Acessibilidade / Reportar erro

Cirurgia segura: análise da adesão do protocolo por médicos e possível impacto na segurança do paciente

RESUMO

Objetivo:

identificar o conhecimento e a taxa de adesão ao Protocolo de Cirurgia Segura pelos cirurgiões, assim como a incidência de eventos adversos relacionados à operação, além do conhecimento dos pacientes sobre o protocolo.

Métodos:

estudo transversal, prospectivo com caráter quantitativo. Para a coleta de dados, foi elaborado, pelos autores, um instrumento que coletou o perfil sócio gráfico de sessenta e oito cirurgiões e residentes, o conhecimento e a adesão destes ao protocolo de cirurgia segura. Oitenta e dois pacientes foram entrevistados, e o ambiente de cirurgia avaliado. Os dados foram analisados de maneira descritiva e teste Razão das Chances com Índice de Confiança (IC) de 95%.

Resultados:

parte dos cirurgiões demonstraram que apesar do contato com o protocolo durante o período de formação, houve deficiência à adesão, ocasionando eventos adversos como o uso de equipamentos não calibrados ou presença de corpos estranhos nos equipamentos, como brocas e canetas. Além disso, foi constatado que em pacientes já anestesiados, as falhas foram percebidas e reparadas antes do começo do procedimento. No caso dos pacientes, estes demonstraram conhecimento quanto à cirurgia que iriam realizar, porém não sabiam a duração da mesma ou tinham sido introduzidos à equipe cirúrgica.

Conclusão:

houve falhas na dinâmica e na adesão de algumas etapas do protocolo, prejudicando a lateralidade no processo e a segurança do paciente.

Palavras chave:
Segurança do Paciente; Protocolos; Cirurgia Geral; Ortopedia; Cirurgia Plástica

ABSTRACT

Objectives

: to identify surgeons’ knowledge and compliance rate to the Safe Surgery Protocol, as well as to assess the incidence of surgery-related adverse events, including patients’ knowledge about the protocol.

Methods:

this is a cross-sectional and prospective study. An instrument was developed to collect the socio-graphic characteristics of sixty-eight surgeons and residents, their knowledge and adherence to the safe surgery protocol. Eighty-two patients were assessed regarding their awareness about the surgical procedure. The operating environment was also evaluated. Descriptive statistics and the odds ratio are presented.

Results:

the surgeons, despite their previous contact with the protocol throughout the graduation period, were poorly compliant with it. Adverse events such as the use of uncalibrated equipments or the presence of foreign bodies in several equipments such as drills and cautery pens were identified. In addition, some of the adverse events were identified and fixed, after patients had already been anesthesized, but before the beginning of the surgical procedure. Patients demonstrated knowledge about the operation they would undergo, but they did not know about its duration, and they were not introduced to the surgical team.

Conclusion:

there were failures in the dynamics and compliance regarding some phases of the protocol, which may impact the laterality errors and patient safety.

Keywords:
Patient Safety; Protocols; General Surgery; Orthopedics; Surgery; Plastic

INTRODUÇÃO

A preocupação com a segurança do paciente acontece há milhares de anos, desde Hipócrates (460 a 370 a.c.), quando esse apontou a máxima primum non nocere, compreendida como “primeiramente, não cause danos”. Apesar da autoria desse princípio latino ser questionada, muitos estudiosos se apoiam nele por considerarem que, desde a Antiguidade, aqueles que assistiam os doentes já tinham a percepção de que os cuidados de saúde não estavam isentos de falhas por parte dos profissionais11 Correia MITD, Tomasich FDS, Castro Filho HF, Portari Filho PE, Colleoni Neto R. Segurança e qualidade em cirurgia: a percepção de cirurgiões no Brasil. Rev Col Bras Cir. 2019:46(4):e2146..

Em contraste, o contexto atual é marcado por pressões relacionadas ao alto custo do cuidado em saúde associado à incorporação tecnológica, ao aumento da carga de trabalho dos profissionais de saúde e ao envelhecimento da população com múltiplas doenças crônicas. Desse contexto, emergem preocupações voltadas para a qualidade do cuidado e das organizações de saúde, com ênfase em ações direcionadas para a melhoria contínua e com a prestação de contas (accountability - responsabilização)22 Panesar SS, Shaerf DA, Mann BS, Malik AK. Patient safety in orthopaedics: state of the art. J Bone Joint Surg Br. 2012;94(12):1595-7..

