Resumos
A imprensa platina em geral, e a uruguaia particularmente, adotou uma postura hostil ao movimento militar de 31 de março de 1964 no Brasil, conferindo-lhe o perfil de "golpe de gorilas", diante da opinião pública da região. Nesse sentido, a atuação da imprensa tornou-se mais explícita quando desembarcaram em Montevidéu, no mês de abril daquele ano, os integrantes da Missão Especial do Brasil ao Uruguai. Pretendia-se, sob forte pressão, obter do governo uruguaio o compromisso formal de que o ex-Presidente Goulart e seus acompanhantes fossem confinados em área distante da fronteira brasileira, no Departamento de Montevidéu, onde poderiam ter suas atividades controladas, com maior facilidade, pelas autoridades uruguaias. Diante da negativa da República vizinha, a Missão retornou, trazendo, curiosamente, o que não fora buscar, isto é, o reconhecimento do novo Governo do Brasil, obtido por estreita margem de votos do Conselho Nacional de Governo e sob forte oposição da imprensa e da opinião pública uruguaias.
Missão ao Uruguai; Imprensa Platina; Ex-Presidente Goulart; Asilo Territorial e Confinamento; Reconhecimento do Governo Militar
The press of the River Plate region, especially of Uruguay, showed a hostile attitude against the Brazilian military movement of March 31, 1964, depicting it to the public as a "gorilla coup". This reaction became more explicit in April as the members of the Brazilian Especial Mission to Uruguay landed in Montevideo. The Mission's aim was to obtain from the Uruguayan Government, through the exertion of strong pressure, the formal compromise of confining former president Goulart and his companions to a distant area from the Brazilian border, namely the Montevideo Department, in which it would be easier for the Uruguayan authorities to keep their activities under control. Confronted with the neighboring Republic's refusal to attend its demand, the Mission returned to Brazil, but, curiously enough, taking home what it was not looking for: the recognition of the new Government, which was obtained from the National Council of Government by a scant majority of votes and under strong opposition on the part of the Uruguayan press and public opinion.
Mission to Uruguay; Press of the River Plate Region; Former President Goulart; Territorial Asylum and Confinement; Recognition of the Military Government
ROTAS DE INTERESSE
A imprensa platina e a Missão Especial do Brasil ao Uruguai, abril de 1964
Dinair Andrade da Silva
Doutor em História e Professor de História da América e de História das Relações Internacionais da América Latina da Universidade de Brasília
RESUMO
A imprensa platina em geral, e a uruguaia particularmente, adotou uma postura hostil ao movimento militar de 31 de março de 1964 no Brasil, conferindo-lhe o perfil de "golpe de gorilas", diante da opinião pública da região.
Nesse sentido, a atuação da imprensa tornou-se mais explícita quando desembarcaram em Montevidéu, no mês de abril daquele ano, os integrantes da Missão Especial do Brasil ao Uruguai. Pretendia-se, sob forte pressão, obter do governo uruguaio o compromisso formal de que o ex-Presidente Goulart e seus acompanhantes fossem confinados em área distante da fronteira brasileira, no Departamento de Montevidéu, onde poderiam ter suas atividades controladas, com maior facilidade, pelas autoridades uruguaias.
Diante da negativa da República vizinha, a Missão retornou, trazendo, curiosamente, o que não fora buscar, isto é, o reconhecimento do novo Governo do Brasil, obtido por estreita margem de votos do Conselho Nacional de Governo e sob forte oposição da imprensa e da opinião pública uruguaias.
Palavras-chave: Missão ao Uruguai; Imprensa Platina; Ex-Presidente Goulart; Asilo Territorial e Confinamento; Reconhecimento do Governo Militar.
ABSTRACT
The press of the River Plate region, especially of Uruguay, showed a hostile attitude against the Brazilian military movement of March 31, 1964, depicting it to the public as a "gorilla coup".
