e “ambicioso” do bairro, que se esforça para alcançar um status socioeconômico maior, e o residente “ocioso”, que vive do programa assistencial Bolsa Família.

Convém salientar que essa imagem negativa, reproduzida principalmente pela mídia televisiva, contrasta de maneira significativa com a autopercepção dos entrevistados sobre sua vida dentro do bairro. Segundo os depoimentos, a inserção estratégica do Calabar em uma das regiões economicamente mais dinâmicas de Salvador, em conjunção com a vitalidade do sistema de suporte primário e a longa trajetória de mobilização coletiva por intermédio das instituições e associações locais, explica a avaliação sumamente positiva das condições de vida ali existentes. Em várias ocasiões, os entrevistados ressaltaram sua localização privilegiada com os bairros mais periféricos de Salvador, nos quais o acesso ao mercado de trabalho, ao transporte público e aos serviços urbanos se vê dificultado em virtude da distância geográfica em relação às regiões centrais, que são as que abrigam a maioria das oportunidades empregatícias e os serviços urbanos públicos de alta qualidade.

No que tange ao impacto do estigma territorial na procura de emprego, registra-se grande heterogeneidade entre os casos analisados. Por um lado, a persistência desses estigmas é percebida por alguns dos entrevistados como impedimento para a inserção no mercado de trabalho, embora admitam ter registrado uma melhoria substancial da imagem do Calabar. Outros entrevistados, porém, declararam que ocorre justamente o contrário: devido à proximidade e à familiaridade com os moradores do Calabar, quem vive nos condomínios localizados na Barra, Ondina, Federação, Graça e Jardim Apipema prefere contratar os moradores do Calabar. Um terceiro grupo afirma que os moradores dos condomínios preferem empregar pessoas de outros bairros em função da falta de confiança e do grande número de potenciais funcionários que supera largamente a demanda em serviços pessoais; essa situação permite recrutar seus empregados entre aqueles que vivem em bairros considerados mais seguros.

Com respeito aos mecanismos de discriminação institucional, a maioria dos entrevistados afirmou que o papel da polícia mudou radicalmente de uma estratégia de repressão violenta para combater o tráfico de drogas dentro do Calabar para uma estratégia de polícia de proximidade, que, ao mesmo tempo que protege as principais vias de acesso, os espaços públicos e a entrada dos condomínios dos bairros vizinhos, não incorre mais nas abordagens arbitrárias para reprimir o crime. De modo geral, os entrevistados não perceberam a proximidade geográfica dos condomínios de classe média e alta como constrangimento ou injustiça social; ao contrário, a maioria assevera que o alto padrão de vida dos seus moradores resulta de grandes esforços pessoais e do investimento em educação, como demonstra a citação seguinte:

Olha, eles não moram nestes apartamentos chiques por nada. Claro, alguns devem ter herdado estes apartamentos ou moram com os pais. Mas eu acho que eles moram lá porque eles trabalhavam duro e estudavam longos anos, bom, eles se esforçaram, entendeu? (Joana, 21 anos, desempregada)

Discussão

A primeira questão levantada na introdução deste trabalho se propôs investigar os mecanismos e as causalidades que explicam o impacto do efeito-território nas condições de vida dos moradores do Calabar. Discutem-se nesta seção sete mecanismos distintos que promovem um entendimento mais efetivo do efeito-território nesse bairro, inferidos com base nos resultados obtidos.

O primeiro mecanismo que ajuda a explicar o fortalecimento do grau de organização social e da capacidade de controle social informal na comunidade remete à implementação da BCS em 2011. Com essa medida se restaurou a segurança pública no bairro, situação que no seu corolário dinamizou o comércio local e a vida associativa durante a noite. Cabe ressaltar que se registra uma diminuição substancial da influência dos grupos de pares e modelos de referência afiliados ao tráfico de drogas tanto no ambiente escolar como na própria vizinhança, principalmente como resultado da atuação preventiva da BCS e do engajamento das instituições públicas e privadas radicadas no bairro e também dos líderes comunitários. A implantação da BCS promoveu a revalorização da imagem do Calabar e fortaleceu a autoestima dos moradores - várias pessoas que deixaram o bairro em função da atuação dos grupos criminosos teriam demonstrado o interesse de voltar após a recuperação da segurança. As alterações positivas na imagem do Calabar posteriores à implementação da BCS se traduziram igualmente na valorização dos apartamentos localizados nas imediações do bairro.

