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Melanose primária adquirida associada a erosões epiteliais recorrentes da córnea

Primary acquired melanosis associated with recurrent corneal erosions

Resumos

Relato de caso de melanose primária adquirida unilateral em paciente do sexo feminino, de 59 anos, com cerca de quatro anos de evolução, associada a episódios de erosões recorrentes do epitélio corneano. A paciente foi submetida à exerese cirúrgica da conjuntiva alterada, ceratectomia superficial e uso de mitomicina-C tópica no pós-operatório. O exame anatomopatológico confirmou o diagnóstico de melanose primária adquirida, com atipias nucleares discretas a moderadas. Um ano após a cirurgia, a paciente não apresentou novos episódios de erosões recorrentes do epitélio corneano, sendo mantida apenas com o uso noturno de pomada lubrificante.

Melanose; Conjuntiva; Neoplasias da conjuntiva; Córnea; Mitomicina; Relatos de casos


A case report of a 59 years old woman who has had ocular primary melanosis for four years, associated with episodes of corneal epithelial recurrent erosions. The patient underwent resection of the affected conjunctiva, superficial keratectomy and topical mitomicin C after the surgery. The pathologic examination confirmed the diagnosis of primary acquired melanosis, with mild to moderate nuclear atypia. One year after the treatment, she had only a small area of pigmented epithelium located in the lower corneal surface, showing no tendency to progression. She used lubricant ointment at night and did not have other epithelial erosions during the follow-up period.

Melanosis; Conjunctiva; Conjunctival neoplasms; Cornea; Mitomycin; Case reports


RELATO DE CASO

Melanose primária adquirida associada a erosões epiteliais recorrentes da córnea

Primary acquired melanosis associated with recurrent corneal erosions

Marco Antonio Guarino TanureI; Deborah Filgueiras de Menezes VigneronII; Moisés Salgado PedrosaIII

IUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte (MG), Brasil

IIEstagiário do Serviço de Córnea, Catarata e Doenças Externas Oculares do Hospital São Geraldo - Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte (MG), Brasil

IIIUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte (MG), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Marco Antonio G. Tanure R. Padre Rolim, nº 515 / 1005 Funcionários CEP 30130-090 - Belo Horizonte (MG), Brasil Tel: (31) 3241-4429 E-mail: magt99@yahoo.com

RESUMO

Relato de caso de melanose primária adquirida unilateral em paciente do sexo feminino, de 59 anos, com cerca de quatro anos de evolução, associada a episódios de erosões recorrentes do epitélio corneano. A paciente foi submetida à exerese cirúrgica da conjuntiva alterada, ceratectomia superficial e uso de mitomicina-C tópica no pós-operatório. O exame anatomopatológico confirmou o diagnóstico de melanose primária adquirida, com atipias nucleares discretas a moderadas. Um ano após a cirurgia, a paciente não apresentou novos episódios de erosões recorrentes do epitélio corneano, sendo mantida apenas com o uso noturno de pomada lubrificante.

Descritores: Melanose; Conjuntiva/patologia; Neoplasias da conjuntiva; Córnea; Mitomicina; Relatos de casos

ABSTRACT

A case report of a 59 years old woman who has had ocular primary melanosis for four years, associated with episodes of corneal epithelial recurrent erosions. The patient underwent resection of the affected conjunctiva, superficial keratectomy and topical mitomicin C after the surgery. The pathologic examination confirmed the diagnosis of primary acquired melanosis, with mild to moderate nuclear atypia. One year after the treatment, she had only a small area of pigmented epithelium located in the lower corneal surface, showing no tendency to progression. She used lubricant ointment at night and did not have other epithelial erosions during the follow-up period.

Keywords: Melanosis; Conjunctiva/pathology; Conjunctival neoplasms; Cornea; Mitomycin; Case reports

Introdução

Melanose primária adquirida (MPA) é uma proliferação melanocítica neoplásica que se inicia geralmente no epitélio conjuntival, quase sempre unilateral, que afeta tipicamente indivíduos brancos e de meia-idade(1). Responde por aproximadamente 20 a 35% dos tumores conjuntivais pigmentados e o envolvimento corneano pode ser observado em cerca de 23% dos casos(2-4). Histologicamente a MPA é classificada em dois tipos: MPA sem atipia, proliferação benigna de melanócitos normais restrita à camada basal da conjuntiva; e MPA com atipia, condição pré-maligna onde há aumento no número de melanócitos grandes, com nucléolos proeminentes e citoplasma abundante, podendo envolver todas as camadas da conjuntiva (crescimento pagetóide)(4,5). Aproximadamente 13% dos casos de MPA conjuntival que apresentam atipias intensas evoluem para melanoma e cerca de 75% dos melanomas da conjuntiva evoluíram a partir de um quadro inicial de MPA(3,4).

