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Vigilância em Saúde do Trabalhador no Sistema Único de Saúde: teorias e práticas

RESENHA

Vigilância em Saúde do Trabalhador no Sistema Único de Saúde: teorias e práticas

Ricardo Luiz Lorenzi

Serviço de Epidemiologia e Estatística da Fundacentro São Paulo, SP, Brasil. E-mail: ricardo.lorenzi@fundacentro.gov.br

MOURA CORRÊA, Maria Juliana; PINHEIRO, Tarcísio M. Magalhães; MERLO, Álvaro R. Crespo (Org.). Belo Horizonte: Coopmed, 2013. 396p. ISBN: 978-85-7825-053-9

A tríade de organizadores de Vigilância em Saúde do Trabalhador no SUS: Teorias e Práticas se incumbe de trazer a público uma coletânea de textos de grande valor para os leitores que desejam se aprofundar sobre a origem, a práxis e a evolução da Saúde do Trabalhador no país nos últimos anos. Os temas abordados nos seus quinze capítulos transcendem os conteúdos mais corriqueiramente associados às ciências da saúde e refletem sua implicação nas políticas públicas de proteção aos direitos sociais, como a garantia de trabalho digno e saudável e a da própria saúde. Como seria de se esperar, a diversidade de atores sociais envolvidos com a saúde do trabalhador também repercute sobre o escopo da publicação, aumentando sua envergadura. Em coautoria com um qualificado grupo de pesquisadores e técnicos, Moura Corrêa, Pinheiro e Merlo traçam um panorama dos esforços de construção da área de Vigilância em Saúde do Trabalhador (Visat) no Brasil, missão que vem plasmando uma variada gama de contribuições nos seus múltiplos domínios conexos. Apresentam-se reflexões teóricas ao lado de experiências exitosas, que ilustram tanto a magnitude dos desafios enfrentados pelos sanitaristas brasileiros nas relações sempre complexas entre saúde e trabalho, quanto o vigor empreendido por esses artífices na promoção de práticas participativas de atenção à saúde do trabalhador.

Os textos contemplam diferentes abordagens que envolvem aspectos da gestão em saúde coletiva (valores, práticas, institucionalidade, contradições e conflitos), epidemiologia dos agravos à saúde do trabalhador, toxicologia ocupacional, ergonomia, segurança química e tecnológica de processos, passando por questões relativas à educação em saúde como via de empoderamento social (dentro e fora do SUS) e ao direito sanitário. O fio condutor é a construção coletiva do conhecimento para a promoção da saúde e a prevenção de acidentes, doenças relacionadas ao trabalho e agravos congêneres no Brasil. O propósito enunciado na apresentação é o de expor o potencial da área de Saúde do Trabalhador na vigilância em saúde (VS), na perspectiva de um modelo de vigilância integrado, além de apontar os caminhos avistados para seu fortalecimento.

Os três primeiros capítulos se revelam fulcrais para a compreensão da constituição da Visat no Brasil em suas origens, bem como de seus impasses e avanços. Ali se abordam, de modos particulares, i) a apreensão da categoria de processo de trabalho como explicativa das relações trabalho-saúde; ii) os conflitos intrínsecos ao seu objeto: atuação sobre os determinantes sociais do processo saúde-doença em meio a interesses antagônicos; iii) a ênfase atribuída ao saber operário no modelo de atenção em que se propugna a Visat.

O primeiro capítulo analisa e problematiza os conceitos de VS mais correntemente aceitos e propõe um olhar matricial e sintético sobre os elementos estruturantes da concepção de vigilância em saúde coletiva, tendo como axioma a informação sistematizada para ação. Machado busca situar o estatuto epistêmico do campo da Saúde do Trabalhador ao delimitar seu referencial teórico e ao definir sua ação em rede, plural e articuladora. Ao mesmo tempo em que expõe a dinâmica dos componentes epidemiológico e sociotécnico na sua matriz de vigilância, o autor critica o viés tecnicista ainda prevalente na VS.

O segundo faz uma análise da emergência das ações de Visat no país, contextualizando-a historicamente e identificando seus atores principais. Traz à tona os elementos conceituais e históricos advindos da Medicina Social Latino-Americana (MSLA) e do modelo operário italiano para refletir a respeito da trajetória desses atores em direção a uma política integral de atenção à saúde do trabalhador. Participante ativo da Reforma Sanitária e da criação do Diesat1 1 Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde dos Ambientes de Trabalho , Lacaz evita cindir a Saúde do Trabalhador em suas dimensões de assistência e de vigilância, opção que se revela sintonizada com o propósito de integralização das ações sanitárias, mote do SUS em sua concepção. Relata a origem das propostas programáticas de Saúde do Trabalhador e o protagonismo do movimento sindical na gênese dos Programas de Saúde do Trabalhador2 2 A respeito desse assunto, sugere-se a leitura de Gomez e Lacaz (2005) e de Maeno e Carmo (2005). , no final dos anos 1970, e destaca os principais marcos e avanços em termos de incorporação de práticas de participação sindical, de articulação intra e interinstitucional e de regulamentação, desde então. Em quatro períodos de análise, de 1978 aos dias atuais, aponta as ameaças contrarreformistas de viés neoliberal e os impasses da área: a insuficiência de recursos humanos qualificados e de financiamento adequado para as ações, a inacessibilidade a informações ágeis para tomada de decisões, a descontinuidade administrativa do setor público, entre outros.

