Resumos
OBJETIVO: Revisar os principais avanços no potencial uso terapêutico de alguns compostos canabinoides em psiquiatria. MÉTODO: Foi realizada busca nos bancos de dado PubMed, SciELO e Lilacs e identificados estudos e revisões da literatura sobre o uso terapêutico dos canabinoides em psiquiatria, em particular canabidiol, rimonabanto, Δ9-tetraidrocanabinol e seus análogos. RESULTADOS: O canabidiol demonstrou apresentar potencial terapêutico como antipsicótico, ansiolítico, antidepressivo e em diversas outras condições. O Δ9-tetraidrocanabinol e seus análogos demonstraram efeitos ansiolíticos, na dependência de cannabis, bem como adjuvantes no tratamento de esquizofrenia, apesar de ainda carecerem de mais estudos. O rimonabanto demonstrou eficácia no tratamento de sintomas subjetivos e fisiológicos da intoxicação pela cannabis e como adjuvante no tratamento do tabagismo. Os potenciais efeitos colaterais, de induzir depressão e ansiedade limitaram o uso clínico deste antagonista CB1. CONCLUSÃO: Os canabinoides têm demonstrado que podem ter amplo interesse terapêutico em psiquiatria, porém mais estudos controlados são necessários para confirmar estes achados e determinar a segurança destes compostos.
Canabidiol; Tetraidrocanabinol; Canabinoides; Usos terapêuticos; Psiquiatria
OBJECTIVE: To review the main advances related to the potential therapeutic use of cannabinoid compounds in psychiatry. METHOD: A search was performed in the online databases PubMed, ScieELO, and Lilacs for studies and literature reviews concerning therapeutic applications of cannabinoids in psychiatry, especially cannabidiol, rimonabant, Δ9-tetrahydrocannabinol, and their analogues. RESULTS: Cannabidiol was found to have therapeutic potential with antipsychotic, anxiolytic, and antidepressant properties, in addition to being effective in other conditions. Δ9-tetrahydrocannabinol and its analogues were shown to have anxiolytic effects in the treatment of cannabis dependence and to function as an adjuvant in the treatment of schizophrenia, although additional studies are necessary to support this finding. Rimonabant was effective in the treatment of the subjective and physiological symptoms of cannabis intoxication and functioned as an adjuvant in the treatment of tobacco addiction. The potential to induce adverse reactions such as depression and anxiety restrained the clinical use of this CB1 antagonist. CONCLUSION: Cannabinoids may be of great therapeutic interest to psychiatry; however, further controlled trials are necessary to confirm the existing findings and to establish the safety of such compounds.
Cannabidiol; Tetrahydrocannabinol; Cannabinoids; Therapeutic uses; Psychiatry
ARTIGOS ORIGINAIS
Uso terapêutico dos canabinoides em psiquiatria
José Alexandre S. CrippaI,II; Antonio Waldo ZuardiI,II; Jaime E. C. HallakI,II
IDepartamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil
IIINCT Translacional em Medicina (CNPq), Ribeirão Preto, SP, Brasil
Correspondência Correspondência: José Alexandre S. Crippa Hospital das Clínicas - Terceiro Andar Av. Bandeirantes, 3900 14048-900-Ribeirão Preto - SP Brasil Tel.: (+55 16) 3602-2201 Fax: (+55 16) 3602-2544 E-mail: jcrippa@fmrp.usp.br
RESUMO
OBJETIVO: Revisar os principais avanços no potencial uso terapêutico de alguns compostos canabinoides em psiquiatria.
MÉTODO: Foi realizada busca nos bancos de dado PubMed, SciELO e Lilacs e identificados estudos e revisões da literatura sobre o uso terapêutico dos canabinoides em psiquiatria, em particular canabidiol, rimonabanto, Δ9-tetraidrocanabinol e seus análogos.
RESULTADOS: O canabidiol demonstrou apresentar potencial terapêutico como antipsicótico, ansiolítico, antidepressivo e em diversas outras condições. O Δ9-tetraidrocanabinol e seus análogos demonstraram efeitos ansiolíticos, na dependência de cannabis, bem como adjuvantes no tratamento de esquizofrenia, apesar de ainda carecerem de mais estudos. O rimonabanto demonstrou eficácia no tratamento de sintomas subjetivos e fisiológicos da intoxicação pela cannabis e como adjuvante no tratamento do tabagismo. Os potenciais efeitos colaterais, de induzir depressão e ansiedade limitaram o uso clínico deste antagonista CB1.
CONCLUSÃO: Os canabinoides têm demonstrado que podem ter amplo interesse terapêutico em psiquiatria, porém mais estudos controlados são necessários para confirmar estes achados e determinar a segurança destes compostos.
Descritores: Canabidiol; Tetraidrocanabinol; Canabinoides; Usos terapêuticos; Psiquiatria
Introdução
A planta Cannabis sativa vem sendo usada para fins medicinais há milhares de anos, por diferentes povos e em diversas culturas1, embora hoje se conheçam também seus efeitos adversos. Há indicações do uso da planta na China antes da Era Cristã para tratamento de inúmeras condições médicas como constipação intestinal, dores, malária, expectoração, epilepsia, tuberculose, entre outras2. Do mesmo modo, sabe-se que a maconha também vem sendo usada para o alívio de sintomas psiquiátricos há muito tempo. Na Índia, há descrições de seu uso há mais de 1000 anos antes de Cristo, como hipnótico e tranquilizante no tratamento de ansiedade, mania e histeria3. Também os assírios inalavam a cannabis para melhorar sintomas de depressão4.
