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Global e desglobal na geopoesia quilombola kalunga: crítica polifônica em diálogo com a geocrítica

Global and non-global in the kalunga quilombola geopoetry: polyphonic criticism in dialogue with geocritics

RESUMO

Este trabalho sistematiza uma teoria da geopoesia enquanto proposta teórico-crítica que parte do eixo Sul Global, especificamente das regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil. Com o objetivo de pensar dialogicamente a literatura erigida do cerrado brasileiro, tal formulação constrói-se coletivamente há mais de cinco anos no âmbito de um simpósio temático da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC). Voltados para a discussão de poéticas orais, escritas, encenadas e performadas por autores individuais e coletivos situados em aldeias e quilombos, tecemos caminhos comparativistas em um “brasil.br” (Bolle, 2004). Relacionando a geopoesia à geocrítica (Westphal, 2017), evidenciamos pontos de contato e de confronto entre as teorias para analisar versos quilombolas Kalunga (Goiás/ Tocantins). Problematizamos os conceitos de “globalização” e “desglobalização” (Hobsbawm, 2007) em movimento de combate aos processos coloniais/imperialistas de que, muitas vezes, revestiu-se a literatura e a crítica acadêmica. Analisando especificamente as formas literárias dos povos quilombolas Kalunga, relacionamos a experiência deste espaço geográfico e simbólico brasileiro à dinâmica histórico-cultural que marca todo o Atlântico Negro (Gilroy, 2017). Finalmente, propomos uma abordagem crítica polifônica (Bakhtin, 2006) que atualiza o legado bakhtiniano neste Novo Milênio.

PALAVRAS-CHAVE:
geopoesia; geocrítica; globalização; desglobalização; polifonia

ABSTRACT

This work systematizes a theory of geopoetry as a theoretical-critical proposal that rises from the Global South axis, specifically from the regions Center-West and North of Brazil. With the goal of thinking dialogically the cerratense literature, such formulation has been built collectively for more than five years within the scope of a thematic symposium of the Brazilian Association of Comparative Literature (Associação Brasileira de Literatura Comparada - ABRALIC). Focused on the discussion of oral, written, staged, and performed poetics by individual and collective authors located in villages and quilombos, we compose comparativist ways in a “brasil.br” (Bolle, 2004). By relating the geopoetry to geocriticism (Westphal, 2017), we evidence contact and confrontation points between theories to analyze Kalunga quilombola verses (Goiás/ Tocantins). We problematize the concepts of “globalization” and “deglobalization” (Hobsbawm, 2007) in a movement to combat colonial/imperialist processes that, many times, covered literature and academic criticism. Analyzing specifically literary forms of the Kalunga people we relate the experience of this Brazilian geographic and symbolic space to the historical-cultural dynamics that marks the entire Black Atlantic (Gilroy 2017). Finally, we propose a polyphonic critical approach (Bakhtin, 2006) that updates the Bakhtinian legacy in this New Millennium.

KEYWORDS:
geopoetry; geocriticism; globalisation; deglobalization; polyphony

Para o guia de travessias.

Willi Bolle

Em um tempo de fragmentações, dissoluções e virtualidades, neste breve Terceiro Milênio, a geopoesia desponta como uma teoria do encontro. Teoria-práxis que se propõe a, primeiramente, experimentar, para, em seguida, pensar a literatura das margens (em relação a um centro cultural e político simbólico, não necessariamente geográfico). Literatura, portanto, concebida e realizada nos aquilombamentos, aldeamentos, vãos, rincões e vales dos interiores brasileiros (regiões Norte e Centro-Oeste do país, em especial). Este artigo assume três objetivos principais: sistematizar uma teoria da geopoesia, que vem sendo proposta, discutida e debatida junto aos Simpósios Temáticos da Associação Brasileira de Literatura Comparada - ABRALIC - há pelo menos cinco anos; relacionar a geopoesia à geocrítica, postulada e desenvolvida pelo francês Bertrand Westphal já em nosso século, teoria com a qual estabelecemos aproximações e demarcamos diferenças, considerando o contexto centroestino e nortense brasileiro; e problematizar os conceitos de “globalização” e “desglobalização”, a partir de uma discussão histórica e política, com vistas a visualizar e combater os processos coloniais/imperialistas ainda perpetuados no âmbito literário e acadêmico. Pensar esse (des)global constitui um ato revolucionário para a crítica literária, justamente porque atualiza e, conforme nossa proposição, supera a velha querela (querelle) entre o novo e o velho, o universal e o regional, que marca um campo de estudos em Literatura Comparada.

Dialogando com a teoria econômica da globalização, podemos acenar para um consumismo, em intensidade e volume, do cânone. O desejo do/a leitor/a está sempre voltado para as grandes editoras, para o que se apresenta como sólido e consolidado na história literária. Ousando, podemos pensar que o/a leitor/a deseja uma segurança na literatura que consome, furtando-se de experimentar o literário local na pequena Academia de uma cidadezinha qualquer, por exemplo. Parece-nos que o movimento de desglobalização, quando atua no sentido de questionar esse processo de perpetuação estanque do cânone, pode e poderá levar a uma nova perspectiva de consumo do literário e da matéria crítica. O grande problema reside no fato de que o mercado (literário) transforma também essa literatura dita “menor” (porque alcança um público mais restrito, local e/ou especializado), rapidamente, em commodities editoriais - vide os casos de Paulo Lins, Carolina Maria de Jesus, para além do mais recente boom de Itamar Vieira Junior, com Torto Arado (2019).

Com a presente discussão, respondemos dialogicamente - no sentido do termo preconizado por Mikhail Bakhtin (2006BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.) - ao já citado Bertrand Westphal, notadamente em seu A geocrítica: real, ficção, espaço (2017), visando estabelecer pontos de contato e de ruptura da geopoesia com a geocrítica, a Paul Gilroy, autor d’O Atlântico negro, pelo contributo ao pensamento sobre “formas geopolíticas e geoculturais” (Gilroy, 2017GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Editora da Universidade Cândido Mendes, 2017., p. 25) do Sul Global, como também a Walter Benjamin (1986BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Editora Cultrix; Editora da EDUSP, 1986.), no que concerne à experiência de modernidade e à experiência poética na era da reprodutibilidade técnica, a Eric Hobsbawm (2007HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.), para a reflexão em torno do fenômeno “globalização”, à Bárbara Sousa (2016), estudiosa dos processos de aquilombamento brasileiros, e, finalmente, a Willi Bolle, que vem trazendo novas roupagens para o conceito de “sertão.br” (Bolle, 2004BOLLE, Willi. grandesertão.br: O romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2004.), ideia que converge justamente para uma discussão em torno do (des)global. Tal substrato intelectual ampara-nos na definição da geopoesia e de seu campo de ação, como também nos encaminha para a análise do recorte literário que apresentamos nesta oportunidade, a saber: poéticas orais e escritas, advindas de rincões dos Estado de Goiás e Tocantins, que se apresentam como cantos e versos dos povos quilombola Kalunga.

