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Formação contábil à prova de futuro: um educar para a complexidade, ambiguidade e incerteza

1. INTRODUÇÃO

A doença por coronavírus 2019 (COVID-19) tem causado a maior interrupção da era pós-guerras (McCalman, 2020McCalman, J. (2020). It’s possible. In E. Dawson & J. McCalman (Eds). What happens next? (pp. 15-22). Melbourne University Press. ; Snowden, 2020Snowden, F. M. (2020). Epidemics and society: From the black death to the present, Yale University Press. ). Ela vem mudando a maneira como as populações humanas vivem e trabalham no mundo inteiro, o que representa uma significativa incerteza. A pandemia pressiona nossas economias, nossos sistemas de saúde e nossa mobilidade global (Giordano, 2020Giordano, P. (2020). How contagion works: Science, awareness and community in times of global crises. Weidenfeld & Nicolson.). Ela está transformando a maneira como interagimos uns com os outros, nossos sistemas de governança local e global e o modo como consumimos e precificamos os recursos. A pandemia global demonstra como nossos sistemas sociais e ecológicos são integrados e questiona o papel que desempenhamos ao gerenciá-los. Em suma, o último ano e meio exige que adotemos uma perspectiva sistêmica do mundo, com modelos redesenhados de accountability e governança que nos permitam enfrentar os diversos desafios ecológicos, sociológicos e econômicos das próximas décadas.

No entanto, tal pressão é realmente nova? Parece que ela vem se acumulando há algum tempo. Fatores externos, como mudança climática, sustentabilidade, segurança alimentar, futuro do trabalho, inovação tecnológica, instabilidade política, migração de refugiados e consumo excessivo de recursos, todos eles, representam fatores sistêmicos de natureza econômica, ecológica e sociológica que pressionam os atuais modelos de negócios, inclusive a profissão contábil e seus modelos de accountability e governança. Tais fatores sistêmicos levaram ao desenvolvimento de abordagens do sistema de accountability, como os Objetivos Globais para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ODS da ONU), os indicadores de medidas não financeiras da Iniciativa de Relatórios Globais (IRG), o Protocolo de Capital Natural, o Protocolo de Capital Social e Humano e os Relatórios Integrados que, em conjunto, exigem o equilíbrio e a integração dos múltiplos recursos ecológicos, sociais e econômicos.

Esses sistemas integrados de governança e accountability voltados para o futuro buscam desenvolver abordagens à prova do futuro para definir, mensurar, explicar e mediar o valor. Isso, por sua vez, vem forçando a profissão contábil a perguntar: O que significa valor e mensuração no presente e no futuro? Como podemos explicar as “economias criativas”? Qual é o papel da contabilidade nas novas tecnologias? Qual mundo os futuros contadores explicarão​​? Como os contadores adotam novas formas de comportamento humano e contribuem com as novas maneiras de organizar e governar?

Todos nós somos forçados a repensar nossos modelos anteriores socialmente construídos, inclusive a contabilidade, e a buscar novas soluções para a organização, mensuração e avaliação humana que explicam as realidades que enfrentamos no momento: crises, incertezas e paradoxos. Isso requer uma maneira mais integrada de lidar com os negócios.

Uma abordagem integrada significa que os recursos organizacionais são vistos holisticamente como um sistema, onde um impacto sobre um recurso afetará outro, com tais interconexões demandando um gerenciamento adequado. Haverá prioridades conflitantes entre os diferentes recursos, acordos a firmar, e eles terão de ser cuidadosamente pensados ​​e planejados de modo a resultar em um equilíbrio bem-sucedido.

Nesse ambiente global em mudança, os profissionais de negócios do futuro precisarão se sentir confortáveis ​​diante dos crescentes graus de complexidade. A formação contábil precisará avançar no sentido de formar para a complexidade, ambiguidade e incerteza. O desenvolvimento do pensamento integrativo exigirá que os graduados em contabilidade se sintam confortáveis ​​com a complexidade, sejam capazes de adaptar-se a novas situações e mostrem a agilidade necessária para enfrentar problemas com abertura a perspectivas novas, até então inimagináveis ​​(Miller, 1981Miller, A. (1981). Integrative thinking as a goal of environmental education. The Journal of Environmental Education, 12(4), 3-8. ). Em outras palavras, a formação contábil precisa abrir-se drasticamente.