O terceiro capítulo retoma a questão da complexidade teórico-conceitual da Visat trazendo um quadro das suas dimensões e sua influência na instalação de conflitos de poder. Para Pinheiro e colaboradores, é a própria natureza de lida (e lide) nos conflitos emanados da tensa relação capital-trabalho que modela ou "dá o tom" dessa prática no Brasil, de modo análogo ao de outros países. A influência da MSLA novamente se delineia quando se alude a Jaime Breilh, um crítico da "ciência dos fatores de risco à saúde". Caracterizado o objeto de ação de vigilância como algo vivo e interno à sociedade e nunca estático nem apartado dela – como a toma uma ciência funcionalista –, aborda-se de modo sequencial a vigilância dos conflitos e os conflitos da vigilância. Esse singular jeu de mots, antecipado no título, traduz uma aguçada percepção dos autores nessas questões, recuperando experiência anterior de Pinheiro (1996). Mais do que mero trocadilho, uma visão compreensiva do processo de constituição da Visat no SUS, intimamente relacionado à Reforma Sanitária brasileira. À vista disso, desvelam-se os desafios da área frente às modificações do mundo do trabalho e à coexistência de distintos perfis epidemiológicos de agravos ocupacionais, tomados não como dilemas setoriais, mas do SUS. E é na ótica sistêmica que se sinaliza o papel dessa vigilância: o de instrumento para a transformação dos determinantes de saúde no país e nunca como um fim em si mesmo.

Vasconcellos, Almeida e Guedes descortinam o cenário das propostas contra-hegemônicas na educação em saúde e das bases conceituais para uma pedagogia emancipadora para Saúde do Trabalhador. O texto expõe reflexões sobre aproximações possíveis entre o modelo operário italiano e a ideia freiriana de educação, a qual inspira práticas de educação em saúde no SUS. Aborda, ainda, a experiência acumulada em uma década e meia em que se formulou e aplicou uma metodologia de curso baseada nesses referenciais, para técnicos e trabalhadores, em vários estados brasileiros.

Os capítulos 5 e 6 trazem contribuições que se relacionam mais precisamente com o "segmento epidemiológico" da Visat. Santana e Ferrite analisam a vigilância epidemiológica tradicional, desenvolvida a partir do enfoque de controle das doenças infecciosas, para discuti-la à luz da saúde coletiva e lançar um olhar sobre as especificidades da informação necessária às práticas da saúde do trabalhador. Destacam a fragmentação e a parcialidade das informações existentes como alguns óbices a serem superados para a melhoria dos diagnósticos em Visat. Estas ainda limitam a utilização dos registros administrativos, das estatísticas vitais nacionais e dos dados de notificação compulsória de agravos de interesse. Em seguida, Moura Corrêa e Santana tratam da "inevitável" indagação sobre quem estaria exposto a uma dada e evitável condição nociva à saúde. Partindo do raciocínio epidemiológico que conduz à estimação da prevalência dos expostos, descrevem uma forma racional de definir parâmetros de vigilância a agentes carcinogênicos nos ambientes de trabalho, a matriz de exposição ocupacional (MEO). A estrutura e as aplicações possíveis dessa ferramenta são então "dissecadas", examinando-se vantagens, desvantagens e perspectivas de uso no Brasil, com menção ao benzeno como caso factível. O assunto é retomado adiante (RIBEIRO, cap. 7), quando abordadas estratégias de monitoramento de expostos no nível terciário de complexidade de ação na atenção à Saúde do Trabalhador. A autora relata sua experiência com a MEO da sílica para trazê-la em contexto de uma metodologia progressiva, assumida como estratégica e alternativa: a vigilância antecipatória de cenários. Remete à perspectiva da gestão em saúde coletiva ao resignificar o uso da epidemiologia, potencializada com a compreensão de território – locus de disputas – e de historicidade dos processos produtivos. Tal interação é vista como vetor de força emancipatória dos sujeitos de Visat, imersos em relações de poder, além de recurso estruturante da promoção da saúde no SUS.

