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Meninice, história e sociedade no jovem Gilberto Freyre (1915-1930)

Niñez, historia y sociedad en el joven Gilberto Freyre (1915-1930)

Resumo:

O artigo investiga o interesse pelo estudo social e histórico da meninice nos textos escritos por Gilberto Freyre, durante seus anos de formação. Indica-se a apropriação da New History, que articulava história antropologia e cultura, assim como do Child Study, na psicologia, oriunda dos seus estudos na Universidade de Colúmbia. Analisam-se as suas considerações sobre uma sociologia do brinquedo e a história da meninice, e sobre a criança e a vida social no Brasil. Considera-se que, ao lado do olhar atento para temáticas desprezadas nos estudos da sociedade, o posicionamento do autor marcava-se por uma apropriação acrítica e seletiva das fontes, pelo conservadorismo e pela naturalização das relações raciais e sociais.

Palavras-chave:
historiografia da infância; intelectuais; brinquedos; relações raciais

Resumen:

El artículo indaga el interés por el estudio social e histórico de la niñez en los textos escritos por Gilberto Freyre durante sus años de formación. Se indica la apropiación de la New History, que articuló historia, antropología y cultura, así como del Child Study, en psicología, proveniente de sus estudios en la Universidad de Columbia. Se analizan sus reflexiones sobre una sociología del juego y la historia de la infancia, y sobre los niños y la vida social en Brasil. Se considera que, además de una mirada atenta a temas descuidados en los estudios de sociedad, la posición del autor estuvo marcada por una apropiación acrítica y selectiva de las fuentes, por el conservadurismo y por la naturalización de las relaciones raciales y sociales.

Palabras clave:
historiografía de la infancia; intelectuales; juguetes; relaciones raciales

Abstract:

The article investigates the interest in the social and historical study of childhood in the texts written by Gilberto Freyre during his formative years. It highlights the appropriation of New History, which combined history, anthropology, and culture, as well as Child Study in psychology, derived from his studies at Columbia University. The article analyzes his considerations regarding a sociology of play and the history of childhood, as well as the child and social life in Brazil. It is argued that alongside the author's attentive focus on neglected themes in societal studies, his stance was characterized by an uncritical and selective approach to sources, conservatism, and the naturalization of racial and social relations.

Keywords:
historiography of childhood; intellectuals; toys; race relations

Introdução

A preocupação de Gilberto Freyre (1900-1985) em considerar a infância como importante para a compreensão da vida social já foi identificada em algumas pesquisas. A maioria desses trabalhos toma como referência as suas obras mais conhecidas e difundidas, como Casa grande e senzala, de 1933, Sobrados e mucambos, de 1936, e Ordem e progresso, de 1957 (Brazil & Figueiredo, 2016Brazil, M. C., & Figueiredo, L. (2016). História da meninice afro-brasileira: disciplinarização, aprendizado e ludicidades oitocentistas em mananciais literários. Acta Scientiarum. Education, 38(2), 181-192. doi: 10.4025/actascieduc.v38i2.23572
https://doi.org/10.4025/actascieduc.v38i...
; Freitas, 2001Freitas, M. C. (2001). História da infância no pensamento social brasileiro. In M. C. Freitas (Org.), História social da infância no Brasil (3ª ed., p. 251-268). São Paulo, SP: Cortez.; Kuhlmann Jr., 1998Kuhlmann Jr., M. (1998). Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre, RS: Mediação.; Monteiro, 2005Monteiro, A. S. (2005). A heresia dos anjos: a infância na inquisição portuguesa nos séculos XVI, XVII e XVIII (Dissertação de Mestrado). UFF, Rio de Janeiro.; Oliveira, 2011Oliveira, A. C. D. C. (2011). Estudos sociológicos sobre infância no Brasil: crianças sem gênero? (Tese de Doutorado). UFSC, Florianópolis.). Na pesquisa realizada para este artigo, investigou-se um período anterior, referido aos seus anos de formação. No âmbito da historiografia e dos estudos sociais da infância, as obras de adolescência e de mocidade, como Gilberto Freyre as caracterizava, são pouco exploradas e dão ensejo a várias análises.

Aos 18 anos de idade, Freyre viajou aos Estados Unidos para iniciar seus estudos de graduação na Universidade de Baylor (Texas). Em seguida, realizou estudos pós-graduados na Universidade de Colúmbia, recebendo o título de Mestre em Artes, tendo também viajado para a Europa, onde visitou a Inglaterra, Alemanha, França e Portugal. Retornou ao Recife em 1923, onde permaneceu até 1930.

Foi nesse período que ele manifestou o interesse em escrever uma história da meninice, por considerar a criança como elemento importante para o estudo da sociedade e da história. Meninice foi a categoria por ele adotada para referir-se ao período da infância, presente ao longo de sua obra. Nos textos analisados, o estudo social e histórico da meninice aparece em vários temas e registros: os brinquedos e as brincadeiras das crianças; as produções culturais para a infância, como a literatura infantil e os livros didáticos; as denominações das infâncias em diferentes grupos sociais e raciais; a duração da infância e a transição para a adolescência. Na sua interpretação da infância brasileira, nota-se uma ênfase na consideração sobre uma precocidade do estado de adulto. Todos esses componentes se entrelaçam. O artigo apresenta uma revisão bibliográfica e considerações sobre a metodologia da investigação e, em seguida, trata da questão dos brinquedos, dos espaços para brincar e das considerações do autor sobre a meninice e a vida social no Brasil. A temática da literatura infantil não foi explorada, por demandar análises que extrapolariam os limites deste texto.

Como fontes principais da pesquisa, inicialmente foram estudados e analisados três livros do autor: Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade, 1915-1930 (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global .); Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e na primeira mocidade do autor, 1918-1926 (Freyre, 1979Freyre, G. (1979b). Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e na primeira mocidade do autor (1918-1926). São Paulo, SP: IBRASA/INL.b) e Vida social no Brasil nos meados do século XIX (Freyre, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova.), que é a segunda edição da tradução ao português da tese de mestrado apresentada na Universidade de Colúmbia, em 1922. Depois disso, foram consultadas outras obras do autor, a fim de aprimorar a análise.

Tempo morto e outros tempos, publicado pela primeira vez em 1975, constitui-se em um egodocumento peculiar, pois, como observa Pallares-Burke na introdução da segunda edição do livro, de 2006, é um diário filtrado e editado pelo autor em sua velhice, mas que apresenta vários detalhes de suas memórias e interessantes reflexões relacionadas a inquietações e experiências no âmbito privado, nos intercâmbios acadêmicos e no seu processo de formação intelectual, mantendo as características desse gênero literário.

Na resenha elaborada para a segunda edição do livro, Lilia Schwarcz faz uma apreciação que avança as críticas apresentadas na introdução do livro por Pallares-Burke, enfatizando não só ter sido filtrado e editado pelo autor aos 75 anos, mas também que, “[...] longe de ser um diário infantil ou ingênuo, o livro foi evidentemente escrito e reescrito como uma autobiografia disfarçada” (Schwarcz, 2008Schwarcz, L. K. M. (2008). FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos. Revista de Antropologia, 51(2), 744-747. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/S0034-77012008000200012
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, p. 743).

Tempo morto e outros tempos é feito para legar seu autor à posteridade: uma belíssima peça de literatura sob a forma de pretenso diário. Um passado que nunca esteve tão presente e previsível […]. Nesse documento, o passado aparece tocado pela toada feita de lembranças: a saudade de um tempo ainda vivido. Por isso mesmo, pouco importa tentar distinguir fato e ficção. Passado e presente aparecem indiscriminados na pena desse grande personagem da nossa intelectualidade, que sempre foi um exímio inventor de si próprio e de um certo Brasil (Schwarcz, 2008Schwarcz, L. K. M. (2008). FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos. Revista de Antropologia, 51(2), 744-747. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/S0034-77012008000200012
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, p. 747).