O presente trabalho tem como objetivo relatar um caso raro de MPA que cursou durante a sua evolução com episódios de erosões epiteliais recorrentes da córnea.

Relato do caso

Paciente A.C.G.A., 59 anos, sexo feminino, casada, professora, feodérmica, procedente de João Monlevade (MG). Encaminhada a um especialista em córnea e doenças externas oculares com o relato do início, há 4 anos, de episódios recorrentes no olho direito (OD) de dor, sensação de corpo estranho, fotofobia, hiperemia, lacrimejamento e baixa da acuidade visual, que se tornou mais frequente nos últimos 12 meses (quatro episódios). Durante as crises fazia uso de lubrificante ocular sob a forma de colírio e gel, com melhora discreta e transitória dos sintomas. Na mesma época do início dos sintomas notou o aparecimento de pigmentação de coloração marrom na conjuntiva bulbar temporal do OD, que aumentou sua área e se tornou mais escura nos últimos 4 anos.

Ao exame inicial, realizado na ausência de sintomas, apresentava acuidade visual (AV) igual a 1,0 em ambos os olhos, com fundoscopia e tonometria de aplanação dentro da normalidade. À biomicoscopia, observava-se uma pigmentação amarronzada na conjuntiva bulbar temporal e superior do OD, que se estendia ao limbo das 8 às 12 h, envolvendo cerca de 80% da superfície corneana, poupando apenas parte do quadrante nasal superior (Figura 1). O exame biomicroscópico do olho esquerdo não revelou qualquer alteração pigmentaria da superfície ocular e da córnea. A paciente foi então submetida à biópsia excisional da conjuntiva afetada com margem de segurança de 2 mm, crioterapia da borda conjuntival remanescente e remoção mecânica de todo epitélio corneano pigmentado, inclusive na região límbica nasal, que se encontrava mais acometida pela pigmentação. As regiões bulbares temporal e superior foram recobertas por meio de deslizamento da conjuntiva bulbar inferior e parte da superior. A conjuntiva foi suturada com fio de mononylon 10-0 e o olho mantido ocluído nas primeiras 24h. No dia seguinte retirou-se o curativo e uma lente de contato hidrofílica foi colocada e mantida durante 6 dias. A paciente foi medicada nas primeiras duas semanas com soluções tópicas de moxifloxacino a 0,5% e dexametasona a 0,1% e, em seguida, com pomada de metilcelulose a 1% para uso noturno. A sutura conjuntival foi removida 10 dias após a cirurgia. Com 3 meses de pós-operatório a paciente não apresentava queixas oculares e à biomicroscopia não se identificava pigmentação na conjuntiva bulbar (Figura 2A). Como na periferia corneana inferior persistia pequena área de pigmentação no epitélio (Figura 2B), foi prescrito o uso de colírio de mitomicina C (MMC) a 0,02% de 6/6 h, durante 14 dias. No seu último retorno, já com 12 meses de pós-operatório, a paciente mantinha-se assintomática, em uso regular da pomada de metilcelulose a 1% antes de dormir, persistindo apenas com discreta pigmentação epitelial na região corneana perilímbica inferior, que teve sua área reduzida após o uso tópico da MMC.



O exame anatomopatológico revelou a presença de células melanocíticas epitelióides pigmentadas nos epitélios da conjuntiva, córnea e limbo com atipias nucleares discretas a moderadas e com crescimento pagetóide, mas sem sinais de neoplasia invasora. Tanto na conjuntiva quanto no epitélio corneano examinados, verificou-se a presença de células melanocíticas nas margens dos fragmentos (Figuras 2C e 2D).