Na parte 2 do livro – Experiências de Visat –, a vigilância da exposição a agentes carcinogênicos volta a ser abordada por Castro (Capítulo 9) e por Rêgo e Nobre (Capítulo 15), o primeiro tomando o caso específico do amianto e o segundo, uma experiência do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador (Bahia) com um grupo de atividades produtivas de risco.

O trabalho de Visat em comunidades total ou parcialmente desamparadas pela regulação estatal em Saúde e Segurança no Trabalho (SST) é relatado em três experiências. No Rio Grande do Sul, a da vigilância ao trabalho infantil e a da vigilância à intoxicação por pesticidas entre agricultores de fumo e seus familiares, por equipes dos Cerests Vales e Centro, respectivamente. A terceira delas, em Salvador, conduzida por Pena, Martins e Freitas, retrata a saúde de pescadores artesanais – homens, mulheres e crianças – em situação de grande vulnerabilidade. Três situações distintas, mas não antagônicas, da realidade dos trabalhadores inseridos no segmento formal da economia. Como a dos bancários reportada por Netz e Machado (Capítulo 12) ou dos trabalhadores da indústria naval fluminense (MACHADO, cap.10): a primeira examina a violência "naturalizada" das relações de trabalho formais e o sofrimento infligido aos que adoecem no trabalho sem que o aparelho estatal e partes da própria sociedade reconheçam seu direito à saúde; a segunda descreve os passos da construção da Visat no Estado do Rio, sob uma abordagem setorial.

A vigilância de acidentes de trabalho do Sivat vem relatada por Almeida e colaboradores, uma experiência de grande repercussão, na qual se associam, sob intervenções sanitárias, a análise das situações acidentogênicas e a análise ergonômica da atividade. Mais uma efetiva colaboração academia-serviços que resultou, entre outros produtos, em um modelo de análise e prevenção de acidentes de trabalho (MAPA) e em uma inovadora forma de educação permanente e discussão virtual em rede, o Fórum de Acidentes de Trabalho3 3 Fórum Acidentes de Trabalho: análise, prevenção e aspectos associados. Disponível em: < http://www.moodle.fmb.unesp.br/course/view.php?id=52>. . Este último vem se constituindo espaço privilegiado de reflexões sobre questões teóricas e desafios políticos colocados a trabalhadores, técnicos e gestores envolvidos.

Ressente-se apenas da ausência do capítulo no qual viria abordada a vigilância da perda auditiva relacionada ao trabalho, referido na apresentação do livro. A julgar pela atualidade e relevância da publicação, resta "torcer" para que o mesmo venha incorporado em uma próxima edição. De todo modo, se uma história não se restringe a um relato, quaisquer aspectos que lhe sejam de interesse são passíveis de novas elaborações e leituras. Conforme assinala Ribeiro (Capítulo 7), um campo de atuação de tal complexidade e dinamismo requer que se façam atualizações constantes e novas proposições criativas, abandonando-se "o conforto das certezas das causas" à medida que se envereda pelo imprevisto do real. Requisito que aduz ao campo uma heurística própria e despojada de academicismos estéreis, praxiológica, na acepção de Breilh (2006).

É com esse olhar, tão crítico sobre as políticas públicas quanto sobre a ciência "funcionalista", que a Visat renova seu compromisso com o SUS e com a sociedade brasileira para os próximos tempos. Se "viver é muito perigoso", a transformação da vida e do humano pelo viés do trabalho é a condição perene assumida por seus protagonistas.

Referências

BREILH, J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.

GOMEZ, C. M.; LACAZ, F. A. C. Saúde do trabalhador: novas – velhas questões. Ciência e Saúde Coletiva, v. 10, n. 4, p. 797-807, 2005.

MAENO, M.; CARMO, J. C. Saúde do Trabalhador no SUS: aprender com o passado, trabalhar o presente, construir o futuro. São Paulo: Hucitec, 2005.

PINHEIRO, T. M. M. Vigilância da saúde do trabalhador no Sistema Único de Saúde: a vigilância do conflito e o conflito da vigilância. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva)-Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas, Campinas, 1996. Disponível em:<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000133428>. Acesso em: 12 set. 2013.

  • BREILH, J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.
  • MAENO, M.; CARMO, J. C. Saúde do Trabalhador no SUS: aprender com o passado, trabalhar o presente, construir o futuro. São Paulo: Hucitec, 2005.
  • PINHEIRO, T. M. M. Vigilância da saúde do trabalhador no Sistema Único de Saúde: a vigilância do conflito e o conflito da vigilância. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva)-Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas, Campinas, 1996. Disponível em:<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000133428>. Acesso em: 12 set. 2013.
  • 1
    Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde dos Ambientes de Trabalho
  • 2
    A respeito desse assunto, sugere-se a leitura de Gomez e Lacaz (2005) e de Maeno e Carmo (2005).
  • 3
    Fórum Acidentes de Trabalho: análise, prevenção e aspectos associados. Disponível em: <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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