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Rituais públicos com intervenção de Juan de Albuquerque, primeiro bispo de Goa residente na Ásia. Linguagens de transferência ou de acomodação?1 1 Este artigo foi redigido no contexto do projeto PTDC/HAR-HIS/28719/2017, intitulado Religião, Administração e Justiça Eclesiástica no Império Português (1514-1750) - ReligionAJE -, aprovado no âmbito do concurso para financiamento de projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em todos os domínios científicos (2017), cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), por meio do COMPETE, Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI), e por fundos nacionais por meio da FCT, Fundação para a Ciência e Tecnologia.

RESUMO

Uma das estratégias adotadas pelo franciscano Juan de Albuquerque, primeiro bispo da Índia a residir na Ásia, ao desembarcar em Goa em 1538, foi a realização e a intervenção em rituais públicos, a exemplo da sagração da catedral, dos batismos de importantes personagens locais, das bençãos de armadas portuguesas que partiam para a guerra, da entronização de governadores ou vice-reis e das práticas de exercício de justiça eclesiástica. Este artigo propõe o mapeamento e a reconstituição desses eventos a partir da cronística e de diversos relatos coevos de quem participou nesses rituais. Defendemos que os modelos que conformavam estas cerimônias tinham um padrão que replicava na Ásia os rituais europeus. Neste estudo avaliar-se-á de que modo se conformaram com o mundo que, para os portugueses ali instalados, era novo e diferente: Goa nos anos 40-50 do século XVI.

Palavras-chave:
Rituais; Diocese de Goa; Juan de Albuquerque

Abstract

One of the strategies adopted by the Franciscan Juan de Albuquerque, the first bishop of India to live in Asia, when he landed in Goa in 1538, was to perform and intervene in public rituals, such as the sacredness of the cathedral, the baptisms of important local figures, the blessing of the Portuguese armies leaving for war, the enthronement of governors or viceroys and the practices of ecclesiastical justice. This article offers the mapping and reconstitution of these events based on a large array of primary and secondary sources. We argue that the models that conformed these ceremonies had a pattern that replicated in Asia the European rituals. In this study we will evaluate how those rituals conformed to the world that, for the Portuguese settled there, was new and different: Goa in the 40s-50s of the sixteenth century.

Keywords:
Rituals; Goa Diocese; Juan de Albuquerque

INTRODUÇÃO

O franciscano Juan de Albuquerque foi o primeiro bispo católico residente na Ásia2 2 Adoto a grafia do nome do bispo que habitualmente tem sido seguida e que, se assim se pode dizer, se consagrou institucionalmente. Porém, deve-se notar que o nome de família do bispo é retirado do topônimo do local onde nasceu. Ora, a localidade do nascimento do prelado foi Alburquerque, e não Albuquerque. . Ali chegou em setembro de 1538 e lá morreu em fevereiro de 1553, à frente da diocese de Goa. Durante quase 15 anos foi o protagonista principal da construção de uma igreja diocesana naquele disperso e imenso território, com presença efetiva em espaços costeiros desde a África Oriental até Malaca. Em conexão com o que, na mesma altura, outros bispos ibéricos desenhavam na América, onde havia presença e domínio espanhol, criou condições para a instalação de uma igreja visível. Esta possuía estruturas e agentes próprios, procedimentos e uma cultura de atuação inspirados no modelo de organização das dioceses portuguesas. No seu governo, teve que enfrentar um território gigantesco, a escassez de recursos humanos, a reduzidíssima autonomia financeira provocada pelo padroado da Coroa e, sobretudo, o colossal desafio de difundir uma nova crença religiosa entre populações com línguas, crenças e culturas muito diferentes entre si (Xavier, 2008XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: Poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa: ICS, 2008., pp. 105-117; Paiva, 2021aPAIVA, José Pedro. The First Catholic Diocese in Asia and the Spread of Catholicism: Juan de Albuquerque, Bishop of Goa, 1538-1553. Church History, v. 90, n. 4, pp. 776-798, 2021a.).

Uma das dinâmicas que utilizou foi a promoção ou a intervenção num variado conjunto de rituais públicos3 3 Adoto uma noção ampla de ritual, que não restringe o conceito a cerimoniais de natureza estritamente religiosa. Richard Trexler, na abertura de um notável estudo sobre ritualidade urbana, definiu-o assim: “By ritual I shall mean formal behaviour, those verbal and bodily actions of humans that, in specific contexts of space and time, become relatively fixed into those recognizable social and cultural deposits we call behavioural forms” (Trexler, 1980, p. XXIV). . Estes foram um dos instrumentos integrantes das dinâmicas de disseminação e imposição do cristianismo, além de terem servido como estratégia de afirmação do poder episcopal no território, tanto face a outros agentes portugueses como perante populações locais.

Tal como Pierre Bourdieu (1982BOURDIEU, Pierre. Les rites comme actes d’institution. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 43, pp. 58-63, 1982., pp. 56-59), entendo que os rituais têm uma crucial dimensão social. Mais do que uma função liminar, isto é, de se destinarem a assinalar a passagem entre dois estados, conforme as ideias de A. Van Gennep (1981VAN GENNEP, Arnold. Les rites de passage. Paris: Editions A. J. Picard, 1981.), eles servem para instituir ou consagrar uma diferença utilizando linguagens eminentemente simbólicas. Os ritos funcionam, portanto, como atos de instituição ou de consagração, que visam dar a conhecer e a reconhecer uma diferença. Por meio do rito, essa diferença é instituída e reconhecida pelo agente investido e por todos os outros que nele participam ou o observam.

Por outro lado, também é imperioso clarificar que os rituais não têm formas de recepção ou apropriação monolíticas/únicas. Estes atos continham elementos passíveis de uma plurisignificação de sentidos, em função dos gestos, dos códigos estéticos, dos elementos retóricos, dos referentes sociais que neles se produziam e, naturalmente, de acordo com as lógicas interpretativas e as referências culturais, religiosas, políticas e do lugar social dos sujeitos que os absorviam. Um mesmo ritual pode propiciar apropriações plurímodas por parte das diversas instituições e dos indivíduos que nele tomavam parte. Conforme lembrou Vitor Turner, um ritual, uma cerimônia, tal como um texto, uma obra de arte plástica ou um filme, estão sujeitos a uma multiplicidade de usos e significações4 4 De acordo com o antropólogo escocês, “a single symbol in fact, represents many things at the same time: it is multivocal, not univocal” (Turner, 1969, p. 48). .

Este artigo, a partir de relatos oriundos da cronística e de registros coevos de quem participou nesses rituais, incluindo cartas do próprio Juan de Albuquerque, propõe um mapeamento e a reconstituição desse universo.

