Acessibilidade / Reportar erro

Mães acadêmicas durante e após a pandemia de COVID-19

Os anos 2020 e 2021 foram marcados por uma pandemia sem precedentes que afetou profundamente a humanidade. A doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) gerou impactos globais massivos de ordem social na vida das mulheres11. Turquet L, Koissy-Kpein S. COVID-19 and gender: what do we know; what do we need to know? [Internet]. New York: UN Women; 2020 [citado em 3 jan 2021]. Disponível em: https://data.unwomen.org/features/covid-19-and-gender-what-do-we-know-what-do-we-need-know
https://data.unwomen.org/features/covid-...
. Mesmo quando não eram contaminadas pelo vírus, elas sofreram fortemente com os efeitos sociais causados por ele, principalmente porque, com a pandemia, elas passaram a compartilhar o lar e toda a dinâmica familiar com o ambiente de trabalho. Com o distanciamento físico e o fechamento de creches e escolas, além do trabalho remoto, muito provavelmente elas assumiram os papéis de cuidar do lar, da educação escolar dos filhos e de familiares doentes, situação ainda mais agravada pelo colapso dos sistemas de saúde. A presença de crianças no domicílio aumenta a quantidade de tempo que as mulheres dedicam ao trabalho de cuidado não remunerado22. Dugarova E. Unpaid care work in times of the COVID-19 crisis: Gendered impacts, emerging evidence and promising policy responses [Internet]. New York: UN Department of Economic and Social Affairs; 2020 [citado em 3 jan 2021]. Disponível em: https://www.un.org/development/desa/family/wp-content/uploads/sites/23/2020/09/Duragova.Paper_pdf
https://www.un.org/development/desa/fami...
. Para mães acadêmicas, a situação sanitária contemporânea pode afetar significativamente suas carreiras e sua produtividade acadêmica. A desigualdade de gênero, historicamente presente no meio acadêmico e que marca a carreira das mulheres, pode ser acentuada pela crise atual, gerando impactos de curto e longo prazos. Portanto, a questão central desta carta é tratar da situação das mães acadêmicas durante e após a pandemia da COVID-19 em termos de carreira e produtividade acadêmica. A maternidade por si só impacta na produtividade das cientistas33. Staniscuaski F, Kmetzsch L, Soletti RC, Reichert F, Zandonà E, Ludwig ZMC, et al. Gender, race and parenthood impact academic productivity during the COVID-19 pandemic: from survey to action. Front Psychol. 2021;12:663252. e, somada à pandemia, pode representar prejuízos aos frágeis avanços na igualdade de gênero adquiridos ao longo do tempo. As situações sociais desencadeadas pela pandemia têm se materializado nas mães acadêmicas, que lutam para conciliar o trabalho formal com as responsabilidades do trabalho de cuidado não remunerado, correndo o risco de vivenciarem sofrimento psíquico, culpa, exaustão e queda na produtividade. Em pesquisa realizada durante o isolamento social relacionado à pandemia da COVID-19, entre abril e maio de 2020, identificou-se que mulheres negras (com ou sem filhos) e brancas com filhos foram os grupos cuja produtividade acadêmica foi a mais afetada nesse período, enquanto a produtividade dos homens, especialmente os sem filhos, foi a menos afetada33. Staniscuaski F, Kmetzsch L, Soletti RC, Reichert F, Zandonà E, Ludwig ZMC, et al. Gender, race and parenthood impact academic productivity during the COVID-19 pandemic: from survey to action. Front Psychol. 2021;12:663252.. A maternidade é um fator importante que impacta a carreira das mulheres na academia e, nesse ambiente, as mães continuam lutando diariamente por um espaço. Cientistas afirmam que, quando analisado a partir de uma perspectiva de gênero, o trabalho remoto tem sido considerado uma forma de perpetuar a desigualdade de gênero, já que as mulheres historicamente arcam com o fardo do trabalho remunerado e das responsabilidades domésticas44. Sullivan C, Lewis S. Home-based telework, gender, and the synchronization of work and family: perspectives of teleworkers and their co-residents. Gend Work Organ. 2001;8(2):123-45.. As mães que trabalham à distância relatam sentimentos de ansiedade, solidão e depressão com mais frequência do que os pais que trabalham na mesma modalidade55. Lyttelton T, Zang E, Musick K. Gender differences in telecommuting and implications for inequality at home and work [Internet]. Rochester: SSRN; 2020 [citado em 3 jan 2021]. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3645561
https://ssrn.com/abstract=3645561...
. Além disso, o aumento do teletrabalho, em resposta à pandemia, pode acentuar as desigualdades de gênero no mundo formal do trabalho e na divisão doméstica do trabalho, principalmente com o fechamento de escolas e creches55. Lyttelton T, Zang E, Musick K. Gender differences in telecommuting and implications for inequality at home and work [Internet]. Rochester: SSRN; 2020 [citado em 3 jan 2021]. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3645561
https://ssrn.com/abstract=3645561...
. Os impactos da pandemia não afetam apenas o presente, já que o trabalho remoto provavelmente persistirá em alguma medida no futuro55. Lyttelton T, Zang E, Musick K. Gender differences in telecommuting and implications for inequality at home and work [Internet]. Rochester: SSRN; 2020 [citado em 3 jan 2021]. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3645561
https://ssrn.com/abstract=3645561...
. É fundamental que, diante da atual crise sanitária, esforços sejam feitos para promover a igualdade de gênero no mundo acadêmico e científico. Diante do cenário contemporâneo, surge a necessidade de se criar políticas que contemplem as mães acadêmicas. Esse é um horizonte importante a se olhar e percorrer para que as mulheres não fiquem para trás. No Brasil, a luta pela igualdade de gênero no mundo do trabalho é histórica e marcada pelos investimentos dos movimentos de mulheres e feministas. Recentemente no meio acadêmico, ocorreram alguns avanços, incluindo: a inclusão da licença-maternidade no Currículo Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em resposta às demandas de representantes/movimentos de mulheres, da comunidade científica e do Parent in Science (grupo formado por mães e pais cientistas que busca produzir e difundir conhecimentos sobre a questão da maternidade/paternidade e a carreira acadêmica/científica); e a consideração do período de licença maternidade e/ou adoção em editais de pesquisa e inovação de algumas instituições de ensino públicas. De fato, a necessidade de investir em ações que abordem questões de diversidade e gênero no trabalho no meio acadêmico já existe há muito tempo. Com a pandemia da COVID-19, essa demanda ganha novos traços devido ao acúmulo do trabalho de cuidado não remunerado e do trabalho formal, à sobrecarga física e mental de mães acadêmicas/cientistas e ao impacto em sua produtividade, bem como em sua saúde, merecendo atenção e medidas que podem ser implementadas durante e após a pandemia.

