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Com quem você operaria um câncer do aparelho digestivo?

Who you operate your digestive cancer?

EDITORIAL

Com quem você operaria um câncer do aparelho digestivo?

Who you operate your digestive cancer?

TCBC-RJ, Alfredo Guarischi

A cada semana esta pergunta é feita por milhares de pessoas. Quando os médicos-(in)pacientes se fazem esta pergunta, a resposta tem alguns facilitadores ("Deus me livre de procurar Fulano...") ou complicadores ("E agora: Fulano ou Beltrano?").

E você, cirurgião, preferia ser operado por quem nunca operou um caso igual ao seu, ou por quem tivesse operado uma única vez? Fiz esta pergunta (pura obra de ficção) a alguns colegas e a maioria respondeu que optaria por ser operado por quem já tivesse alguma experiência. No meu caso eu preferiria ser operado por um neófito. Ter operado um caso não é ter experiência. Quem operou uma vez, talvez ache que progrediu na curva do aprendizado. Quem nunca operou vai ter mais dificuldade, mas terá que ser mais cauteloso. Na prática ter operado uma vez ou nunca ter operado faz grande diferença. É como no ditado americano: See once. Do once. Teach once. O que em português seria: Vi uma vez, Faço na próxima e na terceira oportunidade passo a Ensinar.

Pacientes raramente são informados sobre a experiência do seu futuro cirurgião. A "fama" do hospital e o aspecto físico do cirurgião ("jovem em geral tem pouco experiência" - o que nem sempre é verdadeiro) são os únicos elementos que o paciente dispõe.

Mesmo na medicina privada, a escolha vai depender do plano de saúde, do credenciamento do cirurgião, da escolha do hospital, etc. Para a maioria dos pacientes a decisão não é dele, é sim do sistema. A liberdade de escolha é mais complicada quando entramos na vida real do "povão": o Sistema Único de Saúde (SUS). Este excepcional sistema público, com todos os seus defeitos, é um sistema que atende a todos. O SUS é o grande financiador da medicina de alta complexidade e das doenças crônicas. Sem ele não haveria o programa brasileiro de transplante de órgãos - um dos maiores do mundo. A cirurgia cardíaca, a hemodiálise e o tratamento oncológico praticamente inexistiriam sem a presença deste paquiderme, lento e algumas vezes pouco delicado. Mas que certamente tem mais qualidades do que defeitos.

E quanto a pergunta inicial? Se fosse um tumor de rim, a maioria procuraria um urologista. Pulmão e cérebro são operados por cirurgiões torácicos e neuro-cirurgiões, isso ninguém tem dúvida. Mas se o tumor fosse do cólon-direto? Seria o proctologista? O cirurgião-geral? O cirurgiãooncológico (ou cancerologista cirúrgico)? Em determinados hospitais, a decisão é verticalizada, por existir um experiente cirurgião ou pela "força" de um determinado grupo.

Vamos imaginar que agora o paciente tem uma massa palpável e a Tomografia-computorizada mostra que o tumor invade a gordura peri-duodenopancreática. Dependendo das condições gerais e locais, a cirurgia proposta seria a colectomia direita, associada a duodeno-pancreatectomia. Talvez o proctologista, se concordasse com esta radicalidade cirúrgica, declinaria de operar o caso, por eventualmente não ter experiência com a cirurgia de Whipple (Allen Oldfather Whipple, 1881- 1963). Imaginemos então que a escolha ficasse entre um cirurgião-geral com mais de vinte anos de prática e um jovem-talentoso, no seu vigor dos trinta e poucos anos de idade e dez anos de formado, sendo três no programa de residência em cirurgia oncológica. Quem deveria operar? Numa ação entre amigos existiria parceria e a vida seguiria, mas quando nos defrontamos com o mundo real nem sempre as decisões são simples. Vaidade e interesse financeiro às vezes dificultam decisões.

Não há dúvida que a experiência faz uma enorme diferença, mas há necessidade de regulamentar a profissão e avaliar periodicamente o desempenho do profissional, diante das novas modalidades de tratamento e paradigmas. Esta iniciativa é uma ação de governo, mas cabe principalmente a comunidade científica (acadêmica ou não) apresentar os subsídios necessários.