A hipótese de que se parte é a de que os modelos que conformavam estas cerimônias tinham um padrão que, em geral, replicava na Ásia os rituais europeus. Como é que eles se conformaram com o mundo que, para o prelado e para os clérigos que o auxiliaram, era novo, mal conhecido e insuficientemente compreendido? O que se privilegiou neste gênero de rituais que tiveram o envolvimento do prelado? Linguagens de simples transferência e imposição de padrões originários do mundo católico europeu, ou linguagens de acomodação à diversidade e às especificidades do fervilhante universo com o qual se deparou?

MAPEAR OS RITUAIS

São escassos, em geral concisos e descritivos os relatos de rituais realizados em Goa ou noutros locais da diocese que contaram com a intervenção de D. Juan de Albuquerque. Neste exercício de mapeamento dos mesmos, distingo-os em dois grupos. Por um lado, os promovidos pelo antístite e que assumem lugar de destaque na sua dinâmica governativa. Por outro lado, cerimônias em que ele participa, mas que não foram por si instituídas.

Principiemos pelos rituais de iniciativa episcopal. Encontrei registros de cinco:

  1. Instituição e sagração da catedral;

  2. Procissões;

  3. Batismo e confirmação (crisma) de destacados detentores de poder local;

  4. Destruição de templos e de ícones de religiões não cristãs;

  5. Exercício da justiça episcopal e subsequente suplício de condenados.

Note-se, desde já, a ausência de referências à entrada solene do bispo na diocese. Este costumeiro ritual foi, provavelmente, executado seguindo modalidade que estamos impossibilitados de apreciar5 5 Sobre estas entradas, ver Paiva (2006, pp. 138-161) e o recente Nestola (2020). . Também não há documentação que permita reconstituir como se procedia às visitas pastorais, as quais comprovadamente se realizaram, pelo bispo e por visitadores por si nomeados, e podem ter sido peças marcantes da divulgação do poder do bispo e da sua ação pastoral.

Poucos meses depois da sua chegada a Goa, em 25 de março de 1539, “dia de Nosa Senhora [da Anunciação]”, uma escolha seguramente pensada, o bispo preparou a cerimônia de instituição e sagração da catedral, elemento fulcral na construção de uma igreja diocesana na Ásia. O ritual decorreu na preexistente igreja de Santa Catarina, ante a presença do vice-rei D. Garcia de Noronha. Na ocasião, o antístite apresentou ao vice-rei o rol dos beneficiados que serviriam no cabido, desde o chantre aos capelães, elenco que Noronha sancionou, por autoridade que lhe atribuíra o rei de Portugal, detentor do padroado e direito de apresentação destes clérigos. Após esta aprovação, o bispo dirigiu-se ao altar-mor da pequena igreja de Santa Catarina, proferiu algumas orações e fez bençãos que não são explicitadas na fonte disponível. Depois, acompanhado por procissão composta pelos membros do cabido, circulou pelo interior do templo, incensando-o, findo o que retornou ao altar-mor “ficando a dita casa feyta Se Apostolica catedral” (Correia, 1864CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Vol. IV. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864., parte I, p. 88).

O cronista nada mais reporta, desconhecendo-se quem estava presente além dos elementos referidos, como é que os participantes se apresentavam vestidos, que difusão e impacto teve este ato na vida local, ou a fórmula exata das benções e as orações recitadas. Isto significa que, para o autor da reconstituição, estes aspectos não eram especialmente relevantes. A crônica não indica que o ritual tivesse assumido uma grande exuberância de meios, nem um extraordinário impacto entre os habitantes de Goa.

Atente-se, em seguida, nas procissões promovidas pelo bispo. As procissões realizadas nos espaços asiáticos de presença portuguesa, conforme já foi bem assinalado, constituíam importantes acontecimentos, com elevado valor simbólico e doutrinal, que contribuíam para reforçar solidariedades locais e que, pela sua ostentação, procuravam atrair para a comunidade cristã novos membros, o que era usual suceder (Županov, 2006ŽUPANOV, Ines G. Compromise: India. In: HSIA, Ronnie Po-chia (Ed.). A Companion to the Reformation World. Malden, MA: Blackwell, 2006. pp. 353-374., p. 357). No Regulamento do Colégio da Fé ou de S. Paulo, datado de 1546, nestes anos uma instituição-chave nas dinâmicas de cristianização de naturais de Goa e de outras zonas da Índia, determinava-se que, por ordem de Juan de Albuquerque, se fizessem grandes festejos no dia do Corpo de Deus. Estes incluíam uma procissão, na qual o prelado transportava com solenidade uma hóstia consagrada que simbolizava o corpo de Deus6 6 O Regulamento está publicado em Rego (1950, vol. III, p. 354) e em Wicki (1948, vol. I, p. 118). Mais tarde, uma procissão do Corpo de Deus foi instituída em Goa, com um regulamento igual ao das cidades do reino (Santos, 1999, p. 271). . Procissões semelhantes realizavam-se regularmente no mundo católico europeu e não há, no breve trecho que alude à procissão do Corpo de Deus no Regulamento, nenhuma nota sugestiva de que em Goa a referida procissão tivesse um padrão distinto.

Já se nota uma atenção especial a contextos locais na referência em que Juan de Albuquerque menciona uma procissão celebrada em Cochim, no final do ano de 1547. Dirigindo-se ao governador D. João de Castro, contava o antístite que nunca em Cochim se celebrara outra igual, explicando que a referida cerimônia servira para “omra de Deus e exalçamento da fee catolica”. Esta motivação seria usual em qualquer ato semelhante realizado no mundo europeu, todavia, Albuquerque acrescentava que ela também servira para “terror e espamto destes mouros que amdão com a boca aberta e espamtados de como sucedem as cousas de Vosa Senhoria”. Ao falar das “cousas de Vosa Senhoria”, o bispo invocava os triunfos militares do governador, que a seus olhos também eram sinal de que o Deus dos cristãos os protegia e era superior aos dos seguidores do Islã (Sanceau, 1975SANCEAU, Elaine. Colecção de São Lourenço. Vol. II. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, Lisboa, 1975., pp. 395-396). Ou seja, estas procissões também seriam entendidas como uma linguagem que, através do número de pessoas que reuniriam, do clima de devoção que gerariam entre os participantes, do ambiente de festa que criavam, da riqueza e da cor dos objetos nelas transportados, visavam atemorizar os habitantes muçulmanos de Cochim, combater as suas crenças e, em simultâneo, dar ânimo aos cristãos. No fundo, rituais deste tipo eram mais uma componente do processo de transferência para contexto asiático das lutas que, na Península Ibérica, desde há séculos caracterizaram o embate entre cristãos e muçulmanos (Schwartz, 2020SCHWARTZ, Stuart B. Blood and Boundaries: The Limits of Religious and Racial Exclusion in Early Modern Latin America. Waltham: Brandeis University Press, 2020. ). Nesta mesma carta, aliás, Albuquerque confessava ao seu interlocutor que os “mouros” eram os inimigos principais entre as “nações bárbaras” que viviam na Ásia e, por conseguinte, mereciam, no dizer do prelado, a guerra e a morte.