This reaction became more explicit in April as the members of the Brazilian Especial Mission to Uruguay landed in Montevideo. The Mission's aim was to obtain from the Uruguayan Government, through the exertion of strong pressure, the formal compromise of confining former president Goulart and his companions to a distant area from the Brazilian border, namely the Montevideo Department, in which it would be easier for the Uruguayan authorities to keep their activities under control.
Confronted with the neighboring Republic's refusal to attend its demand, the Mission returned to Brazil, but, curiously enough, taking home what it was not looking for: the recognition of the new Government, which was obtained from the National Council of Government by a scant majority of votes and under strong opposition on the part of the Uruguayan press and public opinion.
Key-words: Mission to Uruguay; Press of the River Plate Region; Former President Goulart; Territorial Asylum and Confinement; Recognition of the Military Government.
Introdução
Vitorioso o movimento militar de 31 de março de 19641 , Goulart e seus principais auxiliares viajaram para o Uruguai, enquanto outros buscaram asilo diplomático nas várias embaixadas estrangeiras. O ex-Presidente desembarcou em Montevidéu no dia 4 de abril.2
Foi recebido por funcionários da Embaixada do Brasil, do Consulado Geral e do Serviço de Expansão e Propaganda Comercial, além de altas autoridades do Governo uruguaio, como o Subsecretário da Defesa Nacional, o Inspetor Geral da Força Aérea, o Chefe do Departamento Político e Diplomático do Ministério das Relações Exteriores, e, ainda, por dois Senadores da República.3
Goulart manifestou o propósito de asilar-se naquele país, no que foi seguido por diversos ex-colaboradores, que para lá se dirigiram em dias subseqüentes.4
No entanto, o Governo do Brasil, recém-instalado, temia que membros do Governo deposto, utilizando o território uruguaio como base de suas operações, viessem a subverter a nova ordem política brasileira e desassossegar a opinião pública com o objetivo de retomar o poder "até mesmo pelo emprego de meios violentos".5
No intuito de resguardar-se de eventual desmoralização, o Governo brasileiro enviou, em 13 de abril, uma Missão Especial ao Uruguai para negociar com as autoridades locais algumas medidas atinentes àquela situação.6 Na verdade, o ideal para os militares era que Goulart e seus simpatizantes deixassem o Continente americano. No entanto, seria aceitável ao Brasil o confinamento deles no Departamento de Montevidéu, preferencialmente, onde seriam mais facilmente monitorados por aquele Governo e estariam mais distantes da fronteira com o Brasil.7
Quanto a esta matéria, dois argumentos conexos fundamentavam a posição do Brasil. Por um lado, a intransigente defesa das tradicionais relações de amizade entre os dois países; por outro, a inflexível luta contra o surgimento de uma zona de fricção do âmbito da política interamericana.8
Busca frustrada do confinamento impossível
A Missão Especial desembarcou na capital uruguaia na tarde de 13 de abril e instalou-se nas dependências da Embaixada brasileira, conforme sugestão da Secretaria de Estado.9 Neste mesmo dia, já noite, ocorreu uma reunião, presidida pelo Enviado Especial, Ministro Jayme de Souza Gomes, em que estavam presentes o Chefe da Embaixada do Brasil, o Encarregado de Negócios, Ministro Júlio Agostinho de Oliveira, o Adido Militar, Major Fernando Valente Pamplona,10 os Secretários Guy Pinheiro de Vasconcellos e Gilberto Ferreira Martins. Uma vez inteirados do objetivo fundamental da Missão Especial, examinou-se, com o Encarregado de Negócios, a situação do pessoal da Embaixada. Nesse sentido, tomaram-se medidas tanto de natureza administrativa, requisitando pessoal para suprir as demandas do momento, 11 quanto de natureza política, destituindo funcionários comprometidos ou supostamente comprometidos com o Governo deposto.12
