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Por que é importante analisar fatores associados à indicação de transfusões de hemácias em prematuros?

EDITORIAL

Por que é importante analisar fatores associados à indicação de transfusões de hemácias em prematuros?

Amélia Miyashiro Nunes dos Santos; Ruth Guinsburg

Disciplina de Pediatria Neonatal, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Amélia Miyashiro Nunes dos Santos Rua Diogo de Faria, 764 - Vila Clementino CEP: 04037-002 - São Paulo (SP), Brasil E-mail: ameliamiyashiro@yahoo.com.br

Transfusões sanguíneas em prematuros vêm se transformando em um tema cada vez mais discutido e controverso. É interessante notar como um procedimento que, há alguns anos, era feito de forma rotineira, sem grandes discussões, quando o prematuro se encontrava anêmico ou havia sofrido uma grande perda de sangue, hoje é foco de discussões quanto à sua indicação, com preocupações conflitantes relativas aos malefícios decorrentes do excesso ou da falta de transfusões de concentrados de hemácias.

É preciso, antes de discutir riscos e benefícios das transfusões de hemácias, lembrar que a anemia é comum nos primeiros meses de vida em recém-nascidos prematuros devido, principalmente, à espoliação sanguínea associada à coleta de exames durante as primeiras semanas de vida, fase em que prematuros criticamente doentes necessitam de monitoração contínua para ajustes respiratórios, cardiovasculares, infecciosos, metabólicos e nutricionais, entre outros. Além disso, a baixa taxa de eritropoiese associada à deficiência da eritropoietina, característica da adaptação inicial desses pacientes à vida extrauterina, faz com que os neonatos pré-termo fiquem progressivamente mais anêmicos durante sua internação nas unidades de terapia intensiva neonatal, após a estabilização clínica inicial.(1)

Dessa forma, a necessidade de transfusões de hemácias é frequente nas unidades neonatais que cuidam de prematuros. Estudo da Rede Brasileira de Pesquisas Neonatais, que analisou 952 prematuros com peso entre 400 e 1.499 g nascidos em 8 unidades neonatais universitárias brasileiras entre 2006 e 2007, mostra que 532 (56%) receberam pelo menos uma transfusão de sangue e, destes, 335 (63%) mais de 1 transfusão durante a permanência hospitalar, sendo que a média do número de transfusões por recém-nascido variou de 1,6±1,0 a 5,9±5,2 entre os centros estudados.(2) Outra avaliação recente dos dados dessa mesma rede de pesquisas, que incluiu 4.238 prematuros com idade gestacional média de 29,9±2,9 semanas e peso de 1.084±275 g, nascidos em 16 unidades de 8 Estados brasileiros, de 2009 a 2011, indica que 2.208 (52%) receberam pelo menos 1 transfusão de hemácias, com variação entre os centros de 34 a 72%.(3)

Tal variação entre os centros pode ser atribuída, pelo menos em parte, a uma prática de indicações de transfusões de hemácias empírica, em vez de baseada em evidências, com protocolos que variaram de restritivos a liberais, se levarmos em conta algumas diretrizes existentes para a indicação de tais transfusões.(4-6)

Critérios restritivos de indicações de transfusões de hemocomponentes levam em conta as preocupações relacionadas ao procedimento. Tradicionalmente, tais preocupações se devem às infecções virais, bacterianas e priônicas relacionadas ao doador, cuja incidência vem se reduzindo progressivamente.(7) No entanto, tem crescido a preocupação no que se refere ao aumento da mortalidade em prematuros transfundidos,(8) relacionado, pelo menos em parte, aos efeitos imunomoduladores e pró-inflamatórios das transfusões e ao desenvolvimento de falência de múltiplos órgãos.(9)

Além disso, tem sido relatada, na literatura, a associação entre enterocolite necrosante e transfusões de hemácias.(10,11) Uma hipótese aventada para explicar possíveis mecanismos envolvidos nesse processo inclui a liberação de hemoglobina livre após transfusões de hemácias, que reduz a produção de óxido nítrico, um potente vasodilatador mesentérico.(12,13) É possível também que transfusões de hemácias levem à ativação de variantes de antígenos T ou de outros antígenos presentes na superfície das hemácias, com produção de anticorpos que podem provocar hemólise intravascular. Tais anticorpos também são encontrados no sangue de doadores e foram identificados com frequência em crianças com sepse e enterocolite necrosante, embora não se conheça exatamente seu papel fisiopatológico nessas doenças.(14,15) De qualquer forma, é importante salientar que essa associação foi descrita em estudos experimentais e há necessidade de estudos randomizados e controlados para conclusões mais robustas.