Apesar das críticas ou considerações relacionadas ao caráter mais autobiográfico do que uma reprodução de registros feitos no passado, os estudos sobre o livro referem-se a ele como um diário. Embora o texto mantenha elementos típicos desse gênero literário, como destacou Pallares-Burke, pode-se questionar a sua caracterização como tal. O subtítulo do livro anuncia o trabalho de edição: ‘trechos de um diário’; se são trechos, haveria outros registros que foram omitidos, o que vai ao encontro das críticas já apresentadas. Em relação à datação, todos os registros trazem apenas o local e ano, sem a indicação de dia e mês.

No livro Tempos de aprendiz, que reproduz crônicas publicadas no Diário de Pernambuco, nota-se a utilização de alguns textos que constam do diário, o que faz supor que ele teria sido escrito também como um livro de notas, como rascunhos de futuras publicações, com trechos registrados em momentos diferentes, como será evidenciado adiante.

Vida social no Brasil do século XIX também é um texto que sofreu alterações e revisões do autor, já na primeira edição traduzida ao português, de 1964. Para aferir as alterações relacionadas à temática da infância, consultou-se também a publicação original do mestrado, Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century, publicada na Hispanic American Historical Review (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
). Nos créditos da segunda edição do livro traduzido, a referência é à Universidade de Colúmbia, e não foi possível obter informações se a publicação de 1922 teria sofrido cortes em relação ao apresentado à universidade. Mas a introdução do tradutor, Waldemar Valente, na primeira edição brasileira, cita o artigo da Hispanic American de 1964. O artigo, em nota ao final, informa que se trata do trabalho submetido como exigência parcial para a obtenção do título de Master of Arts (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 628).

Há estudos que contemplam o período de formação de Gilberto Freyre e mencionam a sua preocupação com o estudo da infância na sociedade e na história, como Rezende (1995Rezende, A. P. (1995). Gilberto Freyre: tempos de aprendiz. Estudos de Sociologia, 1(1), 09-21.), Burke (1997Burke, P. (1997). Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social, 9(2). doi: 10.1590/S0103-20701997000200001
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), Pallares-Burke (2005Pallares-Burke, M. L. G. (2005). Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo, SP: Ed. Unesp.) e Coelho (2016Coelho, C. M. (2016). Religião e história: em nome do pai: Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala, um projeto político salvífico para o Brasil (1906-1933)? (Tese de Doutorado). Ufes, Vitória.). Entretanto, nessas obras, os conteúdos dos escritos a respeito da historiografia da infância não são problematizados, pois os textos foram produzidos com outros objetivos, para tratar dos recursos metodológicos do autor utilizados na interpretação da sociedade, ou da sua biografia intelectual.

Antonio Paulo Rezende (1995Rezende, A. P. (1995). Gilberto Freyre: tempos de aprendiz. Estudos de Sociologia, 1(1), 09-21.) situa o interesse de Freyre em escrever uma história do menino no Brasil no âmbito de um modernismo conservador e das críticas à história convencional. Analisa como ele considerava os novos métodos, que aliariam questões antropológicas, psicológicas, sociológicas e históricas, permitindo a captação da totalidade social.

Peter Burke (1997Burke, P. (1997). Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social, 9(2). doi: 10.1590/S0103-20701997000200001
https://doi.org/10.1590/S0103-2070199700...
, p. 3), em artigo sobre os paralelos que existiriam entre a metodologia de Freyre e a da Escola dos Annales, menciona que o interesse do autor em relação às crianças existiria desde 1921, quando registrou em seu diário que desejaria escrever “[...] a história do menino brasileiro - da sua vida, dos seus brinquedos, dos seus vícios -, desde os tempos coloniais até hoje”. Burke (1997Burke, P. (1997). Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social, 9(2). doi: 10.1590/S0103-20701997000200001
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, p. 3) também afirma que “[...] quatro dos artigos que Freyre escreveu para o Diário de Pernambuco nos anos 20 tratavam da infância, das crianças e seus livros e brinquedos”.

A tese de Coelho (2016Coelho, C. M. (2016). Religião e história: em nome do pai: Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala, um projeto político salvífico para o Brasil (1906-1933)? (Tese de Doutorado). Ufes, Vitória.) contribui com muitas informações sobre os escritos de Freyre em relação à infância, mencionando outras obras além das abordadas neste artigo. Situado no campo da História das Ideias Políticas, o trabalho, na perspectiva da psicanálise, trata da experiência religiosa e do impacto das suas experiências, tanto na infância como no período de formação acadêmica, para a produção da obra Casa grande & senzala.

Maria Lúcia Pallares-Burke (2005Pallares-Burke, M. L. G. (2005). Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo, SP: Ed. Unesp.) identifica que a leitura do romance Dame Care, de Herman Sudermann, em 1921, teria sido uma fonte de inspiração para o projeto de Freyre de escrever a história da meninice e para sua caracterização de um amadurecimento precoce das crianças, ideia que ele já teria em mente antes mesmo da leitura do livro, como havia escrito em carta a Oliveira Lima. O romance conta de uma fada má, Frau Sorge, que havia enfeitiçado o menino Paul, que cresceu sério, solitário e triste. Pallares-Burke analisa como, em 1929, Freyre teria novamente se entusiasmado com a ideia de escrever sobre Child life in Brazil, como escreveu a Manoel Bandeira, mas que acabou por redirecionar os seus estudos inspirado em outra história, The child in the house, conto de Walter Pater, em que as memórias das experiências vividas na casa de infância teriam marcado a formação do personagem principal da história. A casa transforma-se no “[...] elemento totalizante, que engloba o material e o espiritual, a criança e o adulto, o homem e a mulher, os senhores e os escravos, as coisas grandes e pequeninas, o público e o privado [...]” (Pallares-Burke, 2005Pallares-Burke, M. L. G. (2005). Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo, SP: Ed. Unesp., p. 410) na interpretação da formação brasileira realizada em Casa grande e senzala.

Nas anotações e nas produções de Freyre, nota-se a apropriação dos estudos realizados na Universidade de Colúmbia quanto ao campo da New History, que articulava a história com a antropologia e a cultura (Burke, 1997Burke, P. (1997). Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social, 9(2). doi: 10.1590/S0103-20701997000200001
https://doi.org/10.1590/S0103-2070199700...
; Freyre, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova.; Tuna, 2013Tuna, G. H. (2013). Primeiros passos em retrospectiva. In G. Freyre. Vida social no Brasil no século XIX (1a ed. digital, apresentação). São Paulo, SP: Global . Recuperado de: https://books.google.com.br/books?id=FblcBAAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false
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).

A denominação New history pode ser atribuída a James Harvey Robinson, professor em Colúmbia, que em 1911 publicou um artigo com esse título, o mesmo do livro publicado no ano seguinte, em que apresentava ensaios sobre essa nova perspectiva histórica (Robinson, 1911Robinson, J. H. (1911). The new history. Proceedings of the American Philosophical Society, 50(199), 179-190. Recuperado de: https://www.jstor.org/stable/984033
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, 1912). Para ele, se a história existente nos livros ocupava-se das figuras notáveis, de reis e rainhas, comandantes e dos incidentes dramáticos das nações, então ficavam de lado as grandes massas trabalhadoras e as transformações fundamentais que levaram da barbárie à civilização, da ignorância ao conhecimento (Robinson, 1911Robinson, J. H. (1911). The new history. Proceedings of the American Philosophical Society, 50(199), 179-190. Recuperado de: https://www.jstor.org/stable/984033
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). O recurso às descobertas e aos avanços das ciências sociais: Antropologia, Economia, Psicologia e Sociologia; o estudo das formas como as pessoas pensaram e agiram no passado, seus gostos e realizações, em vários campos além do político, seriam muito mais relevantes para o conhecimento histórico (Robinson, 1912Robinson, J. H. (1912). The new history: essays illustrating the modern historical outlook. New York, NY: MacMillan.).

Na apresentação da edição digital de Vida social no Brasil do século XIX, Tuna (2013Tuna, G. H. (2013). Primeiros passos em retrospectiva. In G. Freyre. Vida social no Brasil no século XIX (1a ed. digital, apresentação). São Paulo, SP: Global . Recuperado de: https://books.google.com.br/books?id=FblcBAAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false
https://books.google.com.br/books?id=Fbl...
) avalia a importância desses estudos para Gilberto Freyre, evidenciada pela presença, em sua biblioteca, do livro de Harry Elmer Barnes, The new history and the social studies, de 1925, intensamente grifado.