O segundo mecanismo positivo remete ao alto grau de mobilização coletiva da comunidade no passado em questões que tangenciam a vida cotidiana da população, como o acesso aos serviços urbanos básicos e à segurança pública. A trajetória histórica relembrada frequentemente pelos entrevistados ilustra como uma ou várias pessoas-chave dentro do bairro se engajaram por meio das redes associativas e políticas com o propósito de reivindicar melhorias para o bairro nas décadas de 1980 e 1990. Essa dinâmica deu um impulso significativo para a participação em organizações comunitárias que se inscreviam na luta pelo direito de moradia e por melhorias infraestruturais no bairro. Contudo, os entrevistados afirmam que essa capacidade de intervir em favor do bem-estar coletivo da comunidade se enfraqueceu nos últimos vinte anos.

O terceiro mecanismo reporta-se ao argumento frequentemente levantado pelos entrevistados de que as desvantagens estruturais, como altas taxas de desemprego e de pobreza, assim como deficiências em termos de serviços públicos, podem ser igualmente observadas em outros bairros de Salvador, com a diferença de que estes, não raro, também sofrem com a forte influência do tráfico de drogas na violência urbana, situação agravada pelo acesso dificultado ao mercado de trabalho e ao transporte público. Na percepção dos entrevistados, a estratégia de relativização contribuiu para a valorização do Calabar em comparação com outros bairros pobres.

O quarto mecanismo indica a forte orientação extralocal dos moradores do Calabar para os bairros localizados na sua circunferência durante a trajetória diária casa-trabalho, casa-escola e casa-lazer. Nesse contexto, convém levar em consideração o tamanho reduzido da sua população e a escassez de determinados serviços urbanos no local, fato que incrementa a probabilidade de articulação com não residentes nas esferas de trabalho e de lazer, pois existem amplas possibilidade de participação socicioeconômica no seu entorno geográfico. Essa forte orientação extralocal impede o confinamento social dos moradores ao contexto local dentro dos padrões de sociabilidade e dos processos de socialização vigentes.

Ao lado dos mecanismos que explicam um efeito-território “positivo” no Calabar, cabe distinguir outros três, totalizando os sete mencionados, que impactam negativamente as condições de vida dos seus moradores.

O primeiro deles consiste na persistência dos estigmas territoriais associados à imagem antiga do Calabar como bastião do tráfico de drogas. Essa visão acarreta uma série de implicações negativas para a inserção de seus moradores no mercado laboral e para as trocas de sociabilidade entre os grupos socialmente distantes.

O segundo mecanismo reporta-se às alterações produzidas no âmago do sistema primário de suporte e reciprocidade, uma dinâmica frequentemente interpretada como resultado da crescente desconfiança e do aumento de conflitos entre os vizinhos. Igualmente, os entrevistados apontaram uma visível apatia da geração mais jovem na participação associativa e política em processos decisórios que tangenciam a população como coletivo que mina a capacidade da comunidade de resolver problemas e conflitos de interesse da população em geral.

O terceiro mecanismo atrela-se ao medo de desapropriação da população do Calabar. Tendências de uma expulsão “branda”, resultante da compra de terrenos e casas, já foram registradas por alguns entrevistados que vivem nas áreas limítrofes do Calabar, com localização próxima ao bairro de Ondina. Seguindo esse raciocínio, uma vez que certa proporção populacional do Calabar haja cedido seu terreno para o setor imobiliário, a valorização imobiliária ali se incrementará, causando subsequentemente a expulsão gradativa da população remanescente, em face de sua incapacidade de arcar com os elevados custos de vida no bairro.

No que tange à segunda questão, relativa a evidências empíricas que comprovem a existência de articulações entre os grupos socialmente distantes abstraindo do vínculo empregatício, o trabalho assinala a ambiguidade entre integração econômica e evitamento social.