Começamos por definir a geopoesia enquanto práxis literária e cultural, vinculada a geografias específicas do interior cerradeiro brasileiro, que movimenta povos de quilombos, de aldeias, foliões de terreiros, passistas de rodas, viajantes de encruzilhadas, indivíduos e coletivos em condição de travessia. Pessoas, portanto, em práticas literárias orais, escritas ou performadas, que se conectam entre si atualizando um campo literário vivo e produtivo, que, no entanto, está invariavelmente à margem do chamado “cânone” brasileiro. Não resta dúvida de que, desde seu nome, a geopoesia (desglobal/deslocal) suscita comparações com a geocrítica - formulação teórico-crítica pioneiramente desenvolvida por Bertrand Westphal, professor de Literatura Comparada na Universidade de Limonges (França, sempre considerada nação-berço do universal e, por extensão, do global). Nosso intuito é justamente dialogar com as ideias do intelectual francês, destacando convergências e divergências entre a sua perspectiva e a nossa.

A geocrítica, surgida no contexto dos estudos em Literatura Comparada, tornou-se “referência incontornável na reflexão actual sobre o ‘espaço’ nos estudos literários” (Laurel, 2017LAUREL, Maria Hermínia. Nota de abertura. In: WESTPHAL, Betrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017. p. 7-73., p. 8), conforme adverte Maria Hermínia Laurel, professora na Universidade de Aveiro e integrante do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, em Portugal. A pesquisadora foi responsável por prefaciar e traduzir, para a Língua Portuguesa, a obra La Géocritique: réel, fiction, espace (Westphal, 2007WESTPHAL, Betrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017.). Tomado como “um dos ‘elementos’ operatórios mais consistentes da geocrítica” (Laurel, 2017LAUREL, Maria Hermínia. Nota de abertura. In: WESTPHAL, Betrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017. p. 7-73., p. 54), a transgressividade

afasta resolutamente (...) a concepção secularizante e homogeneizante do espaço herdada do pensamento positivista e colonialista, à qual opõe a heterogeneidade constitutiva do espaço pós-moderno. Bertrand Westphal faz dialogar em torno do conceito de transgressividade noções angulares da geocrítica como sejam a de oscilação, de heterogeneidade, de simultaneidade entre “espaço total e fracturado”. (Laurel, 2017LAUREL, Maria Hermínia. Nota de abertura. In: WESTPHAL, Betrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017. p. 7-73., p. 17).

Westphal, por seu turno, defende que a geocrítica

prefere uma postura geocentrada, que coloque o lugar no centro dos debates. (...) Numa palavra, deslocar-nos-emos do escritor para o lugar e já não do lugar para o escritor, ao longo de uma cronologia complexa e de pontos de vista diversos. (Westphal, 2017WESTPHAL, Betrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017., p. 90).

Note-se que Westphal e Laurel tomam o “espaço pós-moderno” como o espaço da geocrítica, campo por excelência oscilante, heterogêneo, fraturado. Temos já, até aqui, alguns elementos provenientes da geocrítica que fundamentam a proposição da geopoesia, a saber: a abordagem geocentrada, o espaço oscilante e fraturado, a cronologia complexa e os pontos de vista diversos. As semelhanças são evidentes, como se pode apreender pela descrição do modo procedimental atrelado à geopoesia:

A geopoesia como sistema, enquanto movimento de produção artística e crítica, incide sobre textos e vozes, personagens e narradores que realizaram retratos de brasis liminares. A viagem e o deslocamento, que alimentam esse contar, também incide na própria escrita. (Silva Junior, 2022SILVA JUNIOR, Augusto Rodrigues da. Geopoesia da boa morte pelas ruas coralinas da tanatografia. Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, n. 26, p. 119-136, 2022. https://doi.org/10.5902/1679849X70528
https://doi.org/10.5902/1679849X70528...
, p. 124).

Geocrítica e geopoesia despontam mesmo como sistemas de análise de produções artísticas marcadas pelos deslocamentos, pela viagem, pela transitoriedade e pelo movimento transgressivo. No entanto, o ponto fulcral que une as duas abordagens parece ser a vocação polifônica que subjaz a ambas. Nas duas propostas, está-se dialogando abertamente com Mikhail Bakhtin, que, em seu estudo Cultura popular na Idade Média e no Renascimento (2008BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.), demonstrou que “a concepção do espaço-tempo evoluiu a partir do Renascimento” (Westphal, 2017WESTPHAL, Betrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017., p. 77). O crítico francês prossegue em sua interlocução com o russo:

Sendo o espaço dito “real” polifónico, navicular, a geocrítica enfrenta um referente cuja representação literária já não é considerada deformadora, mas fundadora. (...) A geocrítica não se acantona no estudo da representação do Outro, apreendido num contexto monológico. (...) Na verdade, a geocrítica continua a atribuir a supremacia do artista, mas coloca-o no centro de um universo do qual ele não é a única engrenagem. (...) Desse modo, a relação bipolar entre alteridade e identidade deixa de ser regida por uma simples acção, passando a sê-lo por uma interacção. (Westphal, 2017WESTPHAL, Betrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017., p. 91-92).

Com o intuito de desvelar de modo bastante visível o contato entre a teoria bakhtiniana e a de Westphal (como também a da geopoesia), trazemos caracterização da noção de polifonia por Paulo Bezerra, tradutor, estudioso e importante difusor da obra de Bakhtin no Brasil:

O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro “eu para si” infinito e inacabável. (...) A polifonia se define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências equipolentes. (Bezerra, 2005BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 191-200., p. 194).

Vale ressaltar que, seja para Bezerra, seja para Bakhtin, a discussão sobre polifonia vincula-se ao espaço discursivo do romance enquanto gênero literário em que primordialmente se manifestam as interações dialógicas. É, no entanto, interessante notar que a coletividade auferida pelo crítico russo em Dostoiévski tem suas raízes na Renascença festiva do escritor francês François Rabelais e reaparece, carnavalizada, nas vocalidades e corporalidades da cultura popular brasileira - a que chamamos de expressões da geopoesia. Esta que se espraia pelo Centroeste-Norte e, claro, pelas Minas e Gerais de Guimarães Rosa, bem como pelo Nordeste de diásporas revolucionárias, espaços conhecidos como quilombos. Assim, o mapa da geopoesia no Brasil vai se compondo contra epistemicídios.

Nesse sentido, temos proposto em estudos pregressos que, em processo responsivo à teoria bakhtiniana, é possível estabelecer o ato crítico também como polifônico:

Na crítica, embora não haja a ferramenta artística nomeada por polifonia, o pacto eu-outro se estabelece num eu e outros múltiplos, pois a crítica é uma constante resposta aos próprios escritos, aos escritos de outrem, aos mecanismos de criação formal e aos enformadores do mundo literário. (Silva Junior; Medeiros, 2015SILVA JUNIOR, Augusto Rodrigues da; MEDEIROS, Ana Clara Magalhães de. Poética da criação verbal: a crítica polifônica nos estudos da linguagem literária. Anuário de Literatura, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 228- 245, 2015., p. 234).

Na arena polifônica da geocrítica e da geopoesia, o pacto eu-outro se dá em um espaço vital que não pode ser alijado da discussão artística, histórica e política, pois, sob tais perspectivas, entende-se que o espaço, em sua condição territorial, conta histórias, carrega marcas de diásporas, migrações, explorações, colonialismos, violências, lutas e resistências. Com vistas a situar leitores/as sobre o modo como opera a crítica geopoética, propomos iniciar este breve itinerário analítico por formas artísticas da geopoesia goiana e tocantinense evocando versos orais (coletados na Romaria do Divino em agosto de 1999) de uma sussa (dança típica dos quilombolas da região). O canto performado, aparentemente muito divertido, é entoado pela Comunidade Kalunga de Goiás:

Ô Formiga que dói

é a jiquitaia,

Formiga que dói

é a jiquitaia...

