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Preditores de dificuldade em traqueostomia percutânea à beira do leito: estudo piloto

RESUMO

Introdução:

a traqueostomia percutânea é hoje um dos principais procedimentos realizados em unidade de terapia intensiva (UTI). Não há, contudo, indicadores bem definidos de dificuldade técnica na realização do procedimento.

Objetivos:

definir preditores de dificuldade para realização de traqueostomia percutânea.

Metodologia:

estudo de coorte prospectivo no qual foram incluídos 21 pacientes submetidos a traqueostomia percutânea à beira leito, na UTI, em um único centro.

Resultados:

distância EH menor que 7 cm está associada a aumento de 50% na chance de dificuldade técnica (OR 0,44 e p<0,03).

Conclusão:

a redução da distância EH está relacionada com aumento do risco de dificuldade em realizar a traqueostomia percutânea à beira do leito, em UTI.

Palavras chave:
Traqueostomia; Manuseio das Vias Aéreas; Unidades de Terapia Intensiva

ABSTRACT

Introduction:

percutaneous dilatational tracheostomy is currently one of the main procedures performed in an intensive care unit (ICU). However, there are no well-defined indicators of technical difficulty in performing the procedure.

Objectives:

to define predictors of difficulty in performing bedside percutaneous dilatational tracheostomy.

Methodology:

prospective cohort study encompassing 21 patients who underwent bedside percutaneous dilatational tracheostomy in the ICU at a single center.

Results:

Sternohyoid (SH) distance shorter than 7 cm is associated with a 50% increase in the risk of technical difficulty (OR 0.44 and p <0.03).

Conclusion:

the reduction in (SH) distance is related to an increased risk of difficulty in performing percutaneous dilatational tracheostomy in the ICU bed.

Keywords:
Tracheostomy; Airway Management; Intensive Care Units

INTRODUÇÃO

A traqueostomia percutânea é hoje um dos principais procedimentos realizados em unidade de terapia intensiva (UTI). A evolução tecnológica foi capaz de transformar a traqueostomia, antigamente temida e proibida11 Szmuk P, Ezri T, Evron S, Roth Y, Katz J. A brief history of tracheostomy and tracheal intubation, from the Bronze Age to the Space Age. Intensive Care Med. 2008;34(2):222-8., em um procedimento realizado com técnica percutânea fora do ambiente de centro cirúrgico. Apesar de se tratar de procedimento eletivo, com baixos índices de complicação22 Perfeito JAJ, Da Mata CAS, Forte V, Carnaghi M, Tamura N, Leão LEV. Traqueostomia na UTI: vale a pena realizá-la? J Bras Pneumol. 2007;33(6):687-90.,33 Johnson-Obaseki S, Veljkovic A, Javidnia H. Complication rates of open surgical versus percutaneous tracheostomy in critically ill patients. Laryngoscope. 2016;126(11):2459-67., a técnica envolve o manejo da via aérea de um paciente crítico, e falhas neste manejo podem ser fatais44 Nakai MY, Benedito M, Kavabata NK, Suehara AB, Bertelli AAT, Kikuchi W, et al. Percutaneous Tracheostomy: Pearls and Pitfalls, and How to Create a ``Hand-On'' Training Program Course. In: de Farias TP, editor. Tracheostomy: A Surgical Guide. Cham(SWI): Springer International Publishing; 2018. p. 93-117.. Não há, contudo, indicadores bem definidos de dificuldade técnica na realização de traqueostomia percutânea. Traçando um comparativo com o procedimento de intubação orotraqueal e principalmente com os preditores de dificuldade para a realização da intubação, chama a atenção a falta de parâmetros equivalentes para realização da traqueostomia percutânea.

Embora a ocorrência de complicações relacionadas à traqueostomia percutânea seja infrequente44 Nakai MY, Benedito M, Kavabata NK, Suehara AB, Bertelli AAT, Kikuchi W, et al. Percutaneous Tracheostomy: Pearls and Pitfalls, and How to Create a ``Hand-On'' Training Program Course. In: de Farias TP, editor. Tracheostomy: A Surgical Guide. Cham(SWI): Springer International Publishing; 2018. p. 93-117., eventos adversos significativos são descritos, principalmente relacionados a lesões em estruturas adjacentes à traqueia, como rede vascular, com consequente hemorragia ou falha na inserção da cânula traqueal55 Terra RM, Fernandez A, Bammann RH. Bedside tracheostomy: practical considerations. J Bras Pneumol. 2008;34(2):126., com prejuízo a ventilação do paciente. Vale lembrar também que, apesar de ser ambiente controlado, a unidade de terapia intensiva não é preparada rotineiramente para complicações críticas que podem ocorrer durante o procedimento cirúrgico55 Terra RM, Fernandez A, Bammann RH. Bedside tracheostomy: practical considerations. J Bras Pneumol. 2008;34(2):126.