2. RUMO A UMA AMPLIAÇÃO DA FORMAÇÃO CONTÁBIL

Geralmente, a formação contábil é ministrada em vários níveis nas universidades, na graduação e pós-graduação, e para variados grupos de alunos. Os alunos com formação em contabilidade tendem a concluir um curso de 3 ou 4 anos que inclui diferentes aspectos da contabilidade e disciplinas de apoio. A natureza dos cursos de graduação em contabilidade tende a enfatizar os aspectos técnicos da contabilidade. Uma ampliação da formação contábil envolve menos o enfoque técnico e mais a ênfase em uma compreensão conceitual da contabilidade (Braun, 2004Braun, N. M. (2004). Critical thinking in the business curriculum. Journal of Education for Business, 79(4), 232-236.).

A ampliação da formação contábil trouxe dois focos, a saber, “habilidades profissionais” e “valores, ética e atitudes profissionais”, que visam a elevar a formação contábil ao status de profissão erudita. O International Accounting Education Standards Board (IAESB, 2015International Accounting Education Standards Board. (2015). International education standards framework. International Federation of Accountants. , p. 28) descreve as habilidades profissionais como algo que consiste em “habilidades intelectuais, interpessoais e comunicativas, pessoais e organizacionais”. Valores profissionais, ética e atitudes complementam essas habilidades por meio

do comportamento profissional e das características que identificam os contadores como representantes de uma profissão. Elas incluem os princípios de conduta (ou seja, os princípios éticos) geralmente associados com e considerados essenciais na definição das características distintivas do comportamento profissional. (IAESB, 2015International Accounting Education Standards Board. (2015). International education standards framework. International Federation of Accountants. , p. 28)

Enfatizar o ceticismo profissional, o desenvolvimento de uma mente questionadora e uma consciência e aplicação de contextos sociais e políticos se mostram componentes importantes da formação de um contador. Além disso, o IAESB (2015International Accounting Education Standards Board. (2015). International education standards framework. International Federation of Accountants. , p. 72), em suas Normas Internacionais de Formação, anunciou a inclusão formal da prática reflexiva na concepção das atividades de aprendizagem e desenvolvimento dos contadores:

A atividade reflexiva é o processo iterativo pelo qual os profissionais contábeis, em todas as fases da sua carreira, continuam a desenvolver sua competência profissional mediante a revisão de suas experiências (reais ou simuladas) com vistas a aprimorar suas futuras ações.

Assim, há um claro reconhecimento da crescente mudança da ênfase em habilidades e competências técnicas para maior consciência das capacidades de autodesenvolvimento dos alunos. Quando os contadores, os escriturários e caixas bancários e os auditores continuam a liderar a lista do Fórum Econômico Mundial dos “principais cargos com redução de demanda em todos os setores”, não se mostra surpreendente que a profissão contábil venha questionando a relevância e a capacitação de sua força de trabalho e recrutando de acordo com isso (World Economic Forum, 2020World Economic Forum (2020). The Future of Jobs Report 2020. http://www3.weforum.org/docs/WEF_Future_of_Jobs_2020.pdf
http://www3.weforum.org/docs/WEF_Future_...
). Em 2015, a Ernst & Young (do Reino Unido) anunciou que diminuiria o rigor de sua avaliação de diplomas universitários como critério de admissão, em uma tentativa de ampliar sua área de recrutamento (Sherriff, 2015Sherriff, L. (2015). Ernst & Young removes degree classification from entry criteria as there’s ‘no evidence’ university equals success. The Huffington Post. http://www.huffingtonpost.co.uk/2015/08/04/ernst-and-young-removes-degree-classification-entry-criteria_n_7932590.html
http://www.huffingtonpost.co.uk/2015/08/...
). Tal mudança no desenvolvimento de habilidades se mostra particularmente importante ao considerarmos o grau da ruptura digital que afeta nossa profissão (Susskind, 2020Susskind, D. (2020). A world without work. Allen Lane. ; Susskind & Susskind, 2015Susskind, R., & Susskind, D. (2015). The future of the professions: How technology will transform the work of human experts. Oxford University Press.). Novos caminhos e oportunidades serão criados, nos quais o futuro contador assume, por exemplo, o papel de um “curador digital” de informações empresariais, proporcionando relevância contextual e orientação através do labirinto dos ambientes de negócios cada vez mais focados em “dados”.