Enquanto o canto ressoa na voz das/os foliões, as dançadeiras (foliãs) de sussa e os festeiros ou “os povos da rua” (moradores de cidades), que comungam no corpo coletivo-festivo, dançam imitando o movimento dos corpos picados por formigas jiquitaias. É um canto-dança de dor que recorda a invasão das senzalas (do período colonial) por formigas cuja picada arde como pimenta. Note-se que, no processo de resistência anticolonial, a arte traduz, irônica e parodicamente, corpos que lutam pela dança, pela música, pela capoeira, pelo jongo e pela brincadeira. Letra que dói pela memória não apenas de quem foi picado pela formiga, mas também, e sobretudo, pela violência colonial (persistente), que funda, justamente, a ideia de globalização. O epíteto “Novo Mundo”, que definia um imenso espaço a ser pilhado pelos povos do “Velho Mundo”, envolve, ainda, mundos específicos de povos originários e diaspóricos que foram explorados, escravizados e exterminados por mais de quatro séculos.

Dessa voz que dói enquanto canta, colhemos a letra. A geopoesia performada em ato exibe justamente o encontro de diásporas em busca de liberdade, pois, no ato festivo cultivado até o século XXI, atualiza-se a memória da experiência das senzalas brasileiras, em que infestações de formigas, típicas da região Centro-Oeste e Norte, picavam os corpos negros já tão açoitados pelo trabalho extenuante e por feitores sanguinários. A palavra “jiquitaia” também é o nome de uma pimenta cultivada pelos originários Baniwa (habitantes do Alto Rio Negro), cuja picada provoca forte ardência. No teatro de terreiro, porém, tudo é festa e pode levar à paródia carnavalizada: as mãos se lançam tirando os bichos ancestrais e divertindo futuros de esperança (anticoloniais).

Um caso específico da geopoesia Kalunga é aquela cantada ao pé do mastro do Divino nas festas religiosas do mês de agosto em Goiás/Tocantins. A “disputa” oral congrega várias partes: uma satírica, em que um desafia e desqualifica o outro; outra de louvor; outra de autoelogios; trocas de elogios e, por fim, a despedida (o desfecho), que transforma os temas e as variantes semânticas em motivos de alegria, amizade, fé e tradição. Há motivos correntes nessas disputas, como as descrições do ambiente, a louvação dos Santos e os rituais que fazem parte da tradição da festa (a seguir alguns exemplos):

A bandeira uita o foi uita u Noé/; Imperadô do mundo todo mundo vai sê/; Responda no masto é capela de oração/; U masto uita o foi na porta da Igreja/; Que presença bunita meu cumpadi/Veja qui grande beleza; Tô cantando com uita hora meu cumpadi/Num tem pinga pá mim bebê; Quand’ucê já canta minha voz já chega t’áligria; Pruquê nóis canta direito meu cumpado/ Nóis dois é fulião di guia.

Outras imagens constantes nesses festejos populares quilombolas remontam às práticas cotidianas, tais como a tropelia com o gado, as andanças pelos vãos e a navegação em canoas. Tudo vira metáfora no ato de improvisar: “Sua voz el’ num só num volta na corredera”; “Batedô já tá feito qui a puêra aqui já desceu”; “Cumpadi minha canoa mai meu pensamento te deu hora”. Na expressão da geopoesia viva, surgem ainda termos técnicos do “cantorio”, que apontam para o rebuscamento da composição: “Procura os argumentos meu cumpado”; “O senhoro joga um véis i u sinhoro presta a razão”; “Eu canteno é prazerada”; “Mas eu canto impragerado [em par gerado, em dupla] meu cumpadi”.

Apresentamos, mais adiante, um pequeno trecho de um repente cerradeiro que tem a duração de quase 30 minutos. Sob a música da folia e em roda imensa, em um dos momentos de maior êxtase religioso, o levante do mastro propicia que alguns homens se desafiem poeticamente. Aos poucos, a dupla se define e começa o embate a partir de motes metalinguísticos gerados no próprio desafio e junto aos desafiados. De certa forma, lembram os repentistas, mais conhecidos de diversas regiões do Nordeste brasileiro, que trabalham em um processo de improvisação entre dois cantadores e que, dentro do desafio, “mangam” um do outro e mudam naturalmente de tema, (quase) sempre partindo de algum mote da fala do companheiro/antagonista. A respondibilidade nessa modalidade é patente. A fragmentação, marca do texto oral, como adverte Paul Zumthor, garante o inacabamento semântico da geopoesia vocalizada: “Eis porque o texto transmitido pela voz é, necessariamente, fragmentário. [...] Eis porque o texto oral nunca se encontra saturado, nunca preenche inteiramente seu espaço semântico” (Zumthor, 2010ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires, Maria Lúcia Pochat, Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010., p. 59-60).

Acompanhados, a princípio, por um ou mais foliões que cantam o “refrão” (a quinta linha risível) e por músicos com suas caixas, pandeiros e triângulo, a disputa é acirradíssima e perpetua-se noite adentro. À medida que ela continua, os acompanhantes oscilam, desistem, voltam, aplaudem e gargalham. Esse coro de pessoas em volta, ora se diverte, ora zomba em conjunto. Os familiares dos cantadores, muitas vezes, os chamam para desistir, como se eles estivessem prestes a brigar. Ocorre uma espécie de disputa coletiva em que as pessoas se posicionam do lado de um ou de outro, no intuito de incentivá-los, e, no caso das mulheres, para fazê-los parar.

A disputa consiste na alternância seguida entre os dois cantadores, como se cada um desse um “golpe” somente depois de receber o “golpe” do oponente. O clima é divertido e tenso ao mesmo tempo. As mulheres insistem muito para que eles “deixem essa prosa”! Elas aproximam-se de um dos dois participantes, chegam a dar puxões em seus braços e, uma vez frustradas, afastam-se: esposas, filhas e parentes próximas compõem mais um elemento dessa performance. Cumpre frisar que, no campo de estudos da geopoesia, o conceito de performance remete aos imprescindíveis contributos de Zumthor: “A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida” (Zumthor, 2010ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires, Maria Lúcia Pochat, Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010., p. 31).

Iniciada a performance do “confronto”, a disputa prolonga-se garantindo a continuidade dialógica (porque em lógica efetivamente dialogada) do festejo. Cada qual canta primeiramente um verso (na poética deles, uma linha, um “verse”), depois o repete e, em seguida, desfecha a quadra e a ideia nela elaborada. Importa ressaltar que essa quadra é formada por quatro frases, seguidas sempre de mais uma, que funciona de forma onomatopaica e confirma o caráter cômico da disputa: “rá rá rá rá ráái”; isso é cantado de forma alongada (e funciona também como mais um tempo para o oponente pensar).

A primeira parte define o tom da cantoria e o “arremate” é utilizado de modo provocador, encomiástico, em louvor etc. Normalmente, essa segunda parte (as duas últimas frases), funciona como motejo na “resposta” do desafiado. Cada frase é composta basicamente por duas sétimas, duas oitavas ou uma décima e uma sétima. Mas o tom e a prosódia definem muito mais a metrificação. Ressalte-se que, independentemente do tom da quadra, o verso risível se repete - tornando o tom galhofeiro sempre presente.

