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As novas fronteiras da lesão renal aguda

EDITORIAL

As novas fronteiras da lesão renal aguda

Paulo Benigno Pena BatistaI,II,III; Rogério da Hora PassosI,II

IHospital São Rafael - Salvador (BA), Brasil

IIInstituto Nacional de Ciência, Inovação e Tecnologia em Saúde - CITECS - Salvador (BA), Brasil

IIIEscola Bahiana de Medicina e Saúde Pública - Salvador (BA), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Paulo Benigno Pena Batista Rua Sócrates Guanaes Gomes, 73, apto. 1.203 CEP: 40296-720 - Salvador (BA), Brasil E-mail: paulobenigno@gmail.com

A lesão renal aguda (LRA) é uma espécie de síndrome incógnita. Tem definições e conceitos mutáveis e não conta com a possibilidade de diagnóstico histológico de uso clínico, quer pela impraticabilidade da execução da biópsia renal em pacientes críticos, quer pela natureza focal e pela preferência pela camada externa da medula, já que compromete mais os glomérulos justamedulares, de acesso ainda mais difícil.(1)

Sua fisiopatologia é multifacetada e depende de muitos mecanismos que envolvem endotélio, gluicocálix, citoesqueleto, integrinas, linfocinas e quimoquinas, para citar apenas alguns, tendo componentes inflamatórios e participação de neutrófilos e de macrófagos/monócitos nos modelos experimentais mais estudados de isquemia e reperfusão em animais(1) e mesmo em estudos de rins humanos de doadores de órgãos que tiveram seu glicocálix analisado in vivo, recentemente.(2)

Os estudos experimentais elucidam um número importante de aspectos da LRA, mas têm, em comum, o fato de avaliarem um agente etiológico e poucos desfechos em cada estudo. Exatamente o oposto do que ocorre no paciente no qual mais de um fator conhecido, de ordem isquêmica ou tóxica, atuam sincrônica ou caoticamente e no qual existem múltiplas interações entre os órgãos.(3)

As fases da LRA descritas como pré-renal, iniciação, extensão, manutenção e recuperação, possivelmente, não se processam homogeneamente em todos os nefros, mas essa síndrome teve, ao longo do tempo, suas múltiplas definições (mais de 30 delas, como estimado em algumas revisões) baseadas no nível sérico de creatinina.(4) Recentemente, foram propostos novos métodos de classificação de LRA(5,6) que utilizam também os níveis séricos de creatinina, mas, agora, de forma dinâmica e padronizada.

Vários medicamentos foram tentados, com o objetivo de prevenir e tratar a LRA, e os resultados promissores em estudos animais não foram brilhantes quando utilizados em humanos. É possível que o problema tenha sido do diagnóstico e não do tratamento?

É relativamente recente a compreensão de que aumentos muito pequenos (0,3 mg/dL) de creatinina sérica têm impacto na mortalidade,(7) que o custo associados a esses aumentos é elevado(8) e que pacientes com LRA podem evoluir para insuficiência renal crônica estádio 5 e ficarem dependentes de diálise.(9) A implicação dos altíssimos custos envolvidos em tratar pacientes críticos com métodos dialíticos, entretanto, é conhecida há muito tempo e muito bem caracterizada e quantificada, sugerindo que, apesar da alta mortalidade e do alto custo, a qualidade de vida dos sobrevivente é bastante aceitável.(10)

A prevenção da LRA e a redução do número de pacientes com LRA que necessitam de diálise são de importância capital.

A análise da urina à procura de biomarcadores na LRA é antiga e, recentemente, um grande volume de conhecimento sobre biomarcadores tornou-se disponível. Alguns desses biomarcadores estão já disponíveis para uso na medicina crítica. Está clara a capacidade desses biomarcadores de predizer quais pacientes críticos de maior risco para adquirir LRA, quais os pacientes com LRA de maior risco para evoluir para necessidade de diálise, e quais os pacientes com maior risco de óbito.(11)

A monitorização de eletrólitos urinários sempre foi objeto de pesquisa em pacientes com LRA. Mais recentemente, a utilização da abordagem quantitativa da acidose trouxe uma nova perspectiva de pesquisa. O principal regulador da SID, sigla para o inglês strong ion difference (diferença de ânions fortes) é o rim. Uma análise mais ampla dessa fisiologia está fora do escopo deste texto, mas, de forma simplificada, o ânion mais importante na urina é o íon sulfato (SO4), que é derivado do metabolismo do ácido sulfúrico, e o cátion mais importante é o amônio (NH4+). Quando um íon forte, como o lactato, é associado ao plasma, o SID plasmático diminui. Uma forma de contrarregulação é o aumento da excreção de cloro urinário aumentado, levando à diminuição do SID urinário.(12) Para a preservação do sódio, a excreção do cloro se faz em conjunto com NH4+. Os pacientes com acidose metabólica grave sob cuidados intensivos, em sua maioria, têm algum grau de LRA; assim, a compensação renal da acidose não ocorre e, como consequência, observam-se a SID urinária positiva e a concentração plamática alta de cloro. Por outro lado, em pacientes com resposta renal adequada, observam-se SID urinária negativa e Δ[AG] - Δ[HCO(3)(-)]. Esses achados, comumente relacionados a diagnóstico de alcalose metabólica, podem ser interpretados como uma resposta renal à acidose metabólica.(13)

