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Luiza e suas crianças ingênuas: duelo judicial e relações de compadrio em Feira de Santana, Bahia, 1871-18881 1 As reflexões apresentadas neste texto fazem parte da pesquisa realizada para a escrita de minha tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia (Damasceno, 2019). A pesquisa foi desenvolvida com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e com bolsa de Doutorado Sanduíche da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Luiza and her Naive Children: Judicial Duel and Crony Relationships in Feira de Santana, Bahia, 1871-1888

RESUMO

Neste trabalho, reconstituo a experiência da libertanda Luiza enquanto lutava pela liberdade legal para si mesma e, sobretudo, para suas filhas e seus filhos, nas últimas décadas da escravidão no Brasil. Para tanto, segui, especialmente, sua trajetória e a de suas seis crianças ingênuas − Ritta, Felippa, Jeronyma, Pedro, Francelina e Aurelio −, cruzando uma ação de liberdade, bem como inventários, leis emancipacionistas e milhares de assentos de batismos de Feira de Santana, Bahia, entre 1871 e 1888. A partir de uma abordagem qualitativa e quantitativa das fontes foi possível situar suas escolhas dentro do universo mais amplo das escolhas de outras mulheres negras de seu tempo, e constatar que, a despeito de enfrentarem a opressão interseccional de gênero, raça e classe, as mulheres negras protagonizavam na linha de frente da luta por liberdade.

Palavras-chave:
mulheres negras; família; compadrio; liberdade legal

ABSTRACT

In this research, I reconstitute the experience of freeing Luiza, as she fought for legal freedom for herself and, above all, her children, in the last decades of slavery in Brazil. Therefore, I followed her trajectory and that of her six innocent children in particular: Ritta, Felippa, Jeronyma, Pedro, Francelina, and Aurelio -, cross-referencing a freedom suit, inventories, emancipation laws, and thousands of baptism certificates from Feira de Santana, Bahia, between 1871 and 1888. Using a qualitative and quantitative approach towards the sources, I was able to position their choices within a broader universe of those made by other black women at this time and observed that despite facing intersectional oppression of gender, race, and class, black women played a leading role on the front line of the fight for freedom.

Keywords:
Black women; Family; Friendship; Legal freedom

“QUE TINHA COMO PROVAR QUE VIVIA POR SI”

Em 4 de fevereiro de 1884, foi entregue uma petição ao juiz municipal suplente de Feira de Santana, por parte de “Luiza do domínio de José Manuel Pinto”, moradora na localidade denominada Jundiá, termo de Feira de Santana. Nesse documento, Luiza afirmou que havia sido abandonada desde o ano de 1879, juntamente com suas seis crianças ingênuas, Ritta, Felippa, Jeronyma, Pedro, Francelina e Aurelio2 2 De acordo com a lei de n. 2.040, de 28 de setembro de 1871, as crianças nascidas de mulheres escravizadas estariam livres. Segundo Sidney Chalhoub, na ocasião dos debates que resultaram em sua aprovação, os parlamentares, para se referirem a essas crianças, optaram pela expressão “de condição livre”. No entanto, o pesquisador encontrou vários documentos oficiais em que apareciam o termo “ingênuo” ao mencioná-las (Chalhoub, 2003, pp. 266-272). A respeito do texto da lei, verificar Presidência da República (1871). . Ela declarou ainda que, durante este período, não recebeu de seu senhor nenhum auxílio para sua subsistência e de seus “filhos menores”. Na petição inicial, Luiza afirmou “que tinha como provar que vivia por si” com um documento que atestava o abandono, e que, durante este período, viveu de “seu trabalho e de suas economias”. Naquele mesmo dia, conforme foi solicitado, o doutor José Vicente Tanajura Guimaraes foi nomeado seu curador (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fls. 1-2).

A reivindicação de manutenção da liberdade foi baseada no artigo 76, do Decreto n. 5.135, de 13 de novembro de 1872, o qual considerava como “abandonado o escravo cujo senhor, residindo no lugar, e sendo conhecido, não o mantém em sujeição, e não manifesta querer mantê-lo sob sua autoridade” (Decreto n. 5.135, 1872DECRETO N. 5.135, de 13 de novembro de 1872. Disponível em: Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-5135-13-novembro-1872-551577-publicacaooriginal-68112-pe.html . Acesso em: 14 dez. 2018.
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decr...
). Posteriormente, o curador incluiu na argumentação que José Manoel Pinto não havia cumprido o artigo 87, §4°, deste mesmo documento, que, por sua vez, determinava como obrigatório que filhas e filhos de mulheres escravizadas, a partir da lei de 28 de setembro de 1871, deveriam ser matriculados. No entanto, o proprietário matriculou apenas duas de suas crianças: Pedro, que, na ocasião, ainda estava por ser batizado, e André, que, em 15 de julho de 1882, tinha apenas 5 meses de falecido. Conforme explorou a acusação, tratava-se de uma prova de que o próprio não reconhecia as demais crianças como de seu domínio.

A decisão de Luiza de procurar a justiça para mover uma ação de liberdade não só demonstrou que ela acreditava ter esse direito como deixou evidente que se tratava de uma mulher determinada a ir às últimas consequências para obter o reconhecimento legal de sua condição de liberta e, consequentemente, estendê-la a suas crianças. Dessa maneira, elas não teriam que estar à mercê do domínio do senhor da mãe até completarem 21 anos, conforme determinava a lei de 1871 (Leis do Império, s.d.LEIS DO IMPÉRIO. s.d. Disponível em: Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/leis-do-imperio-1 . Acesso em: 17 mai. 2018.
http://www4.planalto.gov.br/legislacao/l...
). No entanto, a solidariedade de familiares e a capacidade de mulheres como Luiza de conquistar pessoas para a construção de seu projeto de liberdade foram fundamentais para que elas ousassem procurar a justiça. Evidentemente, a escolha de investir nesse tipo de luta faz ainda mais sentido se considerarmos a cultura do cuidado, segundo a qual cabia às mulheres, de uma maneira geral, e às negras, de maneira particular, a responsabilidade de cuidar do bem-estar das pessoas, seja de sua família e da comunidade negra, seja da família senhorial e de outros integrantes desta classe social - tanto que, a não ser que fossem impedidas, eram elas as principais responsáveis pelo bem estar de suas filhas e de seus filhos pequenos, como demonstrei em um trabalho anterior (Damasceno, 2019DAMASCENO, Karine Teixeira. Para serem donas de si: mulheres negras lutando em família (Feira de Santana, Bahia, 1871-1888). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.).

Desse modo, o objetivo deste trabalho é compreender os sentidos das escolhas femininas em busca de melhores condições de vida e da conquista da liberdade legal para si mesmas e para suas crianças. Além disso, interessa fazer emergir as redes de apoio construídas pelas mulheres escravizadas, libertas e livres; identificar as pessoas que faziam parte destas redes; e descortinar as possibilidades e os limites de suas estratégias de luta por liberdade. Para tanto, foram analisados documentos como ações de liberdade, inventários, leis emancipacionistas e assentos de batismos; registros que têm se mostrado úteis à história social no desafio de reconstituir a agência de personagens como Luiza (Grinberg, 1994GRINBERG, Keila. Liberata - a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dunará, 1994. ; Reis, 2007REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese (Doutorado em História Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2007.). É importante destacar que, por serem mulheres negras, elas ocupavam uma posição de grande vulnerabilidade (Crenshaw, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, pp. 171-188, 2002., pp. 171-188; Gonzalez, 1982GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira. In: LUZ, Madel T. (Org.). O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de Janeiro: Graal, 1982. pp. 87-105., pp. 87-105). No entanto, por conta da tradição de atrair pessoas em torno de si mesmas, desenvolveram a capacidade de canalizar essas relações para a conquista da liberdade legal nas últimas décadas de escravidão.