Por outro lado, critérios mais liberais de transfusão de hemácias levam em conta a possibilidade de efeitos em longo prazo, em especial no crescimento e no desenvolvimento, de níveis baixos de hemoglobina e, portanto, de menor oferta de oxigênio tecidual. Em um estudo que comparou desfechos em longo prazo de prematuros randomizados para manter níveis de hemoglobina altos ou baixos durante o período neonatal, a presença de atraso (escore <85) no índice mental, o que engloba o desenvolvimento cognitivo e de linguagem, avaliado pelas escalas Bayley II, com 18 a 21 meses de idade corrigida, foi mais frequente nas crianças que haviam sido transfundidas utilizando critérios mais restritivos.(16) Já as pesquisas em prazo mais prolongado, que usaram testes psicológicos ou imagens funcionais do cérebro aos 8 a 15 anos de idade, favoreceram as estratégias mais restritivas de indicações de transfusões de hemácias no período neonatal. Um desses estudos mostra que prematuros transfundidos com critérios liberais, comparados aos transfundidos com critérios restritivos, apresentaram pior desempenho nos testes de associação, de fluência verbal, memória visual e leitura.(17) Corroborando tais resultados, outro estudo mostrou menor tamanho de diversas áreas do cérebro, sobretudo, com redução de substância branca e núcleos subcorticais em prematuros transfundidos com critérios liberais, comparados aos transfundidos de forma restritiva.(18) Entretanto, a casuística desses estudos apresentou perda significante de casos no seguimento do período neonatal até a idade de entrada no estudo, comprometendo sua validade externa.(19)

É nesse contexto que Freitas e Franceschini trazem sua contribuição no presente fascículo da Revista Brasileira de Terapia Intensiva.(20) Os autores estudaram 254 prematuros nascidos em único centro em Minas Gerais e 100 (39%) deles precisaram de pelo menos 1 transfusão. Os fatores associados à indicação de transfusões, nesse grupo de prematuros, foram a idade gestacional inferior a 32 semanas e a presença de sepse neonatal. A esse trabalho, agregam-se os trabalhos já citados da Rede Brasileira de Pesquisas Neonatais. O primeiro deles, que analisou 952 prematuros com peso entre 400 e 1.499 g nascidos em 8 unidades neonatais universitárias brasileiras entre 2006 e 2007, indica que os fatores associados à indicação de transfusões, ajustados pelo centro de nascimento, foram: sepse tardia (OR=2,83; IC95%: 1,80-4,44); hemorragia intraventricular graus III/IV (OR=9,42; IC95%: 3,32-26,75); necessidade de intubação na reanimação em sala de parto (OR=1,69; IC95%: 1,02-2,83), uso de cateter umbilical (OR=2,39; IC95%: 1,30-4,40), dias de ventilação mecânica (OR=1,09; IC95%: 1,02-1,16), de oxigenoterapia (OR=1,05; IC95%: 1,03-1,07) e de nutrição parenteral (OR=1,06; IC95%: 1,03-1,10).(2) Já o segundo deles, com a avaliação dos dados de 4.238 prematuros nascidos em 16 unidades de 8 Estados brasileiros em 2009 a 2011, mostra que, ajustado por centro, os fatores associados às transfusões foram: idade gestacional (OR=1,55; IC95%: 1,14-21,11), presença de apneia (OR=1,82; IC95%: 1,42-2,34), hemorragia pulmonar (OR=2,18; IC95%: 1,39-3,43), dependência oxigênio por 28 dias (OR=1,46; IC95%: 1,09-1,96), sepse clínica (OR=3,37; IC95%: 2,63-4,33), enterocolite necrosante (OR=4,16; IC95%: 2,34-7,34), hemorragia intraventricular graus III/IV (OR=1,74; IC95%: 1,10-2,77), retinopatia da prematuridade (OR=1,36; IC95%: 1,00-1,86), ventilação mecânica (OR=2,62; IC95%: 1,98-3,47), cateterismo umbilical (OR=2,03; IC95%: 1,45-2,285), nutrição parenteral (OR=3,17; IC95%: 1,84-5,43), drogas vasoativas (OR=1,74; IC95%: 1,21-2,50), internação >60 dias (OR=4,90; IC95%: 3,67-6,54).(3) Ou seja, os estudos em conjunto, independentemente do uso de protocolos restritivos ou liberais de transfusões de hemácias, mostram que sua indicação se associa à gravidade da doença inicial, cujos marcadores são a prematuridade, a presença de morbidades típicas da prematuridade e o uso prolongado de suporte vital, representado por oxigênio, ventiladores, cateteres centrais e nutrição parenteral. Além disso, o diagnóstico de sepse tardia, que é um marcador da imaturidade imunológica e da suscetibilidade dos prematuros às deficiências de infraestrutura de recursos humanos e materiais nas unidades neonatais brasileiras, associa-se, de maneira inequívoca, à instabilidade clínica e à necessidade de suporte, necessidade esta que inclui as transfusões de hemocomponentes.

Assim, o uso de diretrizes baseadas em evidências para a transfusão de hemácias em prematuros é absolutamente necessário. O grande problema é que as evidências são controversas e não permitem uma única abordagem inequivocamente correta para a formulação de tais diretrizes. Enquanto os estudos buscam tais evidências, é fundamental entender os fatores associados às indicações das transfusões de glóbulos vermelhos nas unidades de terapia intensiva e tentar, ao abordar tais fatores, minimizar a espoliação de sangue nessa população suscetível e racionalizar as indicações de transfusões de hemácias.

Conflitos de interesse: Nenhum.

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  • Autor correspondente:

    Amélia Miyashiro Nunes dos Santos
    Rua Diogo de Faria, 764 - Vila Clementino
    CEP: 04037-002 - São Paulo (SP), Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2012
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