Um dos rituais mais relevantes no contexto das estratégias de difusão do cristianismo era o do sacramento do batismo. É conhecida a celebração de batismos em massa de grande quantidade de populações locais (Mendonça, 2002MENDONÇA, Délio de. Conversions and Citizenry: Goa under Portugal 1510-1610. New Delhi: Concept Publishing Co., 2002., pp. 233-238; Faria, 2013FARIA, Patricia Souza de. A conquista das almas do Oriente: franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa (1540-1750). Rio de Janeiro: 7Letras, 2013., pp. 81-83), ou o batismo e a confirmação de alguns líderes locais. Os primeiros remetem a rituais igualmente realizados em Portugal, como sucedeu em 1497, quando, por determinação do rei D. Manuel I, milhares de judeus foram batizados em cerimônias coletivas realizadas em diversas localidades de Portugal (Marcocci, 2006MARCOCCI, Giuseppe. ... per capillos adductos ad pillam. Il dibattito cinquecentesco sulla validitá del battesimo forzato degli ebrei in Portogallo (1496-1497). In: PROSPERI, Adriano (a cura di). Salvezza delle anime disciplina dei corpi: un seminario sulla storia del battesimo. Pisa: Edizione della Normale, 2006. pp. 339-423., pp. 339-423). Os segundos também foram política adotada pelos evangelizadores cristãos na Europa, desde a Alta Idade Média, porquanto desde cedo se percebeu que o batismo dos chefes de comunidades não cristianizadas serviria de porta de acesso para a aceitação da nova religião por parte das populações que tais lideranças governavam.

Este modelo aplicou-se, igualmente, na Ásia. Em 1548, escrevendo para o rei D. João III, Juan de Albuquerque narrou o ritual do batismo do brâmane goês Loku, em cerimônia celebrada na igreja do Colégio da Fé, durante a qual foram também batizados a mulher, um sobrinho e dois gancares que, nas palavras do bispo, eram pessoas “omradas”, ou seja, de algum relevo social nas respectivas comunidades (Rego, 1950REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Índia. Vol. IV. Lisboa: Agência Geral das Colónias , 1950., vol. IV, pp. 131-133). Todos teriam sido instruídos previamente na nova fé - o bispo chama até a si alguns dos louros desta conversão -, e depois batizados em ritual público que comportou “grande festa”. Nela participou “toda a cidade”, “os fidalgos e o governador”. Como era costume em grandiosos festejos públicos urbanos, houve música tocada por “charamelas, trombetas e atabales”, e os sinos repicaram nas igrejas da cidade. O próprio bispo oficiou o ato, em reconhecimento da relevância social dos batizados e da importância simbólica que este batismo assumia, num tempo em que muitos portugueses presentes teriam chorado “fartas lagrimas” de contentamento.

Nada indica que, procurando acomodar a liturgia romana ao contexto em que a aplicava, o celebrante tivesse traduzido as fórmulas do batismo, pelo que o novo cristão não entendeu as palavras latinas do oficiante7 7 Mais tarde, alguns jesuítas defenderem a tradução para línguas asiáticas das fórmulas de administração do batismo, o que suscitou problemas e debate (Alberts, 2013, p. 133). . Foi o governador Garcia de Sá o padrinho do neófito, a quem foi posto o nome cristão de Lucas de Sá, e a cerimônia foi aproveitada para que um pregador proferisse um sermão, ato raro nos batismos em Portugal. O sermão teve o fito de enaltecer a fé cristã e os muitos “christãos da terra” que recebiam o batismo, lembrando quanto Cristo tinha padecido para resgatar tantas almas no mundo. Isto é, o ritual do batismo, se bem que do ponto vista litúrgico deva ter seguido os cânones nesta data adotados no mundo europeu, foi apropriado e utilizado como um ato de propaganda e de tentativa de captação da adesão ao batismo de outros hindus.

Depois do batismo de Loku, o rajá do pequeno território de Tanor (hoje Tanur), na costa do Malabar, foi a Goa, onde chegou a 2 de outubro de 1549, para receber o sacramento da confirmação ou crisma. O seu batismo tinha sido celebrado antes e suscitara polêmica entre clérigos da diocese, como o vigário-geral Pedro Fernandes e outros membros da comunidade portuguesa (Paiva, 2021bPAIVA, José Pedro. “Trabalho mais para que não se pervertam os brancos do que para a conversão dos negros”: Pedro Fernandes, bispo de Salvador da Bahia (1551-1556), entre Paris, Lisboa, Goa, Cabo Verde e Brasil. Varia História, v. 37, n. 73, pp. 17-52, 2021b., pp. 23-26).

O crisma do líder de Tanor também foi aproveitado como um momento de exaltação do cristianismo e de propaganda da nova religião, com o propósito de tentar captar mais seguidores. Juan de Albuquerque, em carta para a rainha D. Catarina, esclareceu que o principal de Tanor chegou a Goa de barco, pelo rio, “vestido à portuguesa”, ao som de trombetas, charamelas e repiques de sinos na sé. As ruas foram alcatifadas com juncos e limpas com água e perfumes, como usualmente sucedia em atos semelhantes de festejos urbanos, como entradas solenes de reis ou de bispos. No caminho percorrido por este cortejo, havia panos ricos a decorar as janelas, e o clero de diversas religiões (franciscanos, dominicanos e jesuítas), além do cabido da diocese, por ordem, também desfilaram numa “procisao com suas cruzes levantadas”. O bispo aguardava a todos diante da catedral de Santa Catarina, vestindo pontifical, isto é, o seu traje das ocasiões mais solenes, e tinha “hum crucifixo as costas, muy devoto, grande, de vulto, de pao”. Nas suas palavras, “ver a procisao e modo como estavamos era para quebrar os corações ainda que forão pedras”. Quando o rajá de Tanor chegou à catedral, abraçou o crucifixo, beijou os pés do prelado, e depois todos entraram em procissão entoando o usual hino de louvor a Deus, Te deum laudamus (Rego, 1950REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Índia. Vol. IV. Lisboa: Agência Geral das Colónias , 1950., vol. IV, p. 353).