REDE DE APOIO EM BUSCA DA LIBERDADE

Ao que parece, assim como outras mulheres investigadas, Luiza não era sozinha e conseguiu mobilizar várias pessoas em torno de seu projeto de liberdade em família. Certamente, muitas outras ficaram por ser conhecidas, mas, felizmente, não foram poucas aquelas que tiveram seus nomes e suas narrativas impressas nas páginas de certos documentos levados às autoridades judiciais, como a declaração coletiva anexada à petição inicial que deu início a esta ação judicial. Eis uma boa oportunidade para que a leitora ou o leitor tenham acesso a fragmentos importantes desta história de luta por liberdade na Bahia:

Abaixo assinado

Declaração

Nós, abaixo residentes na freguesia de Santa Bárbara declaramos e juramos, se preciso for, que Luiza do domínio de José Manuel Pinto, morador no Jundiá, desde o ano de 1879, reside, com seus filhos ingênuos Rita, Fellipe, Jeronyma, Pedro, Francellina e Aurelio, em casa própria e com economia própria nesta [...] freguesia completamente isentado do poder dominical e em verdadeiro estado de abandono, sem receber do mesmo Pinto nenhuma ajuda para sua subsistência, nem socorro algum em suas moléstias, sustentando os referidos seus filhos ingênuos com seu trabalho, sem que o mesmo seu senhor a mantenha em sujeição e mesmo manifeste querer mantê-la sob sua autoridade. E por verdade, a nos ser devido pedido assinamos o presente. Santa Bárbara, 16 de dezembro de 1883.

Quintiliano Francisco dos Santos,

Manuel José Pinto,

Ignacio Santana de Jesus,

José Vicente de Oliveira,

José Ferreira da Silva Carneiro,

Antonio Soares Cordeiro,

Antonio Gonçalves da Silva, (Arogo) Manuel Vicente Araujo,

Antonio Gonçalves da Silva, [...], (Arogo) de João Cordeiro de Oliveira,

José Cordeiro de Almeida,

Firmino Ribeiro Nunes,

Antonio Ribeiro Nunes Lima,

Manuel Hilario de Jesus (Arogo do meu pai Luiz) Alfredo Carneiro da Silva.

Reconheço as firmas supra [...]. Cidade da Feira, 21 de Janeiro de 1884. Francisco Pedreira França (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fls. 3-3v).

O abaixo assinado permitiu depreender que Luiza era articulada o suficiente para conseguir que esses 13 homens, certamente livres e, no mínimo, de algum prestígio local, se posicionassem na querela entre ela e seu proprietário, José Manuel Pinto. Encontrei, entre os documentos da província da Bahia, dois inventários que ajudam a saber um pouco sobre dois deles. Em 1859, José Cordeiro de Almeida foi o inventariante dos bens de sua primeira esposa, Alexandrina Maria de Oliveira, com quem tivera 2 meninas e 2 meninos, à época, ainda menores de idade. Entre os bens do casal, que tinha poucas posses, havia a casa onde moravam, dois cavalos, alguns móveis e um cativo chamado Marcello, crioulo, de 25 anos, rendido e avaliado em 800 mil-réis (Tribunal de Relação da Bahia, 1885-1890TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Partilha amigável - Inventariada, Alexandrina Maria de Oliveira; inventariante, José Cordeiro de Almeida, Feira de Santana; Sessão Judiciária, Inventário, 1/224/409/04. fls. 4v-5. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1885-1890., fls. 4v-5).

Outro assinante da declaração, Firmino Ribeiro Nunes, faleceu no ano seguinte ao documento, sendo inventariado por sua esposa, dona Carlota Ribeiro Nunes, deixando 10 herdeiros, além da mencionada esposa. O casal tinha uma situação financeira melhor do que a da família mencionada anteriormente, tendo sido listado, entre os bens, alguns móveis, 10 cabeças de gado, alguns outros animais e uma fazenda com suas benfeitorias. Havia ainda seis pessoas escravizadas, duas mulheres e quatro homens (Tribunal de Relação da Bahia, 1885-1890TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Partilha amigável - Inventariado, Firmino Ribeiro Nunes; inventariante, Carlota Ribeiro Nunes, Feira de Santana, Sessão Judiciária, Inventário, 1/238/361/09. fls. 7-9. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1885-1890., fls. 7-9). Tratava-se de pequenos proprietários, e esse era provavelmente o caso dos demais.

Além de afirmarem que Luiza tinha passado por dificuldades devido ao abandono que sofreu, os assinantes do abaixo assinado se preocuparam em explicitar que ela foi acometida por problemas de saúde, ainda que a referência a estes tenha sido feita apenas genericamente. Ela sofria de “moléstias”, aliás, generalização comum aos males que acometiam as pessoas escravizadas.

De qualquer maneira, Luiza também não deu detalhes quando fez referência a suas enfermidades: talvez nem ela soubesse ao certo quais eram os males que sofria, ou preferisse não tratar disso com homens. Diferente das mulheres da elite, notadamente brancas, que eram educadas para não falarem de seus corpos por recato, no caso de Luiza o silêncio certamente estava relacionado à preferência comum entre as mulheres negras de tratar de suas enfermidades com outras negras, visto que compartilhavam dos mesmos códigos e da mesma linguagem culturais. Era às mulheres - que apareciam no discurso médico baiano, nas últimas décadas do século XIX, como praticantes de charlatanismo - que elas preferiam confiar assuntos tão íntimos, e as autoridades médicas sabiam desta preferência (Barreto, 2001BARRETO, Maria Renilda Nery. Doenças da mulher na Bahia do século XIX. In: SARDENBERG, Cecilia Maria Bacellar; VANIN, Iole Macedo; ARAS, Lina Maria Brandão de (Orgs.). Fazendo gênero na historiografia baiana. Salvador: NEIM; FFCH; UFBA, 2001. pp. 27-34., pp. 33-34; Sampaio, 2001SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial. Campinas: Editora da Unicamp , 2001., p. 25; Viana, 2021VIANA, Iamara. Senzalas e casebres sob sevícias: violência, feminicídios, médicos e corpos. In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. (Orgs.). Ventres livres?: Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Editora Unesp, 2021. pp. 63-83., pp. 66-73).

Ao descortinar a história de Luiza e sua família, foi possível observar perdas muito comuns a outras famílias negras naquele tempo. Um de seus filhos, André, também mencionado acima, faleceu com apenas cinco meses de idade. É importante lembrar que, entre 1871 e 1888, 85,8% dos óbitos de crianças nascidas de mulheres escravizadas, em Feira de Santana, aconteciam no período entre 0 a 3 anos de idade (Damasceno, 2019DAMASCENO, Karine Teixeira. Para serem donas de si: mulheres negras lutando em família (Feira de Santana, Bahia, 1871-1888). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019., pp. 96-99). Diante de uma alta taxa de mortalidade, não é exagero afirmar que as crianças escravizadas e ingênuas que ultrapassavam essa faixa etária eram verdadeiras sobreviventes das péssimas condições de vida às quais elas e suas mães estavam submetidas naqueles anos.