Os resultados cirúrgicos melhoraram de forma significativa e os procedimentos cirúrgicos altamente complexos se tornaram rotineiros. Por outro lado, o avanço tecnológico tornou o ambiente cirúrgico mais inseguro33 Weiser TG, Regenbogen SE, Thompson KD, Haynes AB, Lipsitz SR, Berry WR, et al. An estimation of the global volume of surgery: a modelling strategy based on available data. Lancet. 2008;372(9633):139-44.. Nesse âmbito, aproximadamente 234 milhões de operações são feitas anualmente no mundo, cerca de sete milhões de pacientes apresentam complicações sérias e um milhão morrem durante ou logo após a operação. Mesmo os procedimentos mais simples envolvem dezenas de etapas críticas, com inúmeras oportunidades para falhas e grande potencial de erros que resultam em danos aos pacientes. Sendo assim, algumas medidas devem ser implementadas para reduzir o risco de eventos adversos relacionados ao procedimento cirúrgico, destacando-se a identificação correta do paciente e do local a ser opeado; a esterilização eficiente do material usado; a administração segura da anestesia; e a execução do ato cirúrgico com técnica rigorosa55 Segundo desafio global para a segurança do paciente: Cirurgias seguras salvam vidas (orientações para cirurgia segura da OMS) / Organização Mundial da Saúde. Rio de Janeiro: Organização Pan-Americana da Saúde; Ministério da Saúde; Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2009..

Assim, as complicações cirúrgicas respondem por grande proporção das mortes e lesões que podem ser evitadas em todo o mundo. Estima-se que eventos adversos afetem entre 3-16% de todos os pacientes hospitalizados e mais da metade de tais eventos são reconhecidamente preveníveis. Apesar da enorme melhoria no conhecimento sobre segurança cirúrgica, pelo menos metade dos eventos ocorre durante a assistência cirúrgica. Assumindo taxa de eventos adversos perioperatórios de 3% e taxa de mortalidade de 0,5% no mundo, quase 7 milhões de pacientes cirúrgicos sofreriam complicações significativas a cada ano, 1 milhão dos quais morreria durante ou imediatamente após a operação66 Anvisa. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Manual Cirurgias Seguras Salvam Vidas. Aliança Mundial para Segurança do Paciente.[publicação online]; 2008 [Acesso em: 26 set. 18]. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa/home%20
http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/a...
.

Em outubro de 2004, a OMS criou a Aliança Mundial para a Segurança do Paciente (World Alliance for Patient Safety), que, a partir de 2005, passou a definir temas prioritários a serem abordados a cada dois anos, conhecidos como Desafios Globais77 Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS, editors. To err is human: building a safer health system. Washington: National Academy Press; 2000.. Em 2007-2008, o segundo desafio global estabeleceu o foco na melhoria da segurança no ambiente cirúrgico (Cirurgia Segura), com o objetivo de aumentar os padrões de qualidade e segurança do cuidado cirúrgico, por meio de quatro ações importantes: prevenção de infecções do sítio cirúrgico; anestesia segura; equipes cirúrgicas seguras; e indicadores da assistência cirúrgica. Baseada nessas ações foi iniciada nos países membros da OMS a campanha conhecida como Cirurgias Seguras Salvam Vidas11 Correia MITD, Tomasich FDS, Castro Filho HF, Portari Filho PE, Colleoni Neto R. Segurança e qualidade em cirurgia: a percepção de cirurgiões no Brasil. Rev Col Bras Cir. 2019:46(4):e2146..

Há pelo menos quatro desafios subjacentes para melhorar a segurança cirúrgica. Primeiro, ainda não foi reconhecida como preocupação significativa em saúde pública. O segundo problema é a falta de acesso à assistência cirúrgica básica que continua sendo uma preocupação em cenários de baixa renda. Entretanto, a necessidade paralela de medidas que melhorem a segurança e confiabilidade das intervenções cirúrgicas não tem sido amplamente reconhecida. O terceiro problema subjacente para garantir a segurança cirúrgica é que as práticas de segurança existentes parecem não ser usadas de maneira confiável em nenhum país. Assim, a infecção do sítio cirúrgico, por exemplo, continua sendo uma das causas mais comuns de complicações cirúrgicas sérias. O quarto problema subjacente para melhorar a segurança cirúrgica é a complexidade. Mesmo os procedimentos mais simples envolvem dezenas de etapas críticas, cada uma com oportunidades para falhas e com potencial para causar danos aos pacientes66 Anvisa. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Manual Cirurgias Seguras Salvam Vidas. Aliança Mundial para Segurança do Paciente.[publicação online]; 2008 [Acesso em: 26 set. 18]. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa/home%20
http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/a...
.