O livro é dedicado à ‘Escola de Colúmbia’, que uma década antes havia reunido historiadores que “[...] muito fizeram pela criação da New History e para indicar a sua dependência fundamental em relação às ciências sociais” (Barnes, 1925Barnes, H. E. (1925). The new history and the social studies. New York, NY: The Century. Recuperado de: https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.221792/mode/1up
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, p. vii, tradução nossa)1 1 “[...] did so much to create the new history, and to indicate its fundamental dependence upon the social sciences”. . Barnes era professor no Smith College, mas antes disso foi bolsista em Colúmbia entre 1916 e 1917 e, após seu doutoramento, lecionou na Universidade de Clark. Com mais de 600 páginas, o livro está estruturado em 10 capítulos, envolvendo: o passado e o futuro da história; as relações com a geografia, a psicologia e a antropologia; a história da ciência e da tecnologia e os estudos sociais; a economia; a ciência política; ética; inteligência social.

Ancorado na antropologia e na sociologia, Freyre adota essa perspectiva histórica em seus estudos, o que terá motivado seu interesse pela infância, ao lado da leitura do romance, mencionada por Pallares-Burke, e das suas memórias de adolescente.

No que se refere à historiografia da infância, trata-se não apenas de constatar o interesse de Freyre na temática e de identificar as suas considerações sobre a meninice, mas também de analisar como o autor pensava a investigação sobre a infância no passado e quais as fontes consideradas e incorporadas na interpretação da sociedade brasileira. Além das referências explícitas ao estudo da infância, fica-se atento a menções indiretas, que ocorrem, por exemplo, em rememorações da própria vida infantil e de suas experiências.

Os brinquedos e a história da infância

A menção aos brinquedos aparece já no primeiro registro do livro Tempo morto e outros tempos, que teria sido escrito quando o autor tinha 15 anos de idade:

Recife, 1915

Até o ano passado brinquei com bugigangas que em geral não têm graça para meninos de 14 anos. Este ano é que concordei com minha Mãe em que ela distribuísse esses meus brinquedos amados por mim com um especial e arcaico amor. Tão especial e tão arcaico esse amor, que já vinha me tornando malvisto por tias e tios e ridicularizado por primos e vizinhos. O trem elétrico é um desses brinquedos, e outro, a caixa de blocos de madeira, com os quais construí tantas casas, tantas igrejas, tantos castelos sem ser os de areia, das fantasias vãs. Também os soldados de chumbo, desmilitarizados em simples e paisanos homens e mulheres e tornados a parte viva, humana do meu mundo - um mundo que durante anos criei e recriei à minha imagem como se sozinho, em recantos quase secretos da casa e, depois, num sótão, que se tornou quase meu domínio absoluto, eu brincasse de ser Deus. Agora esse mundo se desfez, e o meu novo mundo só conserva do velho as minhas garatujas: desenhos, versos, alguma coisa que eu desejava que fosse literatura ou arte. Ainda mais desenho do que escrita (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 27).

O tema é o brinquedo e a nostalgia de uma infância que se acaba. O texto indica resignação após um período de resistência. Brinquedos não teriam graça para meninos de 14 anos e a pressão que leva a deixá-los viera de sua Mãe, nomeada com a força moral do M maiúsculo. Tios e tias, primos e vizinhos fariam coro à reprovação.

Coelho (2013Coelho, C. M. (2013). Gilberto Freyre e a invenção do Brasil: possibilidades de diálogos e interfaces entre história e psicanálise. Simbiótica, 3, 113-116., 2016) analisa o trecho inicial do diário sob a ótica da psicanálise. Considera que a “[...] separação afetivamente forçada de seus brinquedos ‘e de seu mundo sacralizado, no qual brincava de ser Deus’, parece ter sido vivida de forma traumática”. Dessa forma, pergunta-se e procura responder como “[...] os sentimentos decorrentes desta experiência infantil prazerosa, marcada pela onipotência dos pensamentos e pelo trauma decorrente de sua castração, retornou no homem Gilberto Freyre” (Coelho, 2016Coelho, C. M. (2016). Religião e história: em nome do pai: Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala, um projeto político salvífico para o Brasil (1906-1933)? (Tese de Doutorado). Ufes, Vitória., p. 104, grifo do autor).

Mas o trecho do diário poderia também representar uma justificativa para os sentimentos do autor em relação à transição de idade para o ingresso na adolescência, pois o registro seguinte do livro, datado também de 1915, menciona sua leitura do livro Sexology, de William Walling, preocupado que estava sobre a prática da masturbação e suas consequências (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global .).

Em 1921, o diário apresenta a primeira reflexão sobre a intenção de elaborar estudos sobre o brinquedo e a meninice:

Nova York, 1921

Estou interessado em estudar o que talvez se possa chamar a sociologia do brinquedo como um aspecto da sociologia - sociologia e psicologia - da criança ou do menino. Mr. Edmonds está me auxiliando na visita à fábrica de brinquedos. Desejo anotar as predominâncias de gosto com relação a brinquedos, da criança ou do menino de uma grande cidade cosmopolita como Nova York. Considero assunto importante e fascinante. Sonho com um museu de brinquedos rústicos feitos de pedaços de madeiras, quengas de coco, palhas de coqueiros, por meninos pobres do Brasil (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 95).

Sociologia e psicologia apresentam-se como ferramentas para compreender a criança e seus brinquedos. De um lado, a produção industrial para o mercado norte-americano, que seria indicadora dos interesses da criança novaiorquina. De outro, a produção artesanal e os brinquedos populares das crianças pobres brasileiras. Esses estudos permitiriam conhecer melhor a vida social, como indicava uma de suas leituras:

Nova York, 1921

Lendo Stanley Hall: seus estudos da criança e do adolescente. Suas teorias sobre os jogos e brinquedos - e importância dos estudos de psicologia e sociologia para a interpretação da personalidade do homem através do que ele foi como menino (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 102).

Stanley Hall trabalhou na Universidade de Clark, onde foi seu presidente, professor e supervisor de pesquisas, de 1889 a 1920. Liderou o movimento do Child Study, que a partir de 1910 teve uma de suas bases no Teachers College da Universidade de Columbia (Brooks-Gunn & Duncan Johnson, 2006Brooks-Gunn, J., & Duncan Johnson, A. (2006). G. Stanley Hall’s contribution to science, practice and policy: the child study, parent education, and child welfare movements. History of Psychology, 9(3), 247-258. doi: 10.1037/1093-4510.9.3.247
https://doi.org/10.1037/1093-4510.9.3.24...
; Siegel, & White, 1982Siegel, A. W., & White, S. H. (1982). The child study movement: early growth and development of the symbolized child. Advances in Child Development and Behavior, 17, 233-285. doi:10.1016/s0065-2407(08)60361
https://doi.org/10.1016/s0065-2407(08)60...
; Thorndike, 1925Thorndike, E. (1925). Biographical memoir of Granville Stanley Hall 1846-1924. In National Academy Of Sciences. Biographical memoirs (Vol. XII - Fifth memoir, p. 133-180). Recuperado de: http://www.nasonline.org/publications/biographical-memoirs/memoir-pdfs/hall-g-stanley.pdf
http://www.nasonline.org/publications/bi...
; Warde, 2014Warde, M. J. G. (2014). Stanley Hall e o child study: Estados Unidos de fins do século XIX e começo do século XX. Revista Brasileira de História da Educação, 14(2), 243-270.). Barnes, no livro sobre a New history, indica que seu capítulo sobre o significado da psicologia para o equipamento do historiador desenvolveu-se com base em trabalhos elaborados em 1918 e 1919, quando participou do seminário dirigido por Hall na Universidade de Clark. A referência de Freyre evidencia o impacto desse ambiente interdisciplinar, em que ele mobilizava as suas reflexões não apenas para uma sociologia do brinquedo, como também para a ideia de uma história da infância:

O que eu desejaria era escrever uma história como suponho ninguém ter escrito com relação a país algum: a história do menino - da sua vida, dos seus brinquedos, dos seus vícios - brasileiro, desde os tempos coloniais até hoje (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 102).