Depois, na catedral, o bispo celebrou missa, perante o rajá. Este estava sentado numa cadeira de espaldas com estrado e alcatifa, lugar de destaque dado apenas a seculares de grande distinção e que visava captar a benevolência do principal de Tanor e, possivelmente, dar a conhecer às populações locais como os portugueses beneficiavam quem aderisse ao cristianismo. Esta dimensão pode enfileirar entre as múltiplas estratégias doces de atração das populações locais ao cristianismo, ou “traças”, como lhes chamou Ângela Barreto Xavier (2008XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: Poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa: ICS, 2008., pp. 81-134). O rajá teria adorado o Santíssimo Sacramento, porém, no dizer de Gaspar Correia, revelando pouca devoção. Finda a missa, todos se dirigiram para a casa do governador e, na tarde deste dia, num momento de diversão que se destinava à generalidade da população, o que era outra forma de captar a sua adesão, houve corridas de touros e “canas” (jogo/exercício em que grupos de cavaleiros se defrontavam através da perícia no manuseio de lanças/canas), diversões habituais em diversos tipos de festejos públicos que se celebravam no reino. Cerca de vinte dias depois da chegada do rei de Tanor a Goa, e após algumas conversas que manteve com o prelado mediadas por um “língua”, isto é, intérprete, o prelado crismou-o com “grande sumptuosidade” no Colégio de S. Paulo, considerando que estava convicto na fé8 8 Esta reconstituição baseou-se, na sua quase totalidade, em carta do bispo para D. Catarina, publicada em Rego (1950, vol. IV, pp. 353-357). . A escolha do Colégio para este ritual não era inocente nem casual. Era o reconhecimento e o modo de afirmação, aos olhos da comunidade, do lugar central e simbólico que, há quase uma década, a instituição tinha no que tocava às dinâmicas de conquista de novas almas para Cristo.

Juan de Albuquerque surge ainda como celebrante de outros sacramentos cuja relevância é evidente. Por um lado, em 1549, na cerimônia do casamento de duas filhas do governador Garcia de Sá, que eram o fruto da sua relação com uma “mulher da terra”, as quais casaram com portugueses. Depois de os “moradores de Goa”, provavelmente “reinóis” e “casados”, terem feito festas com “touros e canas”, dirigiram-se em cortejo para a Sé, à porta da qual o bispo os esperava e ali celebrou o matrimônio (Correia, 1864CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Vol. IV. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864., parte II, p. 673). Ao intervir nesta celebração, não só dava mais dignidade ao ato, como valorizava o enlace entre portugueses e mulheres naturais de Goa, política que desde o governo de Afonso de Albuquerque (1509-1515) se instituíra, num gesto que tinha como destinatários principais os portugueses.

Por outro lado, mimetizando o que se passaria na corte régia, em Lisboa, por ocasião do falecimento de reis, o governador D. João de Castro foi acompanhado, nos seus momentos derradeiros de vida, pelo bispo, que o confessou, confortou e deu a extrema-unção, neste caso em cerimônia privada, durante a noite de 1 de junho de 1548 (Correia, 1864CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Vol. IV. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864., parte II, p. 658)9 9 Sobre a figura, a governação e a memória deste governador da Índia, é hoje incontornável o estudo de Jesus (2021). . A aliança, o amparo e a consonância de interesses entre a Coroa e a Igreja10 10 Ao contrário do que foi recentemente escrito por Manuel Bastias Saavedra (Saavedra, 2022, p. 23), não penso que “the Portuguese imperial order had to balance the - sometimes aligned and sometimes divergent - interests of the Crown with those of the Church”. A situação era muito mais complexa do que esta perspectiva simplista e até anacrônica sugerida por Bastis Saavredra. Durante a modernidade, a Coroa e a Igreja não tinham fronteiras claramente definidas, nem perspectivas muito diferentes sobre o que deveria ser a atuação no império. Ao invés disso, ambas estavam profundamente entrelaçadas, de vários modos, e prosseguiam objetivos em muitos casos semelhantes. , tal como no reino, replicavam-se no Estado da Índia, num outro sinal da intenção de que Goa fosse uma outra Lisboa, para glosar expressão já consagrada em estudo do final do século passado (Santos, 1999SANTOS, Catarina Madeira. “Goa é a chave de toda a Índia”. Perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999., p. 271).

Os caminhos de afirmação do cristianismo na Ásia incluíram a aplicação de políticas asperamente violentas. A década de 1540 foi especialmente marcada por vigorosas ofensivas de destruição dos sinais visíveis de outras religiões11 11 Em estudo recente, ao referir-se a estas campanhas, que são caraterizadas como sendo “agressivas, militantes” e de destruição maciça das mesquitas islâmicas e dos templos hindus, não se faz qualquer referência ao papel do bispo nestas dinâmicas (Walker, 2021, parágrafos 12-23). . Estes rituais de violência, aliás, foram-se intensificando no decurso do século XVI12 12 Paolo Aranha (2006, p. 167-168) lembra que, no Sínodo Provincial de Goa de 1567, se ordenava “ser necessário desterrarem-se das terras de Sua Alteza todos os infiéis que tem por officio sustentar suas falsas religiões”, a destruição de mesquitas e de livros islâmicos, de ídolos, templos e árvores sagradas, além de se proibir a celebração de diversas festas hindus, como a da imposição do nome aos nascituros, ou o uso do cordão bramânico (o punul) e até a passagem de peregrinos hindus pelas terras portuguesas. . Se os atos de iconoclastia praticados por protestantes geravam sentidos lamentos dos católicos na Europa, uma vez na Ásia, estes replicaram-nos face às construções religiosas de hindus, muçulmanos, budistas e outros. Estes modos de ríspida atuação face a outras religiões tinham origem em políticas previamente elaboradas e já aplicadas no reino13 13 De acordo com Giuseppe Marcocci (2012, p. 382), as linhas gerais destas políticas estão apresentadas em livro publicado em 1543 pelo agostinho João Soares, confessor de D. João III e que viria a ser bispo de Coimbra (1545-1572). .

Em 1540, em Cranganor, foi arrasado um templo hindu, por ocasião da chegada a esta fortaleza do franciscano Vicente de Lagos, para onde foi mandado por Juan de Albuquerque (Xavier, 2008XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: Poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa: ICS, 2008., p. 107; Monforte, 1751MONFORTE, Manoel de. Chronica da Provincia da Piedade: Primeira Capucha de toda a ordem e regular observancia de Nosso serafico padre S. Francisco. Lisboa: Na Officina de Miguel Manescal da Costa, 1751., p. 403). Em 1543, em carta para o rei, o vigário-geral da diocese Miguel Vaz contava que um nativo batizado o apoiava nestes atos de violência e que “por sua mão foram destruidos e tirados todos os pagodes e casas de idolatria que avia em Goa” (Rego, 1949REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Índia. Vol. II. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1949., vol. II, p. 333).

