Acessibilidade / Reportar erro

Perfuração tardia da artéria ilíaca externa após cirurgia de revisão acetabular: uma solução simples para uma complicação rara 1 ☆ Trabalho desenvolvido no Centro Hospitalar São João, Porto, Portugal.

RESUMO

As lesões vasculares, embora muito raras, são uma das complicações mais devastadoras no contexto de uma prótese do quadril, pelo que o seu diagnóstico correto é fundamental para evitar danos irreversíveis ao paciente.

Apresentamos o caso de uma mulher branca de 70 anos com um membro inferior isquêmico causado por uma perfuração tardia da artéria ilíaca externa devido a um parafuso acetabular.

O problema foi resolvido simplesmente com o corte parte do parafuso, o que evitou outras opções cirúrgicas que poderiam ser muito mais agressivas para o paciente.

A avaliação clínica cuidadosa permitiu um diagnóstico correto e um tratamento criativo a tempo de prevenir outras consequências para o paciente.

Palavras-chave:
Artroplastia de quadril; Parafusos ósseos; Lesões do sistema vascular; Procedimentos endovasculares

ABSTRACT

Vascular lesions, although quite rare, are one of the most devastating complications in the context of a hip prosthesis. Therefore, the correct diagnosis is crucial to prevent irreversible damage to the patient.

The authors present the case of a 70-year-old Caucasian woman with an ischemic lower limb as consequence of a late perforation of external iliac artery due to an acetabular screw.

The issue was resolved by simply cutting part of the screw, avoiding other surgical options that would be much more aggressive for the patient.

Careful clinical evaluation allowed for a correct diagnosis and a timely creative treatment, preventing further consequences to the patient.

Keywords:
Arthroplasty; Replacement; Hip; Bone screws; Vascular system injuries; Endovascular procedures

Introdução

A artroplastia total do quadril (THA) tem uma taxa de complicações baixa e a incidência de lesão vascular é ainda menor.11 Ratliff AH. Arterial injuries after total hip replacement. J Bone Joint Surg Br. 1985;67(4):517-8.,22 Wasielewski RC, Crossett LS, Rubash HE. Neural and vascular injury in total hip arthroplasty. Orthop Clin North Am. 1992;23(2):219-35.,33 Nachbur B, Meyer RP, Verkkala K, Zürcher R. The mechanisms of severe arterial injury in surgery of the hip joint. Clin Orthop Relat Res. 1979;(141):122-33. As lesões vasculares podem ter efeitos devastadores que, se não forem imediatamente identificados, podem eventualmente levar à amputação ou mesmo ao óbito.33 Nachbur B, Meyer RP, Verkkala K, Zürcher R. The mechanisms of severe arterial injury in surgery of the hip joint. Clin Orthop Relat Res. 1979;(141):122-33.,44 Barrack RL. Neurovascular injury: avoiding catastrophe. J Arthroplasty. 2004;19 4 Suppl. 1:104-7. Os autores apresentam um caso de um parafuso acetabular que resultou em lesão e compressão da artéria ilíaca externa esquerda e isquemia do membro inferior esquerdo.

Relato de caso

Uma mulher de 70 anos compareceu ao pronto-atendimento para avaliação de inchaço progressivo do membro inferior esquerdo desde que ela tinha acordado, associado a dor no abdome e nos membros inferiores. Ela negou dispneia ou outros sintomas. Ela também não apresentava histórico de trauma e não havia feito atividade física incomum nos dias anteriores.

Em 2007, ela foi submetida a uma artroplastia total de quadril não cimentada para o tratamento de osteoartrite do quadril. Após um intervalo de seis anos sem dor, a paciente começou a apresentar dor na virilha, que foi então investigada. Diagnosticou-se soltura asséptica acetabular e, portanto, a paciente foi submetida a cirurgia de revisão acetabular em 2014 (três meses antes de se apresentar a este serviço de emergência). No pós-operatório, observou-se infecção da ferida cirúrgica que foi prontamente tratada com antibióticos de largo espectro e desbridamento cirúrgico. Ambas as cirurgias não apresentaram intercorrências e nos três meses seguintes a paciente estava bem, retornou ao trabalho e foi capaz de sustentar carga no membro. Ela não apresentava outros antecedentes médicos relevantes.