Para tanto, registrou ter iniciado a pesquisa em fontes documentais, que seriam analisadas com os ferramentais das diversas disciplinas:

Já comecei a tomar notas na biblioteca de Oliveira Lima: nos cronistas coloniais, nos viajantes, nas cartas dos jesuítas. Sobre meninos do engenho, meninos do interior, meninos das cidades. Os órfãos dos colégios dos jesuítas. Os alunos dos padres. Os meninos mestiços - filhos de franceses com índias - encontrados pelos portugueses. De crias de casas-grandes. De afilhados de senhores de engenho, de vigários, de homens ricos, educados como se fossem filhos por esses senhores. É um grande assunto. E creio que só por meio de uma história desse tipo - história sociológica, psicológica, antropológica e não cronológica - será possível chegar a uma ideia sobre a personalidade do brasileiro. É o menino que revela o homem. Mas nunca ninguém aplicou esse critério ao estudo da formação ou do desenvolvimento nacional de um país (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 102-103).

No ano seguinte, concluiu a dissertação de mestrado, mas continuou suas anotações sobre o tema do brinquedo e o estudo da meninice. Para desenvolver o projeto, ele registrou que tomava notas na biblioteca pública de Nova Iorque e nos livros de seu amigo Oliveira Lima, assim como procurava conhecer sobre a produção desses objetos. Nas suas anotações, frisou também a relação entre os interesses acadêmicos e a experiência pessoal:

Nova York, 1922

[…] O brinquedo das crianças é assunto que me atrai. Por quê? Talvez porque, quando menino, foi na companhia dos meus brinquedos - alguns dos quais eu personalizava, dialogando com eles - que encontrei um dos melhores refúgios para me defender da banalidade da maioria dos adultos. Tenho ido várias vezes à seção de brinquedos da monumental Lord & Taylor. É uma maravilha. A tendência é para os brinquedos mecânicos dominarem. Tendência, a meu ver, lamentável no seu exagero. A meu ver, o brinquedo ideal será aquele que exigir o máximo do que na criança for imaginação construtiva, poder inventivo, ânimo criador. E não o que lhe chegue às mãos como bocados já feitos (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 124).

O trem elétrico, os blocos de madeira e os soldados de chumbo foram seus brinquedos prediletos, listados nas anotações de 1915. O primeiro estaria nessa categoria dos brinquedos mecanizados, enquanto os outros dois exigiriam mais da imaginação criativa: os blocos de madeira, que remetem ao material construtivo da pedagogia de Froebel para o jardim de infância; e os soldados, desmilitarizados, que remetem aos bonecos que constituiriam seu mundo imaginário, com pessoas melhores do que os adultos reais.

Na sequência do registro, ele evoca a obra de Proust, Em busca do tempo perdido, que tomou a memória da infância como elemento mobilizador para a construção da narrativa:

Pretendo escrever alguma coisa sobre brinquedos na minha planejada - mas tão difícil de ser escrita sem vivência brasileira - ‘História da vida de menino no Brasil’. Ou: ‘A procura de um menino perdido’. Já comecei a tomar notas sobre o assunto […]. Quando na Alemanha, não deixarei de ir a Nuremberg, a cidade dos brinquedos (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 124, grifo do autor).

O desejo de ir à cidade de Nuremberg na Alemanha concretizou-se. Em abril de 1923, o Diário de Pernambuco publicou a sua crônica, Ludum Pueris Dare, expressão em latim referida à oferta de brinquedos às crianças:

Em setembro do ano passado, viajando pela Alemanha, cheguei a uma cidade muito velha. Num instante me enamorei do lugar. Mentalmente já eu conhecia uma cidade como aquela - com aquele ar acastelado, com aquele arvoredo azul à beira do rio, com aquelas pontes em arco e aquelas torres gordas. Conhecia-a dos romances e das estampas a cor nos livros de história da carochinha. [...]

No dia seguinte, era já manhã alta quando, depois de tomar meu chocolate, saí à rua. [...] Mas o que me foi chamando a atenção particular foi, nas montras das lojas, a nota viva, brilhante, colorida de brinquedos - bonecos, bichos de madeira, caixas de soldadinhos, locomotivas de lata, blocos para fazer castelos e ‘chalets’.

Lembrei-me então que estava em Nuremberg […], célebre pela sua indústria tão poética e útil de fazer brinquedos. Nuremberg faz brinquedos para as crianças alemãs e de fora. É a cidade-papá Noel, a cidade-Santo Claus, a doce cidade-vovó que passa horas a recortar na madeira, na lata, no papelão os calungas, os bichos, as locomotivas, os carros, os brinquedos todos que fazem o encanto da meninice (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.b, p. 238-239, grifo do autor).

O texto segue com considerações sobre a importância dos brinquedos para as crianças. Dentre brinquedos primitivos e europeus, Freyre destaca um brinquedo brasileiro ligado às tradições do folclore: o mané-gostoso, antiga personagem do bumba meu boi, que é um boneco de engonço, com dobradiças, puxado por cordões (Cascudo, 2001Cascudo, L. C. (2001). Dicionário do folclore brasileiro (11a ed.). São Paulo, SP: Global.):

O menino infeliz não é aquele a quem falta um relógio para ver as horas; ou que não possui botinas ou sapatos para ir à escola; ou latas de geleia com que se regalar à hora da merenda. O menino mais infeliz é aquele a quem falta um brinquedo por mais humilde: um tosco navio de pau feito a canivete ou um simples ‘mané-gostoso’ de papelão.

O gosto pelo brinquedo é um gosto instintivo a que os instintos e impulsos mais importantes do homem se acham ligados: o paternal, o doméstico, o religioso, o gregário, o criador, o de aventura, o artístico. É um gosto que deve ser estimulado e desenvolvido. Há pais - bem o sei - que o procuram reprimir e matar. Merecem semelhantes pais uma boa sova (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.b, p. 239, grifo do autor).

Nesses trechos, Freyre parece retornar aos seus brinquedos abandonados. Procura dar sentido social ao seu estudo, tanto para os brinquedos industrializados, presenteados às crianças de famílias com recursos, quanto à importância do brinquedo popular para as crianças pobres. Identifica sua presença em diferentes culturas, como elementos constitutivos delas, e não como objetos banais, criticando os adultos que assim os classificavam. Apresenta, também, informações sobre a presença dos brinquedos ao longo da história da humanidade:

O brinquedo data, segundo sisudas pesquisas de antropologia, do homem primitivo. Não direi do primeiro homem, porque nosso pai, Adão, teve a infeliz originalidade de nascer homem feito - já pronto para o solene papel de noivo de Eva.

Os bonecos mais primitivos de que há conhecimento histórico - sabeis de que eram feitos? De pedaços de ossos. Conhecem-se também bonecos de espigas de milho, de flores, de palhas secas.

Os antigos egípcios parecem ter sido grandes apreciadores de bonecos. No Museu Metropolitano de New York, cuja seção egípcia tive uma tarde o gosto de percorrer com um entendido na matéria, o famoso poeta Vachel Lindsay, há um grande número de bonecos encontrados no túmulo dum nobre de remota dinastia. Representam soldados, padres, padeiros, canoeiros, etc.

A rainha Mary, da Inglaterra, possui um grupo de bonecos muito interessantes [...]. Entre estes bonecos, um representa o rei com sua coroa e o seu manto; outro um jornalista de cartola e livro de oras na mão; um terceiro, um gordo cozinheiro [...] Há ainda príncipes, almirantes, bispos, médicos. Mas todo esse luxo não vale o afeto que à sua boneca de pano, suja e em farrapos, dedica qualquer meninazinha pobre do East Side (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.b, p. 240-241).

De volta ao Brasil, Freyre registrou em seu diário novamente a intenção de escrever sobre a infância, denominada por ele de meninice:

Recife, 1924

Descubro a J. L. Rego o meu segredo: o livro que, nos meus raros momentos de ânimo, desejo escrever. Um livro sobre a minha própria meninice e sobre o que tem sido nos vários Brasis, através de quase quatro séculos, a meninice dos vários tipos regionais de brasileiros que formam o Brasil. [...] Diferente dos romances que fazem dos meninos os seus heróis, considerando-os simples futuros homens. Diferente das histórias sociais em que o adulto toma todo o espaço e domina todas as cenas. O adulto do sexo chamado forte (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 202).