Juan de Albuquerque comprometeu-se com estas vias de uso da força em atos que também tinham uma dimensão ritual e que visavam afirmar o triunfo do catolicismo sobre as demais religiões e sistemas de crença coexistentes com o catolicismo nos territórios onde os portugueses se instalaram. Numa provisão do antístite, datada de 1546, explicava que cumpria ordens régias, reconhecendo que, como bispo, tinha a obrigação de “destruir esta idolatria pessima” e desterrar da diocese toda “a seita de Mafamede e a gentilica e tudo aquilo que é contrario à fe de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Por isso, mandava ao clero secular e aos religiosos franciscanos e jesuítas de Baçaim que “onde quer que acharem pagodes [...] os destruão e derribem para o que lhes dou poder e autoridade” (Rego, 1950REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Índia. Vol. III. Lisboa: Agência Geral das Colónias , 1950., vol. III, pp. 330-332; Rivara, 1865RIVARA, J. H. da Cunha. Archivo Portuguez Oriental. Fascículo 5º que contem documentos varios do século XVI. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1865., Fascículo 5º, 1ª parte, pp. 223-225).

Por vezes, procuraram substituir-se rituais enraizados entre as comunidades hindus por cerimônias de sabor cristão, para assim desterrar dos hábitos sociais manifestações que contrariavam a ordem social e os padrões culturais dos portugueses. Em 1545, o vigário-geral Miguel Vaz noticiava que, em Cochim, sempre que se pesava o primeiro carregamento de pimenta para a embarcar, isso se executava “com grande cirimonia dos feiticeiros d’el rey de Cochim”, com o intuito de se proteger esta preciosa mercadoria. Para acabar com este costume local, propunha a substituição desta cerimônia por bençãos da Igreja (Wicki, 1948WICKI, Joseph. Documenta Indica. Vol. I. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1948., vol. 1, p. 77).

Os rituais de violência sobre as religiões dos vencidos tinham raízes no mundo europeu e foram replicados por eles em diversos locais do mundo14 14 É excelente exemplo o caso referido por Ryan Dominic Crewe (2019, p. 954). Quando os exércitos hispano-mexicanos de Jerónimo Cortez chegaram à região das atuais Honduras, em 1525, o sacrifício de deidades locais, a que os conquistadores chamavam ídolos, já se tinha tornado rotineiro. Por isso, no caminho, numa povoação Maia, os poderes locais indígenas deram as boas-vindas a Cortez oferecendo-lhe estátuas para que ele mesmo as destruísse. . Naquele momento, na diocese de Goa, assinalavam a imposição da nova religião e a tentativa de construção de uma nova ordem social e religiosa que também passava pela erradicação de espaços e rituais associados às crenças religiosas das populações não portuguesas.

A ritualização de alguns atos exemplares de aplicação da justiça episcopal integrou o arsenal de estratégias de afirmação da jurisdição do bispo e de tentativa de instalação de uma paisagem católica ortodoxa e religiosamente monolítica na Ásia.

Em 1543, foi julgado e condenado por um tribunal liderado por D. Juan de Albuquerque o médico cristão-novo Jerónimo Dias. O prelado desconfiou que ele tinha “crenças erradas”, mandou espiá-lo por um clérigo de sua confiança e recolheu o que considerou ser suficiente para provar a heresia cometida, a qual, aliás, o réu confessaria. O relato que se possui deste caso descreve uma prática de que não há notícia para situações semelhantes praticadas pela justiça episcopal no reino.

A decisão do tribunal episcopal foi encenada publicamente em cerimônia realizada na casa do governador do Estado da Índia Martim Afonso de Sousa. Ao cimo das escadas da casa, montou-se uma mesa, onde se sentou um colégio de juízes composto pelo próprio bispo, pelo vigário-geral Miguel Vaz, pelo padre Miguel Borba, que viera de Portugal juntamente com o prelado e era pessoa de sua confiança, e ainda pelos superiores dos franciscanos e dos dominicanos de Goa. Tendo decidido a sentença, os juízes mandaram vir à sua presença o réu, que estava encarcerado no “tronco”, isto é, na cadeia secular, sinal de que, ao tempo, ainda não havia um aljube para encarcerar os presos pela justiça eclesiástica. O coletivo de julgadores, perante “muyto povo junto”, mandou que o réu se colocasse a meio da escada da casa do governador, portanto, num nível espacial inferior àquele onde os juízes estavam sentados, numa representação simbólica da sua supremacia. Depois, houve um exercício público de justiça, durante o qual o réu foi interrogado sobre ter defendido certas ideias, o que ele publicamente confessou. Ato contínuo, o vigário-geral, pegou no processo e, de pé, no mais alto degrau das escadas, leu a sentença, num ritual muito semelhante aos autos da fé inquisitoriais, o primeiro dos quais já se celebrara em Lisboa, em setembro de 1540. A decisão do tribunal, lida em alta voz, em língua portuguesa, o que muitos dos assistentes não entenderiam, explicava que “a nossa Santa Madre Igreija” considerava o cristão-novo “por yreje e errado judeu contra a fe do Salvador do mundo que he Jesu Christo, Deos e homem, filho da virgem Maria Nossa Senhora”, e como herege o entregava à justiça secular, para “que vos dem a ponição segundo vossos merecimentos”.

Tal como sucedia nos autos da fé inquisitoriais, neste andamento da cerimônia, o vigário-geral entregou o preso ao meirinho da justiça secular e os autos que continham a sentença foram dados ao escrivão do ouvidor do rei que também assistia ao ato. O escrivão levou a sentença a uma sala do palácio do governador, onde este aguardava, juntamente com o ouvidor e outros juízes do tribunal da Coroa, além de “muitos fidalgos” portugueses. O ouvidor leu a sentença do tribunal do bispo e, de imediato, por baixo dela, exarou a sua decisão final, que assim rezava: “Vista a sentença da Santa Madre Igreija, em que ha por condenado no caso d’irisya a vos, o bacharel Jeronymo Dias, vos condena a justiça d’El Rey nosso senhor que, polo dito caso, com baraço e pregão seja vosso corpo queimado vivo, feyto em po, por erege contra nossa santa fe catolica”. Ressalvava, como era usual nestas circunstâncias, que se o réu se arrependesse dos seus erros e quisesse morrer cristão, seria enforcado antes de ser queimado “porque nom sintaes o tromento do fogo”. Pouco depois, o condenado, acompanhado pelo padre Diogo de Borba e pelos irmãos da Misericórdia de Goa, irmandade que em Portugal tinha a incumbência de acompanhar os condenados à pena capital, foi levado, em procissão, até ao pelourinho, para ali ser supliciado. Ali chegado, foi garrotado, queimado e “feyto em po” (Correia, 1864CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Vol. IV. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864., parte I, pp. 292-294).