Fato ainda digno de comentário é a inserção de acontecimentos da própria festa, da vida da comunidade, do pacto entre os desafiantes e a considerável diferença de idade entres os “Cumpadi”. Seu Prego é o mais velho e o mais animado, Salu representa os jovens e uma nova geração de versificadores. Nesse embate de gerações, temos várias etapas. A história, pautada pela religiosidade, pela presença de “povos da rua” e pela própria prática de cantar ao pé do mastro, conjuga, na mesma linguagem: história, símbolos e relatos. É a geopoesia se expressando na territorialidade.

Objetivamente, o embate oscila entre a piada, o elogio e o autoelogio; a devoção e o cotidiano; o confronto e a admiração mútua pelo canto do outro folião naquele momento da festa. Há uma passagem em que Salu coloca Prego como seu “mestre fulião”, reforçando, com deferência, que ele só está em condições de desafiá-lo porque aprendeu essa arte com ele. No entanto, isso também lhe permite, nesse momento, ensinar:

Salu: Coisa boa qu’eu acho é a’legri’qui’stá Coisa boa qu’eu acho é a’legria qui’stá U véis qui’u sinhô mi’nsinô meu cumpadi Agora eu vô ti insiná Prego: Coisa boa é capela de oração Ê coisa boa é capela de oração Eu num insiná meus véis meu fi I’eu num sô fulião Salu: Eu falei ni Prego o Salu já foi imbora Eu falei ni Prego u Salu já foi imbora U que coceis tem meu cumpado Qui saiu na mesma hora Prego: Coisa boa no mundo é a gentá bem iscunfiado Coisa boa no mundo é a gente andá iscunfiado Sinhora d’Abadia meu manto Gira um mundo num quadro Salu: A bandeira levantô foi visitá u Noé Ôôô levantô foi visitá u Noé Ela foi li pra cima meu cumpado O Imperadô num sei quem é Prego: Imperadô do mundo todo mundo vai sê Imperadô do mundo todo mundo vai sê Anda ligero meu fii Que num’incan’têi o dia mais (un)cê

Se temos uma fórmula que estrutura tais versos, é a improvisação. Ela possibilita uma multiplicidade de variantes, mas exige do “portador da tradição” um vocabulário amplo e que ele seja um “iniciado” nessa arte. Enfim, as imagens da festa popular iluminam as composições e a realidade é transformada em geopoesia. O trecho ora destacado figura como uma boa metonímia de todo o processo de tessitura e expressão da geopoesia, que fica, portanto, exemplificada pelo corpo, pela letra e pela voz de cantadores e performers do povo Kalunga.

Os cantadores e os ouvintes Kalunga denominam a composição, a disputa toda, como Verse. Embora esteja ligado a um cânone e a um padrão métrico a ser seguido, o canto é sempre improvisado. Na transcrição, mostramos que há uma separação em quadras, pautadas em rimas finais, com variações que dependem exclusivamente dos tons de fala e improviso. Isso também sopesa na disputa: além dos temas e embates, uma gaguejada, ou um “verso quebrado”, são motes risíveis na próxima fala. Os ouvintes enformam um verdadeiro coro - comentando, incitando e influenciando os geopoetas com suas risadas, trejeitos, posicionamentos e acompanhamentos.

O movimento pendular caracteriza-se pela ofensa brejeira e pelo ponto encomiástico. A tradição e o orgulho de cantarem em conjunto, mesmo em disputa, são ressaltados, pois ambos sabem que das duas vozes sai o todo do canto. Os outros, em volta deles, também ouvem atentos e admiram o embate, pois sabem que ele se realizará somente naquele momento do festejo e que só acontecerá novamente na próxima festa.

Entre foliões, o respeito é mantido em todo o festejo. Salu, por ser mais novo, faz a troça, mas não esquece a hierarquia. Isso é notado nas rodas de prosa, com improvisações ao longo do dia, com os portadores de instrumentos musicais puxando o movimento entre o fazer e o respeito pela palavra do outro. Tudo se conjuga com uma humildade altiva, possibilitando pequenos exercícios de disputa. Ao passo que um desafio ao pé do mastro, nesse momento tão efusivo do festejo, assume uma centralidade espetacular. A performance ganha força e abre-se para uma nova alegria - regida ainda pelo “Santo”, mas muito mais voltada para a carnavalização (católica) da noite. O desfecho do trecho, com a menção ao Imperador, reforça a imagem da colonização e da escravidão e como o festejo, em sua força revolucionária, encena um negro e sua família na condição de Imperador durante todo o tempo da festa.

Os termos nevrálgicos para essa apresentação da geopoesia, como para a geocrítica - de povos diaspóricos -, merece discussão mais ampla nessa aproximação que propomos entre o pensamento de Westphal e o nosso. Outro nome relevante para essa reflexão é Paul Gilroy, que destaca, n’ O Atlântico negro (2017GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Editora da Universidade Cândido Mendes, 2017.), como “uma cultura da diáspora é necessária” (Gilroy, 2017GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Editora da Universidade Cândido Mendes, 2017., p. 13). A dita “cultura da diáspora” está profundamente imbricada à visão de espaço erigida a partir dos processos de colonização e descolonização em África em pleno século XX. Da multipolarização das relações geopolíticas em nível mundial e de fratura de identidades no contexto de uma globalização profundamente desigual (que segue em curso), pensamos esse desglobal que insiste em confrontar os cânones estabelecidos na literatura e na cultura. Na “reorientação conceitual” proposta a partir do Atlântico negro, “a relação da cultura com o lugar, suas implícitas ‘ecologias de pertencimento’ [ecologies of belonging] e sua persistente dinâmica imperial, colonial e pós-colonial estão todas sob um novo escrutínio” (Gilroy, 2017GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Editora da Universidade Cândido Mendes, 2017., p. 13). No esteio desse “novo escrutínio” da relação entre cultura e lugar, retomamos a imagem (movimento) da sussa da formiga jiquitaia performada pelos Kalunga de Goiás. Nesse canto-recordação coletiva, longe do Atlântico cemiterial e longe do mar (niemar), identificamos traços da “mediação do sofrimento” que Gilroy observou nos povos do Atlântico negro:

As culturas do Atlântico negro criaram veículos de consolação através da mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contraestéticas e uma distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente separam a genealogia da geografia, e o ato de lidar com o de pertencer. (Gilroy, 2017GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Editora da Universidade Cândido Mendes, 2017., p. 13).

Na geopoesia, o fazedor individual da tradição movimenta sua própria maneira de cantar e de contar sua história, mas enformando sempre uma voz coletiva. Para quem não conhece a região, é importante ressaltar que, ao cantarem a Jiquitaia, eles também assimilam o contato entre afro-brasileiros e povos indígenas do Cerrado. O sofrimento de povos submetidos ao trabalho escravo e a habitações as mais precárias possíveis - onde a infestação de formigas não são sequer um dos maiores problemas enfrentados -, é mediado pelo canto e pela dança, estilizado em uma forma estética transgeográfica capaz de conferir pertencimento a uma “trans-cultura-negra” (Gilroy, 2017GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Editora da Universidade Cândido Mendes, 2017., p. 15) em movimento há, pelo menos, cinco séculos, e tão presente, ainda hoje, em um grau de pobreza acentuado, demarcado por péssimas condições de trabalho.