Posteriormente, já no início do século XX, extratos de cannabis chegaram a ser comercializados para tratamento de transtornos mentais, principalmente como sedativos e hipnóticos (em insônia, "melancolia", mania, delirium tremens, entre outros)4. Entretanto, após a terceira década do último século, houve o declínio do uso da droga para fins médicos de modo geral e em psiquiatria, em particular1. Isto ocorreu por diversos motivos relacionados ao fato de que, na época, os princípios ativos da cannabis ainda não haviam sido isolados e os extratos variavam de potência e composição, podendo gerar efeitos inconsistentes e levar a diversos efeitos indesejáveis. Além disso, novas substâncias foram produzidas como hipnóticos e sedativos, tendo como exemplo o hidrato de cloral, barbitúricos e paraldeído5. Por fim, as restrições impostas pela posterior determinação do estado ilegal da droga limitaram ainda mais o uso da cannabis como medicamento em psiquiatria.
Entretanto, na década de 1960, as estruturas químicas dos principais componentes da cannabis foram identificadas pelo grupo do professor Raphael Mechoulam, de Israel6. O Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9-THC) recebeu inicialmente maior atenção, por ser o componente psicotrópico da planta. Posteriormente, descobriu-se que este composto se liga no sistema nervoso central aos receptores canabinoides (CB1 e CB2). Esta descoberta foi seguida do isolamento dos ligantes endógenos 2-arachidonoylglycerol e anandamida. Dessa forma, com o reconhecimento de que este sistema endocanabinoide pode modular diversos processos fisiológicos e, possivelmente, patofisiológicos nos transtornos psiquiátricos7, o interesse no uso dos canabinoides nestas condições foi renovado.
Assim, na presente atualização, pretendemos revisar os principais avanços no potencial uso terapêutico de alguns compostos canabinoides em psiquiatria. De modo particular, procuramos dar mais atenção às descobertas mais recentes do nosso e de outros grupos de possíveis aplicações do canabinoide não-psicotrópico, o canabidiol (CBD).
Método
Os artigos selecionados para a presente revisão foram identificados por meio de busca eletrônica nos bancos de dado PubMed, Scielo e Lilacs e compostos por estudos e revisões da literatura sobre o uso terapêutico dos canabinoides em psiquiatria, em particular CBD, rimonabanto, Δ9-THC e seus análogos. Foram também revisadas as listas de referências dos artigos incluídos e de capítulos de livro. Para os estudos com o CBD, incluímos trabalhos experimentais em humanos e em animais. Procuramos excluir aqueles que utilizaram a cannabis fumada pelo fato de não ser possível estabelecer a dose, composição e razão dos diferentes canabinoides, além da ampla variação individual nas diferentes amostras estudadas. Para o rimonabanto, Δ9-THC e seus análogos procuramos incluir primariamente estudos clínicos e laboratoriais em humanos e relatos de caso. Não incluímos trabalhos sobre os extratos contendo Δ9-THC e CBD (oral, Cannador®; ou spray oromucal, Sativex®), pela dificuldade em estabelecer os efeitos de cada um destes canabinoides isoladamente.
Resultados
1. Canabidiol (CBD)
Desde o início da década de 70 é descrito que outros canabinoides interferem com os efeitos do Δ9-THC, particularmente o CBD, presente em grande quantidade na Cannabis Sativa e destituído de efeitos típicos da planta8.
Em voluntários saudáveis, o CBD (1mg/kg) administrado por via oral, simultaneamente com uma dose elevada de Δ9-THC (0,5mg/kg), atenuou significantemente a ansiedade e os sintomas psicóticos induzidos pelo Δ9-THC9. Sabe-se que nesta dose e com a administração simultânea o CBD não altera, por interação farmacocinética, os níveis plasmáticos de Δ9-THC; assim, estes resultados sugeriram um efeito ansiolítico e/ou antipsicótico próprio do CBD.
1) Efeito ansiolítico
a) Estudos em animais
Os dois estudos iniciais que investigaram um possível efeito ansiolítico do CBD em ratos chegaram a resultados contraditórios. Silveira Filho e Tufik, utilizando o teste de conflito e o da ingestão de alimentos suprimida pela neofobia, não encontraram efeito ansiolítico do CBD com doses acima de 100mg/kg10. Por outro lado, Zuardi e Karniol mostraram que o CBD (10mg/kg) diminuiu e o Δ9-THC (2mg/kg) aumentou a resposta emocional condicionada11.
Posteriormente, diversos outros estudos vieram reforçar a hipótese de um efeito ansiolítico do CBD em vários modelos animais: i) testes de conflito (comportamento de beber suprimido por choque elétrico concomitante) em ratos privados de água12,13; ii) respostas comportamentais e cardiovasculares no paradigma de medo condicionado (choque nas patas) em ratos14; iii) teste do estresse por imobilização aguda15; iv) extinção de memória de medo condicionado16; e v) labirinto em cruz elevada em camundongos17 e ratos18-20. Estes últimos estudos19,20 mostraram uma curva de efeito do CBD em "U" invertido, com aumento na exploração nos braços abertos do labirinto, um efeito típico de drogas ansiolíticas, com doses baixas e volta ao padrão do controle com doses maiores. Esse resultado ajudou a entender a ausência de resposta do CBD no estudo de Silveira Filho e Tufik, que utilizou doses acima de 100mg/kg10.
O CBD (20mg/kg) também demonstrou ser capaz de reverter a redução de interação social em ratos produzida por baixas doses do Δ9-THC21. Recentemente, foi demonstrado em camundongos que o uso crônico do CBD também produz ação ansiolítica22.
Os efeitos ansiolíticos do CBD não parecem ser mediados pelos receptores benzodiazepínicos13; por outro lado, este canabinoide interage com os receptores 5HT1A e esta interação parece estar envolvida em sua ação ansiolítica15,23.
Assim, o conjunto desses dados em animais sugere que doses baixas do CBD apresentam efeito ansiolítico.
b) Estudo em humanos
A administração aguda de CBD (via oral, inalatória ou endovenosa) ou crônica por via oral em voluntários saudáveis e em diversas outras condições não produziu qualquer efeito adverso significante9,24,25. Assim, confirmando estudos prévios em animais, o CBD mostrou-se um composto seguro para a administração em seres humanos numa ampla faixa de dosagem.