Este ritual, encenava o exercício da justiça e do castigo, com uma linguagem de rigor destinada a dissuadir comportamentos semelhantes e, pelo terror do espetáculo da morte pública, pretendia atemorizar quem a ele assistia. Esta encenação ritual da execução pública dos condenados pela justiça, que marcava estes anos na Goa portuguesa, não foi caso único. Em 1546, foi supliciada pela justiça eclesiástica uma mulher goesa punida pelo crime de adultério e homicídio do seu marido, o qual era português. Foi metida dentro de um caixote de madeira, juntamente com uma cobra, um macaco, um galo, um cão e um gato, e assim foi lançada ao mar, onde pereceu após atroz suplício, confirmado pelos seus gritos de dor (Marcocci, 2007MARCOCCI, Giuseppe. La salvezza dei condannati a morte. Giustizia, conversioni e sacramenti in Portogallo e nel suo impero. 1450-1700 ca. In: PROSPERI, Adriano (a cura di). Misericordie: Conversioni sotto il patibolo tra Medioevo ed età moderna. Pisa: Edizione della Normale , 2007. pp. 185-255., pp. 189-194). Não há anotações que permitam avaliar como rituais desta natureza foram interpretados por populações que só recentemente tinham sido batizadas ou que tinham crenças religiosas não cristãs.

O último tipo de rituais que se pretende assinalar são cerimônias não promovidas pelo prelado, mas nas quais ele assume um lugar de grande destaque. Estão neste conjunto os atos de benção das armadas navais portuguesas quando saíam ou chegavam a Goa em ocasiões de guerra.

Em 1541, o governador da Índia D. Estêvão da Gama partiu para Meca com uma frota. Ao deixar Goa, realizou-se uma cerimônia na qual D. Juan de Albuquerque assumiu funções centrais. Num domingo, o governador, os capitães e os fidalgos que integravam a armada foram à sé ouvir missa solenemente celebrada pelo bispo. Durante a pregação, o antístite aproveitou para louvar a jornada contra os muçulmanos, não deixando de ponderar que os portugueses iam protegidos pela “mão de Noso Senhor”. Acabada a missa, formou-se uma procissão em que o bispo desfilou revestido de pontifical, com todo o cabido vestido de capas ricas, e assim acompanharam o governador e demais tripulação até ao cais, num ambiente de “muytos tangeres e festas”. No cais, os navios estavam engalanados com “bandeiras, estandartes e toldos” e, ao chegar, o governador, mostrou a sua devoção, beijando um retábulo com a representação de Nossa Senhora, que funcionava também como protetora da expedição. Antes da largada, o bispo lançou bençãos e proferiu orações destinadas a animar os combatentes e a assegurar-lhes a proteção divina. Seguiram-se salvas de artilharia e só depois a armada, como que protegida pela mão divina, zarpou (Correia, 1864CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Vol. IV. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864., parte I, p. 162). O amparo, a proteção e a justificação do sagrado face a dinâmicas profanas, em rituais que procuravam envolver toda a comunidade, num momento que tinha também dimensão festiva, não eram invenções construídas na Ásia. Antes, eram sinais de modelos importados de geografias europeias.

Em abril de 1547, D. Juan de Albuquerque e a catedral foram elementos cruciais do ritual de entrada triunfal “à romana” do governador D. João de Castro em Goa, após os sucessos militares que alcançara em Diu. A cerimônia foi aparatosa e seguiu um modelo originário do mundo imperial romano. Um dos trechos dos festejos, com imensas similitudes com a benção da partida da armada, desenrolou-se na catedral, onde o governador se dirigiu e foi recebido pelo bispo, revestido de pontifical, que logo celebrou uma missa de ação de graças e lançou várias bençãos ao triunfante governador (Correia, 1864CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Vol. IV. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864., parte II, pp. 591-592). Este “triunfo” de D. João de Castro tem sido abundantemente referenciado pela historiografia. Nuno Martins já sublinhou, neste caso bem, como ela denota o reconhecimento mútuo entre os poderes espiritual e temporal, com o deslocamento a um espaço que era o centro sagrado dos cristãos em Goa, isto é, a catedral, num gesto que, entre outros vetores, simbolizava “uma espécie de sacralização do poder temporal” (Martins, 2013MARTINS, Nuno Gomes. Impérios e imagem: D. João de Castro e a retórica do vice-rei (1505-1548). Tese (Doutorado em Ciências Sociais - Sociologia histórica) - Universidade de Lisboa. Lisboa, 2013., pp. 245-246).

Esta mesma dimensão de sacralização e, simultaneamente, de legitimação e proteção divina das autoridades seculares, descobre-se nos rituais de recepção e posse de novos vice-reis e governadores15 15 Em Portugal, desde os finais do século XIV, ao menos nas entradas régias nas cidades, se assiste à introdução deste elemento de articulação entre o poder secular e o religioso, o que implicou a ida das comitivas régias à igreja principal da cidade (Alves, 1986, pp. 20-21). . Enquanto D. Juan de Albuquerque foi bispo de Goa, assumiram funções diversos governadores ou vice-reis, personagens que, em representação do rei de Portugal, tinham a incumbência de governar o Estado da Índia. Nas breves descrições de pelo menos quatro dessas ocasiões, em 1538, 1540, 1542 e 1545, o novo titular do poder deslocou-se à catedral onde ocorriam dois atos de grande relevo (Correia, 1864CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Vol. IV. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864., parte I, pp. 11, 121, 229 e 432). Por um lado, o empossado recebia as bençãos episcopais, por outro lado, era naquele local sagrado e diante das autoridades eclesiásticas que fazia o juramento de bem servir no seu cargo. Tudo era envolto num clima de festa que procurava concitar toda a comunidade. Assim foi, por exemplo, na cerimônia de entronização de D. Estêvão da Gama, a qual ocorreu em abril de 1540. O governador deslocou-se à sé, onde era aguardado pelo bispo e demais membros do clero, tendo de pronto sido aspergido com água benta pelo prelado. Em seguida, dirigiram-se para a capela-mor, o espaço mais relevante e central da igreja, e ali o bispo “lhe fez a solenidade das benções”. Ato contínuo, o governador fez o seu juramento, assegurando “que bem e fielmente, com sa conciencia, serviria a dita governança, guardando o serviço de Deos e d’El Rey”. Neste juramento explicitou ainda que governaria com justiça, tomando em consideração todo o “povo, mouros, e gentios, e estrangeiros”. Era um ato de retórica que, pelo menos no tocante ao respeito pelas crenças dos muçulmanos e hindus, não tinha correspondência prática, como acima se assinalou. Nesta ocasião, estavam presentes outros titulares do poder secular, como o vedor da Fazenda. Finda a cerimônia na Sé, houve música tocada por trombetas, atabales e charamelas, após o que, “com muytas festas”, o novo governador, assim entronizado e revestido desta dimensão sacral, acompanhado pelos habitantes de Goa, regressou ao seu palácio (Correia, 1864CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Vol. IV. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864., parte I, p. 121).