Em paciente com LRA, a análise da ureia e de eletrólitos urinários geralmente demonstra desregulação na excreção de água livre/natriurese e uma desregulação do transporte de ureia.(14) Em pacientes com LRA com acidose metabólica, há componente elevado de SID urinária (diferença de íons fortes na urina).(15) O estudo publicado nesta edição da RBTI(16) corrobora esse achado. A possibilidade de que acompanhamento diário de parâmetros simples, como nível de fósforo, ânions não mensuráveis e potássio urinário, com diminuição em sódio urinário e cloro urinário e SID urinária, persistentemente pode facilitar o diagnóstico precoce de LRA, mesmo antes de queda de débito urinário e creatinina, torna-se uma questão atrativa. Essa hipótese está sendo testada pelo mesmo grupo em um estudo prospectivo e já foi exemplificada em relato de caso.(17) É importante salientar que a desproporção entre a reabsorção de sódio e ânion é o fator crítico na determinação do pH urinário e na excreção de ácido. Vários ânions afetam o pH urinário bem como a excreção de ácidos, por meio de sua influência no gradiente elétrico estabelecido pelo transporte ativo de sódio nas células tubulares renais. De acordo com essa hipótese, a magnitude desse gradiente e determinado pelo relativo potencial de movimentação transepitelial dos ânions disponíveis, aqueles que tem transporte epitelial mais facilitado têm uma maior tendência de acompanhar o sódio e, desse modo, diminuir a diferença de potencial. Então, a mudança de pH urinário podem ser relacionada ao movimento passivo de hidrogênio em resposta à mudança de gradiente transtubular. Essa explicação não exclui a possibilidade do transporte ativo de hidrogênio no processo de acidificação.(18) A natureza química desses ânions, chamados não mensuráveis, é, em sua maior parte, desconhecida e sua minoria é composta por aminoácidos, acido úrico e ácido orgânicos.(19) Adicionando maior complexidade, esses ânions ainda podem ser bicarbonato urinário, como, por exemplo, na acidose tubular renal. Finalizando, mudanças na SID urinária, NH4+, pressão parcial de gás carbônico (PaCO2) ou fosfato (PO4) levam, de maneira independente e direta, a uma via final comum, que é uma mudança no pH urinário. Dessa forma, a observação seriada do pH urinário pode dar uma avaliação acurada da excreção ácida.(20)

Neste contexto, o estudo publicado neste número da Revista Brasileira de Terapia Intensiva(16) é pioneiro em demonstrar a associação de marcadores laboratoriais cujo custo não é alto com mortalidade e possivelmente com diagnóstico precoce de LRA.

Alarga, por isso mesmo, ainda mais a fronteira da LRA, desde a superação do conhecido e inadequado limite definido, na década de 1990, pela Sociedade Internacional de Nefrologia, no nível de 2mg/dL de creatinina sérica, que era necessário para o diagnóstico dessa condição.

Não existe função renal, mas um número de funções renais cujas características e importância são cada vez mais reconhecidos e que não se limitam à medição de creatinina e diurese.

Conflitos de interesse: Nenhum.

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  • 3. Scheel PJ, Liu M, Rabb H. Uremic lung: new insights into a forgotten condition. Kidney Int. 2008;74(7):849-51.
  • 4. Mehta RL, Chertow GM. Acute renal failure definitions and classification: time for change? J Am Soc Nephrol. 2003;14(8):2178-87.
  • 5. Bellomo R, Ronco C, Kellum JA, Mehta RL, Palevsky P; Acute Dialysis Quality Initiative workgroup. Acute renal failure - definition, outcome measures, animal models, fluid therapy and information technology needs: the Second International Consensus Conference of the Acute Dialysis Quality Initiative (ADQI) Group. Crit Care. 2004;8(4):R204-12.
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  • 19. Moviat M, Terpstra AM, Ruitenbeek W, Kluijtmans LA, Pickkers P, van der Hoeven JG. Contribution of various metabolites to the "unmeasured" anions in critically ill patients with metabolic acidosis. Crit Care Med. 2008;36(3):752-8.
  • 20. Constable PD, Gelfert CC, Fürll M, Staufenbiel R, Stämpfli HR. Application of strong ion difference theory to urine and the relationship between urine pH and net acid excretion in cattle. Am J Vet Res. 2009;70(7):915-25.
  • Autor correspondente:

    Paulo Benigno Pena Batista
    Rua Sócrates Guanaes Gomes, 73, apto. 1.203
    CEP: 40296-720 - Salvador (BA), Brasil
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    • Publicação nesta coleção
      05 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2012
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