Um possível efeito ansiolítico do CBD foi inicialmente estudado em voluntários saudáveis, submetidos a um procedimento de simulação do falar em público (SFP). Neste procedimento, pede-se ao sujeito que fale em frente a uma câmera de vídeo, durante alguns minutos, registrando sua ansiedade subjetiva por meio de escalas de autoavaliação, bem como seus concomitantes fisiológicos da ansiedade (frequência cardíaca, pressão arterial, condutância da pele). O SFP tem se mostrado eficaz em induzir ansiedade, que é sensível a compostos ansiogênicos e ansiolíticos26. Os efeitos do CBD (300mg) sobre a SFP foram comparados com os produzidos pelo placebo e por dois ansiolíticos, o diazepam (10mg) e a ipsapirona (5mg), num procedimento duplo cego. Os resultados mostraram que tanto o CBD como os dois ansiolíticos atenuaram a ansiedade induzida pela SFP27.
O teste de SFP tem validade aparente para o transtorno de ansiedade social (TAS), uma vez que o medo de falar em público e seus concomitantes fisiológicos são considerados como aspectos essenciais nesta condição. Com base no fato de não existirem até então pesquisas que procuraram investigar os efeitos ansiolíticos do CBD na ansiedade patológica, investigamos esta questão em pacientes com TAS (n = 24), que foram comparados a um grupo de controles saudáveis submetidos ao teste de SFP. Doze pacientes com TAS receberam CBD (600mg); outros 12, placebo, e o mesmo número de controles saudáveis realizou o teste sem receber nenhuma medicação. O grupo de pacientes com TAS que recebeu CBD, quando comparado com o grupo com TAS que recebeu placebo, apresentou menores níveis de ansiedade nas fases antecipatória e de performance do teste, além de menos sintomas somáticos e menos autoavaliação negativa. O grupo de pacientes com TAS que recebeu CBD não diferiu significativamente dos controles saudáveis nestas medidas avaliadas, ao contrário do que ocorreu com os que receberam placebo.
Em estudo anterior, avaliamos os efeitos do CBD sobre fluxo sanguíneo cerebral regional em voluntários saudáveis por meio da tomografia por emissão de fóton único (SPECT)28. Neste estudo, os sujeitos receberam CBD (400mg) ou placebo em duas sessões experimentais, com intervalo de uma semana, num procedimento cruzado, duplo cego. Em cada sessão experimental, uma hora após receberem o CBD ou placebo, era inserido em uma veia do braço dos voluntários um cateter por onde recebiam o tecnécio marcado para o estudo do SPECT. A ansiedade subjetiva foi medida por escalas de autoavaliação aplicadas antes de receberem as drogas e imediatamente antes da inserção do cateter e da tomografia. Todo o procedimento mostrou-se ansiogênico, o que permitiu evidenciar o efeito ansiolítico do CBD. Os resultados do SPECT evidenciaram um aumento de atividade no giro parahipocampal esquerdo e uma diminuição de atividade no complexo amígdalahipocampo esquerdo, estendendo-se até o hipotálamo e no córtex cingulado posterior esquerdo. Esse padrão de atividade cerebral induzido pelo CBD é compatível com uma atividade ansiolítica.
Posteriormente, Fusar-Poli et al. usaram ressonância magnética funcional (RMf), que permite a aquisição de maior número de imagens com melhor resolução temporal e espacial, para investigar os correlatos neurais dos efeitos ansiolíticos do CBD em 15 sujeitos saudáveis29. Observou-se que o CBD (600mg) modula os padrões de atividade cerebral enquanto os sujeitos processam estímulos de reconhecimento de faces intensamente amedrontadoras (fearful stimuli), atenuando respostas na amídala e no cíngulo anterior e posterior. Também verificaram que este padrão de atenuação se correlacionou diretamente com o efeito concomitante do CBD na modulação das respostas de condutância da pele ao estímulo amedrontador. Os mesmos autores demonstraram ainda que o CBD exerce este efeito ansiolítico alterando a conectividade préfrontal-subcortical via amídala e cíngulo anterior30.
Mais recentemente, conduzimos o primeiro estudo que procurou investigar os correlatos neurais dos efeitos ansiolíticos do CBD em uma amostra clínica31, usando a mesma dose, protocolo e desenho do estudo de SPECT realizado em voluntários saudáveis, descrito anteriormente28. Verificamos que, em relação ao placebo, uma dose oral única de CBD é capaz de reduzir as medidas subjetivas de ansiedade sem aumentar sedação em pacientes com TAS, nunca tratados. Este achado foi associado com redução de atividade no giro parahipocampal, hipocampo e giro temporal esquerdo e aumento de atividade no cíngulo posterior.
O conjunto destes resultados demonstra que os efeitos modulatórios do CBD na ativação de áreas límbicas e paralímbicas são consistentes com o efeito de drogas ansiolíticas em pacientes com transtornos psiquiátricos e em sujeitos saudáveis32,33. Do mesmo modo, estes achados sugerem que o CBD pode ter propriedades ansiolíticas na ansiedade patológica.
2) Efeito antipsicótico
a) Estudos em animais
Como um primeiro passo na investigação de uma possível ação antipsicótica, os efeitos do CBD foram comparados aos do haloperidol, um antipsicótico típico, em modelos animais habitualmente utilizados para investigar efeitos antipsicóticos de novos compostos34 . Foi observado em ratos que tanto o CBD (15-60mg/kg) como o haloperidol (0,25-0,5mg/kg) diminuíram, de forma dose-dependente, comportamentos estereotipados induzidos pela apomorfina, tais como cheirar e morder repetitivamente. O haloperidol apresentou efeito no teste da catalepsia (tempo de permanência com as patas dianteiras apoiadas numa barra elevada), o que não ocorreu com o CBD, mesmo em doses muito elevadas (480mg/kg). A indução de catalepsia em roedores por antipsicóticos típicos correlaciona-se fortemente com a propensão dessas drogas de provocarem sintomas tipo Parkinson em pacientes. Uma nova geração de antipsicóticos, os chamados atípicos, tem baixa propensão a apresentar esses sintomas parkinsonianos. O CBD, nestes três testes, apresentou um perfil de efeitos muito semelhante ao antipsicótico atípico padrão, a clozapina.