6 Ikeda Y, Takami H, Niimi M, Kan S, Sasaki Y, Takayama J. Endoscopic thyroidectomy by the axillary approach. Surg Endosc. 2001;15(11):1362-4.
-77 Urban C de A, Dellê LAB, Sluminsky BG, Hahn CG, Takizawa N, Yuasa LD. Traqueostomia a beira de leito na uti: estudo prospectivo de 70 casos. Rev Col Bras Cir. 1999;26(2):103-7..

Existe na literatura atual grande relativização das contraindicações para a técnica de traqueostomia percutânea, e a prática clínica é direcionada à individualização dos casos. Sabe-se que vários fatores, principalmente anatômicos, podem causar dificuldades, como exemplo: cifose, escoliose, traqueomalácia, calcificação da traqueia, variações anatômicas, desvios das vias aéreas por vários motivos, obesidade, entre outros44 Nakai MY, Benedito M, Kavabata NK, Suehara AB, Bertelli AAT, Kikuchi W, et al. Percutaneous Tracheostomy: Pearls and Pitfalls, and How to Create a ``Hand-On'' Training Program Course. In: de Farias TP, editor. Tracheostomy: A Surgical Guide. Cham(SWI): Springer International Publishing; 2018. p. 93-117.,88 Araujo GA, Bertelli AAT, Urbano H de R, Nakai MY, Namur CS, Menezes MB, et al. Bedside conventional tracheostomy. Arch Head Neck Surg. 2018;47(1):e0873.. Com base nessa premissa, propõe-se análise dos fatores intrínsecos dos pacientes que podem causar dificuldades na realização da técnica de traqueostomia percutânea. Com preditores estabelecidos será possível evitar procedimentos catastróficos na UTI e redirecionar esses pacientes para a sala de cirurgia com aparelhagem estruturada para realizar o procedimento, geralmente utilizando-se a técnica cirúrgica aberta convencional.

OBJETIVOS

Definir preditores de dificuldade para realização de traqueostomia percutânea.

MÉTODOS

Estudo observacional de coorte prospectivo no qual foram incluídos 21 pacientes submetidos a traqueostomia percutânea à beira leito na UTI, em um único centro.

O procedimento foi realizado por um cirurgião de cabeça e pescoço formado e com experiência em traqueostomia percutânea. Em todos os casos a traqueostomia foi guiada por broncoscopia (realizada por broncoscopista ou outro cirurgião de cabeça e pescoço com treinamento em broncoscopia). Todos os procedimentos foram realizados no leito da UTI.

Foram coletados dados de idade, sexo, obesidade, tempo de intubação orotraqueal, tamanho da cânula orotraqueal, distância esterno-hioide (EH), distância esterno-cricóide (EC) e presença de traqueia calcificada, traqueomalácia, bócio tireoidiano e traqueia palpável (Tabela 1).

Tabela 1
Caracterização da casuística.

A presença de obesidade, bócio tireoidiano, traqueomalácia e traqueia calcificada foram determinados pela avaliação clínica do cirurgião de cabeça e pescoço.

As distâncias esterno-hioide (EH) e esterno-cricóide (EC) foram medidas com régua flexível, em linha reta, com o paciente em decúbito dorsal horizontal, em hiperextensão cervical (Figura 1) (Figura 2).

Figura 1
Medição das distâncias esterno-hióide e esterno-cricóide com régua flexível.

Figura 2
Posicionamento do paciente em hiperextensão antes da medição das distâncias esterno-hióide e esterno-cricóide.

Foi considerada como dificuldade a presença de pelo menos um dos itens: tempo prolongado; mais de uma punção traqueal; dificuldade de dilatação; e dificuldade do procedimento referida pelo cirurgião.

Dados de complicações relacionados ao procedimento foram coletados até o sétimo dia pós-operatório.

A coleta e gerenciamento dos dados clínicos foram realizados pelo REDCap.

Análise estatística

Os dados foram inseridos no programa Stata IC v16 for Mac.

Foi realizada análise univariada por regressão logística de todas as variáveis coletadas para verificar associação com o desfecho. As variáveis que apresentaram p<0,20 foram selecionadas para análise multivariada99 Rosner B. Fundamentals of Biostatistic. 7th ed. Boston (MA): Brooks/Cole; 2011..

A análise multivariada foi realizada por regressão logística e a escolha do melhor modelo foi feita pela técnica descrita por Hosmer e Lemeshow - Purposeful selection of covariates1010 Bursac Z, Gauss CH, Williams DK, Hosmer DW. Purposeful selection of variables in logistic regression. Source Code Biol Med. 2008;3(1):17..

Foram consideradas estatisticamente significante as associações com p<0,059.

RESULTADOS

Foram incluídos 21 pacientes, com média de idade de 60 anos, sendo 16 (76%) do sexo masculino e 5 (24%) do sexo feminino. O tempo médio de intubação orotraqueal foi de 14 dias (Tabela 1).

Durante o seguimento, somente dois pacientes apresentaram complicações nos primeiros sete dias, sendo os dois sangramentos pós-operatórios sem repercussão clínica e sem necessidade de reabordagem cirúrgica, resolvidos com curativo compressivo. Não houve registro de outras complicações.