Ainda no âmbito das providências mais imediatas, procedeu-se ao estudo dos textos legais referentes à questão, ou seja, a Convenção de Caracas de 1954, sobre Asilo Territorial, e o Decreto do Governo uruguaio, de 5 de julho de 1956, sobre Refugiados Políticos Estrangeiros. O estudo revelou, por antecipação, os resultados de uma difícil negociação que logo começaria. O Uruguai, não ratificando a Convenção de Caracas sobre Asilo Territorial, editou o Decreto de 5 de julho para regulamentar a questão no seu território. No Art. 2º desse Decreto constava que "el domicilio o lugar de residencia que libremente fije el refugiado" deveria ser registrado no Ministério do Interior. Por outro lado, o texto de Caracas, não vigente no Uruguai, ao prever no seu Art. IX o internamento do asilado "em distância prudente de suas fronteiras", é que atenderia às pretensões do Brasil.13
Vale ressaltar que, em 10 de abril, o Encarregado de Negócios da Embaixada em Montevidéu prestou esclarecimentos ao Ministro de Estado sobre a presença do ex-Presidente Goulart no país e as conseqüentes discussões nos meios políticos locais. Pelo que se depreende do texto, o diplomata apresentou à Secretaria de Estado um quadro relativamente promissor quanto à possibilidade de o Brasil conseguir das autoridades do Uruguai o confinamento dos brasileiros lá asilados.14
Havia a expectativa de que um respaldo militar seria necessário à concretização dos objetivos da Missão. Nessa ordem de idéias, o Major Pamplona manteve encontros reservados com comandantes militares uruguaios, nos dias 14 e 16 de abril. Naqueles encontros, fez uma explanação dos objetivos15 do movimento militar no Brasil, prestou informações sobre a situação política brasileira de então e manifestou as preocupações do Governo brasileiro com a permanência dos asilados na zona de fronteira. Ao mesmo tempo, conclamou aqueles oficiais, em nome das "Classes Armadas brasileiras", a prestarem o apoio e os esclarecimentos necessários junto ao Governo uruguaio, visando o sucesso da Missão Especial.16
Num país, à época, eminentemente civilista, onde os meios militares possuíam escassa influência na vida política, as gestões do Adido Militar da Embaixada do Brasil foram completamente inócuas, a despeito da receptividade que disse haver encontrado por parte das autoridades militares uruguaias.17
No dia 15 de abril, o Encarregado de Negócios, Ministro Júlio Agostinho de Oliveira, em Nota à Chancelaria uruguaia, comunicou a posse do Presidente Castelo Branco.18
O Emissário brasileiro foi recebido, em 17 de abril, pelo Presidente do Conselho Nacional de Governo, Luis Giannattasio, que estava acompanhado do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Alejandro Zorrilla de San Martin, em encontro que se estendeu por cerca de duas horas.19 Naquela oportunidade, o Governo do Uruguai foi informado sobre o "caráter democrático" e a absoluta irreversibilidade do movimento militar de 31 de março.20 Foram também explicitadas as preocupações do Governo brasileiro com a presença, em território uruguaio, do ex-Presidente Goulart e de seus prosélitos, o que poderia redundar na subversão da ordem recém-instaurada no Brasil.21
O Uruguai, em razão dos seus reconhecidos sentimentos de humanidade, receberia, com certeza, aqueles brasileiros na condição de asilados territoriais.22 Nesse caso, enfatizava o Enviado Especial, o Governo do Presidente Castelo Branco encarecia o Governo Giannattasio que decretasse o confinamento dos asilados em região distante da fronteira com o Brasil.23
O Governo brasileiro considerava, também, como matéria de relevante interesse nacional que os asilados fossem "impedidos de conspirar contra a estabilidade política do atual Governo, de buscar impacto para seus planos conspiratórios através de entrevistas à imprensa nacional e estrangeira, declarações pelo rádio ou televisão, ou de outros meios eficazes".24
Com essas negociações buscava-se, no entendimento do Representante do Brasil, a preservação e a ampliação das relações amistosas e cordiais entre os dois países. Mais ainda, evitar possíveis atritos entre vizinhos, com a possibilidade de se criar uma zona de fricção, com graves prejuízos, não só para os dois Estados, mas também para o sistema interamericano como um todo.25