De fato, as especificidades da escravidão feminina não influenciavam apenas suas vidas. Pelo contrário, refletiam diretamente na vida de suas filhas e de seus filhos pequenos, pois, além das péssimas condições sanitárias e da desnutrição dessas mulheres, mesmo durante o período da gravidez, era comum que fossem submetidas a trabalhos exaustivos e, uma vez que davam à luz, voltavam para o trabalho quase que imediatamente (Davis, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. , pp. 20-22). Algumas dessas mães trabalhadoras sequer puderam amamentar suas crianças, como era comum entre as amas de leite, que, na melhor das hipóteses, tinham que dividir seu leite entre o seu bebê e as crianças recém-nascidas da família senhorial - destaque-se que estas deveriam ser priorizadas em relação àquele (Machado, 2012MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Entre dois Benditos: histórias de amas de leite no ocaso da escravidão. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flavio (Orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro Edições, 2012. pp. 199-213., pp. 199-213).

De acordo com os aliados de Luiza, apesar de tantas adversidades, ela não só conseguiu sobreviver garantindo a própria subsistência e a de suas crianças com o fruto do próprio trabalho, como adquiriu uma residência própria onde moravam. Como Luiza conseguiu atrair para seu lado aliados tão determinados a tomar posição a seu favor? Ela contou com o apoio de quais familiares para enfrentar tantas dificuldades? Quais eram as ocupações mais possíveis de terem sido realizadas por Luiza naquela época?

No período de 1871 e 1879, ao dar à luz sete crianças naturais, podemos acreditar que ela tenha tido, pelo menos, um relacionamento sexo-afetivo que escapou do controle da Igreja. Portanto, embora seu curador não tenha feito referência à presença de nenhum companheiro, ao que tudo indica, Luiza não era uma mulher sozinha também neste âmbito. Os indícios não param por aí, e sugerem que, provavelmente, o pai de algumas de suas crianças - ou de todas elas - estivesse nos bastidores, tramando junto com ela a melhor estratégia para apresentar uma história de liberdade plausível aos olhos dos juízes.

Nesse sentido, o depoimento de Lourenço Moreira - pardo, de 40 anos, solteiro, natural da freguesia da Gameleira e morador de um lugar chamado Saco, na freguesia de Santa Bárbara, onde vivia da lavoura - foi bastante revelador de como os arranjos familiares não reconhecidos pela Igreja poderiam ser condenados aos olhos dos homens da lei e poderiam ser usados contra as mulheres que procuravam a justiça, acusando seus senhores ou supostos senhores de cativeiro injusto (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fls. 13v-15).

O advogado do senhor, José Manuel Pinto, perguntou a Lourenço Moreira se ele tinha “amizade íntima com a escrava Luiza”, se era seu vizinho, qual era a distância entre a casa de ambos e, ainda, se eles tinham filhos juntos. O defensor concluiu as perguntas afirmando ser notório que ela mantinha “relações ilícitas” com a mencionada testemunha, o que indicava que, mais do que simples perguntas, tratava-se de acusações.

Em um contexto de padrões morais tão rígidos quanto ao comportamento sexo-afetivo das pessoas, especialmente das mulheres, direcionar o depoimento de testemunhas a este aspecto da vida das autoras era uma boa estratégia da defesa para desqualificar o depoimento de alguns homens que se levantavam na defesa dessas mulheres. Diante da pergunta embaraçosa, a resposta de Lourenço Moreira foi afirmativa no tocante à relação entre ambos, mas ele fez questão de registrar que não eram mais amasiados. Além disso, declarou ser vizinho de Luiza, algo importante de se dizer, considerando que, em seu depoimento, ele afirmou saber a situação em que vivia a libertanda3 3 Tomando como referência a documentação analisada, o termo “libertanda” busca traduzir a “condição” de pessoas escravizadas ou ameaçadas de reescravização ao longo dos processos judiciais por meio dos quais tentavam conquistar a liberdade legal. Sobre os desafios enfrentados por pessoas escravizadas, libertandas e livres na luta por liberdade e autonomia, cf. Castilho e Machado (2018). .

Devido aos valores da época impostos a todas as mulheres, inclusive às escravizadas, ao admitir o que talvez fosse inegável, o mais estratégico a fazer talvez fosse, de fato, dizer que a relação havia acabado. Assim, amenizaria o impacto dos efeitos negativos que essa confirmação poderia causar na imagem da autora, em razão de se tratar de algo de grande relevância sobre a sua vida, que colocava a sua credibilidade em xeque. Ao pretender conquistar a liberdade legal, ela precisava se afastar da imagem de “imoral” que a elite entendia como própria às mulheres escravizadas e se aproximar, ao máximo, do modelo de feminilidade exigido para as mulheres “civilizadas” (Cowling, 2018COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2018. , pp. 263-282).

Com efeito, no caso de Luiza, apresentar-se como uma mulher dedicada a cuidar apenas do bem-estar de suas filhas e de seus filhos era bem mais aceitável do que aparecer como uma mulher que vivia uma relação “ilícita”. Já no que concerne a Lourenço Moreira, desconfio não ser verdadeira a sua negação de que tinha filhos com Luiza - além do prejuízo à imagem da suplicante, confirmar a paternidade das crianças era uma forma de mostrar que ele estava depondo em causa própria, uma vez que, enquanto pai, teria o interesse direto na sentença favorável à liberdade. De qualquer maneira, o que interessa para esta investigação é saber que, dentre os aliados de Luiza e suas crianças, havia um homem com quem, em algum momento da vida, ela teve um envolvimento sexo-afetivo, e a solidariedade era componente que persistia até aqueles dias cruciais para o futuro da família.

Além disso, no registro de matrícula da suplicante, há ao menos duas coisas importantes para se inferir sobre sua rede de apoio. Luiza foi matriculada como uma escravizada capaz de qualquer trabalho da lavoura, e como “cria”. Esta última informação não significa exatamente que ela havia sido criada tendo acesso à casa senhorial. O mais provável é que a sua matrícula como “cria” se deva ao fato de ela ser filha de uma escravizada da família Pinto. Luiza provavelmente trabalhava tanto na lavoura quanto realizando serviços próprios do âmbito doméstico e, possivelmente, no comércio de produtos na feira livre de Feira de Santana ou, ainda, em alguma feira menor em Santa Bárbara e nas localidades ali próximas - atribuições plausíveis de terem feito parte do cotidiano de trabalho de mulheres negras como Luiza naqueles anos, na região.

Nesse sentido, não custa destacar que, assim como a maior parte do município, a freguesia de Santa Bárbara era uma região essencialmente rural e com características sertanejas mais acentuadas que outras partes. Por sua localização, ela era uma das portas de entrada para Feira de Santana, caminho tanto para acesso ao Sertão quanto para o distrito sede e, consequentemente, para o Recôncavo e a capital, e vice-versa. Essa característica trazia possibilidades mais variadas de trabalho, visto que a mencionada freguesia funcionava como uma espécie de entreposto comercial dentro de um entreposto maior.