Ao ser admitida no presente hospital, o exame médico indicou membro inferior esquerdo doloroso e pálido, com hipoestesia e pulso diminuído. A paciente estava hipotensa e os exames laboratoriais mostraram hemoglobina de 4,9, sem outras alterações relevantes. A tomografia computadorizada (TC) pélvica indicou um hematoma volumoso próximo ao iliopsoas esquerdo até à borda superior do femur, que levpo a uma oclusão quase completa do eixo vascular ilíaco-femoral (fig. 1). A prótese de quadril parecia estar bem posicionada, apesar das dificuldades de avaliação causadas por artefatos de imagem (fig. 2). Um dos parafusos acetabulares perfurou a cortical interna com extensão intrapélvica (fig. 3).

Figura 1
Tomografia computadorizada mostra hematoma intrapélvico.

Figura 2
Componente acetabular sem sinais de afrouxamento.

Figura 3
Parafuso acetabular intrapélvico.

Os cirurgiões vasculares sugeriram que a isquemia no membro esquerdo se devia a um sangramento arterial do eixo ilíaco-femoral, combinada com um hematoma compressivo. Imediatamente, foi proposta cirurgia vascular.

Adotou-se a abordagem retroperitoneal da fossa ilíaca esquerda. Após a drenagem do hematoma, observou-se que um parafuso acetabular estava em estreita proximidade com a artéria ilíaca externa esquerda (fig. 4). Solicitou-se aos cirurgiões ortopédicos que assumissem o controle.

Figura 4
Parafuso acetabular em proximidade com a artéria.

Dada a urgência da cirurgia, a equipe ortopédica simplesmente cortou o parafuso proeminente com um corte de barra geralmente usado em cirurgias da coluna vertebral, para que o parafuso ficasse no limite cortical interno do acetábulo (fig. 5). Depois disso, os cirurgiões vasculares puderam reparar a artéria sem necessidade de revascularização. Não foram observados sinais de pseudoaneurisma.

Figura 5
Porção do parafuso que foi cortada.

O pós-operatório transcorreu bem, com melhoria do edema e da dor. Um ano mais tarde, a paciente apresenta vascularização adequada e boa deambulação assistida por muleta; a prótese permanece no posicionamento prévio.

Discussão

A literatura apresenta descrições de lesões vasculares associadas a cirurgias de quadril primárias ou de revisão, mas sua incidência é inferior a 1% em todos os casos de artroplastia total de quadril (ATQ).33 Nachbur B, Meyer RP, Verkkala K, Zürcher R. The mechanisms of severe arterial injury in surgery of the hip joint. Clin Orthop Relat Res. 1979;(141):122-33.,44 Barrack RL. Neurovascular injury: avoiding catastrophe. J Arthroplasty. 2004;19 4 Suppl. 1:104-7.,55 Parvizi J, Pulido L, Slenker N, Macgibeny M, Purtill JJ, Rothman RH. Vascular injuries after total joint arthroplasty. J Arthroplasty. 2008;23(8):1115-21.,66 Lewallen DG. Neurovascular injury associated with hip arthroplasty. J Bone Joint Surg. Am. 1997;79:1870.,77 Calligaro KD, Dougherty MJ, Ryan S, Booth RE. Acute arterial complications associated with total hip and knee arthroplasty. J Vasc Surg. 2003;38(6):1170-7. Erratum in: J Vasc Surg. 2004;39(3):628. As causas mais comuns são lesão da artéria femoral comum, devido ao mau posicionamento do afastador ou do fio de cerclagem.88 Wera GD, Ting NT, Della Valle CJ, Sporer SM. External iliac artery injury complicating prosthetic hip resection for infection. J Arthroplasty. 2010;25(4), 660.e1-4.,99 Riouallon G, Zilber S, Allain J. Common femoral artery intimal injury following total hip replacement. A case report and literature review. Orthop Traumatol Surg Res. 2009;95(2): 154-8.,1010 Molfetta L, Chiapale D, Caldo D, Leonardi F. False aneurysm of the superficial femoral artery after total hip arthroplasty: a case report. Hip Int. 2007;17(4):234-6.,1111 Mody BS. Pseudoaneurysm of external iliac artery and compression of external iliac vein after total hip arthroplasty. Case report. J Arthroplasty. 1994;9(1):95-8.,1212 Mallory TH, Jaffe SL, Eberle RW. False aneurysm of the common femoral artery after total hip arthroplasty. A case report. Clin Orthop Relat Res. 1997;(338):105-8. Outros relatos incomuns de lesões vasculares foram encontrados na literatura, tais como lesão da artéria ilíaca externa após remoção complicada ou ATQ cronicamente infectada, desenvolvimento de pseudoaneurisma ilíaco externo e femoral superficial ou até mesmo uma lesão vascular ilíaca externa direta e tardia após uma perfuração por um implante acetabular deslocado medialmente.99 Riouallon G, Zilber S, Allain J. Common femoral artery intimal injury following total hip replacement. A case report and literature review. Orthop Traumatol Surg Res. 2009;95(2): 154-8.,1010 Molfetta L, Chiapale D, Caldo D, Leonardi F. False aneurysm of the superficial femoral artery after total hip arthroplasty: a case report. Hip Int. 2007;17(4):234-6.,1111 Mody BS. Pseudoaneurysm of external iliac artery and compression of external iliac vein after total hip arthroplasty. Case report. J Arthroplasty. 1994;9(1):95-8.,1212 Mallory TH, Jaffe SL, Eberle RW. False aneurysm of the common femoral artery after total hip arthroplasty. A case report. Clin Orthop Relat Res. 1997;(338):105-8.,1313 Mehta V, Finn HA. Femoral artery and vein injury after cerclage wiring of the femur: a case report. J Arthroplasty. 2005;20(6):811-4.,1414 Chana R, Alva K, McMillan P, Slater G. Early diagnosis of delayed vascular injury associated with revision total hip arthroplasty. Hip Int. 2006;16(2):89-92.