Foram aventadas três hipóteses com riscos de incidentes fronteiriços: 1) incursões de militares ou policiais brasileiros incontrolados, em território uruguaio, para deter asilados;26 2) incursões de asilados no Uruguai, em território brasileiro, para praticar atos de sabotagem, terrorismo e guerrilha;27 3) militarização da fronteira, pelo Brasil, com sérios riscos de confronto entre tropas.28
O Negociador brasileiro, no seu propósito de convencer o Governo uruguaio das pretensões do Brasil, invocou, ainda, fatos da história das relações internacionais do Cone Sul da década anterior, para documentar que o Brasil esteve sempre ao lado do Uruguai.29 Em 1953, o Brasil apoiou o país vizinho quando do incidente, em Montevidéu, com o Adido Operário da Argentina.30 Nesta mesma linha de raciocínio, em 1955, o Brasil negou asilo político ao ex-Presidente argentino Juan Domingo Perón.31
Ao concluir estas ponderações, o Enviado do Governo brasileiro chegou mesmo a condicionar o confinamento solicitado à liberação dos salvo-condutos aos asilados diplomáticos brasileiros que se encontravam na Embaixada uruguaia no Rio de Janeiro. Nesse sentido, Souza Gomes dirigiu-se ao Ministro de Estado, em telegrama particular, datado de 17.04.64: "rogo com o máximo empenho ao querido amigo e chefe, não conceder salvo-conduto a nenhum asilado dos que se encontram em qualquer das Embaixadas estrangeiras, até a minha volta ao Rio, elemento decisivo para o êxito das negociações". 32 A resposta afirmativa chegou, seis dias depois, à Embaixada em Montevidéu: "fique tranqüilo quanto à solicitação que fez a respeito das pessoas asiladas na Embaixada uruguaia, pois que atenderei o seu pedido."33
O Presidente Luis Giannattasio manifestou compreensão pelas preocupações do Brasil em evitar atritos que pudessem colocar em risco as relações entre os dois Estados fronteiriços. No entanto, ao abordar o problema dos asilados diplomáticos na Embaixada uruguaia no Rio de Janeiro, foi enfático ao falar da "obrigatoriedade da concessão dos respectivos salvo-condutos, por parte do Governo brasileiro", idéia que foi reforçada pelo Ministro das Relações Exteriores Alejandro Zorrilla de San Martin ali presente.34 O Enviado brasileiro, Ministro Souza Gomes, a seu turno, mencionou que o Uruguai se encontrava sujeito, nesse particular, à Convenção de Havana, de 1928, que não fixava prazo para a concessão de salvo-condutos.35
O Presidente do Conselho Nacional de Governo informou ao Ministro Souza Gomes que ao pleito do Brasil se antepunham algumas dificuldades. Inicialmente, comentou que o seu país não havia ratificado a Convenção de Caracas, de 1954, sobre a questão do Asilo Territorial e que a legislação uruguaia sobre o assunto era extremamente liberal. Por outro lado, na estrutura política colegiada, então vigente no Uruguai, as decisões emergiam da discussão e do voto dos membros do Conselho Nacional de Governo e não da vontade do seu Presidente. E, finalmente, havia outro dado relevante. A opinião pública e a imprensa nacional já haviam se posicionado contra os últimos acontecimentos políticos ocorridos no Brasil. Uma decisão do Governo, em sentido contrário, poderia colocar em risco a ordem pública bem como a estabilidade política do país.36
No que diz respeito à posição da imprensa brasileira face ao movimento militar de 31 de março, a opinião de Skidmore é no sentido de que "A Revolução de 1964 foi entusiasticamente festejada pela maior parte da mídia brasileira. Jornais importantes como o Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo pugnavam abertamente pela deposição do governo Goulart".37 O único jornal de destaque que se opôs ao golpe foi a Última Hora, cujo diretor e fundador, Samuel Wainer, não teve outra opção senão a fuga.38 É importante esclarecer, no entanto, que a imprensa brasileira, de um modo geral, foi reorientando a sua posição diante ao golpe militar na medida em que os atos arbitrários, os expurgos e as torturas foram-se avolumando.39