As sociedades médicas evoluem. Existem situações em que nem a anatomia define a especialidade. De quem é o tumor da língua? Do cirurgião de Cabeça-Pescoço ou do Buco-maxilo-facial? A cirurgia do fígado é pleiteada por diversos grupos profissionais (Cirurgião-Geral, Cirurgião Hepato-bilio-pancreática, Cirurgião de Transplante e Cirurgião-oncológico).

Existe um grande "imbróglio" nesta questão, desde o puro interesse científico até a luta pelo prestígio pessoal, o interesse econômico e a busca da reserva de mercado. O "racha" que leva a criação de novas especialidades e sociedades muito das vezes é um ato desagregador. Muitas entidades, com a mesma finalidade, independente do número de seus associados, demonstram a falta de união. Muitos profissionais acabam participando da entidade velha e da nova, pois "...ninguém é bobo de ficar de fora". Com o passar do tempo existe uma debandada, pelos custos das anuidades ou pela frustração do não atendimento da perspectivas com a nova entidade ("... são todos iguais..." ou "... continuo sem espaço..."). Atualmente a maioria continua silenciosa, não participando de forma ativa de nenhuma entidade. Com o poder da classe diluído, a coletividade é sistematicamente derrotada. É necessário que haja uma confederação para representar a classe dos cirurgiões, com as questões programáticas discutidas e fechadas. Deve-se evitar que questões pessoais ou regionais prejudiquem a coletividade. Grupos que se empenham em se manter no poder, por habilidade ou arranjos políticos, são os maiores responsáveis pelas perdas futuras. A melhor fórmula de assegurar a união da classe é através de novas lideranças e o rodízio no poder, sem linha de sucessão pré-estabelecida.

O Brasil até pouco tempo era uma "Belíndia" (uma pequena Bélgica cercada por muitas Índias). Com o grande desenvolvimento da continental Índia, creio que o termo Belíndia não representa mais nosso desigual Brasil. Hoje parecemos um "Belaque" (uma pequena Bélgica cercado por vários Iraques). A favelização e as desigualdades sociais nas grandes cidades, fruto principalmente do êxodo rural, além de não atender as perspectivas dos que imigram, aumentam a desordem urbana. A falta de serviços médicos regionais de alta complexidade contribui para isto.

Mas voltando a questão inicial, afinal quem vai operar? Não reconhecer a capacitação de determinados cirurgiões-gerais de operar câncer é aumentar o êxodo de pacientes, alimentando as filas de espera nos grandes centros. Estes locais especializados deveriam ter seu foco principal na formação profissional, mas acabam tendo que priorizar a atividade assistencial. Pela distorção ocasionada por uma menor remuneração paga por procedimentos oncológicos, realizados por não cirurgiões-oncológicos, desestimula os cirurgiões em suas comunidades. Esta situação é agravada pela possibilidade, na atual conjuntura, em caso de insucesso (previsível), o cirurgião (não oncológico) ficará a sujeito a processo por imprudência por não possuir o título de especialista.

O cirurgião-geral pode e deve operar câncer, desde que adequadamente treinado e mantendo-se atualizado. Os cirurgiões-oncológicos devem demonstrar sua capacidade numérica para atender a crescente demanda, diminuindo assim o agravamento da doença nas imensas filas de espera. O resultado clinico, independente de quem e aonde o paciente é tratado, deve ser medido não apenas pelo número de linfonodos ressecados, mas por um menor número de complicações cirúrgicas, na melhoria da qualidade de vida e aumento da sobrevida. Os pacientes, neste cenário, poderão então decidir a quem procurar.

O Colégio Brasileiro de Cirurgiões, com sua presença nacional, deve articular uma maior união entre as diversas entidades médicas envolvidas, oferecendo sua experiência como fórum de discussão a respeito da cirurgia do câncer. As mudanças necessárias devem ser implantadas com a velocidade possível e com a segurança necessária. Os pacientes é que não podem mais esperar para saber quem vai operar adequadamente o seu câncer do aparelho digestivo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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