O trânsito de Luiza no “mundo do trabalho” era composto por três cenários - o rural, o doméstico e o comércio. Provavelmente, foi se dedicando aos serviços deste último que acumulou quantia suficiente de dinheiro para o sustento da família, valor que lhe possibilitou ainda fazer uma poupança para adquirir alguns poucos bens, como, por exemplo, a casa onde morava com suas crianças. Essa conquista, para uma escravizada que vivia “sobre si”, não era pouca coisa, pois ela certamente precisou de algum recurso para a construção, bem como para a subsistência familiar.

No entanto, certamente foi a labuta no interior da casa senhorial e no comércio que a pôs em contato com vários outros trabalhadores e trabalhadoras que passavam por ali, e permitiu que tivesse maior acesso ao mundo dos brancos, integrantes da classe senhorial, proprietários de casas comerciais, de terras e de pessoas. Ao que tudo indica, ela conseguiu estabelecer uma aliança com alguns desses homens.

A acusação optou por não apresentar, judicialmente, mulheres em defesa da autora. Não custa lembrar que a declaração em defesa de Luiza contava apenas com assinaturas masculinas. Isto é, a opção por não ouvir ou investir na versão de mulheres pôde ser verificada tanto neste caso como em outros analisados, nos quais também apenas homens foram ouvidos como testemunhas (Damasceno, 2019DAMASCENO, Karine Teixeira. Para serem donas de si: mulheres negras lutando em família (Feira de Santana, Bahia, 1871-1888). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.).

Segundo José Manoel Pinto, a parda Luiza fora emprestada para suas três irmãs − Bernadina, Luiza e Alvira, ora uma, ora outra − e, por diversas vezes, ele teria ido até a residência destas para reavê-la, mas acabava recuando, quer porque a escravizada estava grávida, prestes a dar à luz, quer atendendo ao pedido das irmãs para que esta permanecesse com elas sob qualquer outro protesto; pedidos que ele sempre atendeu (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fl. 12). A julgar pela declaração do réu, as três mulheres residiam no mesmo endereço, possivelmente na casa da família Pinto. Nenhuma delas, porém, foi relacionada como testemunha das partes, sendo que não houve qualquer referência à existência de seus respectivos maridos, algo que dificilmente ocorreria se alguma delas fosse casada.

De acordo com a observação registrada na matrícula de Luiza, José Manuel Pinto adquiriu o direito à sua propriedade em 28 de março de 1879, quando foi julgada a partilha de herança, provavelmente dos pais falecidos (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fls. 19v-20). A morte do senhor poderia significar mudanças positivas na vida das pessoas cativas. De qualquer maneira, geralmente tratava-se de uma fase de incertezas que poderia se desdobrar em frustrações e tristezas. Nas alforrias condicionais, por exemplo, nem sempre os familiares aceitavam a alforria concedida e, além disto, o passamento da senhora ou do senhor poderia significar a separação de familiares e de companheiros de cativeiro, bem como a necessidade de adaptação a um novo ambiente de moradia e à personalidade de um novo senhor (Chalhoub, 1990CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras , 1990. , p. 111).

No caso de Luiza, ao que parece, ela se viu envolvida em um duelo familiar e tentou tirar proveito disto. Na partilha da herança, é crível que Alvira, Bernadina, Luiza e Manoel José Pinto também tenham herdado alguns bens, como a casa em que as irmãs moravam, mas isto não significa que a partilha tenha sido satisfatória para todas as partes envolvidas4 4 É preciso atentar para que não se confundam os dois irmãos do sexo masculino, cujos nomes mudam apenas de ordem. O réu chama-se José Manoel Pinto. . De qualquer maneira, é possível que parte da família não tivesse ficado satisfeita com o que lhe coube na divisão dos bens. Independentemente do motivo, a efetivação do domínio por seu novo senhor, na prática, não aconteceu, pois, de acordo com a versão da libertanda e do próprio réu, desde 1879 - ou seja, o ano da partilha - ela não viveu sob seu domínio em nenhum momento. A relutância para a permanência da escravizada com as três irmãs, se, de fato, ocorreu, pode ter sido uma maneira encontrada pelas mulheres de resistirem ao modo pelo qual os bens foram divididos.

A suspeita de que havia, no interior da família, pontos de tensão, aumentou ainda mais quando observei que, em seu depoimento, José Manoel Pinto afirmou, quase como se estivesse fazendo uma denúncia, que, entre os assinantes do abaixo assinado, estava seu irmão, Manoel José Pinto. Embora sem tecer maiores comentários em relação ao envolvimento deste na manifestação coletiva, esta observação foi bastante sugestiva de que a relação entre ambos não era boa.

No tocante aos demais, José Manoel Pinto afirmou que eles não tinham nenhuma consciência do que estavam assinando, ou seja, ao mesmo tempo em que desqualificou os outros 13 assinantes do abaixo-assinado, o réu também sugeriu que seu próprio irmão - o único que, sob seu ponto de vista, sabia o que estava assinando - tramava para prejudicá-lo. A prova disso é que teria convencido os outros homens a incluírem seus nomes em um documento cujo conteúdo era falso (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fl. 12).

No entanto, contrariando o ponto de vista do proprietário de Luiza, pelo menos dois assinantes do abaixo-assinado tinham algo a dizer sobre o caso e sobre a suplicante, e foram ouvidos em juízo: Manuel Vicente Araujo - branco, de 30 anos, solteiro, natural e residente na freguesia de São José das Itapororocas, mais especificamente na localidade denominada como Saco do Capitão (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fls. 12v-13, 23); e Manuel Hilario de Jesus - crioulo, de 40 anos, natural e morador da freguesia de Santa Bárbara. Ambos disseram viver da lavoura e confirmaram saber que Luiza havia sido abandonada, isto é, que a libertanda estava “vivendo sobre si” (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fls. 15-16).

Diante da inegável divergência entre os dois irmãos chamados Manoel da família Pinto, e a julgar pela própria declaração do réu ao se defender, dizendo que as irmãs sempre insistiam para continuar com Luiza e as crianças, é plausível acreditar que, nessa queda de braço familiar, fossem quatro contra um. Além disso, em nenhum momento o curador de Luiza fez qualquer referência à sua permanência na casa das três mulheres, mas não se deu ao trabalho de negar que a escravizada esteve a serviço das referidas irmãs. Imagino que Luiza pode ter servido às três, seja nos cuidados com a casa, seja realizando trabalhos porta afora, como o de ganhadeira, e repassasse uma parte às mencionadas senhoras. Evidentemente, a realização deste tipo de trabalho pode ter sido fundamental para que ela pudesse acumular algum dinheiro que garantiria a sobrevivência de sua família.

Este arranjo de trabalho contribuiu sobremaneira para ampliar as possibilidades de contato de Luiza com outras pessoas, fortaleceu vínculos já construídos de apoio mútuo com outras tantas e viabilizou a proteção de gente com mais recursos que não era necessariamente integrante da família Pinto, ainda que algumas dessas pessoas tivessem relação com esta família.

De qualquer maneira, Luiza soube mover todas as peças desse quebra-cabeça no sentido de conseguir adesão à sua causa. Colocou ainda mais lenha na fogueira ao conseguir, até mesmo, que o irmão do réu aceitasse enfrentá-lo judicialmente, posicionando-se a favor dela, como foi possível constatar na declaração coletiva, uma vez que, no mínimo, Manoel José Pinto assinou a declaração defendendo a suplicante. Obviamente, ninguém era ingênuo nesse jogo e, inclusive, não é difícil que a ideia de mover uma ação de liberdade tenha partido desses familiares insatisfeitos com a partilha judicial dos bens herdados. Entretanto, o interesse aqui é observar a capacidade desta mulher de aproveitar a oportunidade e apostar alto para ser legalmente livre e garantir o mesmo para suas seis crianças.