Esses fatores constituem as dimensões da cultura de segurança do paciente que uma organização estabelece e solidifica ao longo dos anos. Mas há outro aspecto da cultura de segurança muito sólido na área da saúde: trata-se da crença de que o profissional da saúde é infalível e, com isso, os incidentes, com ou sem danos, ainda são dificilmente relatados pelos profissionais, pois sua competência será questionada.

Portanto, esta pesquisa tem por objetivo analisar a incidência de adesão e de conhecimento do Protocolo de Cirurgia Segura sugerido pela OMS pelos médicos cirurgiões de dois hospitais de cidade do noroeste paulista, justificando-se pela alta quantidade de eventos adversos nas operações que podem ou não levar à morte, mesmo após a introdução do Protocolo de Cirurgia Segura proposto pela ANVISA. Sendo assim, buscou-se identificar, caracterizar e compreender a não adesão ao protocolo, assim como a identificação dos eventos adversos relacionados e traçar medidas para mudar esse cenário. Além de identificar o conhecimento e a incidência de adesão ao Protocolo de Cirurgia Segura pelos docentes e residentes de cirurgia, assim como a incidência de eventos adversos relacionados à operação.

MÉTODOS

Trata-se de estudo transversal, prospectivo com caráter quantitativo. Os locais de estudo foram os centros cirúrgicos no Hospital Escola Emílio Carlos e no Hospital Padre Albino, ambos situados em Catanduva-SP. A população do estudo foi representada por oitenta e dois pacientes, não especificando os sexos e sessenta e oito médicos docentes e residentes que aceitaram participar da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A Coleta de dados ocorreu de março a agosto de 2019. Para tal, foi elaborado instrumento, pelos próprios autores, com base no Protocolo de Cirurgia Segura da OMS adaptado pelo Ministério da Saúde. O instrumento, com 26 questões, foi estruturado e dividido em três partes. A primeira parte foi representada pela identificação do perfil sociográfico da amostra (cirurgiões docentes e residentes), compostos por variáveis como idade, sexo, tempo de formação, local de formação e especialidade. A segunda parte foi composta por questões destinadas à identificação do conhecimento e adesão dos médicos (docentes ou residentes) cirurgiões ao protocolo de cirurgia segura. A terceira parte foi destinada à avaliação do paciente submetido ao procedimento cirúrgico por meio da observação direta in loco, assim como o interrogatório de medidas de segurança adotadas.

O instrumento foi validado, quanto à objetividade, clareza e especificidade por dois cirurgiões e dois enfermeiros especialistas em segurança do paciente e também por meio da aplicabilidade prática prévia do instrumento.

Foram incluídos no estudo procedimentos relacionados a qualquer especialidade cirúrgica, e excluídos aquelas em que o paciente apresentou nível de consciência rebaixado, sem condições de resposta às questões que compõe o instrumento. Foram também excluídos os integrantes que não consentiram a participação e não assinaram o TCLE.

Os resultados foram analisados por meio de estatística descritiva e Razão das Chances (RC) com Índice de Confiabilidade (IC) de 95%.

O projeto obedeceu às recomendações da Resolução N° 466/12 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisas que envolvem Seres Humanos. O projeto de pesquisa foi enviado para avaliação dos gestores das instituições participantes e encaminhado ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da instituição de ensino e foi autorizado, recebendo o parecer 3.238.088.

RESULTADOS

Trinta e cinco residentes e trinta e três docentes responderam o questionário. A média de idade foi de trinta e seis anos (Figura 1) e graduados na FAMECA (33,82%) e UNOESTE (8,82%) (Figura 2). Os médicos que responderam o questionário apresentavam o tempo médio de formação de onze anos (Figura 3). A maioria dos cirurgiões eram especializados ou residentes na área de Ortopedia e Traumatologia (26,47%), Cirurgia Geral (22,05%) e Cirurgia Plástica (16,17%) (Figura 4).

Figura 1
Idade dos cirurgiões.

Figura 2
Local de formação.