É notável que àquele tempo se manifestasse o interesse no estudo social da infância e do brinquedo, assim como o destaque dado a crianças dos setores populares. Nas suas anotações de 1921, Freyre indicava a necessidade de a investigação histórica contemplar a diversidade social, as mulheres e as crianças:

Todo espaço, nas histórias convencionais - e talvez em todas até hoje escritas - é ou tem sido pouco para a glorificação dos adultos e dentre os adultos, só os homens; dentre os homens, só os importantes como políticos e militares. É um erro. Deixa-se quase inteiramente fora do projetor histórico, isto é, na sombra, a mulher; deixam-se quase na sombra os intelectuais, os lavradores, os artistas, os homens de ciência, os artesãos, os industriais, os comerciantes, os servos, os escravos; e ignora-se a presença - a simples presença - da criança, do menino, do adolescente (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 103).

Entretanto, a argumentação está distante de uma proposição para se produzir uma história dos de baixo, pois a valorização desses sujeitos se presta a trazer à tona o conservadorismo do autor:

É preciso que se reaja contra isso. Porque não há compreensão possível do Homem, deixando-se de procurar compreender a Mulher e o Menino. Como não é possível compreender-se o Senhor, sem se compreender o Escravo (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 103).

Na crônica Ludum Pueris Dare, Freyre apresenta a sua compreensão da Mulher e um entendimento restrito do significado do brinquedo para a criança:

Acerca do desenvolvimento da personalidade da criança por meio de brinquedos muito poderia dizer. O assunto sempre me encantou e me interessou. Limito-me, nestas notas à ligeira, a apontar para o valor educativo das bonecas entre as meninas. As bonecas são uma como iniciação nos futuros deveres domésticos da mulher. É pela influência da sua boneca de estimação que a menina começa a cortar e a coser, aproveitando figurinos e retalhos das costuras da gente grande; a bordar; a fazer remendos; a arranjar chapéus. Conta o Sr. Afrânio Peixoto - já não me lembra onde - que um seu amigo encontrou uma vez uma pequena da família procurando amamentar a boneca. O Dr. Gulick, médico americano que passou a vida a estudar a psicologia do brinquedo, afirma que suas filhas aprenderam a harmonizar as cores dos vestidos com a aparência pessoal, fazendo vestidos para bonecas louras e morenas, gordas e esguias. Estou firmemente convencido de que o feminismo não será um perigo sério enquanto as meninas brinquem com bonecas e, atingida a adolescência, com bonecos. Discursos e teorias não conseguem o milagre de mudar a natureza das coisas e, muito menos, a nossa - mesmo quando esses discursos saem da boca de um J. J. Rousseau (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.b, p. 240).

O texto faz lembrar o relatório da madame Plaski, no Congresso Internacional de Proteção à Infância, ocorrido em Bruxelas, em 1913, que previa uma ‘partilha racional’ das ocupações e afirmava que “[...] nos jogos da escola froebeliana, a boneca poderia ser um brinquedo instrutivo, sendo então convertida em uma amável escola de mamãezinhas […], enquanto as meninas se entretivessem com os jogos organizados da boneca, os meninos se ocupariam com os jogos de construção” (Kuhlmann Jr., 2001Kuhlmann Jr., M. (2001). As grandes festas didáticas: a educação brasileira e as exposições internacionais, 1862-1922. Bragança Paulista, SP: Edusf., p. 227). Nessas proposições, nota-se a intencionalidade dos adultos de distribuir os lugares sociais das crianças, segundo suas concepções. Os brinquedos são vistos, ou até mesmo projetados, como se fossem para o uso exclusivo de grupos específicos: meninos, meninas, pobres, ricos. Desconsidera-se como as crianças deles se apropriam. As complexas relações de força e os processos sociais e educacionais em que se produzem as desigualdades são simplificados nas interpretações que projetam no material, no brinquedo, a reafirmação das diferenças ou a determinação de comportamentos, como conjecturava Freyre nas suas anotações de 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
:

As relações entre o menino e os brinquedos penso que condicionam o comportamento e a personalidade do futuro homem: o ser considerado perfeito que sai do menino quando há quem pense que o contrário é que é verdade. De qualquer modo, o menino e seus brinquedos é um fascinante tema para antropólogo: para aquele que dê a importância que merece ao futuro homem mais escondido que revelado na criança (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 124).

Freyre ainda manifestaria essa visão de uma influência direta do brinquedo e dos materiais escolares na formação da criança 27 anos depois, em 1949, ao comentar sobre o brinquedo do menino:

Pois se ao livro escolar de história e geografia e à biografia de herói devemos atribuir considerável importância na formação da criança […] igual importância deve ser atribuída ao brinquedo. […] Através do brinquedo, do mesmo modo que através do livro de geografia ou de história exageradamente patriótico, da biografia de herói estreitamente nacionalista ou virulentamente militarista, criam-se no menino ou no adolescente predisposições quase sádicas para a guerra. […] Sendo a criança o ‘pai do homem’, o homem feito não consegue, senão a custa de raro heroísmo, libertar-se das impressões mais cruas daqueles brinquedos que despertaram na sua personalidade ainda em formação o gosto exagerado pela guerra, pelas batalhas, pelas armas de fogo. (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.a, p. 217, grifo do autor).

Essas afirmações contrastam com a memória de seus tempos de infância, apresentadas na crônica de 1923, sobre sua viagem a Nuremberg, que remete ao primeiro registro de seu diário, em que desmilitarizava soldados para brincar com eles como bonecos:

Quando eu era menino possuí várias caixas de soldadinhos de chumbo. Eram o meu encanto. Não me envergonha confessar que brinquei com os ditos até os treze anos - quando já era redator-chefe do jornal do colégio. Devo aos tais soldadinhos muitas horas de alegria e, ao mesmo tempo, valor educativo. Não brincava de batalhas, sem querer fazer gala de bom gosto posso afirmar que a vontade de ser general ou palhaço de circo jamais me empolgou. A maior parte dos soldadinhos, desmilitarizava-os por meio de sobrecasacas, fraques e paletós de papel. Individualizava-os também, dando a cada um um nome e função que ia, a princípio, de rei a ordenança, passando depois de presidente da República a redator do jornal oposicionista. Neste meu mundo, à maneira dum quase-deus, eu fazia acontecer, conforme o humor do dia, banquetes, passeios em automóveis de caixas de fósforos, revoluções (nas quais, seja dito de passagem, meu prestígio de quase-deus estava sempre ao lado do princípio de autoridade e disciplina), paradas, terremotos, batizados, casamentos. Era - eu vos asseguro - um mundo mais humano que o de certos romances e fitas de cinema (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.b, p. 240).

No relato, o brinquedo não determina comportamentos ou personalidade, mas se adequa ao pertencimento social do autor, ao interesse e à criatividade infantil. Nota-se uma visão naturalizada da estrutura social, de uma ordem controlada pelos superiores, que não poderia ser transformada por teorias e discursos, em que mulheres, escravos e crianças aparecem como subordinados aos homens senhores. No final da crônica, anunciam-se dois temas: a sisudez da criança brasileira e os espaços para a criança brincar:

Eu quisera que os meninos meus compatriotas soubessem resistir à mania que aqui se tem de fazer das crianças homenzinhos o mais depressa possível. Já basta o fato de ser este burgo, como os demais burgos do Brasil, uma triste cidade sem áreas de recreio para os pequenos, sem gramados por onde eles possam correr, sem tanques onde possam brincar com navios de papel, sem coisa nenhuma que estimule neles a alegria. E, ao contrário das crianças que a gente vê, em revoadas alegres, pela relva dos parques de Londres e de Berlim, nas Tulherias e nos ‘play-grounds’ de qualquer cidade dos Estados Unidos e do Canadá, os meninos daqui são umas tristes criaturas, candidatos ao fraque e à calvície precoce (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.b, p. 241, grifo do autor).

Em 1925, o autor retornou aos dois temas, no Diário de Pernambuco, na crônica Livros para crianças:

O brasileiro passa pela meninice quase sem ser menino. Faltam-lhe brinquedos. Falta-lhe onde brincar. Faltam-lhe livros.