No entanto, até onde se sabe, esta é a primeira vez que uma perfuração tardia da artéria ilíaca externa esquerda devido a um parafuso acetabular é relatada sem afrouxamento dos componentes acetabulares e sem formação de pseudoaneurisma.

Durante a cirurgia de revisão à qual a paciente foi submetida, um dos parafusos acetabulares permaneceu em posição equivocada e próximo à artéria ilíaca externa esquerda. Acredita-se que essa proximidade levou a uma lesão repetitiva, mas ainda assim leve, da artéria. Como os sintomas iniciaram apenas três meses após a última cirurgia, esse poderia ser um primeiro período de uma resposta inflamatória nos arredores da artéria, o que pode ter controlado o surgimento de sintomas mais preocupantes. A infecção também pode ter contribuído para esse primeiro período. No entanto, uma vez que a fase inflamatória desapareceu e a paciente começou a fazer mais atividade física, a preexistente fragilidade da artéria levou à sua ruptura. Hopkins et al. 1515 Hopkins NF, Vanhegan JA, Jamieson CW. Iliac aneurysm after total hip arthroplasty. Surgical management. J Bone Joint Surg. Br. 1983;65(3):359-61. também acreditavam que a infecção desempenhava um papel crucial como um fator predisponente a ruptura arterial após ATQ, uma vez que, em sua ausência, uma perfuração produziria fibrose da parede arterial, com consequente estenose ou trombose.

Outros autores também demonstraram a relação entre pseudoaneurisma e ruptura da artéria ilíaca externa e infecção após ATQ.1515 Hopkins NF, Vanhegan JA, Jamieson CW. Iliac aneurysm after total hip arthroplasty. Surgical management. J Bone Joint Surg. Br. 1983;65(3):359-61.,1616 Bergqvist D, Carlsson AS, Ericsson BF. Vascular complications after total hip arthroplasty. Acta Orthop Scand. 1983;54(2):157-63.,1717 Hennessy OF, Timmis JB, Allison DJ. Vascular complications following hip replacement. Br J Radiol. 1983;56(664): 275-7.,1818 Reiley MA, Bond D, Branick RI, Wilson EH. Vascular complications following total hip arthroplasty. A review of the literature and a report of two cases. Clin Orthop Relat Res. 1984;(186):23-8. No entanto, no presente caso, não se encontrou evidência que indicasse pseudoaneurisma. Isso pode ser devido ao tratamento imediato em uma fase inicial da infecção; portanto, ainda existem dúvidas sobre essa relação.

Nesse tipo de situação clínica, a rapidez no diagnóstico e no tratamento é crucial. A apresentação clínica com dor e inchaço do membro inferior esquerdo pode erroneamente sugerir trombose venosa profunda. No entanto, a queda de hemoglobina e a tomografia computadorizada pélvica que indicou hematoma volumoso com consequente oclusão do eixo vascular ilíaco-femoral foi altamente sugestiva de ruptura vascular. Isso demonstra que, embora a apresentação clínica inicial às vezes possa ser semelhante, a etiologia e o tratamento subsequentes são totalmente antagônicos.

Kong et al. 1919 Kong EL, Knight MR. Internal iliac artery injury and total hip arthroplasty: discovery after 10 years. J Arthroplasty. 2013;28(1), 196.e15-7. relataram o caso de uma apresentação tardia da lesão da artéria ilíaca por um parafuso acetabular detectada em uma cirurgia de revisão dez anos após o primeiro procedimento. Naquele caso, o parafuso que estava mal orientado não foi alterado e a equipe vascular fez uma revascularização. No presente caso, optou-se por cortar a parte do parafuso que estava fora do osso, apesar da inexistência de relatos semelhantes. Esse foi um procedimento simples, que resolveu o problema rapidamente, evitou a necessidade de uma cirurgia mais agressiva, como seria uma nova revisão do quadril.