As profissões do futuro exigirão que os graduados transcendam as fronteiras disciplinares tradicionais, apresentem altos graus de resiliência, agilidade, criatividade, inteligência social e sejam capazes de pensar de maneiras novas, integradas e adaptativas (Goos et al., 2019Goos, M., Arntz, M., Zierahn, U., Gregory, T., Gomez, S. C., Vazquez, I. G., & Jonkers, K. (2019).The impact of technological innovation on the future of work(no. 2019/03) [Working Paper]. JRC Working Papers Series on Labour, Education and Technology. https://www.econstor.eu/bitstream/10419/202320/1/jrc-wplet201903.pdf
https://www.econstor.eu/bitstream/10419/...
). Na verdade, o Future of Jobs Report 2020 define as dez principais habilidades para 2025 como pensamento analítico e inovação; aprendizagem ativa e estratégias de aprendizagem; solução de problemas complexos; pensamento crítico e análise; criatividade, originalidade e iniciativa; liderança e influência social; monitoramento e controle do uso da tecnologia; projeto e programação de tecnologia; resiliência, tolerância ao estresse e flexibilidade; e raciocínio, solução de problemas e ideação (World Economic Forum, 2020World Economic Forum (2020). The Future of Jobs Report 2020. http://www3.weforum.org/docs/WEF_Future_of_Jobs_2020.pdf
http://www3.weforum.org/docs/WEF_Future_...
).

Ao longo do tempo, diversos relatórios de órgãos profissionais de contabilidade, junto com uma série de diretrizes de credenciamento profissional, reconhecem a necessidade de mudança rumo a uma formação contábil mais ampla [ver, por exemplo, Roy e MacNeill (1967Roy, R., & MacNeill, J. H. (1967). Horizons for a profession: The common body of knowledge for certified public accountants. American Institute of Certified Public Accountants.), American Accounting Association (AAA, 1986American Accounting Association. (1986). Committee on the future structure content, and scope of accounting education (The Bedford Committee). Future accounting education: Preparing for the expanding profession. Issues in Accounting Education, 1(1), 168-195.), Accounting Education Change Commission (AECC, 1990Accounting Education Change Commission. (1990). Objectives of education for accountants: Position statement no. 1. Issues in Accounting Education, 5(2), 307-312.), Behn (2012Behn, B. K., Ezzell, W. F., Murphy, L. A., Rayburn, J. D., Stith, M. T. & Strawser, J. R. (2012). The Pathways Commission on Accounting Higher Education: Charting a national strategy for the next generation of accountants. Issues in Accounting Education, 27(3), 595-600. ) e O’Connell et al. (2015O’Connell, B., Carnegie, G., Carter, A., de Lange, P., Hancock, P., Helliar, C., & Watty, K. (2015). Shaping the future of accounting in business education in Australia. CPA Australia.)]. No entanto, tais relatórios, diretrizes e normas não reconhecem que a mudança de uma ênfase técnica para as capacidades de desenvolvimento pessoal e profissional requer uma visão totalmente diferente de formação.

Essa mudança na formação contábil depende da implementação de técnicas inovadoras de ensino que deixam de lado as tarefas processuais e a memorização de padrões financeiros para dar espaço a uma forma mais reflexiva de aprendizagem que se mostre útil no desenvolvimento das capacidades dos alunos. As habilidades e competências que se concentram no autodesenvolvimento, na autorreflexão, na criatividade e mentalidade de projeto, na consciência crítica e adaptabilidade, na avaliação transdisciplinar e na capacidade de pensar de maneiras integradas surgem quando os alunos ativam e criam seu próprio desenvolvimento de aprendizagem. Para melhor equipar os graduados para as profissões do futuro, faz-se necessário um currículo de contabilidade centrado no aluno, que ofereça oportunidades para que os alunos moldem, descubram e explorem de modo ativos suas próprias identidades e carreiras profissionais.