O Emissário brasileiro queixou-se da imprensa uruguaia por não haver poupado nem ele, nem o próprio Presidente Castelo Branco. O Presidente do Conselho Nacional de Governo lamentou, comentando que ele próprio era uma vítima contumaz do periodismo do seu país.40
Após manifestar a sua compreensão a propósito das preocupações do Governo brasileiro no sentido de evitar qualquer risco sobre as relações entre os dois países, Giannattasio recordou ao Emissário brasileiro as convenções internacionais que obrigavam o Brasil a conceder os salvo-condutos aos asilados diplomáticos do Rio de Janeiro.41 Zorrilla de San Martin reiterou o tema da obrigatoriedade da concessão. Souza Gomes, a seu turno, assinalou a vigência, no Uruguai, da Convenção de Havana, de 1928, sobre Asilo Diplomático, que não fixava data para a expedição dos salvo-condutos.42
Ainda de posse da palavra, o Chanceler reiterou que a lei do seu país proporcionava ampla proteção aos asilados políticos e informou que o ex-Presidente Goulart já havia solicitado asilo territorial.43
A presença da Missão Especial em Montevidéu atiçou a imprensa uruguaia que, às vezes equivocada, via a busca do reconhecimento do novo Governo brasileiro como objetivo de Souza Gomes e da Missão que chefiava. O quadro retratado pelos veículos de comunicação era de muita tensão política. Giannattasio solicitou então, extra-oficialmente, ao Enviado Especial que deixasse, espontaneamente, o território uruguaio porque a sua presença, aos olhos da imprensa e da opinião pública, era um fator de pressão, indesejável e prejudicial a qualquer resultado acerca das reivindicações do Brasil.44
Sob intensas manifestações da imprensa no sentido de que o encontro entre o Enviado brasileiro e o Presidente do Conselho Nacional de Governo transcorrera num clima de muita rispidez, tensão e constrangimentos, Souza Gomes deixou Montevidéu na tarde de 19 de abril e dirigiu-se a Buenos Aires.45
A imprensa platina, em geral, insistia que o Ministro brasileiro viajava pelo Cone Sul em busca de reconhecimento para o novo Governo do Brasil. No entanto, o diplomata declarou, na Argentina, que lá estava para prestar informações verbais ao Embaixador Décio Moura sobre a situação política interna brasileira.46
Enquanto isso, no Uruguai, o Conselho de Governo, pelo Decreto de 21 de abril de 1964, declarava "asilado político al ciudadano brasileño Dr. João Belchior Marques Goulart", que poderia fixar a sua residência em qualquer ponto do território nacional.47
Não se pode deixar de acentuar que a imprensa platina era favorável ao "janguismo". Desde a imprensa nitidamente comunista até os jornais de orientação conservadora, revelam idêntica linha de simpatia pelo ex-Presidente Goulart, ou por afinidade ideológica, ou por interesses econômicos comuns.48
Por outro lado, ressalta-se que a imprensa platina manifestou-se claramente contrária ao arbítrio que havia sido instalado no Brasil a partir de 31 de março. O movimento militar brasileiro foi apresentado à opinião pública local como um "golpe de gorilas". Na verdade, pode-se documentar este ponto de vista por meio da intensa produção jornalística sobre a questão.49
Ressalta-se que os asilados territoriais brasileiros tiveram amplo acesso a todos os meios de divulgação. E foram sempre acusados pelo Governo brasileiro de deturpar os fatos ocorridos no Brasil.50
Obtenção (inesperada) do reconhecimento não-reivindicado
Na reunião do Conselho de Governo, em 23 de abril, o Uruguai reconhecia o novo Governo brasileiro por meio de Nota dirigida ao Encarregado de Negócios da Embaixada brasileira.51
Ao retornar a Montevidéu, a Missão Especial contabilizava fracasso fragoroso e sucesso insosso. O fracasso fragoroso vinculava-se à concessão do asilo ao ex-Presidente Goulart52 e o sucesso insosso ligava-se à obtenção do reconhecimento do Governo Castelo Branco.53