A presença de inchaço e dor no membro inferior em pacientes com histórico de prótese de quadril deve ser sempre avaliada o mais rapidamente possível, tendo em conta que nem todas as situações são trombose venosa profunda. Outras complicações vasculares já foram relatadas e devem ser consideradas na avaliação desses pacientes.

Os autores relataram uma apresentação pouco usual de uma perfuração tardia da artéria ilíaca externa esquerda devido a um parafuso acetabular, sem afrouxamento de componentes acetabulares e sem pseudoaneurisma associado.

References

  • 1
    Ratliff AH. Arterial injuries after total hip replacement. J Bone Joint Surg Br. 1985;67(4):517-8.
  • 2
    Wasielewski RC, Crossett LS, Rubash HE. Neural and vascular injury in total hip arthroplasty. Orthop Clin North Am. 1992;23(2):219-35.
  • 3
    Nachbur B, Meyer RP, Verkkala K, Zürcher R. The mechanisms of severe arterial injury in surgery of the hip joint. Clin Orthop Relat Res. 1979;(141):122-33.
  • 4
    Barrack RL. Neurovascular injury: avoiding catastrophe. J Arthroplasty. 2004;19 4 Suppl. 1:104-7.
  • 5
    Parvizi J, Pulido L, Slenker N, Macgibeny M, Purtill JJ, Rothman RH. Vascular injuries after total joint arthroplasty. J Arthroplasty. 2008;23(8):1115-21.
  • 6
    Lewallen DG. Neurovascular injury associated with hip arthroplasty. J Bone Joint Surg. Am. 1997;79:1870.
  • 7
    Calligaro KD, Dougherty MJ, Ryan S, Booth RE. Acute arterial complications associated with total hip and knee arthroplasty. J Vasc Surg. 2003;38(6):1170-7. Erratum in: J Vasc Surg. 2004;39(3):628.
  • 8
    Wera GD, Ting NT, Della Valle CJ, Sporer SM. External iliac artery injury complicating prosthetic hip resection for infection. J Arthroplasty. 2010;25(4), 660.e1-4.
  • 9
    Riouallon G, Zilber S, Allain J. Common femoral artery intimal injury following total hip replacement. A case report and literature review. Orthop Traumatol Surg Res. 2009;95(2): 154-8.
  • 10
    Molfetta L, Chiapale D, Caldo D, Leonardi F. False aneurysm of the superficial femoral artery after total hip arthroplasty: a case report. Hip Int. 2007;17(4):234-6.
  • 11
    Mody BS. Pseudoaneurysm of external iliac artery and compression of external iliac vein after total hip arthroplasty. Case report. J Arthroplasty. 1994;9(1):95-8.
  • 12
    Mallory TH, Jaffe SL, Eberle RW. False aneurysm of the common femoral artery after total hip arthroplasty. A case report. Clin Orthop Relat Res. 1997;(338):105-8.
  • 13
    Mehta V, Finn HA. Femoral artery and vein injury after cerclage wiring of the femur: a case report. J Arthroplasty. 2005;20(6):811-4.
  • 14
    Chana R, Alva K, McMillan P, Slater G. Early diagnosis of delayed vascular injury associated with revision total hip arthroplasty. Hip Int. 2006;16(2):89-92.
  • 15
    Hopkins NF, Vanhegan JA, Jamieson CW. Iliac aneurysm after total hip arthroplasty. Surgical management. J Bone Joint Surg. Br. 1983;65(3):359-61.
  • 16
    Bergqvist D, Carlsson AS, Ericsson BF. Vascular complications after total hip arthroplasty. Acta Orthop Scand. 1983;54(2):157-63.
  • 17
    Hennessy OF, Timmis JB, Allison DJ. Vascular complications following hip replacement. Br J Radiol. 1983;56(664): 275-7.
  • 18
    Reiley MA, Bond D, Branick RI, Wilson EH. Vascular complications following total hip arthroplasty. A review of the literature and a report of two cases. Clin Orthop Relat Res. 1984;(186):23-8.
  • 19
    Kong EL, Knight MR. Internal iliac artery injury and total hip arthroplasty: discovery after 10 years. J Arthroplasty. 2013;28(1), 196.e15-7.
  • 1
    ☆ Trabalho desenvolvido no Centro Hospitalar São João, Porto, Portugal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2016
  • Aceito
    02 Maio 2016
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbo@sbot.org.br