3. ATIVANDO A FORMAÇÃO CONTÁBIL POR MEIO DA PEDAGOGIA DE DESENVOLVIMENTO CONSTRUTIVISTA

A aprendizagem construtivista está epistemologicamente situada em uma visão de mundo com múltiplas interpretações e construções de conhecimento. Portanto, a aprendizagem é tanto contextual quanto relacional, trata-se de uma construção de sentido, que é pessoal e único para cada indivíduo. Como afirma Biggs (2003Biggs, J. (2003). Teaching for quality learning at university (2nd ed.). Open University Press., p. 13):

Aprender é, assim, uma maneira de interagir com o mundo. À medida que aprendemos, mudam nossas concepções dos fenômenos e vemos o mundo de modo diferente. A obtenção de informações em si não garante essa mudança, ela depende da forma como estruturamos tais informações e pensamos recorrendo a elas.

O desenvolvimento de habilidades e competências, como as indicadas acima, com foco no autodesenvolvimento exige que os graduados em contabilidade apresentem uma elevada consciência de si mesmos enquanto profissionais e comprometam-se com a aprendizagem, o autodesenvolvimento e a renovação em caráter contínuo. Portanto, “os alunos devem ter a oportunidade de desenvolver suas próprias posições pessoais e coletivas diante de questões contábeis e de descobrir possibilidades de ativação dessas posições por meio da práxis” (Boyce et al., 2012Boyce, G., Greer, S., Blair, B., & Davids, C. (2012). Expanding the horizons of accounting education: Incorporating social and critical perspectives. Accounting Education: An International Journal, 21(1), 47-74., p. 66). Para avançar em direção a esse novo paradigma de aprendizagem, a formação contábil precisa mudar de foco, afastando-se daquilo que os professores ensinam e voltando-se cada vez mais ao modo como os alunos aprendem (Harwood & Cohen, 1999Harwood, E. M., & Cohen, J. R. (1999). Classroom assessment: Educational and research opportunities. Issues in Accounting Education, 14(4), 691-724.).

A pedagogia construtivista-desenvolvimentista de Baxter Magolda (1992Baxter Magolda, M. (1992). Knowing and reasoning in college: Gender related patterns in students’ intellectual development. Jossey-Bass Publishers., 1999Baxter Magolda, M. (1999). Creating contexts for learning and self-authorship: Constructive-developmental pedagogy. Vanderbilt University Press.) proporciona uma estrutura pedagógica que viabiliza essa mudança por meio de uma exploração conjunta da aprendizagem. Ela descobriu, mediante estudos longitudinais, que uma mudança na aprendizagem de um indivíduo envolve crenças sobre si e sua relação com os outros. Ela defende que esse processo envolve o desenvolvimento simultâneo de três aspectos distintos, a saber: cognitivo - como um indivíduo concebe o conhecimento; interpessoal - como um indivíduo se vê diante dos outros; e intrapessoal - como alguém percebe seu próprio senso de identidade. Isso requer a disposição do aprendiz para questionar figuras de autoridade a fim de desenvolver seu próprio ponto de vista e alcançar a afirmação necessária para expressar sua própria voz.

Baxter Magolda (1992Baxter Magolda, M. (1992). Knowing and reasoning in college: Gender related patterns in students’ intellectual development. Jossey-Bass Publishers.) defende que os alunos reconheçam a “orientação” de seu estudo, encontrando maneiras de apropriar-se dele. A partir desse corpo de trabalho, ela destilou uma estrutura pedagógica, uma pedagogia construtivista-desenvolvimentista que se concentra em três princípios educacionais fundamentais para projetar as experiências de aprendizagem: validar os alunos como conhecedores; situar a aprendizagem na experiência dos alunos; e valorizar a aprendizagem como construção mútua de sentido entre alunos e educador.