Em outro experimento, estudaram-se os efeitos do CBD na hiperlocomoção induzida pela anfetamina e ketamina em camundongos35. Neste estudo, os efeitos do CBD foram comparados aos do haloperidol e da clozapina. Verificou-se que o CBD (15-60mg/kg) inibiu a hiperlocomoção induzida pela anfetamina de forma dose-dependente, concordando com os resultados obtidos com a apomorfina34, uma droga agonista de receptores de dopamina. Verificou-se também que o CBD inibiu a hiperlocomoção induzida pela ketamina, o que estende a observação de um efeito típico de antipsicóticos para um modelo baseado no glutamato. Tanto o haloperidol como a clozapina foram capazes de inibir a hiperlocomoção nos dois modelos, como já era esperado. Entretanto, o CBD e a clozapina não induziram a catalepsia, o que ocorreu com o haloperidol, reforçando a sugestão de o CBD possuir um perfil compatível com um antipsicótico atípico. Estes resultados foram posteriormente apoiados em estudo que apontou para padrões semelhantes de ativação no sistema nervoso central entre o CBD e a clozapina, uma vez que os dois compostos induziram a imunorreatividade Fos no córtex préfrontal e não no estriato dorsal, enquanto o haloperidol apresentou resultado inverso nas duas áreas36.
b) Estudos em humanos
A utilização de modelos experimentais de psicopatologias em humanos pode fornecer indicações importantes de efeitos terapêuticos de drogas, precedendo os ensaios clínicos com pacientes. Um dos modelos utilizados para avaliar um possível efeito antipsicótico do CBD foi o da inversão da percepção de profundidade binocular (Binocular depth inversion − BDI). Neste modelo, o CBD diminuiu o prejuízo no relato de imagens ilusórias produzido pela nabilona, um canabinoide sintético análogo ao Δ9-THC, sugerindo um efeito semelhante ao dos antipsicóticos em pacientes com esquizofrenia37.
Atualmente, o uso de doses subanestésicas de ketamina tem sido proposto como um dos melhores modelos experimentais para reproduzir estados psicóticos em indivíduos saudáveis, pois exerce sua ação funcionando como antagonista de receptores NMDA e, em doses baixas, aumentando a liberação de glutamato, que pode agir em receptores não NMDA. Neste modelo, a droga desencadeia sintomas dissociativos, positivos, negativos e cognitivos semelhantes àqueles característicos da esquizofrenia38. Utilizamos esse modelo de sintomas psicóticos induzidos pela ketamina para comparar os efeitos do CBD (600mg) e placebo em 10 voluntários saudáveis, num procedimento duplo-cego39. Os voluntários foram submetidos a duas sessões experimentais, separadas por menos uma semana, recebendo em cada uma o CBD ou placebo, em ordem randômica. Verificamos que o CBD atenuou as elevações produzidas pela ketamina nos escores totais de uma escala para sintomas dissociativos (Clinician-Administered Dissociative States Scale − CADSS) e seus fatores, e que esse efeito foi significativo para o fator despersonalização, o que reforça a hipótese de um efeito antipsicótico do CBD. Do mesmo modo, este possível efeito sobre sintomas dissociativos também levanta a hipótese de um potencial terapêutico em condições como transtorno de estresse pós-traumático, intoxicações pela cannabis e em alguns transtornos de personalidade (Tabela 1).
Um recente estudo com RMf conduzido em conjunto com desafio farmacológico com CBD e Δ9-THC confirmou a ideia do potencial antipsicótico do CBD40. Neste estudo, os autores verificaram que o Δ9-THC e o CBD apresentaram efeitos opostos na ativação de diversas áreas cerebrais usando diferentes tarefas. Em um segundo experimento, o pré-tratamento com o CBD foi capaz de prevenir a indução aguda de sintomas psicóticos induzidos pelo Δ9-THC40. Este resultado é consistente com o achado de que os sujeitos usuários de amostras de cannabis que contêm mais CBD em adição ao Δ9-THC têm menor propensão de apresentar sintomas psicóticos do que aqueles que fumam amostras de cannabis sem CBD41.
Com base nestes estudos anteriores, e considerando as evidências de uma possível disfunção do sistema canabinoide na esquizofrenia42 e as suas relações com os prejuízos típicos deste transtorno, investigamos os efeitos do CBD na atenção seletiva e no padrão de responsividade eletrodérmica a estímulos auditivos em pacientes com esquizofrenia43. Vinte e oito pacientes foram avaliados por meio do Stroop Color Word Test (SCWT) em duas sessões experimentais, sendo que na primeira não houve administração de drogas e na segunda os pacientes foram divididos em três grupos que receberam dose única de CBD 300mg, CBD 600mg ou placebo. Verificamos que a administração aguda de CBD em dose única não demonstrou ter efeitos benéficos sobre o desempenho de pacientes com esquizofrenia no SCWT, embora estes dados não sejam suficientes para refutar a hipótese de que a administração continuada de CBD possa resultar em melhora no funcionamento cognitivo em esquizofrenia.