RELAÇÕES DE COMPADRIO EM FEIRA DE SANTANA, 1871-1888

Ao esmiuçar os assentos de batismos da paróquia de Santa Bárbara, mais especificamente o livro de assentos de “crianças nascidas de mulheres escravizadas” - uma vez que, depois da lei de 28 de setembro de 1871, passou a ser obrigatória a existência de um livro específico para essas crianças 5 5 Conforme a lei de n. 2.040, de 28 de setembro de 1871, § 5° do artigo 8°, as crianças que nascessem de mulheres escravizadas deveriam ter seu assento de batismo registrado em um livro específico. -, encontrei outras informações sobre, pelo menos, duas crianças de Luiza, e constatei que, na luta por melhores condições de vida no cativeiro e por liberdade em suas escolhas para compadrio, Luiza teve comportamento semelhante ao de outras mães negras de seu tempo.

Os assentos de batismos indicaram que a decisão de estabelecer laços formais de parentesco com determinadas pessoas era uma escolha que poderia ir além dos vínculos afetivos. De acordo com esses documentos, em 2 de fevereiro de 1880, o vigário Solon Garcia Pedreira mandou informar que, naquele dia, havia sido realizado o batizado do menino Pedro, de cor fula, de 7 meses e 3 dias, filho de Luiza, também de cor fula, do domínio de José Manoel Pinto. Seus padrinhos foram José Correia e Aneceta Maria. No mês seguinte, em 25 de março de 1880, outra criança filha de Luiza foi levada também pelo proprietário na mesma paróquia. Desta vez, o batizado foi da pequena Jeronyma, de apenas 4 meses e 25 dias. Nesta ocasião, a relação de compadrio firmada foi com Maria Cordeiro de Oliveira e José Cordeiro d’Almeida (Registro de batismo da paróquia... s.d.REGISTRO DE BATISMO DA PARÓQUIA de Santa Bárbara. f. 3v. s.d. Disponível em: Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:939N-RFHK-V?i=5&wc=M7ZY-MP8%3A369940601%2C369940602%2C369977201&cc=2177272 . Acesso em: 24 jan. 2019.
https://www.familysearch.org/ark:/61903/...
). Não tenho dúvida de que se trata da mesma mãe, por isso, provavelmente houve um erro do vigário ao escrever a idade de uma das crianças, pois, não sendo irmãos gêmeos, a diferença entre os dois nascimentos deveria ser de, no mínimo, sete meses.

Apesar de a madrinha e de o padrinho de Pedro não terem aparecido novamente na documentação, a falta de informações sobre a condição dos dois no assento é um forte indicativo de que eram pessoas nascidas livres ou libertas. No entanto, o fato de o sobrenome da madrinha não ter sido informado pelo pároco não significa, necessariamente, que se tratasse de uma mulher escravizada, pois, apesar da informalidade comum aos assentos, no caso de madrinhas e padrinhos escravizados era recorrente que o nome das pessoas a quem pertenciam fosse registrado; informação que não apareceu neste registro feito pelo vigário. Outros dados, como origem, cor e idade do casal escolhido para padrinho, não costumavam ser informados.

No tocante à informalidade verificada nos registros dos livros de assentos de batismos analisados, é importante observar que, nas paróquias de Feira de Sant’Anna e de Humildes, as informações apareceram de modo mais detalhado do que nas outras duas paróquias, a de Bomfim e a de Remédios da Gameleira. Atribuo o maior rigor no registro da paróquia de Sant’Anna à sua visibilidade, uma vez que se tratava da igreja matriz, localizada na região mais urbanizada do município. Já no caso da paróquia de Humildes, o cuidado ainda maior no registro pode ter a ver com o grande número de pessoas escravizadas pertencentes a grandes proprietários, por isso, certamente os párocos se viam obrigados a ser mais detalhistas nos registros, inclusive informando o nome das testemunhas do batizado das crianças ingênuas e do procurador do proprietário, no caso de sua ausência - aliás, conforme determinava a lei6 6 Decreto, n. 5.135, de 13 de novembro de 1872. Art. 3°. Cf. Silveira (1876, p. 32). . Cabe lembrar que, na época, os assentos de batismos serviam como comprovantes da propriedade escravizada.

Apesar de os nomes do casal escolhido para compadrio serem informações regulares nos assentos, por vezes o sobrenome de ambos não foi registrado, sendo que, quando isso ocorria, geralmente era o sobrenome da mulher que não constava. Isto é, nesses casos, a informação sobre a madrinha era totalmente dispensada, o que nunca acontecia com o padrinho. Muitas vezes, ao invés do nome da madrinha, eram feitas referências a santas católicas como “Nossa Senhora”, “Nossa Senhora da Conceição”, “Nossa Senhora das Victórias” e “Nossa Senhora dos Remédios”, as quais eram escolhidas como madrinhas e, consequentemente, protetoras das crianças. Desse modo, tais santas, juntamente com o padrinho, cumpriam o papel tradicional-prático de proteger a criança batizada, substituindo as madrinhas; algumas vezes, também apareciam, nos assentos, dois homens como padrinhos e nenhuma madrinha.

Para traçar um perfil abrangente de mães, crianças, madrinhas e padrinhos registrados nos livros de batismos de Feira de Santana, foram analisados assentos das quatro paróquias em que foi possível encontrar informações que cobrissem os anos de 1871 a 1888. Nestes livros, havia assentos de crianças escravizadas, ingênuas e livres das paróquias de Bomfim, de Feira de Sant’Anna, de Humildes e de Remédios da Gameleira7 7 Para melhor análise dos dados, optei por não utilizar os registros anteriores ao dia 28 de setembro de 1871 e posteriores a 12 de maio de 1888, já que em tais períodos houve mudanças legais na condição de pessoas registradas nos assentos. Isto é, antes do primeiro período não havia ingênuos e depois do segundo não havia mais pessoas escravizadas. . Os registros paroquiais em que encontrei apenas dados parciais para o período - Gameleira, Bom Despacho, Santa Bárbara e Tanquinho - foram consultados sempre que foi necessário procurar alguém no tempo. Exceto no caso das paróquias nas quais nenhum assento de batismo para o período foi encontrado - Almas e São José das Itapororocas.

Tabela 1
Condição de madrinhas e padrinhos, 1871-1888

Desse modo, a Tabela 1 possibilitou constatar que, dentre 10.293 casais chamados para batizar crianças nas quatro paróquias, observando por sexo e condição, apenas 123 madrinhas, 1,2%, e 137 padrinhos, 1,3%, eram de condição escravizada, sendo que, observando separadamente, no que diz respeito à paróquia de Humildes, no máximo 68 madrinhas, 1,5%, e 83 padrinhos, 1,8%, eram escravizados. Isso explicitou que esse grupo praticamente não era escolhido para batizar crianças nessas paróquias. Por outro lado, no período selecionado, as mulheres livres representavam 98,7% das madrinhas (ou 10.161 assentos), enquanto que os homens desta condição foram 10.152, isto é, 98,6% daqueles confiados para compadrios.