Discussão

Apesar de ser uma situação relativamente comum na prática oftalmológica, a síndrome de erosões recorrentes do epitélio corneano tem sua fisiopatogenia ainda parcialmente compreendida. Sabe-se que tem origem em uma deficiência no complexo de aderência do epitélio corneano, composto por componentes das células epiteliais basais, membrana basal, camada de Bowman e estroma anterior(6). Esta deficiência na aderência epitelial pode ser desencadeada por diferentes situações, as mais comuns sendo o trauma corneano e as distrofias, especialmente as que acometem a membrana basal epitelial (distrofia de mapas, pontos e impressão digital). No caso apresentado neste trabalho não havia o relato de trauma ocular prévio e não foram identificadas alterações sugestivas de uma possível distrofia no olho afetado pela melanose, assim como no olho contralateral. Chamou a atenção o fato de o epitélio corneano ter se destacado muito facilmente durante o procedimento cirúrgico realizado, sugerindo que o mesmo encontrava-se fracamente aderido ao estroma corneano subjacente. Apesar da ausência de alterações sugestivas de distrofias superficiais no olho contralateral desta paciente e da coincidência entre o início dos sintomas de erosões recorrentes e o aparecimento da melanose, não é possível descartar totalmente a existência concomitante de uma distrofia superficial na córnea afetada pela melanose, que seria a responsável pelas erosões epiteliais recorrentes. Contudo, a MPA já foi citada como uma possível e rara causa de erosões recorrentes do epitélio corneano(7). Os autores consideram que a formação deficiente dos complexos de adesão epitelial em casos de MPA seria responsável pelas erosões recorrentes.

Dependendo da frequência e da intensidade dos sintomas, diferentes tratamentos podem ser indicados em casos de erosões epiteliais recorrentes da córnea. Entre as condutas mais conservadoras podemos citar o uso de colírios e pomadas lubrificantes, soluções hiperosmóticas, corticóides tópicos, doxiciclina oral, lentes de contato hidrofílicas e injeção palpebral de toxina botulínica(6). Quando o tratamento clínico é ineficaz pode-se realizar o desbridamento epitelial corneano com lâmina de bisturi, polidor de diamante ou através do excimer laser (ceratectomia fototerapêutica)(8,9). Se a região afetada não se localizar próxima ao centro da córnea, pode-se tentar ainda a realização de microperfurações no estroma anterior (técnica de agulhamento), cujo objetivo seria criar traves cicatriciais que intensificam a aderência epitelial(6). No presente caso, o desbridamento epitelial realizado para o tratamento da MPA pode ter agido de forma favorável na adesão epitelial, uma vez que a paciente não apresentou novos episódio de erosões nos meses seguinte de acompanhamento. Além disso, o uso noturno e por período prolongado da pomada de metilcelulose, pode também ter contribuído para o controle das erosões recorrentes. Como ocorria com o caso atual, na grande maioria dos pacientes com a síndrome de erosões recorrentes os sintomas se iniciam de madrugada ou pela manhã, assim que olhos são abertos. Acredita-se que isso se deve ao aumento da aderência do epitélio corneano afetado com a conjuntiva palpebral superior, intensificada pela redução fisiológica noturna da produção lacrimal. Recomendamos, portanto, que o uso noturno de pomada lubrificante com o objetivo de reduzir o atrito entre a conjuntiva tarsal superior e a superfície corneana seja mantido por pelo menos 6 meses após o último episódio de erosão, favorecendo assim a recuperação do complexo de aderência das células epiteliais.

O uso tópico de MMC em casos de MPA, tanto como terapia inicial e isolada quanto na complementação da cirurgia, tem sido descrito com relativo sucesso por alguns autores(10,11). Há na literatura o relato de um paciente com melanoma conjuntival iniciado em área de MPA que regrediu após dois ciclos de MMC a 0,04% e crioterapia conjuntival(11). No caso descrito no presente trabalho, realizou-se um único ciclo de MMC a 0,02% após a cirurgia, sendo observada redução da infiltração melanocítica residual do epitélio corneano e a não progressão da mesma nos 9 meses seguintes à sua utilização. A paciente continuará sendo acompanhada regularmente e no caso de progressão da lesão, novo ciclo de MMC poderá ser indicado.

Agradecimentos:

Dr. Olinto de Araújo Neto - Médico oftalmologista de João Monlevade (MG).

Recebido para publicação em 9/2/2011

Aceito para publicação em 12/12/2011

Serviço de Córnea, Catarata e Doenças Externas Oculares do Hospital São Geraldo - Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte (MG), Brasil

Os autores declaram inexistir conflitos de interesse

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  • Autor correspondente:

    Marco Antonio G. Tanure
    R. Padre Rolim, nº 515 / 1005
    Funcionários
    CEP 30130-090 - Belo Horizonte (MG), Brasil
    Tel: (31) 3241-4429
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      09 Fev 2011
    • Aceito
      12 Dez 2011
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