A ausência de efeitos tóxicos do CBD e as evidências préclínicas, em animais e humanos, de um possível efeito ansiolítico e antipsicótico, tornaram aceitáveis, do ponto de vista ético, os ensaios clínicos, inicialmente, abertos e com número restrito de pacientes submetidos ao tratamento pelo CBD. Em 1995, Zuardi et al. relataram um estudo de caso com uma paciente do sexo feminino, 19 anos de idade, com diagnóstico de esquizofrenia e que apresentava sérios efeitos colaterais com os antipsicóticos tradicionais44. Após internação integral, essa paciente permaneceu quatro dias sem medicação e, em seguida, recebeu o CBD com aumento progressivo da dosagem até 1.500mg/dia, durante quatro semanas. Após esse período, o CBD foi substituído por cápsulas com placebo, por quatro dias e, em seguida, por haloperidol em doses crescentes até 12,5mg/dia. Os sintomas, avaliados por meio da Brief Psychiatric Rating Scale (BPRS), tanto pelo psiquiatra assistente quanto pelo avaliador cego, diminuíram acentuadamente com o tratamento pelo CBD, havendo uma tendência à piora com a suspensão da droga. Com o haloperidol os sintomas voltaram a diminuir, porém não ultrapassando o efeito obtido com o CBD. Como observado anteriormente, o CBD não produziu qualquer efeito adverso diferentemente do que ocorreu com o uso do haloperidol.
Mais recentemente, ampliamos o uso do CBD em mais três pacientes com diagnóstico de esquizofrenia, do sexo masculino e idades entre 22 e 23 anos, e que eram refratários ao tratamento com antipsicóticos clássicos45,46. Todos os pacientes foram internados e receberam placebo nos primeiros cinco dias de internação, CBD do 6º ao 35º dias, placebo por mais cinco dias e, finalmente, olanzapina por pelo menos 15 dias. A dose inicial do CBD foi de 40mg/dia e foi aumentada até 1.280mg/dia. Os pacientes foram acompanhados por um psiquiatra assistente, responsável pelo ajuste das doses, e por dois psiquiatras cegos em relação às dosagens que aplicaram a BPRS e uma escala de efeitos adversos. Dois pacientes apresentaram uma discreta melhora com o CBD e o outro não mostrou resposta alguma, sendo que todos tiveram tendência ao agravamento com a suspensão da droga. Apenas um deles apresentou melhor resposta com a olanzapina do que com o CBD. A melhora discreta apresentada por um dos pacientes e a ausência de resposta no outro pode dever-se ao fato desses dois pacientes terem sido considerados resistentes aos antipsicóticos, uma vez que um deles teve uma resposta parcial, apenas com a clozapina, e o outro não respondeu mesmo a este antipsicótico. Nenhum dos pacientes apresentou efeitos adversos durante o uso do CBD.
Um recente ensaio clínico de quatro semanas, exploratório, duplocego, controlado, com número adequado de pacientes, confirmou os resultados preliminares das propriedades antipsicóticas do CBD descritos anteriormente47. Neste estudo, o CBD foi testado em pacientes com diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno esquizofreniforme (DSM-IV) em episódio agudo e comparado com o antipsicótico amisulprida (antipsicótico atípico com pequena propensão a efeitos adversos do tipo Parkinson). Quarenta e dois pacientes participaram do estudo, sendo que nos dois tratamentos ocorreu redução significativa dos sintomas psicóticos após duas e quatro semanas. Não foram observadas diferenças significativas entre os grupos, porém, o CBD significantemente induziu menos efeitos colaterais, como extrapiramidais, aumento da prolactina e ganho de peso.
Os sintomas psicóticos são comuns em pacientes com doença de Parkinson (DP)48, sendo que o manejo desta condição é considerado como um grande desafio para os clínicos. Isto ocorre devido a vários fatores: i) a redução da dose dos antiparkinsonianos geralmente leva a piora dos sintomas motores; ii) o uso adicional dos antipsicóticos convencionais pode piorar ainda mais o quadro motor; iii) a clozapina, o antipsicótico atípico mais efetivo no manejo desta condição, pode causar efeitos colaterais inaceitáveis, especialmente neurológicos e hematológicos49. Assim, devido à carência de intervenções farmacêuticas seguras e efetivas para psicose na DP e considerando a relevância de um possível efeito antipsicótico do CBD, recentemente avaliamos pela primeira vez a eficácia, a segurança e a tolerabilidade deste canabinoide em pacientes com DP e psicose50.
Em um estudo piloto aberto, testamos a administração de CBD em seis pacientes ambulatoriais com o diagnóstico de DP e com sintomas psicóticos associados por pelo menos três meses. Estes receberam uma dose oral flexível de CBD (começando com 150mg/dia) por quatro semanas, além de suas terapias usuais. Tanto os sintomas psicóticos como motores reduziram significativamente com o tratamento com o CBD e não houve piora dos sintomas cognitivos. Estes resultados preliminares sugerem que o CBD pode ter um efeito benéfico na DP. Ensaio clínico, duplo-cego e controlado por placebo avaliando esta questão atualmente está em andamento.
3) Efeito sedativo e sobre o sono
Um dos primeiros efeitos observados com o CBD foi sua ação sedativa, baseada na observação de que este canabinoide reduzia a ambulação e comportamento operante em ratos51,52. Posteriormente, efeitos indutores e de aumento total do sono em ratos foram descritos53 . Em um estudo com humanos voluntários com queixa de insônia, sem outros distúrbios físicos ou psiquiátricos, receberam CBD em três doses (40, 80 e 160mg), placebo e nitrazepam (5mg), durante uma semana, cada tratamento, num procedimento duplo-cego em ordem randomizada. Quando comparado ao placebo, o CBD (160mg) aumentou significantemente o número de voluntários que mantiveram o sono por sete ou mais horas54. Consistente com este achado, verificamos que vários dos sujeitos incluídos no estudo do CBD em pacientes com DP descrito previamente50 relataram melhora da qualidade do sono, o que é considerado um problema comum neste transtorno do movimento55.
Efeitos sedativos também foram consistentemente observados em voluntários saudáveis e em pacientes com TAS, com o uso oral de altas doses de CBD (300mg a 600mg)28,56,57. Num estudo realizado em voluntários saudáveis, no período da manhã, após pelo menos seis horas de sono, foi verificado, por meio de escala analógica de autoavaliação, um aumento significativo dos escores de sonolência, com a administração de dose única de 300 e 600mg de CBD, comparado com placebo (Figura 1 − adaptada de Zuardi et al.56).