Uma como Frau Sorge salpica-lhe de cinza a meninice nos seus melhores prazeres. A exceção do de comer. Porque em parte nenhuma a glutoneria do menino tem mais em que se regalar do que no Brasil - terra dos melhores frutos e dos melhores doces.

De lugares onde brincar o menino não cuida entre nós a gente grande. Outrora muita criança no Recife brincava no sítio doméstico. Mas o sítio doméstico é hoje luxo, e luxo raro, numa cidade em que a edificação avança e se amiúda, sem que se verifique a compensação do parque público.

Na verdade a urgência de reservar no Recife áreas para o recreio livre das crianças se aguça dia a dia. E a mim mesmo pergunto, sem saber responder, até quando os estetas de fraque continuarão entre nós a atravancar os raros espaços livres de coretos, mercuriozinhos, pontes rústicas e até ruínas cenográficas (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.b, p. 183).

Na crônica acima, ele se refere à fada má, Frau Sorge, que havia enfeitiçado o tristonho menino Paul, como foi referido no início deste artigo, comentando as considerações de Pallares-Burke (2005Pallares-Burke, M. L. G. (2005). Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo, SP: Ed. Unesp.) sobre a sua inspiração no romance Dame Care, de Sudermann, que contava essa história. A ideia da antecipação da idade adulta está muito presente na interpretação histórica de Freyre, o que será analisado mais adiante.

O contraponto a essa precocidade estaria na oferta de espaços para as crianças. No texto de 1923, Freyre destacou os playgrounds nos Estados Unidos e no Canadá e, em 1925, argumentou sobre a necessidade de áreas para o recreio das crianças no Recife. Mais tarde, em 1929, quando foi professor de sociologia na Escola Normal do Recife e secretário particular do governador Estácio Coimbra, teria atuado no sentido da implantação dos playgrounds naquela cidade:

Em consequência da pequena pesquisa realizada pelas alunas da Escola normal de Pernambuco, cujos resultados A Província comentou e destacou, o Prefeito Costa Maia, de acordo com o governador, vai criar, na cidade, playgrounds do tipo mais moderno. Vários playgrounds. Os primeiros no Brasil.

Talvez seja a primeira vez que, no Brasil, ou em qualquer país, uma pesquisa sociológica obtém êxito tão imediato. [...]

O que se apurou na pesquisa sociológica realizada pelas normalistas? Que grande parte das crianças do Recife não tem onde brincar. Os sítios estão desaparecendo. Os próprios quintais estão se tornando raros. Que resta, então, à maioria dos meninos da cidade? Isto, brincar nas ruas. Um perigo, porque o número de automóveis está aumentando. Só há uma solução: o playground. O Recife vai ser a primeira cidade brasileira a ter playgrounds (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 314, grifo do autor).

Em outra nota, após manifestar a sua preocupação com o urbanismo e sugerir a necessidade de uma planificação regional, ele volta ao assunto:

Dentro desse critério é que venho orientando minhas alunas de Sociologia na Escola Normal para uma pesquisa de campo sobre ruas do Recife. Cada uma deve colher material sociológico sobre a rua onde mora […].

Estamos descobrindo que muitas das crianças do Recife não têm onde brincar. Que o Recife […] está se tornando uma cidade inimiga dos meninos. Os meninos não têm onde jogar nem brincar: a não ser nas ruas. Sujeitos a ser esmagados pelos automóveis. Havemos de conseguir do Prefeito que inicie no Recife, ainda que de modo modesto, um sistema de playgrounds. Outra novidade completa para o Brasil. Há de ser uma reivindicação para esta cidade do primeiro grupo de adolescentes brasileiros que vem realizando pesquisa de campo sociológica. Estácio está entusiasmado. […] O Recife precisa não só de playgrounds como de parques que se prestem a várias utilizações e sempre a uma maior aliança da cidade com a Natureza (Freyre, 2006Freyre, G. (2006). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo, SP: Global ., p. 322-323, grifo do autor).

Não se dispõe de informações se playgrounds foram instalados no Recife, pois, em outubro de 1930, o governador foi deposto e Freyre o acompanhou à Europa, em um ‘auto-exílio’ (Meucci, 2007Meucci, S. (2007). Entre a escola nova e a oligarquia: a institucionalização da sociologia na Escola Normal de Pernambuco - 1929-1930. Cronos, 8(2), 451-474.). Não seriam, de todo modo, os primeiros do país, visto que, com outra denominação, os Jardins de Recreio já haviam sido instalados em Porto Alegre, em 1926. Em 1930, inaugurou-se, em São Paulo, o playground do Parque D. Pedro II, que posteriormente passou a ser denominado Escola de Saúde e, depois, Parque Infantil, nome com o qual a instituição ficou mais conhecida em nosso país (Kuhlmann Jr., 2019Kuhlmann Jr., M. (2019). Parque infantil: a singularidade e seus componentes. Educar em Revista, 35(77), 223-244.).

A criança e a vida social no brasil

O vínculo entre as memórias de infância e os temas das investigações de Freyre aparece no prefácio da sua dissertação de mestrado, na afirmação de que a sua preparação teria começado inconscientemente, quando ainda menino costumava perguntar à sua avó sobre os “[...] bons tempos antigos” (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 597, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 13).

Uma das vívidas lembranças da avó referia-se à sua infância e à alegria em contemplar as caravanas de sertanejos que chegavam à cidade para a venda de algodão e de peles, que Freyre generaliza como uma atração das crianças da cidade (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 603; 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 55).

Em vários trechos, há menções à infância. A criança e seus brinquedos são lembrados quando se refere ao mobiliário das casas:

Toda sala de visitas tinha um grande sofá, em cujas extremidades se alinhavam filas de cadeiras. Na arrumação havia uma idéia infantil de simetria - refiro-me ao modo como a criança alinha os soldadinhos de chumbo para a batalha - nas filas retas e regulares das cadeiras: primeiro, as de braço, depois, as simples (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 614, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 81).

Citando o relato da viagem de Ewbank ao Brasil, em 1856, indica como as festas religiosas e procissões, “[...] principal distração das massas [...]”, eram caracterizadas “[...] pela nota de alegria [...]”, com “[...] meninos vestidos de querubins e anjinhos [...]”, e que, nos funerais de crianças, elas também eram vestidas como anjos e querubins, maquiadas com rouge nas faces e pós prateados no pescoço e nos braços, e com cabelos penteados em cachos, naturais ou artificiais (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 622, 628, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 100, 111).

Eram tempos em que, segundo Freyre, havia, de um lado, proprietários de terras e de escravos e, de outro lado, a grande massa de escravos e, entre eles, uns poucos pequenos burgueses e lavradores (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 600, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 43).

Quem mais aparece no texto são as crianças das elites, predominando a sua representação como adultos precoces e tristes. Apoiando-se em artigo de Carlos de Laet, no Jornal do Brasil, de 1917, considera que a religião católica era muito presente na vida familiar e na educação de meninos e meninas das casas patriarcais:

As crianças aprendiam com as mães a ser piedosas, temendo a Deus Todo-Poderoso: um Deus que via tudo o que se fazia entre os homens e registrava em um enorme caderno, para futuro castigo, todos os pecados de adultos e de meninos. Ouviam de mães, de avós, de mestres, histórias da Virgem Maria e de seu filhinho - o Menino-Deus - que se tornara Homem e Salvador dos Homens. Aprendiam a rezar o Padre Nosso, o Credo, a Ave-Maria, a Salve-Rainha e o catecismo (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 615, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 84).

A menina de família patriarcal iria para um internato religioso, dos oito até aos treze ou quatorze. “Aprendia a delicada arte de ser mulher. Música, dança, bordado, orações, francês, e às vezes inglês, leve lastro de literatura”. As mulheres amadureceriam cedo, às vezes tornando-se mães aos 13 anos.

Os daguerreótipos da época trazem até nós figuras de meninas amadurecidas antes de tempo em senhoras: senhoras tristes, tristonhas, Docilidade e mesmo acanhamento eram a principal graça de uma sinhazinha (Freyre, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 86).