LINGUAGENS DE TRANSFERÊNCIA OU DE ACOMODAÇÃO?

Os rituais acima apresentados ocorreram em espaços ocupados pelos portugueses há menos de meio século, e que eram habitados por populações com línguas, culturas e religiões muito variadas. Goa era uma diocese de fronteira, encravada em zonas onde as paisagens territorial, cultural e a espiritualidade dos homens e das mulheres estavam marcadas pelo hinduísmo, pelo islamismo, pelo budismo, incluindo crenças de tipo animista. Daí resultavam dificuldades de comunicação e entendimento com as populações locais que colocavam instransponíveis desafios. Isso também se sentiu no quadro da afirmação da ritualidade e dos cerimoniais em que o bispo intervinha?

Os breves testemunhos disponíveis dão pouquíssima ou nenhuma atenção às reações dos locais, isto é, aos processos de recepção dos rituais supramencionados, e também não explicitam as intenções dos promotores destas iniciativas. Assim sendo, com base nas fontes que aqui se analisaram não é viável fornecer uma resposta inequívoca à questão crucial que a princípio se enunciou: adotaram-se nestes rituais linguagens de simples transferência e imposição de padrões originários do mundo católico europeu, ou foram criados dispositivos de acomodação à diversidade e às especificidades do fervilhante universo com o qual se conectaram?

Em geral, na breve e específica conjuntura aqui analisada, parece ser possível concluir que os tipos de rituais, suas estruturas de realização e as linguagens e os referenciais neles adotados tinham as suas raízes em modelos pre­existentes em Portugal16 16 Reportando-se apenas à recepção triunfal de D. João de Castro, chegou à conclusão idêntica (Martins, 2013, p. 229). . Do que se tratava, na Goa dos anos 40/50 dos Quinhentos, não era de formas de negociação com os universos envolventes, mas da imposição de uma ordem nova, sem azo a grandes concessões. Algumas das linguagens adotadas nestes rituais religiosos, aliás, não admitiriam grande margem de afinação aos novos contextos. É o caso das liturgias. Embora nos relatos disponíveis não se indiquem as fórmulas das bençãos que se realizavam, os gestos e as vestes exatas dos seus oficiantes, ou as orações rezadas, a leitura das disposições das constituições sinodais de Goa ou das determinações dos primeiros Concílios Provinciais ali realizados a partir de 1567, apesar de posteriores a esta época, aliada ao que se conhece da cultura de ação da Igreja neste plano, permite deduzir que assim terá sido.

Isso não invalida que o bispo e outros agentes eclesiásticos não se tenham apercebido de que as populações locais utilizavam rituais diferentes, estranhos, exóticos, na leitura estereotipada orientalista. Talvez nesta fase ainda ignorassem ou, ao menos, não tivessem uma consciência clara da diferença entre hábitos sociais e crenças e costumes religiosos locais (Xavier; Županov, 2015XAVIER, Ângela Barreto; ŽUPANOV, Ines G. Catholic orientalismo: Portuguese Empire, Indian Knowledge (16th-18th Centuries). Oxford: Oxford University Press , 2015., p. 153). Todavia, observavam com facilidade que os rituais não cristãos incluíam elementos como música, cânticos, danças, encenações festivas, construções efêmeras grandiosas, símbolos, grande aglomeração de pessoas, além de linguagens de afirmação de poder que dariam a entender que os discursos rituais dos cristãos - os quais, de igual modo, incorporavam todas estas dimensões - poderiam ter capacidade de ser compreendidos por essas populações17 17 Um documento privilegiado para se captarem estas noções são os diversos desenhos de algumas cerimônias realizadas em diferentes locais da Ásia, que se encontram no Códice Casanatense. Elaborado pelos meados do século XVI, nele se colhem percepções destas dimensões. Cf. Biblioteca Casanatense (Roma) - Códice 1889. Sobre este códice, veja-se Losty (2021). . No fundo, todos os rituais manejavam linguagens visuais, sonoras e ambientes festivos que poderiam constituir uma forma eficiente de comunicação.

É claro que há alguns sinais de mais explícita acomodação dos rituais instaurados pelo bispo quando praticados na Índia. Lembrem-se, por exemplo, a associação de sermões com discursos dirigidos a públicos específicos ao ato de batismo de figuras social e religiosamente prestigiadas, ou a escolha do espaço do Colégio da Fé para a realização de algumas cerimônias, ou a invulgar forma de apresentação da justiça episcopal e do suplício público subsequente daqueles que ela condenava. Ainda assim, na generalidade, os rituais, as linguagens neles desenvolvidas e as intenções que lhes davam vida não eram uma invenção construída na Ásia, onde não aparentaram grande criatividade, não havendo vestígios de que houvesse adaptações decorrentes de rituais praticados por comunidades locais não cristãs. Ao contrário, eram mais um sinal de modelos importados de geografias europeias que se transportavam para aquelas paisagens, procurando impor uma nova ordem religiosa e social originária do reino, aparentemente sem traços de extraordinária originalidade ou porosidades ditadas pelos contextos tropicais em que ocorreram.