Na estrofe que anteriormente destacamos dos povos Kalunga, tudo se move entre o improviso e a base, os pilares e o desejo de recriação, os Vãos e as lutas sociais, pau-a-piques e vozes andantes, adobes aquilombados e perpetuação oral e festiva de uma tradição sistematicamente silenciada pela dita cultura oficial - para usar expressão bakhtiniana (2008BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.). Cultura oficial que também remete à cultura delimitada pelo Estado, pela Igreja (Católica) e pelas formas canônicas da cultura, bem como ao status quo do capital no Ocidente. Lembremos que, ao longo do fatídico século XX, o “Novo Mundo” passou a ser chamado de “Terceiro Mundo”, e os países socialistas ganharam a alcunha subentendida de “Segundo Mundo”, visto que os hegemônicos ocidentais pertenciam ao “Primeiro Mundo”.

Cumpre explicitar que, quando falamos em globalização desigual, estamos alinhados à compreensão do historiador Eric Hobsbawm, que dedicou alguns de seus ensaios e palestras, já do século XXI, a estudar a imbricada relação entre Globalização, democracia e terrorismo (Hobsbawm, 2007). Para o britânico anticapitalista, vivemos um cenário mundial dominado pela globalização, porém ela “trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais no interior das nações e entre elas” (Hobsbawm, 2007HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 11). Registra, ainda, que “este surto de desigualdade (...) está na base das importantes tensões sociais e políticas no novo século” (Hobsbawm, 2007HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 11), o que leva ao eterno retorno de crises - que se estendem ao movimento, no jargão econômico, de desglobalização.

Nessa conjuntura, tanto a geocrítica como a geopoesia colocam como prioritário o debate sobre a persistência incômoda, neste nosso milênio, das contradições sociais, políticas, econômicas e étnico-raciais que marcaram a eleição de espaços “centrais” em detrimento de outros, tidos por marginais ou periféricos. Em alguma medida, o “mercado global livre e sem controles” (Hobsbawm, 2007HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 10) reedita, com a porção sul do planeta (e ainda com alguns países do Oriente Médio e da Ásia), a economia predatória que os impérios da modernidade tinham estabelecido desde o século XVI ao XX com África e América Latina. Isso se faz, porém, de maneira repaginada e a partir de um expediente cultural que Hobsbawm nomeia por “imperialismo dos direitos humanos” (Hobsbawm, 2007HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 14), proposição, segundo o estudioso, capitaneada pelos Estados Unidos da América.

Para pensar os direitos humanos em território brasileiro, a antropóloga Bárbara Oliveira Souza (2016SOUZA, Bárbara O. Aquilombar-se: panorama sobre o Movimento Quilombola Brasileiro. Curitiba: Appris, 2016.) propõe o conceito de “aquilombar-se”. O aquilombamento significa lutar pela garantia dos direitos quilombolas e afro-diaspóricos. Atravessando a história e a política, esse conceito-práxis ganha lugar de destaque nos estudos da geopoesia, abarcando uma dimensão secular de resistência. O aquilombar-se é (foi e será), para todos os povos e pessoas espoliadas, uma possibilidade de se manterem física, social e culturalmente vivos. Aquilombar-se, portanto, traduz-se como um movimento de responder e resistir às lógicas imperialistas provenientes do Norte Global, notadamente colonialistas e eurocêntricas. Desse aquilombar-se, constituiu-se o movimento quilombola que dialoga com o movimento negro urbano, a luta antirracista nos circuitos acadêmicos, políticos e culturais e o movimento negro - todos suleadores dos trabalhos em geopoesia.

Neste campo do saber, em que se inserem tanto a geopoesia, quanto a geocrítica, há sempre preparativos para o deslocamento, experiências coletivas de viagem, chegadas a centros de peregrinação, comportamentos e impressões em espaços liminares, um mergulhar na viagem como que para encontrar histórias dignas de serem narradas - no sentido benjaminiano (1986BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Editora Cultrix; Editora da EDUSP, 1986.). Resta também a certeza da partida: se etnografar é viajar para contar, voltar traz sempre a iminência da escrita-teoria pelo etnoflâneur. Estamos parafraseando o Der Erzähler, figura central na teoria de Walter Benjamin sobre narrativa escrita e oral, que foi usualmente traduzida no Brasil como “O narrador” ou “O contador de histórias”. No entanto, tal contador (que em alemão e português agregam o significado “matemático” também) comporta as características que consideramos inerentes ao geopoeta - com a diferença de que o crítico de Berlim se referia à tradição europeia, enquanto o geopoeta situa-se necessariamente no Sul Global, no Atlântico Negro, no interior quilombola, sertanejo, originário, cerradeiro e amazônida de brasis liminares.

No celebrado ensaio “O narrador”, de 1936, Benjamin aponta para o silenciamento dos europeus perante a guerra, especificamente a chamada Primeira Guerra Mundial. O etnoflâneur Willi Bolle adverte sobre o método de trabalho do outro alemão diaspórico: “Benjamin estudou a tradição (...) para forjar um instrumento com o qual iria desafiar a crítica literária de seu tempo, considerada por ele como decadente” (Bolle, 1986BOLLE, Willi. Apresentação. In: BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Seleção e apresentação. São Paulo: Editora Cultrix; EDUSP, 1986. p. 9-14, p. 10). O método do flâneur, do colecionador, do trapeiro, aproxima-se da prática da geopoesia na medida em que movimenta “imagens do pensamento” (Benjamin, 1986BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Editora Cultrix; Editora da EDUSP, 1986., p. 143), capazes de congregar novas formas de apreensão da modernidade por meio de passagens, ensaios e artes da era da reprodutibilidade técnica.

Entre a etnografia e a etnoflânerie, o geopoeta busca formas dialógicas de pensar o nosso milênio contra formas decadentes de crítica literária. Começo de milênio pleno de migrações e diásporas, viagens e fronteiras, economias predadoras, ainda marcadas pelo surgimento de um vírus em escala global. Curtíssimo milênio que se constrói ou se esfacela no cenário de uma globalização irregular, sempre mais violenta para com os povos do sul (africanos, indígenas e latino-americanos; etnias e nacionalidades do Leste Europeu e da porção mais oriental do globo). Assim, a desigualdade, enquanto característica constitutiva de um planeta, se entende globalizada para algumas questões, mas incapaz de lidar com as demandas locais de cada país - vide a resistência à diminuição de emissão de dióxido de carbono, o risco de exploração petrolífera no Rio Negro e no Rio Oiapoque, bem como a incapacidade de se organizar, em escala global, o enfrentamento da Covid-19. Acrescente-se a isso o conflito oportunista impetrado entre Rússia e Estados Unidos (este último país aliado à Ucrânia) ainda no contexto da pandemia da Covid-19, apenas para dominação de mercado.

Assim, a noção (também experiência, no sentido benjaminiano) de desigualdade não deixaria de comparecer na delimitação de territorialidades literárias - aqui tomadas como espaços em que se produz literatura e cultura, mas ainda onde ela circula, onde ela é performada e experimentada a partir de suportes (políticos) que vão muito além do livro impresso. Ainda que tal afirmação seja já bastante consolidada no campo dos estudos em Literatura Comparada (Nitrini, 1997NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP, 1997.; Carvalhal; Coutinho, 1994CARVALHAL, Tania Franco; COUTINHO, Eduardo (org.). Literatura Comparada. Textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.), recorremos a tal constatação para indicar que a geopoesia ocupa-se da desigualdade, no cenário literário e acadêmico brasileiro, na medida em que exige, de quem faz teoria e crítica literária, que se desloque do campo mais hegemônico de produção, edição e circulação do objeto-livro.