O Uruguai reconheceu, a duras penas, o Governo militar do Brasil. No encontro entre o Enviado brasileiro e o Chanceler uruguaio, na manhã do dia 24 de abril, o Ministro de Estado reiterou, "repetidas vezes, as dificuldades em ser aprovado o reconhecimento pelo Conselho Nacional de Governo, o que só se verificou após debates acalorados e por escassa maioria".54 Contudo, preservou sua legislação interna pertinente ao asilo territorial, não estabelecendo o confinamento dos brasileiros.55
Restava ao Brasil, desprovido de maiores argumentos e fundamentos de direito interamericano e diante do impasse colocado pela decisão uruguaia, insistir na procrastinação da liberação dos salvo-condutos aos asilados diplomáticos nas Embaixadas no Rio de Janeiro.56
Chama a atenção a habilidade com que o Chanceler uruguaio vai desconstruindo as pretensões do Brasil postas pela Missão Especial. Em 24 de abril, ao convocar o Enviado brasileiro para um encontro, o Chanceler Zorrilla de San Martin agradeceu a comunicação da posse do Presidente Castelo Branco, aludindo-se ao reconhecimento que se expressou de maneira verbal, apenas. Em seguida, o Ministro de Estado, supervalorizando o conteúdo da Missão Especial, considerou satisfeitas as pretensões do Governo brasileiro apresentadas pelo seu Ministro Plenipotenciário.57
Souza Gomes demonstrou seu desagrado ao Chanceler, reiterando que o interesse do Brasil prendia-se à questão do confinamento e não ao tema do reconhecimento.58 E acrescentou: "dentre cerca de oitenta Estados com os quais o Brasil mantém relações, três apenas México, Venezuela e Cuba não tinham efetivado aquela medida". E concluiu: "Por certo, o Uruguai não desejaria ser um dos últimos Estados a fazê-lo".59
Ouviu do Ministro de Estado que o ex-Presidente Goulart, como qualquer asilado no Uruguai, poderia se deslocar livremente pelo território nacional e que, também como qualquer outro asilado, seria, de acordo com as leis do país, observado pelas autoridades competentes. Ouviu, ainda, do Ministro de Estado que o "janguismo" exercia enorme influência nos meios políticos uruguaios.60
Ao Chefe da Missão Especial foi sugerido, por aquela autoridade, que as negociações prosseguissem, a partir de então, no âmbito de Embaixada e Chancelaria. Neste sentido, nada mais caberia ao Brasil que assistir o transcorrer dos fatos para, em sendo o caso, retomar junto à Chancelaria uruguaia o prosseguimento das negociações ou mesmo solicitar providências contra a atuação dos asilados brasileiros.61
Talvez numa última tentativa de reversão ou alteração das decisões então tomadas, o Emissário brasileiro mencionou que a questão dos salvo-condutos seria examinada, oportunamente, pelo Governo brasileiro. Assegurou, no entanto, que seriam restringidas as possibilidades de brasileiros se asilarem no Uruguai, posto que os entendimentos entre os dois países não foram satisfatórios ao Governo do Brasil.62
Ao final do encontro, o Chanceler Zorrilla de San Martin afirmou que, para se criar um ambiente propício ao entendimento entre os dois países e melhorar os resultados das negociações vindouras, seria do maior interesse que o Brasil se empenhasse na solução dos casos pendentes entre os dois Estados, tais como: 1) a construção da ponte sobre o rio Quaraim; 2) a dragagem da bacia da Lagoa Mirim; 3) a construção do aeroporto comum para atender às cidades fronteiriças de Rivera e Santana do Livramento; 4) a edificação do centro recreativo e esportivo entre as mencionadas cidades.63
Neste quadro de tensão permanente, a imprensa platina não só se posicionou claramente contra o golpe militar brasileiro, emprestando-lhe sempre feição desfavorável aos olhos da opinião pública, como também acusou duramente o Governo Castelo Branco de haver implantado, no Brasil, um clima insuportável de terror, violência e sangue.64
Considerações finais
Na contabilização dos ativos e passivos da Missão Especial ao Uruguai, prevaleceu o débito, ou seja, a não obtenção do confinamento do ex-Presidente Goulart no Departamento de Montevidéu, o que, em verdade, era o objetivo da Missão.