Referências

  • 1
    Turquet L, Koissy-Kpein S. COVID-19 and gender: what do we know; what do we need to know? [Internet]. New York: UN Women; 2020 [citado em 3 jan 2021]. Disponível em: https://data.unwomen.org/features/covid-19-and-gender-what-do-we-know-what-do-we-need-know
    » https://data.unwomen.org/features/covid-19-and-gender-what-do-we-know-what-do-we-need-know
  • 2
    Dugarova E. Unpaid care work in times of the COVID-19 crisis: Gendered impacts, emerging evidence and promising policy responses [Internet]. New York: UN Department of Economic and Social Affairs; 2020 [citado em 3 jan 2021]. Disponível em: https://www.un.org/development/desa/family/wp-content/uploads/sites/23/2020/09/Duragova.Paper_pdf
    » https://www.un.org/development/desa/family/wp-content/uploads/sites/23/2020/09/Duragova.Paper_pdf
  • 3
    Staniscuaski F, Kmetzsch L, Soletti RC, Reichert F, Zandonà E, Ludwig ZMC, et al. Gender, race and parenthood impact academic productivity during the COVID-19 pandemic: from survey to action. Front Psychol. 2021;12:663252.
  • 4
    Sullivan C, Lewis S. Home-based telework, gender, and the synchronization of work and family: perspectives of teleworkers and their co-residents. Gend Work Organ. 2001;8(2):123-45.
  • 5
    Lyttelton T, Zang E, Musick K. Gender differences in telecommuting and implications for inequality at home and work [Internet]. Rochester: SSRN; 2020 [citado em 3 jan 2021]. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3645561
    » https://ssrn.com/abstract=3645561

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2021
  • Revisado
    20 Out 2021
  • Aceito
    04 Nov 2021
Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho - FUNDACENTRO Rua Capote Valente, 710 , 05409 002 São Paulo/SP Brasil, Tel: (55 11) 3066-6076 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbso@fundacentro.gov.br