Como se vê, também no tocante ao processo de globalização, a geopoesia encontra ecos na geocrítica. Sobre o tema, adverte a tradutora da obra de Westphal, em Portugal:

Donde a necessidade de se desenharem novas cartografias (...), em que haja lugar para a utopia - um espaço livre - que o mapa do mundo globalizado, fragmentado por meridianos e paralelos (quando não por muros, fronteiras e outras formas de fechamento, de não atravessamento) que o cruzam em todas as direcções parece negar. Esse lugar será o das “realidades paralelas e factícias”, aquelas que nenhum mapa pode representar, e que somente os artistas (em cujas formas de expressão inclui a literatura) - e não os geógrafos ou os cartógrafos - poderão investir, nos seus “laboratórios do possível”, “laboratórios” onde inclui também, como vimos, a teoria da literatura. (Laurel, 2017LAUREL, Maria Hermínia. Nota de abertura. In: WESTPHAL, Betrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017. p. 7-73., p. 68-69).

Neste ponto, em que se especificam os “laboratórios” da geocrítica e da geopoesia, há que se registrar um aspecto de afastamento entre as duas proposições críticas. Ainda que ambas estejam ocupadas em desenhar “novas cartografias”, que atravessem fronteiras (para derrubá-las), em mapear “realidades fictícias” (para atravessá-las), ainda pouco exploradas pelas investidas críticas e teóricas mais tradicionais, eurocêntricas e epistemicidas, Bertrand Westphal situa seu estudo no universo da pós-modernidade, enquanto a geopoesia defende que o conceito mesmo de “pós-modernidade” não pode ser inadvertidamente aplicado ao contexto de produções artísticas brasileiras, latino-americanas, indígenas e afro-brasileiras. Visto que tais povos ainda pleiteiam um lugar ao sol da modernidade nos moldes ocidentais e, principalmente, o mínimo de cidadania e de seguridade social. A partir da explanação do crítico francês, esmiúça-se nossa colocação:

É (...) nas paragens labirínticas do pós-moderno que eu vou situar o meu estudo (...). O pós-modernismo distingue-se ainda pelo facto de ter nascido sobre as ruínas do século XX: vestígios fumegantes deixados pelos conflitos e sobretudo pela Segunda Guerra Mundial, mas também escombros cacofónicos da unidade da linguagem e da representação, cuja crise foi desvendada e analisada por Wittgenstein e pelos seus sucessores. (Westphal, 2017WESTPHAL, Betrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017., p. 78).

Precisamos tecer diferenças fundamentais entre a matéria de estudo da geocrítica e a da geopoesia. Westphal, um pensador francês, orienta-se pela narrativa e pelos eventos históricos contados pela Europa: ainda que sua proposição crítica seja anticolonial e que busque o descentramento, ele não menciona que, logo ao fim da Segunda Grande Guerra, países europeus, incluindo a França, estabeleceram colônias de exploração em África. Desse modo, cumpre notar que uma teoria advinda da Europa, que se compreende pós-moderna, levanta-se a partir das “ruínas do século XX” eurocêntrico. Já uma perspectiva advinda do “Centroeste-Norte Brasileiro”, como a geopoesia, erige-se sobre um território continental onde as guerras europeias (chamadas de I e II Mundiais), que geraram impactos socioeconômicos globais, não se comparam aos séculos de colonização. A experiência de guerra, entre nós, é bastante diversa e extensa (remontando ao período da invasão colonial portuguesa, campos e garimpos de extermínio de longa duração e atuais). Assim, as “ruínas”, os “escombros” e os “vestígios fumegantes” que marcam a atual Europa pós-moderna são, sob nossa mirada, em muito, diversas das ruínas, dos escombros e dos vestígios sobre os quais se ergue o Terceiro Milênio do Sul Global, especialmente o brasileiro.

A I e a II Guerras Mundiais, os conflitos no Leste Europeu, no Vietnã, no Golfo, no Afeganistão e no Iraque, decisivos - nas perspectivas tanto de Westphal quanto de Hobsbawm - para a fisionomia da cultura globalizada do Terceiro Milênio não podem, ao menos no cenário brasileiro, suplantar a experiência de guerra de nossos povos, que já se perpetua por mais de 500 anos. Dito de outro modo, entendemos que a tarefa do crítico/teórico da geopoesia é conectar a produção artística de espaços ditos “periféricos” a uma visão de história, de cultura e de sociedade que seja pertinente à lógica e à experiência dos povos que a produzem - perspectivas que quase nunca se alinham aos preceitos da identidade imperialista (europeia ou estadunidense). Em um texto de 1933, Walter Benjamin formulou questão que, transposta do contexto nazifascista para o cronotopo neofascista brasileiro de nossos dias, ainda merece ser perguntada: “qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural se a experiência não o vincula a nós?” (Benjamin, 1986BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Editora Cultrix; Editora da EDUSP, 1986., p. 196). Levando-se em consideração que nosso método de trabalho - a crítica polifônica, que agrega pontos de vista variados, provenientes do Norte e do Sul Global, em interação dialógica - prevê a responsividade múltipla de vozes críticas a fim de se abordar responsavelmente a matéria artística produzida nos ermos e gerais do Brasil dos séculos XX e XXI, recorremos ao pensador judeu-alemão para pontuar que o patrimônio cultural da geopoesia será vinculado a nós se pudermos nos aproximar dele com ferramentas éticas, estéticas, metodológicas e críticas que sejam anticoloniais, descentradas e responsivas à nossa tradição ancestral.

Evidentemente que as “guerras” de nosso país incluem, ainda, a escravidão e o genocídio de africanos e afrodescendentes que se somaram aos indígenas no sustento de um capitalismo primitivo local, aqui instaurado desde o século XVI e atualizados pelo marco temporal e pela violência policial contra pessoas negras. O mesmo que facultou mão-de-obra escrava, mão-de-obra a ser exterminada e exploração incessante das riquezas não se interessa por teorias do Sul. Tudo que é chamado, em escala global, de progresso, civilização, “Primeiro Mundo”, foi “financiado” pelas invasões. Nas palavras de Luiz Felipe de Alencastro, no prefácio de seu O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul (2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000):

A colonização portuguesa, fundada no escravismo, deu lugar a um espaço econômico e social bipolar, englobando uma zona de produção escravista situada no litoral da América do Sul e uma zona de reprodução de escravos centrada em Angola. Desde o final do século XVI, surge um espaço aterritorial, um arquipélago lusófono composto dos enclaves da América portuguesa e das feitorias de Angola. É daí que emerge o Brasil do século XVIII. (...) O que se quer (...) é mostrar como essas duas partes unidas pelo oceano se completam num só sistema de exploração colonial cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporâneo. (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 9).

Vale registrar como, mais ou menos no mesmo período histórico (na abertura deste nosso milênio), Westphal, na França, e Alencastro, um brasileiro escrevendo em Paris (é professor na Universidade de Sorbonne), produzem teorias que alargam o conceito mesmo de espaço e requerem uma leitura histórica e geopolítica transterritorial. O autor d’O trato dos viventes explica a constituição do Brasil - e seus dilemas étnico-raciais contemporâneos - a partir de um “espaço econômico e social bipolar” produzido pela engrenagem escravista. Indubitavelmente, essas “duas partes unidas pelo oceano” (Brasil e Angola) têm, em suas identidades nacionais, guerras coloniais de longa duração como experiência coletiva e estruturante.