Por isso mesmo, o Ministro Souza Gomes supervalorizou o reconhecimento do novo Governo brasileiro, concedido após acalorados debates entre os membros do Conselho Nacional de Governo, com uma escassa margem de votos (cinco votos a três, sendo que, entre os cinco, dois foram dados com restrições), e sob o protesto de amplos setores da opinião pública uruguaia.
Foi ressaltado, também, como ponto positivo alcançado pela Missão Especial a possibilidade do prosseguimento das negociações entre os dois países.
Parece pertinente afirmar que o Governo uruguaio saiu vitorioso e fortalecido destas negociações pelo fato de haver resistido aos embates da diplomacia de alta pressão exercida pelo Brasil por intermédio da Missão Especial.
O Negociador brasileiro acreditava que os expoentes do "janguismo" Goulart e Brizola teriam sido informados, extra-oficialmente, pelo Governo do Uruguai da inconveniência de suas permanências naquele país. Teriam sido aconselhados a viajar "espontaneamente" para a Europa.
Neste caso, estaria sendo aliviada a pressão exercida pelo Governo brasileiro sobre o uruguaio por meio da denominada "operação vinculada", ou seja, os asilados territoriais, no Uruguai, se estivessem em processo de abandono do país ou confinados em local distante da fronteira, estariam contribuindo para a aceleração de concessão de salvo-condutos a asilados diplomáticos no Rio de Janeiro.
Foi considerada como vitória da diplomacia brasileira a viagem do ex-Presidente Goulart à França, em maio de 1964, posto que representava a provável desarticulação do movimento de reação desde o Cone Sul. À inversa, pode-se também admitir que a mencionada viagem tenha representado uma manobra do Governo uruguaio no sentido de promover a liberação dos salvo-condutos para os asilados diplomáticos do Rio de Janeiro.
O Emissário brasileiro, no exercício das atividades que desenvolveu na chefia da Missão Especial, sentiu não haver encontrado unânime boa vontade por parte das altas autoridades uruguaias. Por outro lado, percebeu que a reconstrução da imagem do Governo brasileiro no Uruguai não se faria senão com muito esforço da Embaixada em Montevidéu, quando renovada e melhor aparelhada.
Notas
Fontes
Relatório do Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário em Missão Especial junto ao Governo da República Oriental do Uruguai, Jayme de Souza Gomes, de 22 de maio de 1964, 3 volumes.
Vol. I: Histórico. Descrição circunstanciada da Missão Especial, que teve a duração de 13 a 30 de abril, com quarenta e três páginas, incluindo vinte seções específicas. Material classificado como secreto.
Vol. II: Documentação. Reúne cinqüenta e oito documentos oficiais, de caráter secreto, com a seguinte tipologia: telegramas recebidos e expedidos (material mais numeroso), cartas, instruções, ofícios, despachos, notas, textos legais, mapa do Uruguai etc.
Vol. III: Repercussão na Imprensa. Estão incluídos cento e noventa e três recortes de vinte e seis periódicos (doze brasileiros, oito uruguaios e seis argentinos), que refletem os desdobramentos da crise no Brasil e, principalmente, os embates da Missão Especial no Uruguai.
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Outubro de 2002
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Ago 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2002
Histórico
-
Aceito
Out 2002 -
Recebido
Out 2002