A complexa relação de interdependência funcional oferece vantagens consideráveis para a integração econômica dos entrevistados. Contudo, essa relação pode sofrer de reversos significativos em virtude

  1. da diminuição da demanda de serviços pessoais em decorrência do declínio do poder econômico da classe média. Diante da severa crise econômica que acomete o Brasil, essa dinâmica foi corroborada por vários entrevistados;

  2. das alterações nas estratégias de recrutamento dos funcionários que se orientam crescentemente pelo fator segurança e imagem do bairro de residência dos empregados em detrimento do fator proximidade geográfica. Dado que confiança e intimidade representam dois requerimentos cruciais para a contratação dos serviços pessoais realizados nos apartamentos dos condomínios vizinhos, o primeiro fator ganha relevância se comparado com a economia obtida com o não pagamento das despesas de deslocamento dos funcionários para seu local de trabalho.

Convém enfatizar que a probabilidade de integração econômica do morador do Calabar se vê estreitamente condicionada ao padrão de uso funcional de cada bairro localizado em sua circunferência. Nesse sentido, as articulações são escassas em bairros de uso exclusivamente residencial, como em Ondina, enquanto os bairros Barra e Graça, de uso misto do espaço urbano, ou seja, residencial, comercial e público, proporcionam mais oportunidades de integração econômica, em particular com a venda informal de frutas, verduras e lanches, como já mencionado.

Quanto ao evitamento social, cabe assinalar a persistência de estigmas territoriais que decorrem sobretudo da falta de contato entre os grupos socialmente distantes, fato que dificulta a desconstrução de preconceitos e a reversão da antiga imagem negativa do bairro como bastião do tráfico de drogas. O evitamento do outro também se vê agravado pela situação habitacional dos condomínios de classe média e alta, considerando os dispositivos de segurança e de controle que restringem o acesso a moradores ou funcionários. A existência de barreiras físicas, observada no caso desses condomínios, contrasta com o Calabar, onde as fronteiras assumem um caráter essencialmente simbólico, ou seja, não existem linhas de separação que impeçam a entrada no bairro de não moradores.

Nos espaços públicos compartilhados por ambos os grupos sociais, o evitamento social e a diferenciação de classe assumem contornos próprios, como o uso da academia livre em horários distintos e as diferenças referentes ao uso de vestimentas; entretanto, as praias distribuídas ao longo da orla da Barra e Ondina são frequentadas por ambos os grupos sociais e sem maiores diferenciações de classe. O evitamento social torna-se particularmente evidente no tocante ao acesso segmentado aos hospitais da rede privada e ao sistema de educação. As escolas públicas são predominantemente frequentadas pelas camadas baixas - neste caso, a população jovem do Calabar -, ao passo que crianças e adolescentes moradores dos bairros vizinhos de classe média e alta são atendidos pelas escolas privadas.

Considerações finais

Neste trabalho, objetivou-se examinar o impacto do contexto sociorresidencial nas condições de vida de trinta habitantes do bairro de Calabar. Em contraste com uma aproximação quantitativa ao efeito-território assentada em dados censitários, propôs-se identificar seus mecanismos operacionais com base em um desenho metodológico qualitativo.

A transposição desse conceito de origem estadunidense para o contexto socioespacial brasileiro proporcionou valiosos insights sobre os processos que explicam a reprodução das desigualdades sociais na escala do bairro. O estudo demonstrou uma particularidade da configuração social da população do Calabar, qual seja: a estabilidade das redes sociais em conjunção com uma longa história de mobilização coletiva por intermédio das redes associativas que lograram atenuar o efeito negativo da concentração de desvantagens estruturais no bairro. Em contraste com o contexto estadunidense, as redes de sociabilidade primárias tornam-se cruciais para promover a integração do indivíduo no mercado laboral (informal), diante da forte demanda dos moradores dos condomínios vizinhos por serviços pessoais e bens perecíveis.

A pesquisa promoveu um entendimento mais aprofundado das causalidades entre as três dimensões do efeito-território, como, por exemplo, o impacto positivo da implementação da BCS (dimensão material) na retomada da confiança entre vizinhos (dimensão social), na capacidade de controle social informal (dimensão social), assim como na percepção subjetiva do indivíduo (dimensão simbólica). No que diz respeito às causalidades entre as dimensões social e simbólica, cabe mencionar, a título de exemplo, o alto grau de coesão social, solidariedade e intimidade característicos das relações sociais e de suas funções positivas para a busca de emprego, o acesso a recursos (não)materiais e o fortalecimento da identidade territorial.