Por todo o exposto sobre os povos do Atlântico cemiterial, torna-se compreensível como as guerras de trincheiras, as guerras nazifascistas, a Guerra Fria e as mais recentes guerras “para democratização” (impetradas pelos Estados Unidos no Oriente Médio) não produzem, nem podem produzir, mais eco em nosso imenso território que os conflitos aqui travados desde a primeira metade dos anos 1500. A questão agrava-se ainda mais se consideramos que nossos povos não simplesmente apenas assistiram à ascensão da modernidade do Norte Global, mas trabalharam à exaustão para que as antigas metrópoles dos séculos passados se tornassem os “países desenvolvidos”, as “superpotências” ou as nações “imperialistas” que, já na nossa Era, assumem-se como arautos dos direitos humanos e dos regimes democráticos.

Se Eric Hobsbawm está correto ao afirmar que o mundo globalizado caracteriza-se pela “aceleração enorme e contínua da capacidade da espécie humana de modificar o planeta por meio da tecnologia e da atividade econômica” (Hobsbawm, 2007HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 10), compete ao pesquisador da geopoesia indicar que essa modificação do planeta, de modo predatório e irrefreado, se deu por parte das potências globais do Velho Mundo e de um lócus específico do novo mundo - os Estados Unidos, que vão realmente emergir da falência da Velha Europa nas ruínas do entreguerras. No seio da desigualdade, inerente ao sistema globalizado, conforme entendimento do mesmo historiador, o acesso e o desenvolvimento técnico/tecnológico também são profundamente irregulares e diversos. O próprio conceito de “tecnologia” ganha acepções muito distintas, se o considerarmos a partir do ideal capitalista do Norte Global ou se o tomamos a partir do ethos dos povos indígenas ou das comunidades quilombolas brasileiras afeitas à oralidade e à integração com o ecossistema. Desse modo, as condicionantes históricas profundamente distintas que separam o palco da geocrítica dos espaços da geopoesia, bem como a constatação da desigualdade estrutural entre o mundo europeu/imperialista e os territórios do Atlântico Negro (de que inquestionavelmente fazem parte os brasis liminares do Cerrado e da Amazônia), impelem-nos a uma crítica da razão “pós-moderna”, por ser este último conceito pertinente às modernidades, aos desenvolvimentos técnicos e às experiências europeias do Velho Mundo - não do nosso. Dissemos em outra oportunidade que

uma teoria da geopoesia e da literatura de campo, insurgida da produção artística brasileira mais apartada das condições materiais de publicação, divulgação e circulação, procura, igualmente, destruir o fio de continuidade de um cânone literário rijamente delimitado a partir de critérios estéticos e também éticos que reforçam a dominação cultural, política e econômica. (Medeiros, 2021MEDEIROS, Ana Clara Magalhães de. Teoria brasileira da literatura nos oitenta anos da morte de Walter Benjamin. In: KAHMANN, Andrea; CUNHA, Andrei; RASSIER, Luciana (org.). Territórios culturais, fronteiras e tradução. Porto Alegre: Class, 2021. p. 61-76., p. 65).

Pela boca do tempo e olhos de múltiplos povos em luta pela sobrevivência, o falar se torna atualidade viva em corpo, performance e discurso. Nas vozes da geopoesia, vemos traduzir-se um Brasil que é velho, mas ainda tão pouco palavrado na academia - o “Brasil.br” (de brasis liminares) dos ermos e gerais, das tropas e boiadas, dos pobres e foliões, dos negros e indígenas, dos moradores de rua e de orla, das retirâncias e dos povos diaspóricos, habitantes de pequenas cidades no interior do país, de grandes cidades e capitais tão desiguais. No ato de aquilombar-se (Souza, 2016SOUZA, Bárbara O. Aquilombar-se: panorama sobre o Movimento Quilombola Brasileiro. Curitiba: Appris, 2016.), avulta um drama social multiétnico e anti-épico, que não celebra as guerras de conquista, mas a rexistência - divergência vital entre a nossa cultura ancestral afro-brasileira/indígena-americana e o legado épico-trágico do berço europeu. À maneira das guerras transcontinentais travadas entre metrópoles e colônias até o nosso século XIX, os séculos XX e XXI perpetuam-se em uma conformação política bélica que esmaga, em um único país, pessoas - e suas expressões artísticas, culturais e intelectuais. Situadas fora do paradigma branco, elitista, urbano, cis, masculino, proveniente das porções Sudeste e Sul do Brasil, a geopoesia busca combater a “dominação cultural, política e econômica” imposta às regiões cerradeiras, amazoniais e sertanejas.

O etnoflâneur tem a função de fazer-ver, por olhares sensíveis, as posições ocupadas por um indivíduo ao longo do tempo - liminarmente atravessadas pela ação da escrita. A geopoesia, usando a mesma ferramenta para escavar e escrever, trata, na verdade, de valorizar, no mesmo grau, as manifestações escritas e orais produzidas em comunidades urbanas e rurais, ágrafas, semi-ágrafas e letradas: “O interesse do crítico pelo poeta se evidencia pela superposição da época da gênese da obra com aquela que a revela e conhece: a época dele” (Bolle, 1994BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna. Representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: EDUSP, 1994. , p. 73, grifos do autor).

Ao mesmo tempo em que acompanha o que circula em grandes tiragens e entende os jogos e forças que movimentam a construção de um cânone, a geopoesia vê transformada a imagem de nossos escritores ao serem aproximados daqueles quase esquecidos, não-lidos, desencontrados. Os geopoetas dessas localidades estão entre o portador individual da tradição e o escritor que circula em grandes centros. No campo coletivo da cultura, a crítica polifônica coloca no mesmo patamar o escritor canonizado e o escritor (praticamente) desconhecido. O método crítico polifônico faz jus à condição histórica do que é estudado, no sentido de reolhar para esse objeto e levá-lo a outros campos pensamentais: no mesmo campo de ação, no campo de ação - arena - do outro. A geopoesia faz do presente, história: “Não se trata de apresentar as obras literárias no contexto de seu tempo, mas de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela e conhece: o nosso” (Benjamin apudBolle, 1986BOLLE, Willi. Apresentação. In: BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Seleção e apresentação. São Paulo: Editora Cultrix; EDUSP, 1986. p. 9-14 p. 47).

Na condição de geopoetas, as vozes coletivas originárias e quilombolas apresentam-se como aquele outro possível, que oferece novos mapas e novas formas de pensar a tradição em condição de renovação e continuidade. Uma teoria que nasce do Centroeste do país e que irrompe para recontar a história do humano, na migrância, consolida-se enquanto pesquisa; na escrita, consolida-se enquanto geopoesia. Não só a observação participativa, mas também a participação observante enseja (marca do geopoeta) a liminaridade: “Nas andanças do habitante da grande cidade pela floresta de símbolos, ele se defronta quase sempre, com textos triviais, que são percebidos distraidamente” (Bolle, 1994BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna. Representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: EDUSP, 1994. , p. 281). O geopoeta, mesmo na distração, experimenta, no corpo transeunte, o transe, e traduz - em notas ou memórias ensaísticas - tudo aquilo que experimentou, em prol de tudo aquilo que resiste pela palavra. “‘Distração’ é uma palavra-chave para Benjamin: trata-se de uma percepção no limiar entre a consciência e o inconsciente” (Bolle, 1994BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna. Representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: EDUSP, 1994. , p. 280).