Figura 3
Tempo de formação.

Figura 4
Especialidade dos cirurgiões.

Dos entrevistados, 58,83% negaram a participação em algum treinamento para o uso do protocolo de cirurgia segura, porém, quando foram perguntados sobre o contato prévio com o protocolo durante a graduação, 51,47% confirmaram a existência do Protocolo de Cirurgia Segura na grade curricular da faculdade. Em relação a eventos adversos durante a operação, 70,58% dos entrevistados confirmaram ter encontrado problemas durante o procedimento devido a equipamentos não calibrados. Ao serem questionados sobre situações de imprevisto com o paciente já anestesiado, 26,47% dos entrevistados presenciaram a suspensão da operação de paciente após ter sido anestesiado devido à falta de equipamentos, 27,94% devido à falta de materiais, 19,11% em decorrência da falta de exames e 33,82% em virtude da falta de avaliação e controle de comorbidades no período pré-operatório. Quando perguntados sobre as condições do material cirúrgico, 44,11% testemunharam a não esterilização devida. Ao analisar o tempo médio de formação dos cirurgiões com o contato deles com o Protocolo de Cirurgia Segura, foi possível observar uma RC de 8,23 e um IC de 2,37 a 28,6.

Aplicando o questionário aos pacientes, a amostra foi constituída por 78 pacientes não especificando-se o sexo. Ao verificar se eles foram questionados sobre a presença de alergia, 88,46% afirmaram que essa pergunta já tinha sido feita no pré-operatório. Desses 78 pacientes, 93,58% sabiam qual procedimento cirúrgico iriam se submeter e 94,87% souberam dizer o local da operação. Já, quando questionados sobre a duração do ato operatório, 83,33% não souberam dizer quanto tempo duraria o procedimento, bem como 76,92% não sabiam dizer qual tipo de anestesia seria usada. Além disso, 70,51% disseram que a equipe que realizaria a operação não fez a apresentação prévia dos membros (médico, anestesista, enfermeiros). No pré-anestésico, notou-se que 71,79% dos pacientes não apresentavam marcação prévia do sítio cirúrgico, mas na preparação para o procedimento, imediatamente antes da operação, o sitio cirúrgico estava marcado em 70,51% deles.

Ao verificar o prontuário, 67,94% dos pacientes não haviam recebido antibioticoprofilaxia, pois não havia sido indicado pelo médico responsável pelo ato e 82,05% não apresentavam reserva de bolsa de sangue.

DISCUSSÃO

É possível afirmar que a maioria dos cirurgiões analisados graduou-se no interior do estado de São Paulo, correspondendo ao definido pela Demografia Médica no Brasil (2018), a qual afirma que 70% das vagas dos cursos de medicina do estado de São Paulo estão concentradas no interior88 Scheffer M, Cassenote A, Guilloux AGA, Biancarelli A, Miotto BA, Mainardi GM. Demografia Médica no Brasil 2018. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; Conselho Federal de Medicina; 2018. p. 286..

Os resultados evidenciaram que tempo de formação é indiretamente proporcional ao conhecimento sobre o Protocolo. Tal situação pode ser observada, pois o Ministério da Saúde, por meio da Portaria 529 de abril de 2013, lançou o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP), e um dos objetivos específicos é “fomentar a inclusão do tema Segurança do Paciente no ensino técnico e de graduação e pós-graduação na área da Saúde”99 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 529, de 1 de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) [Internet]. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 4 Abr 2013 [acesso 2019 Ago 26]. Disponível em: https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/portaria-529
https://www20.anvisa.gov.br/segurancadop...
. Embora o PNSP instigue a inclusão desse tema pelos cursos de Medicina, não está explicitada qualquer orientação e nem mesmo como dar encaminhamento a essa discussão. Todavia, o documento de referência para o PNSP, publicado em 2014, reforça a importância da inclusão do tema de segurança do paciente no ensino. Além disso, destaca a necessidade da criação de catálogo atualizado com diversos programas para auxiliar os gestores, profissionais e pacientes. Recomenda também que os estabelecimentos de saúde desenvolvam capacitações, atualizações e especializações, sejam presenciais, semipresenciais e à distância1010 Ministério da Saúde (BR). Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Documento de referência para o Programa Nacional de Segurança do Paciente [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014 [acesso 2019 Ago 26]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_referencia_programa_nacional_seguranca.pdf.