Examinando a importância da proximidade geográfica entre os grupos socialmente distantes, destacam-se cinco fatores:

  1. a desvalorização cultural dos assentamentos informais do Calabar em contraste com seu entorno geográfico imediato;

  2. as deficiências qualitativas que permanecem nas condições habitacionais, na infraestrutura viária dentro do bairro e no acesso a serviços urbanos no local;

  3. a persistência de uma imagem essencialmente negativa do bairro abrigando uma população potencialmente perigosa, apesar das melhorias na segurança pública;

  4. as vantagens locacionais advindas da proximidade com as oportunidades empregatícias particularmente nos condomínios fechados, que não requerem maior qualificação profissional e educional;

  5. o evitamento social que se manifesta nas articulações não empregatícias.

Cabe ressaltar, como inferência, que a hipótese de um ambiente de oportunidades enriquecedoras deve passar por um escrutínio cuidadoso, já que a integração econômica dos habitantes, por ocorrer quase exclusivamente por meio de serviços pessoais de baixa remuneração, não cria pontes entre as distâncias sociais nem impede a discriminação por localização.

Neste estudo, pleiteia-se a integração de uma leitura contextual da pobreza em modelos explicativos que examinem os mecanismos de reprodução das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras. Essa aproximação contrasta com uma leitura da pobreza centrada no indivíduo que atribui a reprodução das desigualdades sociais exclusivamente à falta de ambição pessoal ou à incapacidade de adaptar-se ao sistema de ascensão da classe média (MURRAY, 2015MURRAY, Charles. Losing ground: American social policy, 1950-1980. Nova York: Basic Books , 2015.).

Assim, a escassez de pesquisas na sociologia brasileira sobre o efeito-território pode ser considerada sintomática do declínio de influência de uma aproximação mais estruturalista à pobreza urbana, o que explicaria a crescente popularidade de argumentos (políticos) de que a mobilidade socioeconômica ascendente do individuo depende exclusivamente do desempenho escolar e dos esforços pessoais de integrar-se ao mercado de trabalho.

Considerando este argumento, cabe indagar se o contexto sociorresidencial se torna portanto irrelevante para os estudos urbanos. Enquanto os desenhos metodológicos visando controlar estatisticamente as variáveis intervenientes na escala do indivíduo tendem a reificar a realidade social e a aproximação quantitativa falha em atentar pela heterogeneidade do efeito-território, a análise do contexto sociorresidencial pode proporcionar valiosos insights sobre os mecanismos e processos operando na escala do bairro.

Pesquisas qualitativas centradas no bairro como dimensão analítica - considerada instância intermediária entre estrutura e agência - podem se tornar crescentemente relevantes para as intervenções urbanas in situ, buscando promover melhorias para a população pobre na escala do bairro, já que estas permitem identificar ambas as deficiências estruturais que se concentram nesses locais no que se refere aos recursos socioinstitucionais suscetíveis de mitigar seu efeito.

Outrossim, o estudo corrobora a ideia de que as causalidades entre estrutura e agência não podem ser omitidas nos desenhos metodológicos: de um lado, os recursos materiais e socioinstitucionais do bairro, a qualidade das suas fronteiras físicas em relação aos bairros vizinhos de classe média e alta, assim como a composição socioeconômica da sua população; do outro, as variáveis relevantes que se reportam à escala do indivíduo, como renda média familiar, status ocupacional, nível de educação, ciclo de vida, mas também os padrões de sociabilidade e a autopercepção.

Diante das causalidades que perpassam as duas dimensões analíticas, a análise do efeito-território necessariamente tem que levar em consideração a heterogeneidade e o caráter não linear das relações causais entre o contexto sociorresidencial e as condições de vida do indivíduo. No seu estudo etnográfico realizado no bairro pobre Villa Victoria, Boston(Massachusetts, Small (2004SMALL, Mario L. Villa Victoria: the transformation of social capital in a Boston barrio. Chicago: University of Chicago Press, 2004.) critica os conceitos de isolamento social e de desorganização social fortemente enraizados na sociologia estadunidense, visto que falham no reconhecimento da heterogeneidade do perfil socioeconômico da população local ao mesmo tempo que arriscam reforçar sua estigmatização territorial.