O menino, também, crescia como se fosse desde os oito anos adulto ou homenzinho. Aos dez anos era uma caricatura de homem. Também neste particular os daguerreótipos da época trazem até nós figuras às vezes tristonhas de meninos amadurecidos em homens antes do tempo (Freyre, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 90).

O argumento se repete em outros lugares do texto, assim como nas fotografias da coleção Francisco Rodrigues que ilustram o livro como evidências. Os dois trechos citados e as fotografias não constam da versão original, estão apenas na versão em português.

Freyre não problematizou essas fontes, utilizadas como se fossem expressões do cotidiano. As fotos dos estúdios como os de Hermina Costa e de Alberto & Henshel, que constam daquela coleção, mostram as condições técnicas de produção no século XIX, em que o tempo sem se movimentar necessário para a exposição exigia suportes físicos para as pessoas se apoiarem. Também as questões sociais e culturais relacionadas às fotografias de família remetem à solenidade do momento, que não permite generalizar que vestes, poses e semblantes sérios representassem a vida daquelas crianças2 2 As meninas, na fotografia de Alberto & Henschel & Cia., de Augusto de Souza Leão e filhas, são descritas por Freyre (1977, p. 82) como tendo “[...] o ar de respeitáveis matronas”. A imagem está disponível em: http://digitalizacao.fundaj.gov.br/fundaj2/modules/visualizador/i/ult_frame.php?cod=4034. A coleção digitalizada tem várias imagens com crianças que indicam essas situações de poses e cenas, como a foto de Hermina Costa & Cia., ‘Eduardo Paiva com crianças não identificadas’, em: http://digitalizacao.fundaj.gov.br/fundaj2/modules/visualizador/i/ult_frame.php?cod=7229. (Leite, 2000Leite, M. M. (2000). Retratos de família (2a ed.). São Paulo, SP: Edusp.; Turazzi, 1995Turazzi, M. I. (1995). Poses e trejeitos: a fotografia e as exposições na era do espetáculo (1939-1889). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.).

Quanto aos relatos de viajantes, Moncorvo Filho (1926Moncorvo Filho, A. (1926). Historico da protecção á infancia no Brasil 1500-1922. Rio de Janeiro, RJ: Paulo, Pongetti & Cia., p. 11), no prefácio da sua história da proteção à infância, escrita para o Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, de 1922, criticou as considerações de A. Rendu, no livro Ètudes sur le Brésil, de 1848, “[...] eivado de mentiras [...]”, com “[...] perfidas apreciações e conceitos [...]”, como ao afirmar que “[...] a infancia com suas graças ingenuas não existe por assim dizer nesse paiz”.

A interpretação da criança como pequeno adulto não seria produto de uma análise consistente das evidências, mas a projeção de uma representação de infância já existente, que levaria a uma apropriação seletiva das fontes. É plausível supor que a formação das elites exigisse das crianças um esforço que resultaria em sobriedade e antecipação de responsabilidades no seu aprender para fazer parte dos ‘de cima’. Do mesmo modo, para os ‘de baixo’, a situação de subordinação antecipava o ingresso no mundo do trabalho. Mas em um e outro caso, aparecem elementos da vida infantil em indícios que dão conta dos brinquedos e das brincadeiras de que essas crianças participavam, reconhecidos até mesmo pelo autor em outros trechos de seus escritos.

No prefácio à primeira edição em português, Freyre caracterizou o ensaio como “[...] um trabalho universitário de adolescência [...]”, afirmando que o reviu em alguns pontos, “[...] em pormenores de superfície [...]”, alterações de forma que não alterariam “[...] sua estrutura ou sua substância” (Freyre, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 17). No final, o prefácio reafirma que seriam alguns acréscimos, para trazer pormenores ao texto em inglês. Como nos exemplos acima, constatou-se que, em relação à infância, o texto publicado em 1922 teve alterações substantivas, e não apenas de forma, na edição em português.

Na apresentação da primeira edição digital, Tuna (2013Tuna, G. H. (2013). Primeiros passos em retrospectiva. In G. Freyre. Vida social no Brasil no século XIX (1a ed. digital, apresentação). São Paulo, SP: Global . Recuperado de: https://books.google.com.br/books?id=FblcBAAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false
https://books.google.com.br/books?id=Fbl...
) afirma que o texto recebeu acréscimos e alterações, por exemplo, quando “[...] procurou relativizar as teses da benignidade da escravidão e da proeminência do patriarcalismo em todas as regiões do Brasil defendidas no texto original”.

Entretanto, se existe a relativização de uma benignidade da escravidão, ela é sutil, e fica manifesta no texto a naturalização das relações de dominação entre senhores e escravos, entre homens e mulheres, entre meninos brancos ricos e seus colegas negros subordinados. Em relação às crianças, as alterações reforçam esse posicionamento.

Na versão em português, após uma citação a Stewart sobre o “[...] aspecto terrivelmente mestiço da população” (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 601, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 46), aparecem acréscimos referentes à caracterização dos escravos e de suas crianças. Sobre as diferentes denominações, o texto agora identifica, nos anúncios de jornais, que as crianças escravas mestiças eram chamadas de cabrinhas, e que moleques seriam os “[...] retintamente pretos” (Freyre, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 46-48).

Mais adiante, para sustentar que a escravidão no Brasil pouco teria de crueldade, menciona o relato de viagem de Alfred Wallace, abolicionista, de que os escravos que conheceu em um engenho no norte do Brasil, em 1852, seriam felizes como crianças e que seus filhos nunca eram separados das mães (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 607, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 65).

De acordo com o texto, em uma típica residência da classe alta, a sinhá-dona ensinava as rezas aos filhos e seus colegas negros (black playmates), na edição brasileira, nomeados como ‘sinhozinhos’ e ‘moleques’ ou ‘cabrinhas’. Estes seriam também afastados de vícios como comer barro, contra o que às vezes eram punidos com o ‘tronco’ ou a ‘máscara de flandres’ (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 609, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 67).

O texto menciona as severas punições como algo normal, em confronto com a precedente argumentação de um convívio harmônico entre senhores e escravos. Refere-se também ao trabalho dos meninos negros, molecotes no texto traduzido, que buscavam as compras das iaiás nas lojas elegantes, ou vendendo de casa em casa as novelas de Alencar e Macedo (Freyre, 1922Freyre, G. (1922). Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century. Hispanic American Historical Review, 5, 597-630. Recuperado de: http://read.dukeupress.edu/hahr/article-pdf/5/4/597/759754/0050597.pdf
http://read.dukeupress.edu/hahr/article-...
, p. 609-610, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 71). Na versão em português, ao tratar da sexualidade, escreve como se fosse uma prática normal os sinhozinhos se iniciarem “[...] desvirginando molecas, emprenhando escravas negras” (Freyre, 1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 73).

Freitas (2001Freitas, M. C. (2001). História da infância no pensamento social brasileiro. In M. C. Freitas (Org.), História social da infância no Brasil (3ª ed., p. 251-268). São Paulo, SP: Cortez.) e também Oliveira (2011Oliveira, A. C. D. C. (2011). Estudos sociológicos sobre infância no Brasil: crianças sem gênero? (Tese de Doutorado). UFSC, Florianópolis.) destacam e criticam a caracterização de ‘leva-pancadas’, utilizada em Casa grande & senzala, de 1933, em que transparecem a dominação e o sadismo do sinhozinho em relação ao menino escravo.

Essa forma de tratamento já aparece em 1925, no capítulo ‘Vida social no Nordeste’ do Livro do Nordeste, obra comemorativa do centenário do Diário de Pernambuco, organizado por Freyre. O texto apresenta análises sobre o cotidiano naquela região, como ‘aspectos de um século de transição’. Em relação à infância, considera que os meninos de engenho teriam vivido uma meninice mais solta do que os da cidade, brincando de carroussel nos moinhos, “[...] com os moleques, seus camaradas e leva-pancadas”:

Tomavam decerto banho no rio. Montavam a cavalo. Sahiam ás vezes pelo matto, com o moleque, a apanhar curiós. No tempo da canna madura, chupavam com delicia os roletes das cannas doces que lhes descascavam e torneavam a faca os negros do engenho. E […] gostavam os meninos de engenho de fazer navegar na agua das levadas, em navios de papel, moscasinhas e grillos (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.c, p. 84).