REFERÊNCIAS

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  • ŽUPANOV, Ines G. Compromise: India. In: HSIA, Ronnie Po-chia (Ed.). A Companion to the Reformation World. Malden, MA: Blackwell, 2006. pp. 353-374.
  • 1
    Este artigo foi redigido no contexto do projeto PTDC/HAR-HIS/28719/2017, intitulado Religião, Administração e Justiça Eclesiástica no Império Português (1514-1750) - ReligionAJE -, aprovado no âmbito do concurso para financiamento de projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em todos os domínios científicos (2017), cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), por meio do COMPETE, Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI), e por fundos nacionais por meio da FCT, Fundação para a Ciência e Tecnologia.
  • 2
    Adoto a grafia do nome do bispo que habitualmente tem sido seguida e que, se assim se pode dizer, se consagrou institucionalmente. Porém, deve-se notar que o nome de família do bispo é retirado do topônimo do local onde nasceu. Ora, a localidade do nascimento do prelado foi Alburquerque, e não Albuquerque.
  • 3
    Adoto uma noção ampla de ritual, que não restringe o conceito a cerimoniais de natureza estritamente religiosa. Richard Trexler, na abertura de um notável estudo sobre ritualidade urbana, definiu-o assim: “By ritual I shall mean formal behaviour, those verbal and bodily actions of humans that, in specific contexts of space and time, become relatively fixed into those recognizable social and cultural deposits we call behavioural forms” (Trexler, 1980TREXLER, Richard C. Public Life in Renaissance Florence. New York; London: Academic Press, 1980., p. XXIV).
  • 4
    De acordo com o antropólogo escocês, “a single symbol in fact, represents many things at the same time: it is multivocal, not univocal” (Turner, 1969TURNER, Victor. The Ritual Process: Structure and Anti-structure. Middlesex: Penguin Books, 1969., p. 48).
  • 5
    Sobre estas entradas, ver Paiva (2006PAIVA, José Pedro. A Liturgy of Power: Solemn episcopal entrances in Early Modern Europe. In: SCHILLING, Heinz; TÓTH, István György (Eds.). Religion and Cultural Exchange in Europe, 1400-1700. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. pp. 138-161., pp. 138-161) e o recente Nestola (2020NESTOLA, Paola. Eis que o teu rei vem a ti: Arqueologia e arquétipos da cerimónia de entrada episcopal em Portugal e no Império português (séculos XVI-XVIII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra , 2020.).
  • 6
    O Regulamento está publicado em Rego (1950REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Índia. Vol. IV. Lisboa: Agência Geral das Colónias , 1950., vol. III, p. 354) e em Wicki (1948WICKI, Joseph. Documenta Indica. Vol. I. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1948., vol. I, p. 118). Mais tarde, uma procissão do Corpo de Deus foi instituída em Goa, com um regulamento igual ao das cidades do reino (Santos, 1999SANTOS, Catarina Madeira. “Goa é a chave de toda a Índia”. Perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999., p. 271).
  • 7
    Mais tarde, alguns jesuítas defenderem a tradução para línguas asiáticas das fórmulas de administração do batismo, o que suscitou problemas e debate (Alberts, 2013ALBERTS, Tara. Conflict and Conversion: Catholicism in Southeast Asia, 1500-1700. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 133).
  • 8
    Esta reconstituição baseou-se, na sua quase totalidade, em carta do bispo para D. Catarina, publicada em Rego (1950REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Índia. Vol. IV. Lisboa: Agência Geral das Colónias , 1950., vol. IV, pp. 353-357).
  • 9
    Sobre a figura, a governação e a memória deste governador da Índia, é hoje incontornável o estudo de Jesus (2021JESUS, Roger Lee Pessoa de. A governação do “Estado da Índia” por D. João de Castro (1545-1548) na estratégia imperial de D. João III. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2021.).
  • 10
    Ao contrário do que foi recentemente escrito por Manuel Bastias Saavedra (Saavedra, 2022SAAVEDRA, Manuel Bastias (Ed.). Norms Beyond Empire: Law-making and Local Normativities in Iberian Asia, 1500-1800. Leiben; Boston: Brill, 2022., p. 23), não penso que “the Portuguese imperial order had to balance the - sometimes aligned and sometimes divergent - interests of the Crown with those of the Church”. A situação era muito mais complexa do que esta perspectiva simplista e até anacrônica sugerida por Bastis Saavredra. Durante a modernidade, a Coroa e a Igreja não tinham fronteiras claramente definidas, nem perspectivas muito diferentes sobre o que deveria ser a atuação no império. Ao invés disso, ambas estavam profundamente entrelaçadas, de vários modos, e prosseguiam objetivos em muitos casos semelhantes.
  • 11
    Em estudo recente, ao referir-se a estas campanhas, que são caraterizadas como sendo “agressivas, militantes” e de destruição maciça das mesquitas islâmicas e dos templos hindus, não se faz qualquer referência ao papel do bispo nestas dinâmicas (Walker, 2021WALKER, Timothy D. Contesting Sacred Space in the Estado da India: Asserting Cultural Dominance over Religious Sites in Goa. Ler História, v. 78, pp. 111-134, 2021. , parágrafos 12-23).
  • 12
    Paolo Aranha (2006ARANHA, Paolo. Il Cristianesimo Latino in India nel XVI secolo. Milano: Franco Angeli, 2006., p. 167-168) lembra que, no Sínodo Provincial de Goa de 1567, se ordenava “ser necessário desterrarem-se das terras de Sua Alteza todos os infiéis que tem por officio sustentar suas falsas religiões”, a destruição de mesquitas e de livros islâmicos, de ídolos, templos e árvores sagradas, além de se proibir a celebração de diversas festas hindus, como a da imposição do nome aos nascituros, ou o uso do cordão bramânico (o punul) e até a passagem de peregrinos hindus pelas terras portuguesas.
  • 13
    De acordo com Giuseppe Marcocci (2012MARCOCCI, Giuseppe. A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012., p. 382), as linhas gerais destas políticas estão apresentadas em livro publicado em 1543 pelo agostinho João Soares, confessor de D. João III e que viria a ser bispo de Coimbra (1545-1572).
  • 14
    É excelente exemplo o caso referido por Ryan Dominic Crewe (2019CREWE, Ryan Dominic. Bautizando el colonialismo: las politicas de conversión en México después de la conquista. Historia Mexicana, v. 68, n. 3, pp. 943-1000, 2019., p. 954). Quando os exércitos hispano-mexicanos de Jerónimo Cortez chegaram à região das atuais Honduras, em 1525, o sacrifício de deidades locais, a que os conquistadores chamavam ídolos, já se tinha tornado rotineiro. Por isso, no caminho, numa povoação Maia, os poderes locais indígenas deram as boas-vindas a Cortez oferecendo-lhe estátuas para que ele mesmo as destruísse.
  • 15
    Em Portugal, desde os finais do século XIV, ao menos nas entradas régias nas cidades, se assiste à introdução deste elemento de articulação entre o poder secular e o religioso, o que implicou a ida das comitivas régias à igreja principal da cidade (Alves, 1986ALVES, Ana Maria. As entradas régias portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte, 1986., pp. 20-21).
  • 16
    Reportando-se apenas à recepção triunfal de D. João de Castro, chegou à conclusão idêntica (Martins, 2013MARTINS, Nuno Gomes. Impérios e imagem: D. João de Castro e a retórica do vice-rei (1505-1548). Tese (Doutorado em Ciências Sociais - Sociologia histórica) - Universidade de Lisboa. Lisboa, 2013., p. 229).
  • 17
    Um documento privilegiado para se captarem estas noções são os diversos desenhos de algumas cerimônias realizadas em diferentes locais da Ásia, que se encontram no Códice Casanatense. Elaborado pelos meados do século XVI, nele se colhem percepções destas dimensões. Cf. Biblioteca Casanatense (Roma) - Códice 1889. Sobre este códice, veja-se Losty (2021LOSTY, Jeremiah. Codex Casanatense 1889: An Indo-Portuguese 16th Century Album in a Roman Library. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/7010487/Codex_Casanatense_1889_an_Indo_Portuguese_16th_century_album_in_a_Roman_library . Acesso em: 23 out. 2021.
    https://www.academia.edu/7010487/Codex_C...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2022
  • Aceito
    04 Out 2022
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