Nessa linha de argumentação, o presente estudo salienta que a hipótese do isolamento social, considerado neste contexto como o resultado conjugado entre a concentração espacial de pobreza e a segregação residencial, deve ser submetida a uma análise crítica se transposta para o contexto socioespacial brasileiro. Não se comprovou nem a ausência de referências sociais da classe média nem a deprivação dos recursos socioinstitucionais na escala do bairro; ao contrário, atestamos um forte engajamento dos moradores em prol do bem-estar da comunidade, ainda que recentemente se verificasse um declínio dessa capacidade.

Apesar das estruturas de segregação residencial, as articulações entre os grupos socialmente distantes são favorecidas pelo fator proximidade geográfica e seguem uma complexa lógica entre demanda e oferta. Todavia, o acesso segmentado a escolas, a hospitais e a atividades de lazer reafirma as hierarquias sociais historicamente consolidadas e cria obstáculos à desconstrução de preconceitos e estigmas territoriais.

Por último, o estudo confirmou que as estratégias desenvolvidas no âmago da família para ganhar acesso a determinados recursos (não)materiais são estreitamente condicionadas pelas estruturas de oportunidades, no sentido do conceito de Activos, Vulnerabilidade y Estructuras de Oportunidades, desenvolvido por Kaztman. Desse modo, os mecanismos e processos identificados neste estudo precisam ser inseridos nas estruturas mais amplas, quais sejam: o sistema de mercado laboral, a arquitetura das políticas sociais e as transformações societais que se produziram nas últimas duas décadas.

A mesma observação torna-se pertinente se forem consideradas as potenciais contribuições da vertente dos estudos sobre o efeito-território para a agenda das políticas públicas no contexto brasileiro. A despeito da importância das políticas de intervenção in situ, capazes de ampliar as estruturas de oportunidades na escala do indivíduo ou do bairro, o confinamento da questão social à sua dimensão espacial tende a ofuscar a visão para os três fatores principais involucrados na reprodução das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras, a saber: as expressivas disparidades socioeconômicas, que frequentemente se coadunam a partir de linhas de raça/etnia, com suas diversas manifestações no espaço urbano; a segmentação social; e a residualização das políticas sociais.