Apesar de grande parte dos cirurgiões ter contato com o protocolo durante a graduação, quando questionados se possuíam algum treinamento ou atualização sobre ele, nos hospitais, a maioria negou. Tal situação, mostra a necessidade de atividades que construam ambiente que dissemine a cultura da segurança do paciente, bem como a necessidade de atualizar e treinar os médicos sobre o uso do protocolo, reafirmando a PNSP e contribuindo para a concretização dos Desafios Globais (Cirurgia Segura Salva Vidas) da OMS, do Ministério da Saúde e da Anvisa11 Correia MITD, Tomasich FDS, Castro Filho HF, Portari Filho PE, Colleoni Neto R. Segurança e qualidade em cirurgia: a percepção de cirurgiões no Brasil. Rev Col Bras Cir. 2019:46(4):e2146.. Vale ressaltar ainda que o cumprimento do Guia Curricular de Segurança do Paciente da OMS garante e reforça, por parte dos médicos, a necessidade de marcação da lateralidade do processo. Nesse sentido, com a implantação correta das medidas impostas pelo protocolo, bem como a constante atualização nos hospitais e cursos de medicina, haverá a constante redução dos riscos inerentes ao procedimento cirúrgico, garantindo a segurança do paciente99 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 529, de 1 de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) [Internet]. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 4 Abr 2013 [acesso 2019 Ago 26]. Disponível em: https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/portaria-529
https://www20.anvisa.gov.br/segurancadop...
.

Nesse sentido, estudo americano feito em 2018 sobre segurança do paciente revelou que falhas humanas são causa de 55% dos eventos adversos decorrentes de procedimentos cirúrgicos. Os pesquisadores avaliaram 5.365 procedimentos cirúrgicos, realizados em três hospitais. Entre as especialidades cirúrgicas acompanhadas, estavam cirurgia geral, de trauma, oncológica, cardio-torácica, vascular e transplantes abdominais. Foram encontrados 188 eventos adversos, sendo que a maior parte (55%) aconteceu durante a operação, outros 27% ocorreram no período pós-operatório e 8% no pré-operatório. Em 4% dos eventos adversos, erros aconteceram em mais de uma etapa. Para realizar tal estudo, os pesquisadores tipificaram os erros em cinco categorias: Erros de planejamento e de solução de problemas (ao chegar a um diagnóstico ou recomendar um tratamento); Erros de execução (ao realizar um procedimento, fazer uma prescrição ou ler resultado de exames); Erros por violação de regras (decisão consciente de ignorar ou burlar práticas seguras); Erros de comunicação (por omissão, interpretação equivocada de uma informação ou presunção de conhecimento); Falhas no trabalho em equipe (problemas na atribuição de papéis, falta de liderança). Assim, os autores concluíram que a maior parte dos erros aconteceram na fase de execução (51%). As falhas no planejamento e solução de problemas (29%) ficaram em segundo lugar. Os problemas de comunicação em terceiro (12%). As falhas causadas por problemas no trabalho em equipe (5%) e por violação de regras (3%) foram as menos frequentes. Segundo um dos autores, Todd Rosengart, “Há muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo na sala de operação e muita pressão, o que gera várias oportunidades de se cometer um erro”1111 Suliburk JW, Buck QM, Pirko CJ, Massarweh NN, Barshes NR, Singh H, et al. Analysis of human performance deficiencies associated with surgical adverse events. JAMA Netw Open. 2019;2(7):e198067..

Em relação ao procedimento cirúrgico em si, os cirurgiões foram perguntados se houve algum problema durante a operação devido equipamentos não calibrados e/ou falta de matérias indispensáveis para o ato cirúrgico. Tal situação foi associada a deficiência na calibragem dos equipamentos, sendo os principais, o bisturi elétrico, o cauterizador, a cureta, o foco cirúrgico, o material de vídeo cirurgia e o ventilador mecânico. No tocante à falta de materiais, os principais problemas foram relacionados com o campo fenestrado, a pinça, o material artroscópico e o grampeador. Nesse sentido, apesar da falta de materiais e falha de equipamentos, houve a notificação destes antes do procedimento cirúrgico. Desse modo, ocorreram erros, mas não prejudicaram a segurança do paciente, apenas geraram custos extras aos hospitais.