Entretanto, há descrições em animais58,59 e em humanos57,59 de que o CBD aumenta o alerta e o despertar (wakefulness), provavelmente por meio de aumento da liberação de dopamina58. Estes achados aparentemente paradoxais em relação ao CBD no sono podem ser explicados pelo fato de estes efeitos assim como para ansiedade serem bifásicos, exibindo propriedades de alerta em doses baixas e ações sedativas em doses mais altas57,59.
4) Efeito antidepressivo e estabilizador do humor
Considerando-se que os efeitos ansiolíticos do CBD possam ser mediados pela ativação dos receptores 5-HT1A e que esta modulação poderia induzir efeitos antidepressivos, esta hipótese foi recentemente avaliada por meio do teste do nado forçado em camundongos60. Os autores verificaram que, assim como o antidepressivo padrão imipramina (30mg/kg), o CBD (30mg/ kg) diminuiu o tempo de imobilidade dos animais submetidos ao teste do nado forçado. Estes efeitos do CBD foram bloqueados pelo tratamento prévio com um antagonista do receptor 5-HT1A, o que sugere, de fato, que este efeito antidepressivo seja mediado pela ativação destes receptores.
Uma vez que o CBD demonstrou apresentar efeitos anticonvulsivantes57,61-63, ansiolíticos57, antidepressivos60 e antipsicóticos similares aos atípicos46, levantou-se a hipótese de que este canabinoide teria um perfil farmacológico similar a drogas estabilizadoras do humor64. Desta forma, inicialmente procuramos investigar esta questão em um modelo animal de mania induzida por meio da injeção crônica de D-anfetamina (D-AMPH) na dose de 2mg/kg. Utilizando este modelo, o CBD não foi capaz de reverter ou de prevenir a hiperlocomoção induzida pela D-AMPH. Entretanto, o CBD demonstrou propriedades neuroprotetoras e antioxidantes, pois foi capaz de proteger contra o dano induzido pela D-AMPH e aumentou os níveis de fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) no experimento de reversão65.
Em paralelo a este estudo com modelo animal de mania, investigamos diretamente a eficácia do CBD em dois pacientes com transtorno afetivo bipolar (TAB) que apresentavam episódio de mania aguda66. Ambos receberam placebo pelos primeiros cinco dias de internação, CBD do 6º ao 30º dia, com dose inicial de 600mg, alcançando 1.200mg/dia. O primeiro paciente recebeu, entre o 6º e o 20º dia, olanzapina adjuvante na dose de 10-15mg/ dia. No 31º dia, o tratamento com CBD foi descontinuado e trocado por placebo por mais cinco dias. Ela melhorou apenas no período no qual estava usando CBD com o olanzapina, mas não demonstrou melhora adicional durante monoterapia com CBD. O segundo paciente não apresentou nenhuma melhora dos sintomas maníacos com nenhuma dose do CBD durante o estudo. Este achado, somado ao resultado negativo verificado no modelo animal de mania, sugere que o CBD não seja efetivo para o tratamento de episódio maníaco no TAB.
5) Síndrome de abstinência de cannabis
Dentre os diversos sintomas presentes na síndrome de abstinência de maconha em usuários crônicos, ansiedade e insônia constituem as principais manifestações, cujo início tipicamente ocorre entre o segundo e o sexto dia. A magnitude e o tempo de curso destes efeitos parecem ser comparáveis aos do tabaco e à síndrome de abstinência induzida por outras drogas, o que comumente contribui para o desenvolvimento de dependência e dificuldade na interrupção do uso67.
Sabe-se que o uso de cannabis no mundo ultrapassa 160 milhões de pessoas e a quantidade de indivíduos que preenchem os critérios para dependência desta droga ultrapassa o número de dependentes para qualquer outra droga ilícita. Apesar disso, considera-se que atualmente ainda não exista nenhuma terapêutica farmacológica aceitável para o tratamento dos transtornos relacionados ao uso da cannabis68.
Recente estudo em ratos demonstrou que o CBD inibe o comportamento de busca de heroína induzida por estímulo condicionado e normalizou os distúrbios neuronais mesolímbicos associados69 . Assim, com base nestes achados associados às propriedades previamente descritas do CBD na ansiedade e sono, recentemente investigamos os efeitos deste canabinoide em uma paciente com dependência de cannabis e com história de episódios de síndrome de abstinência desta droga.
A paciente de 19 anos apresentava história de uso pesado e continuado de cannabis (quatro a oito cigarros ao dia) desde os 13 anos de idade. Negava uso concomitante ou dependência de qualquer outra droga e gastava praticamente todo salário, despendendo enorme tempo e esforço para comprar maconha. Queixava-se de problemas de memória, concentração e atenção que a atrapalhavam nos estudos e no desempenho no trabalho. Ela havia tentado parar de usar a droga por pelo menos quatro vezes, sendo que sempre em torno do quarto ao sexto dia após a interrupção apresentava dificuldade para dormir, ansiedade, perda total do apetite, inquietação, cefaléia, irritabilidade, pesadelos, sudorese, entre outros. A volta do uso da maconha levava a melhora imediata dos sintomas.
A paciente foi internada e recebeu no primeiro dia 300mg de CBD; do segundo ao 10º dia, 600mg/dia, dividido em duas tomadas; e no 11º dia, novamente 300mg. Não recebeu nenhuma medicação no 12º dia, recebendo alta logo após. Os níveis séricos das enzimas hepáticas e níveis plasmáticos de CBD e Δ9-THC foram monitorados diariamente. Com o uso do CBD, a paciente não referiu nenhum sintoma de abstinência de maconha em qualquer um dos itens avaliados por meio da Marijuana Withdrawal Symptom Checklist e do Withdrawal Discomfort Score70, nem sintomas de ansiedade ou dissociativos avaliados pela Hamilton Anxiety Scale (HAMA) e CADSS.