3.1 Validar os Alunos como Conhecedores

Este primeiro princípio exige que os educadores em contabilidade validem seus alunos como conhecedores, reconhecendo que os aprendizes têm conhecimentos e experiências anteriores que constituem o ponto de partida fisicamente necessário para qualquer aprendizagem posterior. Portanto, os alunos de contabilidade devem ser capazes de expressar seus pontos de vista, trazendo-os ativamente para a sala de aula, refletindo sobre eles e discutindo-os com seus colegas. O educador tem o papel de facilitar a discussão entre os alunos, ouvir atentamente seus alunos e ajudá-los a expressar suas próprias opiniões.

Isso oferece a oportunidade para que os educadores em contabilidade abram os currículos da contabilidade, visualizando distintas maneiras de envolver os alunos e aprender mais sobre o que os aprendizes trazem com eles para a sala de aula, suas compreensões anteriores e variadas experiências. Isso pode variar de simples atividades de brainstorming sobre diferentes conceitos contábeis, passando pela elaboração de uma colagem visual daquilo que a contabilidade significa para eles, até chegar ao pedido que os alunos tirem fotos do que acreditam ser profissional. Dessa maneira, o ensino também se torna uma via para aumentar a capacidade do aluno se conectar e relacionar aquilo que encontra na educação formal em contabilidade com o que ele já sabe.

3.2 Situar a Aprendizagem na Experiência dos Alunos

Em segundo lugar, a aprendizagem precisa estar situada nas experiências vividas pelos alunos. Faz-se necessária uma compreensão mais profunda de como os alunos se relacionam e contextualizam a contabilidade. Isso significa que os educadores em contabilidade precisam ser curiosos diante do mundo no qual os estudantes de contabilidade vivem, mostrando-se dispostos a ouvir e refletir acerca de questões, como “Que tipo de mundo os jovens habitam?”, “Qual é a natureza de suas crenças?” e “O que é considerado valioso e importante em sua orientação diante do mundo social?”. Então, os educadores em contabilidade precisam envolver-se com o mundo da vida dos alunos, fazendo uso das próprias experiências, vidas e entendimentos dos alunos no momento como forma de contextualizar a aprendizagem.

3.3 A Aprendizagem como Construção Mútua de Sentido entre Alunos e Educador

Por fim, a aprendizagem é vista como uma construção mútua de sentido entre alunos e educador. Portanto, aprender se torna uma jornada de autodescoberta conjunta entre aprendizes e educadores, mediante uma apreciação compartilhada de experiências e evidências. Este último princípio altera o papel do educador em contabilidade, tornando-se um guia, ajudando o aluno a dar sentido às suas experiências de aprendizagem e conectar esse novo entendimento aos modos de pensar anteriores. Dessa maneira, o educador em contabilidade se mostra um aprendiz ativo tanto quanto os alunos, e eles podem aprender igualmente uns com os outros.

3.4 A Pedagogia Construtivista-Desenvolvimentista em Ação

Um exemplo que ilustra o uso da pedagogia construtivista-desenvolvimentista de Baxter Magolda pode ser identificado na persistência dos estereótipos contábeis que, se não abordados, podem fazer com que os alunos enfatizem detalhes técnicos, objetividade e racionalismo em vez de encarar a contabilidade como um sistema que demanda julgamento, interpretação e análise crítica. Isso pode ser resolvido encenando as experiências do aluno em contextos diversificados do self, da sociedade/natureza e da organização/profissão contábil. Para que os alunos desenvolvam sua compreensão da contabilidade como sistema, eles podem precisar iniciar explorando um sistema com o qual possam se relacionar, validando o conhecimento que trazem consigo e situando a aprendizagem no contexto do aprendiz. Isso é demonstrado pelas três etapas expostas abaixo, como foram implementadas em um curso de contabilidade da sustentabilidade na universidade em que o autor leciona.