Outra caracterização trazida no texto e que Oliveira (2011Oliveira, A. C. D. C. (2011). Estudos sociológicos sobre infância no Brasil: crianças sem gênero? (Tese de Doutorado). UFSC, Florianópolis.) comenta sobre seu uso nas obras Casa grande & senzala e Sobrados e mucambos é a do ‘menino diabo’. No texto de 1925, ela aparece no contraponto dos meninos da cidade aos meninos do engenho. Embora aqueles fossem mais caseiros, quando estavam sozinhos, deixavam de lado seu comportamento mais grave:

[Eram] como aquele ‘menino diabo’ de Braz Cubas: alfinetavam rabos de papel ás sobrecasacas de visitas illustres, escondiam chapeus, puxavam pelo rabicho das cabelleiras, deitavam cinza no tacho de doce de côco, quebravam a cabeça de negros velhos que docemente os desculpavam (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.c, p. 84, grifo do autor).

O texto cita Machado de Assis e parafraseia as peripécias descritas no capítulo XI das Memórias póstumas de Braz Cubas, intitulado ‘O menino é pai do homem’, em que o personagem rememora sua infância:

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de ‘menino diabo’; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho […]. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - ‘ai, nhonhô!’ - ao que eu retorquia: - ‘Cala a boca, besta!’ - Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto […] (Assis, 1991Assis, M. (1991). Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo, SP: Ática., p. 26, grifo do autor).

Talvez a expressão ‘leva-pancadas’ tenha sido inspirada na história de Prudêncio, que, quando adulto, já liberto, é encontrado por Brás Cubas maltratando seu escravo:

Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera (Assis, 1991Assis, M. (1991). Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo, SP: Ática., p. 84).

A generalização de Freyre, em sua caracterização das crianças do passado como ‘meninos diabos’ ou ‘leva-pancadas’, se apropria da narrativa machadiana, que assim é despida de sua crítica aos “[...] aspectos nefastos da classe dominante” (Schwarz, 2000Schwarz, R. (2000). Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (4a ed.). São Paulo, SP: Duas Cidades., p. 72). As representações do passado no Brasil escravista misturam-se com a projeção das suas reminiscências de menino das classes senhoriais, como o autor confessa, em crônica publicada em 1942, na qual a perpetuação das relações raciais de dominação após a abolição é tratada com naturalidade. No texto, o autor recorda de viagem que havia feito com seus irmãos, aos sete ou oito anos, a um engenho, no interior de Pernambuco, onde se situava a igreja de São Severino do Ramo. Ali, a sua meninice teria se familiarizado com a vida de engenho, em que os passeios a cavalo eram a grande aventura, sempre acompanhados com “[...] um ou dois moleques de lado”. Ao falar do santo, Severino, Freyre recorda:

[...] era o nome do moleque com quem nos criáramos em casa, fazendo dele ora ‘máquina de trem’, que devia apitar, chiar e mover os traços [sic] imitando locomotivas, enquanto nós o acompanhávamos como vagões de luxo; ora simples cavalo de carro ou de cangalha […]. Severino - o nome do nosso leva-pancadas (Freyre, 1979Freyre, G. (1979a). Pessoas, coisas & animais. São Paulo, SP: MPM-Casabranca Propaganda.a, p. 13, grifo do autor).

O título do capítulo do livro de Machado de Assis, ‘O menino é pai do homem’, remete à outra categoria apropriada por Freyre, utilizada no texto de 1949 sobre os brinquedos de guerra para os meninos, citado acima. A ideia, ainda não referida diretamente àquele autor, já havia aparecido em 1921, no registro do diário em que discorria sobre a história da infância, mencionado anteriormente: ‘é o menino que revela o homem’. Também em crônica publicada em 1924, ele tomou como ponto de partida a alusão à seita antiga, em que os místicos consideravam o menino como o ser perfeito que se degenera no homem. Ao final, reafirma-se que assim o seria, pois o homem ‘é a criança sem os seus encantos’. Para ele, se os anos de criança, nos quais ela se finge de gente grande, são poucos, os grandes passariam muito mais tempo a imitar os meninos:

[...] uns tristes imitadores, nós os grandes, dos meninos. Tristes imitadores porque ao meu ver a gente grande imita a pequena no que esta possui de pior. Nas suas casmurrices, no seu egoísmo brutal, na sua gula e na sua vocação para o tumulto. E a minha tese é esta: passamos – da vida a reproduzir o primeiro ¼ [...] E a reproduzir-lhe antes os vícios que os encantos.

De modo que neste primeiro ¼ está o que a vida tem de gloriosamente criador, original e natural: o mais é imitação. É cópia (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.b, p. 44-45).

Na crônica, mais uma vez, o pensamento conservador se manifesta, ao flertar com o fascismo:

O Mussolini de quarenta anos caricaturou o de oito e o resultado foi este Napoleão de cartão postal que salvou a Itália de rubros perigos. O heróico no homem é quase sempre imitado do menino (Freyre, 1979Freyre, G. (1979c). Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste, 1925 (p. 75-90). Recife, PE: Arquivo Público Estadual.b, p. 45).

Considerações finais

O interesse de Freyre no estudo da infância é identificado em seus anos de formação e irá se manifestar na sua produção futura. Fragiliza-se assim a atribuição que tem sido feita de forma generalizada a Florestan Fernandes como sendo o fundador ou o precursor da sociologia da infância no Brasil, devido principalmente ao seu trabalho As trocinhas do Bom Retiro, escrito em 1944. Aliás, embora com perspectivas distintas, em ambos os autores é possível constatar que não se circunscreve o estudo desse grupo etário à parte das demais relações sociais: há crianças em diferentes idades e grupos sociais, crianças em relação com diferentes grupos etários e sociais.

A categoria da meninice utilizada por Freyre é importante contribuição a se destacar, distinta de infância, pois é referida à experiência das crianças, enquanto infância se refere a esse período da vida e às representações sobre ele. Não tem sido muito utilizada na historiografia da infância brasileira e corresponderia à expressão niñez, utilizada nos textos de língua espanhola.

A ideia da criança com comportamento adulto seria um dos aspectos a aproximar a produção de Freyre com a de Ariès (1981Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), em ambos os casos, passíveis de questionamento pela crítica historiográfica. Notável é a similaridade do posicionamento conservador de ambos. Embora se ocupem de temas e de fontes que valorizam temas importantes e negligenciados da história, o uso da documentação é feito de forma acrítica, pois as fontes selecionadas são tratadas como se fossem a expressão da realidade e se prestam a legitimar uma visão preestabelecida, sem conflitos, da vida social.

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  • 2
    As meninas, na fotografia de Alberto & Henschel & Cia., de Augusto de Souza Leão e filhas, são descritas por Freyre (1977Freyre, G. (1977). Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Artenova., p. 82) como tendo “[...] o ar de respeitáveis matronas”. A imagem está disponível em: http://digitalizacao.fundaj.gov.br/fundaj2/modules/visualizador/i/ult_frame.php?cod=4034. A coleção digitalizada tem várias imagens com crianças que indicam essas situações de poses e cenas, como a foto de Hermina Costa & Cia., ‘Eduardo Paiva com crianças não identificadas’, em: http://digitalizacao.fundaj.gov.br/fundaj2/modules/visualizador/i/ult_frame.php?cod=7229.
  • 6
    Rodadas de avaliação: R1: três convites; duas avaliações
  • 7
    Como citar este artigo: Kuhlmann Júnior, M. Meninice, história e sociedade no jovem Gilberto Freyre (1915-1930). Revista Brasileira de História da Educação, 23. DOI: https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e265
  • 8
    Financiamento: Este artigo foi produzido no âmbito do projeto "Historiografia da Educação e da Infância: evidências e interpretações". Bolsa de Produtividade CNPq, processo nº 312376/2020-0.
  • 9
    A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
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Editor-associado responsável: Raquel Discini de Campos (UFU) E-mail: raqueldiscini@uol.com.br https://orcid.org/0000-0001-5031-3054

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2022
  • Aceito
    21 Nov 2022
  • Publicado
    02 Jun 2023
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