De modo geral, a canção e a coreografia da Jiquitaia, que pertence à sussa, a dança definidora de uma marca cultural dos próprios quilombolas, é construída com duas partes distintas: uma mais lenta, cheia de malemolências e narrativas do cotidiano da senzala; e uma outra progressiva, em que as caixas e pandeiros aceleram e ficam mais estridentes. De certa forma, contundente e com muito vigor, convida o folião, a “dançadeira” e os povos da rua que ousam entrar na roda a acelerarem os passos e a se entregarem ao transe.

“O tambor que vai-arriba” varia nas sussas e certamente agrega batidas das músicas africanas e afro-brasileiras tocadas nos terreiros e nas variações dos sons de negros em todo o Brasil. A batida dos pés no chão, também de herança afro-brasileira, move-se em pisadas originárias e diaspóricas. Os tambores de terreiro dentro da Comunidade Kalunga congregam um misto de tambor afro, do som do galope que é sertanejo (e que encontra sua expressão autoconsciente na curraleira e na mais conhecida catira). Os instrumentos, a caixa (tambor), o pandeiro, a viola e a sanfona também se fundem nas heranças colonizatórias lusófonas, com renovação cerradeira no tratamento do couro e na forma de montar os instrumentos musicais. Esse tratamento do couro leva os modos de fazer ao extremo, com a utilização da buraca (bruaca) como instrumento musical. A mesma caixa de couro usualmente colocada no lombo do burro para carregar provisões em longos deslocamentos é colocada no chão, no centro da roda, e tocada por várias pessoas, a inúmeras mãos. No sentido benjaminiano empregado nas suas Passagens (2019BENJAMIN, Walter. Passagens. Vol. 3. Tradução de Irene Aron e Cleonice Mourão. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2019.), o etnoflâneur da geopoesia capta e cata modalidades e nuances, agregadas à batida afro, percebendo essa formiga Baniwa que ganha novas roupagens de denúncia e que se abre para gestos arraigados às expressões geoculturais do Cerrado - que vem sendo dizimado.

Em linhas gerais, essa descrição detalhada da musicalidade e do transe é para que o público, ao reler a letra da Jiquitaia, note que ela agrega profundamente os modos de viver e de traduzir corporalmente e geopoeticamente as guerras contínuas injustas de um país colonizado e de povos escravizados (ainda hoje). As sussas (termo que advém da palavra súcia - bagunça -, pejorativamente empregado pelos colonizadores lusitanos para a coreografia afro-brasileira) têm variações sutis, articuladas no instante das performances e reinventadas pelos portadores da tradição que assumem algumas letras, numa espécie de autoria. Mais especificamente, em se tratando da dança, detalhada, têm-se duas variações: 1) as mulheres mais velhas, que também entoam as ladainhas na hora da reza, dançam com os pés mais próximos ao chão, sem levantarem muito a saia e com gestos e trejeitos mais contidos; 2) as mulheres mais novas, que pulam mais, fazem menção ao levantar das saias e das blusas e tiram mais os pés do chão, dobrando os joelhos para cima, de modo alegre-festivo e até mesmo risível.

Nessa densa atmosfera suscitada pelo baixo corporal e pelo batuque, pela dor na senzala, pela letra e a voz - tudo isso estudado pela geopoesia -, efetiva-se a renovação da festa e do desejo de liberdade, em prática similar àquela que Bakhtin notou nas festas religiosas europeias medievais (Bakhtin, 2008BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.), em comunidades oprimidas pelo catolicismo ortodoxo e inquisitorial. Nesse sentido, a própria identidade se renova, uma vez que é alimentada pela suspensão do cotidiano e por um sentimento religioso de communitas, mas de uma comunhão alegre e revolucionária. Isso desencadeia o riso e o movimento de aproximação dos corpos e a identidade Quilombola traduz-se no próprio princípio performático e históricos da geopoesia. Esse princípio, mediado pelo batuque, torna-se o centro de um tempo único - o tempo da performance.

Importa ainda dizer que esta discussão se situa no seio de uma corrente de renovação do pensamento colonial, conjugando o problema do global e do desglobal - problemática que oferece uma nova forma de contar a história do Brasil e de suas formas artísticas vivas. Um núcleo de pessoas trazidas de África que, sem a opção de poder voltar para o continente natal, construiu uma vida nova: afro-centroestina e longe do mar. Se no cultivo da terra muito foi trazido de suas memórias ancestrais que, por sua vez, fundiram-se com as técnicas coloniais, no cultivo dos indivíduos, essas marcas do corpo-negro, naquilo que ele tem de ancestralidade, vocalidade e corporalidade foram cada vez mais se acentuando.

Neste esforço, trouxemos a metonímia pensamental da geopoesia na palavra e na dança da Comunidade Quilombola Kalunga, denominada sussa (suça; súcia), com a variante da Jiquitaia, para movimentar justamente dois conceitos, duas práticas - do global e do desglobal. Na realização histórica, em uma localidade que aproxima o que hoje são denominados (e demarcados) como Estados da Bahia, Minas Gerais, Tocantins e Goiás, um mundo inteiro se abre em poucos versos. Na diáspora da liberdade dentro da diáspora escravagista, os dois primeiros Estados, mais próximos do litoral, trazem as marcas de séculos de exploração do trabalho escravo e das migrações para as regiões ermas do antigo Estado de Goyaz (hoje agregando Goiás, Tocantins e Brasília). Uma imensa migração e consolidação de quilombos se deu nessa geolocalidade que hoje apresenta a divisa entre os Estados, tendo a Capital Federal como zona de influência (para trabalho, tratamentos de saúde, fluxo turístico e até mesmo de especulação imobiliária na região). Historicamente, o termo utilizado para tal migração foi a palavra “fuga” (mais particularmente, escravo fugido), mas entendemos que o ato de deixar o trabalho proposto pelo colonizador era realmente uma ação libertária. Aqueles que se “aquilombaram” tiveram “muita coragem” - no sentido riobaldiano do termo (Guimarães Rosa, 1986GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.).

Na dança com formigas memoriais, o corpo se move com aquilo que tem de material, mas expande tudo aquilo que sente. Como uma evasão calculada, de presença do ancestral no ato de dançar, presenta-se um ato em plenitude. É possível dançar só - o que se pode chamar de solo ou solidão. Dança-se a dois, porém, que é um modo profundo na arte do encontro, exercício de alteridade, em dupla. No trio, uma fisiologia da composição abre-se para o terceiro do diálogo. Mas, a partir de quatro dançantes, quatrilho, quadrilha, ou não - tudo é coletivo carnavalizado... Dança-se em transe, para a felicidade e para o ritual.

No cerne da geopoesia, que busca, concomitantemente, uma literatura de campo e uma educação consciente do campo, está o maior gesto da globalização: deslocar-se para sentir no corpo, ouvir as pessoas, anotar e voltar para contar, escrever, comunicar... A geopoesia, dos Vãos Kalunga, por entre letras e coreografias, faz estrada no vale da nossa vida. A casa da liberdade é a Terra; a Terra, feita de terra (geo, do Grego Geya e do goianês, Gwaya), que é nossa e para todos nós. Nós - pronome que congrega, no espaço da palavra, o princípio coletivo máximo da geopoesia: a igualdade. Aqui e agora, escrevemos para traduzir, em geopoesia, o encantamento da festa anticolonial.

Referências

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Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Anderson Bastos Martins
Victor Coutinho Lage

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2023
  • Aceito
    21 Set 2023
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