Em primeiro lugar, os alunos são apresentados ao modelo Ikigai (que significa senso de propósito) e solicita-se que seja usado como ferramenta analítica para refletir acerca da contabilidade como carreira. O Ikigai apresenta uma estrutura de sistemas pessoais e uma ferramenta reflexiva que pede aos alunos que explorem as quatro áreas sobrepostas profissão, vocação, missão e paixão. Os alunos consideram o que podem ser pagos para fazer, em que são bons, o que o mundo precisa e o que gostam de fazer. Trabalhar dentro dessa estrutura permite que os alunos reflitam sobre um tema com o qual são familiarizados - eles próprios -, avaliando o desenvolvimento de seus atributos de graduação, obtendo uma avaliação mais profunda de si em toda a sua complexidade e suas contradições, que são elementos comumente observados em sistemas complexos.

Em segundo lugar, uma mudança de contexto é oferecida quando estudantes e educadores em contabilidade se envolvem em uma autodescoberta conjunta enquanto exploram juntos um ecossistema natural, visitando um jardim de permacultura local. Nessa ocasião, o corpo docente de desenvolvimento sustentável os apresenta à ética da permacultura e aos princípios do design. A permacultura, sigla de “agricultura permanente” (do inglês permanent agriculturepermaculture), foi desenvolvida por Bill Mollison e David Holmgren na Austrália, durante a década de 1970. A permacultura é um sistema de design humano que engloba 3 princípios éticos e 12 princípios de design que podem ser usados para projetar modos de vida autossustentáveis. Ver, por exemplo, Mollison (1988Mollison, B. (1988). Permaculture: A designer’s manual. Tagari Publishers Limited.).

Juntos, os alunos e educadores exploram um ecossistema natural através das lentes da permacultura, comparando isso com o sistema de design humano da contabilidade e seu contexto de negócios. O ambiente natural possibilita que os alunos compreendam a natureza complexa e interconectada dos sistemas. Uma aplicação dos princípios de design da permacultura oferece aos alunos exemplos de quando os julgamentos, os acordos e as decisões devem ocorrer no interior de um sistema. Por sua vez, essas experiências de aprendizagem permitem que os alunos retomem o seminário com uma avaliação renovada para discutir as implicações disso na contabilidade enquanto sistema.

Por fim, solicita-se que os alunos escolham uma empresa negociada na bolsa para analisar criticamente seus relatórios de sustentabilidade e mapear seu desempenho de acordo com os ODS da ONU. Os alunos associam os ODS da ONU às informações organizacionais, identificam as medidas de desempenho e discutem as variadas formas de garantia, inclusive o julgamento profissional, a interpretação e a análise crítica que se mostrem necessários.

4. DESCONSTRUINDO E “REIMAGINANDO” A FORMAÇÃO CONTÁBIL DE MODO LÚDICO

Um desafio que a pedagogia construtivista-desenvolvimentista apresenta aos educadores em contabilidade é a necessidade de começar a desconstruir sua prática e reimaginar de modo lúdico aquilo que é possível para o ensino em contabilidade. Formar os indivíduos para a complexidade, ambiguidade e incerteza requer modalidades mais criativas e exploratórias de formação, nas quais os alunos descobrem a contabilidade por conta própria, veem-se expostos a contextos mais integrados de aprendizagem, envolvem-se em experiências de aprendizagem baseadas em pesquisas transdisciplinares e têm oportunidades de aumentar as competências relativas ao seu próprio autodesenvolvimento.

A pedagogia construtivista-desenvolvimentista convida os educadores em contabilidade a trabalhar de maneira criativa para projetar experiências de aprendizagem individualizadas que se conectem às experiências de vida dos próprios alunos, incentivando a autoconsciência da aprendizagem e a reflexão crítica. Tudo isso deve ser alcançado em um ambiente de Ensino Superior de massa que vem sendo construído com vistas a um ensino padronizado. Decerto, conseguir isso não será uma tarefa fácil e envolverá distintos desafios, mas talvez uma boa parte do caminho a seguir consista em perceber que é improvável a existência de uma abordagem padronizada ou de um único método para se atingir isso.