Idade, sexo, tempo de intubação orotraqueal, obesidade, bócio tireoidiano, traqueomalácia e traqueia calcificada não apresentaram associação estatisticamente significante com a dificuldade do procedimento, pela análise univariada e multivariada.

A distância EH não teve associação estatisticamente significante pela análise univariada, entretanto pela análise multivariada foi preditora de redução na dificuldade, sendo que distância EH inferior a 7 cm aumentou a probabilidade de dificuldade em 50% (OR 0,44 e p<0,03) (Gráfico 1).

Gráfico 1
Probabilidade de dificuldade em realizar o procedimento em relação à distância esterno-hióide (OR=0,44 p=0,03).

DISCUSSÃO

Em nosso estudo a distância EH foi preditora de dificuldade para realização da traqueostomia percutânea. Distância EH menor que 7 cm está associada a aumento de 50% na chance de dificuldade técnica (OR 0,44 e p<0,03).

As demais variáveis não tiveram associação significante, entretanto devido à casuística reduzida não é possível excluí-las como preditoras. Acreditamos que a distância EC também seja preditora importante e, estamos ampliando o estudo com inclusão de mais pacientes e outros centros. Outra limitação foi a análise subjetiva de algumas variáveis baseada na avaliação do cirurgião (obesidade, bócio, traqueomalácia e traqueia calcificada). Apesar de serem subjetivas, tais variáveis foram determinadas por especialista em cirurgia de cabeça e pescoço e foram escolhidas para aumentar a factibilidade do estudo, uma vez que os pacientes eram clinicamente graves e idealmente não se deve acrescentar procedimentos diagnósticos.

A literatura atual sobre o tema é escassa. Não existem preditores de dificuldade em traqueostomia percutânea e as contraindicações para o procedimento variam entre os diversos autores33 Johnson-Obaseki S, Veljkovic A, Javidnia H. Complication rates of open surgical versus percutaneous tracheostomy in critically ill patients. Laryngoscope. 2016;126(11):2459-67.,88 Araujo GA, Bertelli AAT, Urbano H de R, Nakai MY, Namur CS, Menezes MB, et al. Bedside conventional tracheostomy. Arch Head Neck Surg. 2018;47(1):e0873.,1111 Brass P, Hellmich M, Ladra A, Ladra J, Wrzosek A. Percutaneous techniques versus surgical techniques for tracheostomy. Cochrane Database Syst Rev. 2016;7(7):CD008045.,1212 Klotz R, Klaiber U, Grummich K, Probst P, Diener MK, Büchler MW, et al. Percutaneous versus surgical strategy for tracheostomy: protocol for a systematic review and meta-analysis of perioperative and postoperative complications. Syst Rev. 2015;4(1):105.. A traqueostomia é procedimento rotineiro em unidades de terapia intensiva e a realização vem aumentando ao longo das últimas décadas em paralelo com o aumento do uso da ventilação mecânica e a maior sobrevida de pacientes críticos22 Perfeito JAJ, Da Mata CAS, Forte V, Carnaghi M, Tamura N, Leão LEV. Traqueostomia na UTI: vale a pena realizá-la? J Bras Pneumol. 2007;33(6):687-90.,1111 Brass P, Hellmich M, Ladra A, Ladra J, Wrzosek A. Percutaneous techniques versus surgical techniques for tracheostomy. Cochrane Database Syst Rev. 2016;7(7):CD008045.,1313 Yang A, Gray ML, McKee S, Kidwai SM, Doucette J, Sobotka S, et al. Percutaneous versus surgical tracheostomy: timing, outcomes, and charges. Laryngoscope. 2018;128(12):2844-51..

Apesar do baixo índice de complicações associados ao método1111 Brass P, Hellmich M, Ladra A, Ladra J, Wrzosek A. Percutaneous techniques versus surgical techniques for tracheostomy. Cochrane Database Syst Rev. 2016;7(7):CD008045., intercorrências durante a realização da traqueostomia podem causar o óbito do paciente. As complicações mais frequentemente associadas ao procedimento são hemorragias e falha na inserção da cânula de traqueostomia88 Araujo GA, Bertelli AAT, Urbano H de R, Nakai MY, Namur CS, Menezes MB, et al. Bedside conventional tracheostomy. Arch Head Neck Surg. 2018;47(1):e0873..

Encontrar preditores para realização de traqueostomia percutânea é essencial para minimizar riscos fatais. Pacientes com distância EH inferior a 7 cm têm risco aumentado para dificuldade e, portanto, a equipe responsável deve considerar o preparo para eventual necessidade de conversão cirúrgica aberta. Além disso, todas as traqueostomias realizadas nesse estudo foram guiadas por broncoscopia, e por isso, consideramos que é adequado utilizar um método para guiar o procedimento (ultrassonografia ou broncoscopia), especialmente para os pacientes com distância EH reduzida.

CONCLUSÃO

A redução da distância EH está relacionado com aumento do risco de dificuldade em realizar a traqueostomia percutânea à beira do leito de UTI.

REFERENCES

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  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2020
  • Aceito
    01 Abr 2020
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