Apesar da maioria dos entrevistados confirmarem a esterilização do material cirúrgico, uma porcentagem considerável mencionou episódios em que não se identificou a esterilização do material cirúrgico. Como exemplo, os mais citados foram ossos em brocas, caixa de materiais cirúrgicos úmidas e a presença de canetas dentro das caixas. Nesse contexto, apesar da não esterilização, tal evento adverso não comprometeu o procedimento cirúrgico, já que os cirurgiões relataram o equívoco, não prejudicando a segurança do paciente. Desse modo, novamente é necessário destacar a importância da padronização do Protocolo de Cirurgia Segura tanto nos hospitais como nas escolas médicas para melhorar sua adesão entre os cirurgiões e diminuir os riscos de eventos adversos1212 Purim KSM, Gonçalves CG, Binotto L, Groth AK, Aranha Júnior AA, Chibata M, et al. Checklist de segurança no ensino de cirurgia ambulatorial. Rev Col Bras Cir. 2019;46(3):e20192197..

Durante os períodos de pré e intraoperatório, o cirurgião pode enfrentar diversas adversidades, tais como: falta de exames, falta de avaliação e controle de comorbidades, falta ou falha de equipamentos e falta de materiais. Nesse contexto, os dados mostraram, ainda, que a maioria desses eventos adversos não aconteceu com o paciente já anestesiado.

Quanto aos pacientes, a maioria soube dizer qual procedimento iria ser submetido, contudo, houve a falha de comunicação quanto ao tempo da operação e ao tipo de anestesia. Além disso, a falha de comunicação fica mais evidente quando se questionou sobre a apresentação breve dos membros que iriam realizar a operação. Nesse sentido, tal informação é confirmada por pesquisadores americanos quanto a incidência de eventos adversos, no qual foi concluído que a falta de comunicação é o terceiro problema que mais agrava a segurança do paciente. Em primeiro lugar, encontra-se a execução do processo e em segundo o planejamento e a resolução de problemas1111 Suliburk JW, Buck QM, Pirko CJ, Massarweh NN, Barshes NR, Singh H, et al. Analysis of human performance deficiencies associated with surgical adverse events. JAMA Netw Open. 2019;2(7):e198067..

Ao verificar o sítio cirúrgico, a antibioticoprofilaxia e a reserva de bolsa de sangue foi observado não cumprimento de tais medidas. “A identificação do sítio cirúrgico deve ser realizada por médico membro da equipe cirúrgica antes do encaminhamento do paciente para o local de realização do procedimento cirúrgico. Sempre que possível, tal identificação deverá ser feita com o paciente acordado e consciente, que confirmará o local da intervenção [...] O condutor deve confirmar se o cirurgião fez a demarcação do local da cirurgia no corpo do paciente naqueles casos em que o procedimento cirúrgico envolve lateralidade, múltiplas estruturas ou múltiplos níveis”55 Segundo desafio global para a segurança do paciente: Cirurgias seguras salvam vidas (orientações para cirurgia segura da OMS) / Organização Mundial da Saúde. Rio de Janeiro: Organização Pan-Americana da Saúde; Ministério da Saúde; Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2009.. Já a antibioticoprofilaxia deve seguir protocolos, tais qual o do Hospital Sírio Libânes (2015) que indica as condutas a serem adotadas em todas as operações, separadas por local do corpo, com a finalidade de evitar infecção e garantir a segurança do paciente1313 Protocolo de antibioticoprofilaxia no paciente cirúrgico: atualização 2015. São Paulo: Hospital Sírio-Libanês; 2015.. Contudo, em certos casos, não foi necessária antibioticoprofilaxia. No caso da reserva de bolsa de sangue, apesar da não aplicação em alguns casos, vale mencionar que a reserva é feita para pacientes submetidos a procedimentos de grande porte e de alto risco, desse modo, a maioria no presente estudo foi de baixa complexidade, não necessitando da reserva prévia.