Referências bibliográficas

  • ANDRADE, Luciana T.; SILVEIRA, Leonardo S. Efeito-território. Explorações em torno de um conceito sociológico. Civitas, v. 13, n. 2, p. 381-402. 2013.
  • ATKINSON, Rowland; KINTREA, Keith. Area effects: what do they mean for British housing and regeneration policy? European Journal of Housing Research, v. 2, n. 2, p. 147-66. 2002.
  • BRIGGS, Xavier de S. Brown Kids in White Suburbs: Housing Mobility and the Many Faces of Social Capital. Housing Policy Debate, v. 9, n. 1, p. 177-221. 1998.
  • CASTEL, Robert. Les métamorphoses de la question sociale: une chronique du salariat Paris: Fayard, 1995.
  • CONDER; INFORMS. Painel de informações: dados socioeconômicos do município de Salvador por bairros e prefeituras-bairro/Sistema de Informações Geográficas Urbanas do Estado da Bahia Salvador: Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Sistema de Informações Geográficas Urbanas do Estado da Bahia, 2016.
  • GANS, Herbert. Culture and class in the study of poverty: an approach to anti-poverty research. In: MOYNIHAN, David Patrick (Org.). On understanding poverty: perspectives from the social sciences Nova York: Basic Books, p. 229-59. 1969.
  • GRAIF, Corina; GLADFELTER, Andrew S.; MATTHEWS, Stephan A. Urban poverty and neighborhood effects on crime: incorporating spatial and network perspectives. Sociology Compass, v. 8-9, p 1140-155, 2014.
  • HANNERZ, Ulf. Soulside: inquiries into ghetto culture and community Nova York: Columbia University Press, 1969.
  • HÄUßERMANN, Hartmut. Armut in der Großstadt. Die Stadtstruktur verstärkt soziale Informationen zur Raumentwicklung, v. 3 e 4, p. 43-157. 2003.
  • KAZTMAN, Ruben. Activos y estructura de oportunidades: estudio sobre las raíces de la vulnerabilidad social en Uruguay Montevidéu: Oficina de la Cepal en Montevideo, 1999.
  • LEWIS, Oscar. The culture of poverty. In: MOYNIHAN, David Patrick (Org.). On understanding poverty: perspectives from the social sciences Nova York: Basic Books , p. 187-220. 1969.
  • MARQUES, Eduardo C. L. Redes sociais, segregação e pobreza São Paulo: Editora da Unesp, 2010.
  • MASSEY, Douglas S.; DENTON, Nancy. American apartheid: segregation and the making of the underclass Nova York: Harvard University Press, 1993.
  • MURRAY, Charles. Losing ground: American social policy, 1950-1980 Nova York: Basic Books , 2015.
  • MUSTERD, Sako; MARCINCZAK, Szymon; VAN HAM, Maarten; TAMMARU, Tiit. Socio-economic segregation in European capital cities: increasing separation between poor and rich Bonn: Institute for the Study of Labor, 2015.
  • NIESZERY, Andrea. Soziale Segregation, Quartierseffekte und Quartierspolitik. Ein deutsch-französischer Vergleich 2013. 343 F. Tese (Doutorado em Geografia). Mathematisch-Naturwissenschaftliche Fakultät II. Humboldt-Universität zu Berlin, Berlin 2013
  • PAUGAM, Serge. Die elementaren Formen der Armut Hamburgo: HIS. 2008.
  • PNUD. Atlas do desenvolvimento humano no Brasil Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/ Acesso em: 13 jan. 2018.
    » http://www.atlasbrasil.org.br/2013/
  • PREFEITURA DE SALVADOR. SIM - Sistema de Informação Municipal de Salvador Disponível em: http://www.sim.salvador.ba.gov.br Acesso em: 13 jan. 2018.
    » http://www.sim.salvador.ba.gov.br
  • RIBEIRO, L. C. de Q.; KOSLINSKI, M.C. Efeito metrópole e acesso às oportunidades educacionais. Revista Eure, v. 35, n. 106, p. 101-29. 2009.
  • RIBEIRO, L. C. de Q.; LAGO, Luciana C. A oposição favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 1, p. 144-54. 2001.
  • ROBERTS, Bryan R. Globalization and Latin American Cities. International Journal of Urban and Regional Reserach, Hoboken, N.J., v. 29, n. 1, p. 110-23. 2005.
  • SAMPSON, Robert J. Chicago and the enduring neighborhood effect Chicago: The University of Chicago Press, 2012.
  • SMALL, Mario L. Villa Victoria: the transformation of social capital in a Boston barrio Chicago: University of Chicago Press, 2004.
  • SMALL, Mario L.; NEWMAN, Katherine. Urban poverty after the truly disadvantaged: the rediscovery of the family, the neighborhood, and culture. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 27, p. 23-45, 2001.
  • TELLES, Edward E. Residencial segregation by skin color in Brazil. American Sociological Review, v. 57, n. 2, p. 186-97. 1994.
  • TORRES, Haroldo da Gama et al. Pobreza e espaço: padrões de segregação em São Paulo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 47, p. 1-32, 2003.
  • WILSON, William J. The truly disadvantaged: the inner-city, the underclass and public policy Chicago: University of Chicago Press , 1987.
  • 1
    Este artigo foi realizado com bolsa de doutorado da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
  • 1
    This article was funded by a PhD scholarship provided by CAPES.
  • 2
    Unless otherwise stated, the socio-demographic data were provided by the Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER/INFORMSCONDER; INFORMS. Painel de informações: dados socioeconômicos do município de Salvador por bairros e prefeituras-bairro/Sistema de Informações Geográficas Urbanas do Estado da Bahia. Salvador: Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Sistema de Informações Geográficas Urbanas do Estado da Bahia, 2016.) and refer exclusively to the neighborhood of Calabar.
  • 3
    Values in Real (BRL) - the Brazilian currency

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jan 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2018
  • Aceito
    30 Nov 2018
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - ANPUR FAU Cidade Universitária, Rua do Lago, 876, CEP: 05508-080, São Paulo, SP - Brasil, Tel: (31) 3409-7157 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@anpur.org.br