Diferentemente do que informou o recenseamento populacional de 1872, o qual indicou que havia uma presença expressiva de pessoas de condição liberta no município, por meio dos assentos não foi possível verificar esses dados, pois os párocos das paróquias analisadas não faziam distinção entre as pessoas libertas e aquelas nascidas livres, ao fazer os registros dos assentos de batismos (Instituto Brasileiro de Geografia... [1872]INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia: s.n. [1872]. p. 160., p. 160). No entanto, embora não fosse uma necessidade da Igreja tal distinção, o mesmo não posso afirmar para a pesquisa historiográfica, pois se trata de grupos com especificidades que não podem ser tomadas como universais para toda a população negra livre. Daí a importância de, sempre que foi possível, cruzar esses dados com outros documentos.

Nesse sentido, a obrigatoriedade de que a Igreja tivesse um livro de batismo apenas para ingênuos, como determinava a lei de 28 de setembro de 1871, foi, ao que parece, cumprida parcialmente em Feira de Santana, uma vez que as mulheres escravizadas continuaram tendo o assento de suas crianças incluído no livro geral. Isso foi observado em todas as paróquias em que encontrei ambos os livros de registros, mesmo parciais, como a de Santa Bárbara.

Com efeito, em pelo menos duas paróquias, Humildes e de Sant’Anna, além dos batismos registrados no livro geral também encontrei livros específicos para crianças ingênuas, concernentes a quase todo o período compreendido entre 1871 e 18888 8 Na paróquia de Humildes, encontrei assentos até 25 de setembro de 1887. . Para análise desses dados, optei por não os incluir nos livros gerais das paróquias, pois observei que várias crianças foram registradas em ambos os livros, por isso mesmo, para evitar contabilizá-las duas vezes, analisei esses dados específicos separadamente.

Portanto, embora a Tabela 1 apresente um universo abrangente de escolhas para compadrio, assim como sobre a condição destes, os livros de ingênuos ofereceram uma oportunidade singular para analisar especialmente o comportamento de mães escravizadas nas escolhas para compadrio nas paróquias de Sant’Anna e de Humildes, as quais, apesar de fazerem parte do mesmo município, apresentavam realidades distintas, que certamente influenciaram na procura ou não dos vigários para realizarem o batizado das crianças ingênuas, bem como na escolha dos casais para a relação de compadrio.

Tabela 2
Compadrio por sexo e condição, 1871-1888

Conforme a Tabela 2, nas paróquias de Humildes e de Feira de Sant’Anna foram escolhidos 1.202 casais para batizarem crianças ingênuas. Destes, as mulheres escravizadas foram chamadas para madrinhas 111 vezes, 9,2%, enquanto os homens desta mesma condição foram à pia batismal 107 vezes, isto é, 8,9%, dos padrinhos eram escravizados, sendo que, em muitos casos, essas pessoas batizaram mais de uma criança. Ainda que a porcentagem tenha sido pequena, os dados indicam que, neste universo específico, houve uma maior opção por pessoas da mesma condição das mães que batizaram crianças, em relação aos assentos analisados na Tabela 1. Por sua vez, as mulheres livres foram madrinhas 1.086 vezes, 90,3% delas. No que diz respeito aos homens, 1.092 foram padrinhos, o que representava 90,8% do total. Com efeito, as pessoas livres foram priorizadas para a relação de compadrio nos dois cenários apresentados pelas tabelas, no entanto, com uma margem um pouco menor de diferença na Tabela 2 em relação à Tabela 1.

Se, por um lado, os dados de ambas as tabelas demonstraram a não opção por madrinhas e padrinhos escravizados, por outro, ficou explícito que havia uma preferência por estabelecer relações de compadrio com pessoas de uma condição social superior. Isso foi verificado inclusive no universo de mães cativas de Feira de Santana. Esses dados evidenciaram que essas famílias estavam atentas à importância de terem comadres e compadres estratégicos. Escolhas similares também foram observadas em outras localidades da Bahia, assim como em outras províncias do Império.

Vasculhando a documentação referente ao Alto Sertão da Bahia concernente a períodos diferentes, Gabriela Amorim Nogueira, olhando para o século XVIII, e Napoliana Nogueira, para o seguinte, observaram que, embora a opção por estabelecer relações de compadrio com escravizadas e escravizados ocorresse na região, o mais comum foi que mães e pais escravizados escolhessem estabelecê-las com pessoas livres, pois viam com esse vínculo a possibilidade de ampliar as relações e garantir à criança e à sua família uma rede de apoio com mais condições de ajudar em momentos de necessidade (Nogueira, 2011NOGUEIRA, Gabriela Amorim. “Viver por si”, viver pelos seus: famílias e comunidades de escravos e forros no “certam de Sima do Sam Francisco” (1730-1790). Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de Ciências Humanas, Universidade do Estado da Bahia. Santo Antônio de Jesus. 2011., pp. 135-138; Santana, 2012SANTANA, Napoliana Pereira. Família e microeconomia escrava no sertão do São Francisco (Urubu - BA, 1840 a 1880). Dissertação (Mestrado em História Regional e Local) - Departamento de Ciências Humanas, Universidade do Estado da Bahia. Santo Antônio de Jesus, 2012., pp. 66-72).

Por sua vez, analisando o comportamento de mães e pais em grandes propriedades de Campinas, Robert Slenes notou que mães e pais escolhiam, para estabelecer relações de compadrio, pessoas com recursos materiais e humanos, sendo que havia uma preferência por madrinhas e padrinhos livres, especialmente aquelas pessoas nascidas livres. Slenes concluiu ainda que, nas fazendas pesquisadas, mães e pais do serviço doméstico qualificado escolhiam para compadrio pessoas que tinham a mesma ocupação que eles, preterindo os casais que trabalhavam na “roça/lavoura”, pois, além de terem mais dificuldade de acumular pecúlio, estes tinham menos condições de influenciar nas decisões senhoriais (Slenes, 1997SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.); ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras , 1997. pp. 233-290. , pp. 264-273)

Para Feira de Santana, a pesquisa quantitativa e a qualitativa informam que, dentro da estratégia de construir e fortalecer relações de apoio mútuo, as escolhas de Luiza foram ao encontro das opções que geralmente eram feitas por quase 100% das mães escravizadas que tinham crianças ingênuas. Ou seja, ela também valorizou a importância de construir alianças e garantir alguma proteção de pessoas que ocupassem uma posição superior à dela na sociedade, as quais, por isso, teriam mais condições de apoiarem-na em caso de necessidade.

Nesse sentido, embora seja difícil saber quem escolhia a madrinha e o padrinho das crianças - assim como poderia ser a mãe e o pai, é possível que outras pessoas interferissem nessa decisão, como os proprietários, ou até mesmo os párocos -, obviamente isso não diminuía a importância das relações de compadrio na vida da família da criança, evidenciando apenas que componentes horizontais e verticais estavam presentes na realização dessas escolhas. Nesse sentido, Stephen Gudeman e Stuart Schwartz, analisando assentos de batismos de paróquias do Recôncavo Baiano no século XVIII, e Slenes, cruzando os assentos com matrículas de Campinas no século XIX, notaram que os proprietários não eram escolhidos ou optavam por não estabelecer relações de compadrio com as pessoas que escravizavam (Gudeman; Schwartz, 1988GUDEMAN, Stephen; SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. pp. 33-59., pp. 40-43; Slenes, 1997SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.); ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras , 1997. pp. 233-290. , pp. 264-273).