As possíveis indicações do CBD em psiquiatria e grau de evidência atual são apresentadas na Tabela 1.
2. Δ9-THC e seus análogos
Consistente com os antigos relatos descritos anteriormente, uma das hipóteses mais comuns e controversas é a de que sujeitos com altos níveis de ansiedade e pacientes com transtornos de ansiedade usam cannabis como uma forma de "automedicação". Assim, apoiando esta hipótese, muitos sujeitos relatam que usam esta droga para relaxar e como uma forma de diminuir a ansiedade71. Esta hipótese foi parcialmente apoiada nos resultados de um estudo duplo-cego com a nabilona (3mg/dia), no qual pacientes com transtornos de ansiedade reduziram os sintomas após 28 dias de tratamento72. Em outro estudo cruzado controlado por placebo, Ilaria et al. também verificaram que o uso da nabilone (2-5mg/ dia) reduzia sintomas de pacientes com transtornos de ansiedade73 .
O mesmo tem sido descrito em relação à depressão, uma vez que o Δ9-THC pode induzir euforia em certas doses74. Em pacientes com esclerose múltipla, este canabinoide demonstrou melhora do humor, provavelmente pela melhora da sensação dolorosa que geralmente é acompanhada de sintomas depressivos75. Em contraste com as observações acima, em sujeitos vulneráveis a doses habituais tem sido relatado que o uso de altas doses de maconha pode provocar uma forma aguda e temporária de ansiedade induzida, muitas vezes parecendo um ataque de pânico. Isto tem sido consistentemente bem descrito em estudos experimentais em humanos e em vários relatos de casos76. Assim como para a maioria dos canabinoides, estes achados paradoxais em relação ao Δ9-THC poderiam ser explicados pela observação de que os seus efeitos sobre a ansiedade e o humor parecem ser dose-dependentes, com baixas a moderadas doses demonstrando propriedades ansiolíticas e euforizantes e doses mais altas sendo ansiogênicas. Além disto, os diversos canabinoides (como visto previamente com o CBD) parecem apresentar individualmente propriedades distintas.
Um recente estudo testou os efeitos do Δ9-THC em pacientes com esquizofrenia. Reconhecendo que agonistas canabinoides podem piorar sintomas psicóticos77, por questões éticas, os pacientes incluídos tinham história de autorrelato de benefícios com o uso de cannabis. Igualmente, estes foram considerados como casos graves e refratários aos tratamentos disponíveis (inclusive clozapina), o que poderia tornar os supostos efeitos benéficos superiores aos eventuais riscos78. Os autores verificaram que o uso oral de dronabinol (derivado sintético do Δ9-THC) na dose de 5-20mg/dia (três a oito semanas), em conjunto aos antipsicóticos que os pacientes estavam em uso, levou à melhora clinicamente significativa de sintomas de esquizofrenia em quatro de seis sujeitos avaliados. Em três dos quatro pacientes que responderam, os autores consideraram que a melhora foi decorrente da redução do conjunto de sintomas psicóticos e não apenas um efeito calmante inespecífico. Assim, os resultados desta série de casos sugerem que agonistas CB1 podem causar efeitos opostos sobre sintomas psicóticos em pacientes com esquizofrenia, o que também parece ser verdadeiro para ansiedade, depressão e em outras condições76. Isto pode ser dependente da dose do canabinoide e de fatores genéticos e individuais que atualmente ainda não são bem entendidos.
A terapêutica farmacológica para dependência de drogas pode ajudar no tratamento de diversas maneiras67. Uma abordagem é identificar medicamentos que possam atenuar sintomas de abstinência, como substâncias agonistas/substitutas (por exemplo, adesivos de nicotina para dependência de tabaco e metadona para dependência de opiáceos). Assim, o dronabinol foi testado na dependência de cannabis. Hart et al.79 verificaram que, quando comparado ao placebo, o dronabinol, nas doses de 10 e 20mg, quatro vezes/dia, diminuiu alguns dos efeitos subjetivos da cannabis em usuários pesados da droga, apesar de não ter tido impacto na autoadministração, provavelmente devido a problemas no desenho e na composição da amostra estudada80. Em estudo posterior, Haney et al.81 compararam o dronabinol (10mg, cinco vezes/dia) ao placebo em usuários pesados de cannabis com história de sintomas de abstinência a esta droga. Os autores verificaram que o dronabinol foi efetivo na redução de sintomas de abstinência e não produziu efeitos subjetivos. Estudos posteriores confirmaram estes achados, com doses baixas (10mg, três vezes/dia), altas (30mg, três vezes/dia), e em pacientes que buscaram tratamento para dependência de cannabis80. Outros estudos confirmaram estes achados67.
O Δ9-THC foi proposto, também, como hipnótico82 e, recentemente, um análogo, o nabilone (0,5 e 1mg), administrado antes de deitar a pacientes com fibromialgia, mostrou-se efetivo em melhorar a qualidade de sono, avaliada por escalas de autoavaliação83.
Apesar de alguns pacientes relatarem que o uso da planta cannabis alivia sintomas de mania e/ou depressão84, transtorno de déficit de atenção, transtorno obsessivo-compulsivo, ensaios clínicos controlados com Δ9-THC e seus análogos não foram realizados.
3. Rimonabanto (SR141716)
O rimonabanto (Sanofi-Aventis®), um antagonista/agonista inverso do receptor canabinoide CB1, foi comercializado em diversos países como uma medicação para o tratamento de obesidade. A indução de graves efeitos adversos, especialmente ansiedade e depressão, com casos de suicídio induzidos pelo uso da droga, levou à sua completa remoção do mercado e interrupção de qualquer ensaio clínico85. Entretanto, antes do fim de sua comercialização, este medicamento foi testado em algumas condições psiquiátricas com resultados promissores.