Desconstruir a prática e reimaginar o que é possível na formação contábil pode ser algo mais bem alcançado quando os educadores em contabilidade apresentam abertura a novas práticas e maneiras de educar, mantêm a curiosidade de aprender com suas próprias experiências e aquelas de outras disciplinas e têm a coragem de experimentar e assumir riscos com sua prática docente. Portanto, será importante para os educadores em contabilidade se envolverem em um processo de desaprendizagem reflexiva. O desaprender como ferramenta pedagógica é usado com frequência nas áreas de dependência de substâncias e reabilitação, onde se observa grande necessidade de desaprender processos e hábitos nocivos. No entanto, há potencial para uma aplicação mais ampla, na qual a desaprendizagem pode ser aplicada à capacidade de abrir-se a novas possibilidades, novas maneiras de entendimento e reflexão crítica sobre as próprias práticas de ensino e aprendizagem. Desaprender engloba a capacidade de desconstruir criticamente as visões e percepções mais tradicionais da contabilidade, contextualizando-as nos ambientes de negócios atuais e futuros para originar novos significados e entendimentos. Trata-se de um primeiro passo importante para abrir a contabilidade enquanto disciplina a um alinhamento ainda maior às novas maneiras de pensar e operar, necessárias para o futuro dos negócios e das profissões contábeis.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa em formação contábil tem mostrado que os educadores em contabilidade apresentam variadas crenças epistemológicas e, portanto, é comum haver variação nas concepções sobre o que está envolvido na aprendizagem e no ensino em formação contábil (Leveson, 2004Leveson, L. (2004). Encouraging better learning through better teaching: A study of approaches to teaching in accounting, Accounting Education: An International Journal, 13(4), 529-548.; Lucas, 2002Lucas, U. (2002). Contradictions and uncertainties: Lecturers’ conceptions of teaching introductory accounting. British Accounting Review, 34(3), 183-203.). Se ou quando ocorre discussão sobre crenças epistemológicas e/ou modalidades de ensino em contabilidade, isso é algo que predomina entre pares no âmbito educacional. No entanto, no contexto de uma pedagogia construtivista-desenvolvimentista, pode ser do interesse dos educadores e alunos em contabilidade que tais discussões se desenvolvam dentro das “salas de aula”, em conjunto e colaborativamente com os alunos. Pois pode ser que os alunos se encontrem em melhor posição para ajudar os educadores em contabilidade a se envolverem em um processo de desaprendizagem reflexiva.

Proceder dessa maneira põe em xeque as hierarquias associadas a uma troca de conhecimento convencional. A aprendizagem institucional costuma preservar uma hierarquia comumente aceita sobre quem ensina e quem aprende; no entanto, em ambientes de complexidade, ambiguidade e incerteza, tais papéis se mostram fluidos, adaptáveis ​​e sujeitos a mudança em diferentes contextos. Aprender e ensinar, em consequência, não são mais vistos como processos estáticos, e continua sendo importante considerar como os espaços podem tornar-se mais versáteis e adaptáveis de modo a atender às variadas necessidades. Para tanto, pode ser útil questionar de modo lúdico nossas próprias visões de educação e as normas sob as quais passamos a trabalhar.

  • O que constitui o conhecimento?

  • Como desaprendemos?

  • Qual é o papel do entendimento na formação contábil?

  • Como a brincadeira influencia a pedagogia?

  • Como o espaço transforma nossas maneiras de ensinar e aprender?

  • Qual é o papel dos educadores em contabilidade no sentido de conectar os alunos às suas experiências vividas?

Educar para aumentar a complexidade, ambiguidade e incerteza demanda que os educadores em contabilidade (re)pensem a aprendizagem e considerem outras maneiras de construir o conhecimento. Ao facilitar a curadoria de materiais e recursos de aprendizagem voltada ao aluno, os educadores em contabilidade convidarão os alunos a navegar suas próprias concepções e visões de contabilidade. Os alunos se tornam mais responsáveis por selecionar, organizar e alimentar sua própria aprendizagem. A prática reflexiva mediada, por exemplo, por brincadeira, diálogo democrático, aprendizagem informal, aprendizagem coletiva, contranarrativa, discurso crítico, experiência transdisciplinar e criatividade oferece aos alunos em contabilidade certa oportunidade de revelar suas crenças e ideias relativas à contabilidade, discuti-los criticamente entre si e formar novos entendimentos conceituais que irão prepará-los melhor para navegar a complexidade, ambiguidade e incerteza de seu próprio futuro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    6 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021
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