CONCLUSÃO

Observou-se, com a aplicação do questionário, que o checklist de Cirurgia Segura é colocado em prática. No entanto, existem falhas significativas em todas as etapas de aplicação. Quanto aos cirurgiões, foi observado que a média do tempo de graduação é indiretamente proporcional ao percentual de contato com o protocolo durante a formação acadêmica, o que demonstra a recente implementação do conceito de segurança do paciente nos cursos de Medicina. Nesse sentido, apesar de médicos recentemente formados terem tido contato com o protocolo durante a graduação, a maioria não recebeu treinamento para a utilização do checklist, demonstrando a necessidade de promoção de treinamentos que atualizem sobre o assunto, por parte dos hospitais. Em relação aos problemas enfrentados pelos cirurgiões, a minoria ocorreu quando o paciente já havia sido anestesiado, e a maioria estava relacionada com a falta de materiais ou equipamentos não calibrados, como os de vídeo cirurgia ou a não esterilização dos materiais cirúrgicos. Além das falhas cirúrgicas, a maioria dos pacientes não são informados quanto ao tipo de anestesia e a duração do procedimento cirúrgico, interferindo, assim, tanto na assistência prestada ao paciente quanto aos familiares. Isso é agravado pelo não conhecimento da equipe por parte dos pacientes. Ressalta-se a necessidade da demarcação prévia do sítio cirúrgico, garantindo a lateralidade, assim como a antibioticoprofilaxia e a reserva de sangue. Nesse sentido, com a adequação de tais equívocos e a implantação correta das medidas impostas pelo protocolo haverá a constante redução dos riscos inerentes ao procedimento cirúrgico, garantindo a segurança do paciente.

REFERENCES

  • 1
    Correia MITD, Tomasich FDS, Castro Filho HF, Portari Filho PE, Colleoni Neto R. Segurança e qualidade em cirurgia: a percepção de cirurgiões no Brasil. Rev Col Bras Cir. 2019:46(4):e2146.
  • 2
    Panesar SS, Shaerf DA, Mann BS, Malik AK. Patient safety in orthopaedics: state of the art. J Bone Joint Surg Br. 2012;94(12):1595-7.
  • 3
    Weiser TG, Regenbogen SE, Thompson KD, Haynes AB, Lipsitz SR, Berry WR, et al. An estimation of the global volume of surgery: a modelling strategy based on available data. Lancet. 2008;372(9633):139-44.
  • 4
    Panesar SS, Noble DJ, Mirza SB, Patel B, Mann B, Emerton M,et al. Can the surgical checklist reduce the risk of wrong site surgery in orthopaedics? -- Can the checklist help? Supporting evidence from analysis of a national patient incidente reporting system J Orthop Surg Res. 2011;6:18.
  • 5
    Segundo desafio global para a segurança do paciente: Cirurgias seguras salvam vidas (orientações para cirurgia segura da OMS) / Organização Mundial da Saúde. Rio de Janeiro: Organização Pan-Americana da Saúde; Ministério da Saúde; Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2009.
  • 6
    Anvisa. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Manual Cirurgias Seguras Salvam Vidas. Aliança Mundial para Segurança do Paciente.[publicação online]; 2008 [Acesso em: 26 set. 18]. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa/home%20
    » http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa/home%20
  • 7
    Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS, editors. To err is human: building a safer health system. Washington: National Academy Press; 2000.
  • 8
    Scheffer M, Cassenote A, Guilloux AGA, Biancarelli A, Miotto BA, Mainardi GM. Demografia Médica no Brasil 2018. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; Conselho Federal de Medicina; 2018. p. 286.
  • 9
    Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 529, de 1 de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) [Internet]. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 4 Abr 2013 [acesso 2019 Ago 26]. Disponível em: https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/portaria-529
    » https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/portaria-529
  • 10
    Ministério da Saúde (BR). Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Documento de referência para o Programa Nacional de Segurança do Paciente [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014 [acesso 2019 Ago 26]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_referencia_programa_nacional_seguranca.pdf
  • 11
    Suliburk JW, Buck QM, Pirko CJ, Massarweh NN, Barshes NR, Singh H, et al. Analysis of human performance deficiencies associated with surgical adverse events. JAMA Netw Open. 2019;2(7):e198067.
  • 12
    Purim KSM, Gonçalves CG, Binotto L, Groth AK, Aranha Júnior AA, Chibata M, et al. Checklist de segurança no ensino de cirurgia ambulatorial. Rev Col Bras Cir. 2019;46(3):e20192197.
  • 13
    Protocolo de antibioticoprofilaxia no paciente cirúrgico: atualização 2015. São Paulo: Hospital Sírio-Libanês; 2015.
  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2019
  • Aceito
    27 Dez 2019
Colégio Brasileiro de Cirurgiões Rua Visconde de Silva, 52 - 3º andar, 22271- 090 Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 2138-0659, Fax: (55 21) 2286-2595 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista@cbc.org.br