É reconhecido que atualmente existem poucas opções farmacológicas para o manejo dos efeitos fisiológicos e psiquiátricos relacionadas à intoxicação aguda à cannabis65. Nesse sentido, o rimonabanto em doses escalonadas (1, 3, 10, 30, 90mg) foi testado em três estudos conduzidos por Huestis et al.86-88. Esta droga foi capaz de reduzir os efeitos fisiológicos e subjetivos psicológicos de intoxicação de modo dose-dependente administrada duas horas antes de fumar um cigarro ativo (2,64% THC) de maconha. Este efeito ocorreu independentemente de interações farmacocinéticas, o que sugere uma ação específica deste composto. Assim, embora nesses estudos o rimonabanto tenha sido usado no pré-tratamento, é possível que drogas que bloqueiam o receptor CB1 possam ser usadas para controlar os sintomas fisiológicos e subjetivos comumente observados na intoxicação à cannabis.
Estudos em animais demonstraram que o antagonismo do receptor CB1 pode reduzir comportamentos de recompensa/ reforço de várias drogas de abuso, incluindo heroína89, cocaína90, álcool91 e nicotina92. Considerando esses estudos pré-clínicos e o fato de que a taxa de sucesso na interrupção do tabagismo pode ser aumentada com o controle do aumento peso, o uso do rimonabanto (20mg/dia) associado a adesivo de nicotina foi testado para interrupção do tabagismo93. Os autores verificaram que a associação de adesivo de nicotina ao rimonabanto aumentou as taxas de interrupção de tabagismo quando comparado com rimonabanto isoladamente. Ambos os grupos tiveram pouco ganho de peso e baixas taxas de descontinuação devido a efeitos colaterais psiquiátricos, porém, o desenho do estudo foi muito criticado por não permitir conclusões definitivas sobre a eficácia do rimonabanto no tabagismo94.
Considerando estudos prévios em animais95 e que na referida hipótese canabinoide da esquizofrenia"42 supõe-se ocorrer uma hiperatividade do sistema endocanabinoide, o rimonabanto foi testado neste transtorno em um estudo duplo-cego, controlado96. Após um período de dois a 10 dias de descontinuação, os pacientes receberam 20mg/dia de rimonabanto, haloperidol (10mg/dia) ou outras drogas experimentais por um período de seis semanas. Ao contrário do que era esperado, o uso do rimonabanto não demonstrou melhora dos sintomas nos pacientes, o que pode ter sido devido à dose e tempo de uso inadequado ou, de fato, à ausência de atividade clínica com este mecanismo de ação.
Conclusão
Os dados apresentados na presente revisão demonstram que os canabinoides podem, no futuro, ser uma importante opção terapêutica no tratamento de transtornos e sintomas psiquiátricos. Pela ausência de efeitos psicoativos e na cognição, segurança, boa tolerabilidade, ensaios clínicos com resultados positivos e o amplo espectro de ações farmacológicas, o CBD parece ser o canabinoide isoladamente mais próximo de ter seus achados iniciais translacionados para a prática clínica. De modo particular, os resultados do CBD como antipsicótico e ansiolítico parecem estar bem estabelecidos. Entretanto, estudos de longo prazo, duplo-cegos, controlados por placebo, em amostras com número adequado de pacientes nos diferentes transtornos psicóticos e de ansiedade ainda são necessários e oportunos. Igualmente, devido ao fato de as ações do CBD serem bifásicas, a determinação da adequada faixa terapêutica para cada transtorno ainda é um desafio. Paralelamente, mais pesquisas buscando determinar os precisos mecanismos de ação do CBD nas diferentes condições neuropsiquiátricas são desejáveis.
Os achados de redução dos efeitos subjetivos e fisiológicos da intoxicação aguda da cannabis pelo rimonabanto demonstram que este composto poderia ter sido uma excelente opção terapêutica para esta condição, não tão incomum em emergência psiquiátrica. Além disso, os resultados confirmam o papel dos receptores CB1 na mediação dos efeitos da cannabis, o que é consistente com os relatos prévios em estudos animais. Entretanto, o seu importante efeito colateral de induzir estados depressivos83 determinou o abandono desta droga e interrompeu perspectivas potenciais do rimonabanto no auxílio para interrupção do tabagismo e em outras condições.
Em relação ao Δ9-THC e seus análogos, há muito tempo tem sido relatado que estes compostos apresentam efeitos sedativos e hipnóticos em várias condições clínicas, como esclerose múltipla. Uma das indicações mais promissoras destes compostos parece ser para o tratamento da síndrome de abstinência à cannabis67,97. Apesar das descrições de efeitos benéficos do Δ9-THC e de seus análogos para aliviar sintomas psicóticos e de humor98 , é prudente desencorajar o uso destes canabinoides nessas condições. Além dos efeitos psicotrópicos, a possibilidade de exacerbar sintomas, o potencial de dependência, ações bifásicas (efeitos diversos dependendo da doses) e bidirecionais (efeitos agudos opostos em diferentes indivíduos) independente do transtorno limitam a aplicação terapêutica destes canabinoides nesta área. Uma alternativa poderia ser a cautelosa exploração dos efeitos benéficos da mistura de Δ9-THC e CBD, que já é usada em alguns transtornos neurológicos. Igualmente, outros fitocanabinoides ainda pouco explorados (canabigerol, CBG; canabicrome, CBC; delta-9-tetrahidrocanabivarina; Δ9-THCV; canabidivarina, CBDV; ácido tetrahidrocanabinólico, Δ9-THCA; ácido canabidiólico, CBDA) podem ser de particular interesse59.
Em conclusão, pode-se afirmar que o sistema canabinoide é um alvo promissor para novas intervenções terapêuticas em psiquiatria99. Assim, os canabinoides podem ter amplo uso nesta área, porém, estudos futuros controlados ainda são necessários para confirmar estes achados e determinar a segurança destes compostos.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Maio 2010 -
Data do Fascículo
Maio 2010