Em Feira de Santana, eles também não costumavam ser escolhidos, ou não aceitavam assumir esse tipo de relação com essas famílias, mas isso não quer dizer que muitas madrinhas e muitos padrinhos escolhidos não fossem pessoas da confiança da família senhorial. Isso denuncia o quanto essas relações poderiam ser complexas.

No caso de Luiza, parece que, pelo menos no tocante a um dos padrinhos, a estratégia adotada foi bem sucedida. José Cordeiro d’Almeida apareceu, pela primeira vez na documentação, entre os assinantes da declaração apresentada no início deste trabalho, a qual tinha como objetivo reforçar a acusação de que Luiza havia sido abandonada por seu proprietário; e, depois, como inventariante dos bens de sua esposa, permitindo depreender que ele possuía poucos bens à época. Não é difícil que, enquanto padrinho de Jeronyma, ele tivesse acompanhado as dificuldades enfrentadas pela família da afilhada mais de perto, até mesmo auxiliando-a de alguma forma, visto ser muito comum haver, nas relações de compadrio, esse tipo de postura. Aliás, esperava-se esse tipo de solidariedade de um padrinho ou compadre que levasse a sério o compromisso firmado no ato do batismo.

Imagino que Luiza tenha entrado em contato com José Cordeiro d’Almeida e sua segunda esposa, Maria Cordeiro d’Oliveira, por meio de seus antigos senhores. Assim, é plausível pensar que ele tivesse outras motivações para se envolver no conflito a favor da libertanda além de apenas socorrê-la, como, por exemplo, atender a um pedido de um dos irmãos que duelavam, isto é, de Manoel José Pinto. Não é difícil que especialmente essa relação tenha contribuído de maneira bastante particular para sua adesão ao abaixo assinado. Além disso, é preciso atentar que não era exatamente algo simples para um proprietário passar por cima dos interesses de seus próprios gênero, classe e raça, posicionando-se ao lado de uma escravizada movido apenas pelo vínculo firmado diante da pia batismal, por mais que o levasse a sério.

Evidentemente, não estou querendo negar com isso a existência do interesse do compadre de Luiza em ajudá-la, e sim destacar que os laços de compadrio poderiam não ser suficientemente fortes para superarem os interesses comuns entre ele e o réu. Por isso mesmo, o duelo entre os dois irmãos da família Pinto pode ter sido determinante para a decisão de José Cordeiro d’Almeida de se posicionar contra José Manoel Pinto na ação judicial. De qualquer maneira, a estratégia adotada por Luiza, de estabelecer relações de compadrio com pessoas de posição social superior à dela, neste caso foi eficaz. Entretanto, nem sempre era possível contar com o apoio de um padrinho que tivesse relações tão estreitas com a família senhorial enfrentada nos tribunais (Damasceno, 2019DAMASCENO, Karine Teixeira. Para serem donas de si: mulheres negras lutando em família (Feira de Santana, Bahia, 1871-1888). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019., pp. 163-166).

A experiência de Luiza sugere que a interferência de alguns senhores na escolha da madrinha e do padrinho pode ter relação com o objetivo de tentar limitar as relações de solidariedade e de apoio mútuo entre a família da criança batizada e as pessoas escolhidas para estabelecerem relações de compadrio, evitando que elas firmassem esse vínculo com quem tivessem relações mais próximas, ainda que, muitas vezes, isso possa ter escapado do controle senhorial, como foi possível verificar neste caso.

O já citado casal Marcello Cordeiro e Rozaria Cordeiro, do domínio de José Cordeiro d’Almeida, adotaram a mesma estratégia que Luiza e outras milhares de mães escravizadas, ao escolherem seus compadres em Feira de Santana. A pequena Fellipa teve como madrinha Bernarda de Lima, e como padrinho Jacintho Ribeiro, provavelmente pessoas libertas ou livres. No entanto, diferente das crianças da escravizada Luiza, que foram batizadas como filha e filho naturais, enquanto filha legítima ela pôde ter em seu assento de batismo o nome do pai.

A despeito de todo o esforço de Luiza, de seu curador e de sua rede de apoio, o juiz de direito José Lustosa de Souza deu sentença contra a liberdade, mandando suspender o depósito e determinando que ela fosse entregue a José Manoel Pinto (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fls. 22v-23v). No entanto, o caso não acabou com sua derrota neste tribunal. Passados alguns dias, por meio de seu procurador, o proprietário denunciou que o depositário confiado pela justiça, Porcino Carneiro da Silva, não estava na cidade, e que ela estava na zona rural do município em um lugar denominado Saco do Capitão, na freguesia de São José da Itapororocas.

Não satisfeito com a denúncia, o proprietário pediu à justiça para que fosse incluída no mandado de levantamento do depósito a cláusula de captura e busca de Luiza, solicitando também o auxílio das autoridades policiais para descobrir o local exato onde ela se encontrava, com a justificativa de que chegou a seu conhecimento que “um amásio da predita escrava e outros” que a auxiliavam queriam opor-se à captura (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fls. 25-25v). A referência a “um amasio” de Luiza parece mais uma necessidade deste de fortalecer a suspeição sobre a credibilidade do depoimento de Lourenço Moreira. Tal informação reforça minha suspeita de que ambos continuavam mantendo um relacionamento sexo-afetivo, como acusou o advogado de defesa, o que fortalecia ainda os indícios de que ambos tinham filhas e filhos juntos.

A postura de José Manuel Pinto demonstrava que o clima de animosidade persistia entre as partes mesmo depois da sentença, e possivelmente ainda estava pior do que antes. A ação de liberdade não trouxe informações sobre a captura de Luiza, mas é provável que ela tenha se mantido escondida até recorrer da primeira sentença junto ao Tribunal de Relação da Bahia, adiando, ao menos, um cativeiro ainda mais difícil para ela e para suas crianças. Naquele mesmo mês, o advogado e procurador de seu proprietário foi notificado de que Luiza iria recorrer da sentença, evidenciando que, para ela e para as pessoas que a auxiliavam, aquela história não teria ponto final ali. No entanto, diferente do que pareceu supor o proprietário, sua opção era por continuar resistindo ao cativeiro em âmbito judicial, e não por meio de uma fuga definitiva, como pareceu temer o referido proprietário. Luiza não desistiria de conquistar, para si e para suas crianças, uma liberdade mais segura em um tempo de tanta instabilidade.

A ação de liberdade teve seu desfecho em maio de 1885, quando o juiz confirmou a sentença anterior, ou seja, Luiza e suas crianças ingênuas, Ritta, Felippa, Jerônyma, Pedro, Francelina e Aurelio, ainda precisariam continuar perseguindo o sonho da liberdade (Tribunal de Relação da Bahia, 1884TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884., fl. 32v). Tendo em vista o exposto na análise deste caso, não há razões para acreditar que o cativeiro enfrentado não fosse ainda mais “duro”. Contudo, a experiência fora marcante o suficiente para José Manuel Pinto saber que, se desrespeitasse certas leis emancipacionistas, Luiza não se furtaria a reivindicar os direitos que àquela altura ela e suas crianças conquistaram no Império. Com efeito, a capacidade de atrair pessoas para contribuir com os seus objetivos de liberdade, como já foi demonstrado, não lhe faltava, bem como a tradição de lutar por liberdade em família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto teciam suas redes de apoio, mulheres como Luiza deixavam ou faziam com que outras pessoas deixassem registros de suas histórias, seja nas folhas das ações judiciais, seja em documentos como os assentos de batismos. Busquei recuperar, tanto quanto possível, fragmentos desse passado que permitem que a leitora e o leitor possam conhecer o ponto de vista das mulheres escravizadas, libertas e livres aqui pesquisadas, e, quiçá, compreender os sentidos de suas escolhas em sua incansável luta por liberdade.

O cruzamento entre ações de liberdade, inventários, leis emancipacionistas e os assentos de batismos de paróquias de Feira de Santana viabilizou saber que, na luta por melhores condições de vida em cativeiro e para a conquista da liberdade, as mulheres escravizadas costumavam estabelecer laços formais de parentesco estratégico com pessoas que tinham mais condições de garantir alguma proteção para a família em caso de necessidade. Por vezes algumas dessas mulheres conseguiram ser bem sucedidas, apesar de isso não significar necessariamente a conquista da liberdade legal, como foi possível constatar.

Luiza e tantas outras mulheres da mesma condição dela apostavam alto, porém, ainda que algumas delas tenham vencido, não foram poucas aquelas que, como nossa protagonista, perderam nos duelos judiciais. Entretanto, do ponto de vista do processo histórico, venciam de maneira extraordinária sempre que apresentavam sua demanda de liberdade dentro ou fora dos tribunais. Cada movimento que faziam rumo à liberdade, cada aliada e aliado, visível ou invisível aos olhos da justiça, que aderia a esses projetos, indicava a capacidade dessas mulheres de liderar seu próprio processo de libertação, assim como o de seus familiares, especialmente de suas filhas e de seus filhos, servindo como inspiração e farol para outras pessoas que também lutavam por liberdade em seu tempo.

REFERÊNCIAS

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  • GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira. In: LUZ, Madel T. (Org.). O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de Janeiro: Graal, 1982. pp. 87-105.
  • GRINBERG, Keila. Liberata - a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dunará, 1994.
  • GUDEMAN, Stephen; SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. pp. 33-59.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil de 1872. Bahia: s.n. [1872]. p. 160.
  • LEIS DO IMPÉRIO. s.d. Disponível em: Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/leis-do-imperio-1 Acesso em: 17 mai. 2018.
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  • MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Entre dois Benditos: histórias de amas de leite no ocaso da escravidão. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flavio (Orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro Edições, 2012. pp. 199-213.
  • NOGUEIRA, Gabriela Amorim. “Viver por si”, viver pelos seus: famílias e comunidades de escravos e forros no “certam de Sima do Sam Francisco” (1730-1790). Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de Ciências Humanas, Universidade do Estado da Bahia. Santo Antônio de Jesus. 2011.
  • PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA: Casa Civil: Subchefia para Assuntos Jurídicos. 29 set. 1871. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm Acesso em: 21 dez. 2018.
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  • REGISTRO DE BATISMO DA PARÓQUIA de Santa Bárbara. f. 3v. s.d. Disponível em: Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:939N-RFHK-V?i=5&wc=M7ZY-MP8%3A369940601%2C369940602%2C369977201&cc=2177272 Acesso em: 24 jan. 2019.
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  • REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese (Doutorado em História Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2007.
  • SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial. Campinas: Editora da Unicamp , 2001.
  • SANTANA, Napoliana Pereira. Família e microeconomia escrava no sertão do São Francisco (Urubu - BA, 1840 a 1880). Dissertação (Mestrado em História Regional e Local) - Departamento de Ciências Humanas, Universidade do Estado da Bahia. Santo Antônio de Jesus, 2012.
  • SILVEIRA, Luiz de Souza da. Annotações, à lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871. Maranhão: Gonçalves & Pinto, 1876.
  • SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.); ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras , 1997. pp. 233-290.
  • TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Autora, Luiza e suas filhas e filhos; Réu, José Manoel Pinto, Feira de Santana. Sessão Judiciária, Ações de Liberdade, 68/2422/05. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1884.
  • TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Partilha amigável - Inventariada, Alexandrina Maria de Oliveira; inventariante, José Cordeiro de Almeida, Feira de Santana; Sessão Judiciária, Inventário, 1/224/409/04. fls. 4v-5. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1885-1890.
  • TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA. Partilha amigável - Inventariado, Firmino Ribeiro Nunes; inventariante, Carlota Ribeiro Nunes, Feira de Santana, Sessão Judiciária, Inventário, 1/238/361/09. fls. 7-9. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB). 1885-1890.
  • VIANA, Iamara. Senzalas e casebres sob sevícias: violência, feminicídios, médicos e corpos. In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. (Orgs.). Ventres livres?: Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Editora Unesp, 2021. pp. 63-83.
  • 1
    As reflexões apresentadas neste texto fazem parte da pesquisa realizada para a escrita de minha tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia (Damasceno, 2019DAMASCENO, Karine Teixeira. Para serem donas de si: mulheres negras lutando em família (Feira de Santana, Bahia, 1871-1888). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.). A pesquisa foi desenvolvida com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e com bolsa de Doutorado Sanduíche da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
  • 2
    De acordo com a lei de n. 2.040, de 28 de setembro de 1871, as crianças nascidas de mulheres escravizadas estariam livres. Segundo Sidney Chalhoub, na ocasião dos debates que resultaram em sua aprovação, os parlamentares, para se referirem a essas crianças, optaram pela expressão “de condição livre”. No entanto, o pesquisador encontrou vários documentos oficiais em que apareciam o termo “ingênuo” ao mencioná-las (Chalhoub, 2003CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. , pp. 266-272). A respeito do texto da lei, verificar Presidência da República (1871PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA: Casa Civil: Subchefia para Assuntos Jurídicos. 29 set. 1871. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm . Acesso em: 21 dez. 2018.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
    ).
  • 3
    Tomando como referência a documentação analisada, o termo “libertanda” busca traduzir a “condição” de pessoas escravizadas ou ameaçadas de reescravização ao longo dos processos judiciais por meio dos quais tentavam conquistar a liberdade legal. Sobre os desafios enfrentados por pessoas escravizadas, libertandas e livres na luta por liberdade e autonomia, cf. Castilho e Machado (2018CASTILHO, Celso Thomas; MACHADO, Maria Helena P. T. (Orgs.). Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Edusp, 2018.).
  • 4
    É preciso atentar para que não se confundam os dois irmãos do sexo masculino, cujos nomes mudam apenas de ordem. O réu chama-se José Manoel Pinto.
  • 5
    Conforme a lei de n. 2.040, de 28 de setembro de 1871, § 5° do artigo 8°, as crianças que nascessem de mulheres escravizadas deveriam ter seu assento de batismo registrado em um livro específico.
  • 6
    Decreto, n. 5.135, de 13 de novembro de 1872. Art. 3°. Cf. Silveira (1876SILVEIRA, Luiz de Souza da. Annotações, à lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871. Maranhão: Gonçalves & Pinto, 1876., p. 32).
  • 7
    Para melhor análise dos dados, optei por não utilizar os registros anteriores ao dia 28 de setembro de 1871 e posteriores a 12 de maio de 1888, já que em tais períodos houve mudanças legais na condição de pessoas registradas nos assentos. Isto é, antes do primeiro período não havia ingênuos e depois do segundo não havia mais pessoas escravizadas.
  • 8
    Na paróquia de Humildes, encontrei assentos até 25 de setembro de 1887.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2022
  • Aceito
    30 Ago 2022
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