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Discriminação estrutural e tensões no Ministério Público de São Paulo: uma etnografia da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social

STRUCTURAL DISCRIMINATION AND TENSIONS AT THE MINISTÉRIO PÚBLICO OF SÃO PAULO: AN ETHNOGRAPHY OF THE PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA INCLUSÃO SOCIAL

Resumo

O artigo discute a atuação da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social do Ministério Público de São Paulo no combate à discriminação. Por meio de um estudo etnográfico, analisa o modo como a Promotoria se posiciona em relação a quatro tensões que instituições jurídicas enfrentam na luta antidiscriminatória: entre solucionar conflitos pontuais ou buscar transformações de caráter estrutural (pontual/estrutural); entre utilizar instrumentos de repressão ou realizar medidas de prevenção de violações de direito (repressão/prevenção); entre definir estruturas internas para os cidadãos, entendidos de forma abstrata, ou direcionar práticas institucionais para grupos específicos de maior vulnerabilidade social (universal/específico); e entre uma visão tecnicista e neutra do profissional do Direito ou uma percepção do profissional como indutor de mudanças sociais a partir do diálogo com a sociedade civil (técnico/político). Foi possível concluir que, apesar de inúmeros desafios e limitações, a Promotoria possui uma sensibilidade inovadora para o enfrentamento da discriminação, tanto no âmbito do Ministério Público quanto no sistema de justiça como um todo: dialoga e estabelece acordos com diferentes organizações, promove eventos de capacitação e busca o reconhecimento de necessidades específicas de grupos discriminados em políticas públicas.

Discriminação estrutural; etnografia; sistema de justiça; Ministério Público; Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social

Abstract

This article discusses the practices of the Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social from the Ministério Público de São Paulo (Promotoria) in the fight against discrimination. By means of an ethnographic research, it analyzes the way in which the Promotoria positions itself in relation to four tensions faced by legal institutions when dealing with cases of discrimination: between solving a particular case or achieving social change of a structural nature (particular/structural); between utilizing instruments of repression or promoting measures to prevent the violation of rights (repression/prevention); between defining organizational structures for the citizen, seen as a universal concept, or directing institutional practices towards specific socially vulnerable groups (universal/specific); and between a technical and neutral view of the legal professional or a perception of the professional as promoting social impact through a dialogue with the civil society (technical/political). Despite facing many difficulties and challenges, the Promotoria displays an innovative sensitivity within the Ministério Público and among other institutions of the justice system. The institution carries out strategies that go beyond individual accountability: based on dialogue and agreements with different social actors, it seeks to promote educational measures, changes in institutional practices and improvements in public policies.

Structural discrimination; ethnography; justice system; Ministério Público; Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social.

INTRODUÇÃO

Tratar atos racistas como isolados revela-nos um dos efeitos mais nefastos do racismo: a ocultação e a negação de seu caráter processual e sistêmico. Com isso, o racismo aparece encantadoramente como tendo origem no sujeito que pratica o ato racista e não como um elemento estruturante das relações sociais. [...] Esse tipo de abordagem equivale a tratar apenas o sintoma sem pensar na doença. ( ALMEIDA, 2014ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo, futebol e o livre mercado do ódio. Blog da Boitempo , set. 2014. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2014/09/01/racismo-futebol-e-o-livre-mercado-do-odio/. Acesso em: 8 fev. 2019.
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)

O principal objetivo deste artigo é refletir sobre tensões que a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social do Ministério Público de São Paulo (Promotoria) enfrenta no combate à discriminação. Conforme aponta Silvio de Almeida na citação introdutória, não podemos circunscrever o conceito de racismo a atos isolados, realizados intencionalmente por pessoas fora do comum. As pesquisas no campo de estudos da discriminação têm demonstrado a persistência de práticas discriminatórias na “normalidade” das dinâmicas sociais. Determinados atos, ainda que isolados, são identificados como manifestações de sistemas discriminatórios que estruturam a sociedade, como o racismo, o machismo e a heteronormatividade.1 1 Cabe ressaltar que a um sistema estrutural de discriminação corresponde também um sistema estrutural de privilégio: indivíduos são sistematicamente privilegiados em diversos setores sociais apenas por pertencerem a determinados grupos. Além disso, apesar de apresentarem especificidades, eles se interseccionam, dando forma a desigualdades sociais complexas em cada contexto específico. O racismo e o machismo, por exemplo, articulam-se e determinam formas específicas de discriminação contra mulheres negras no Brasil. Ver Gonzalez (1984) , Bairros (1995) e Carneiro (2003) .

A expressão “discriminação estrutural” refere-se às normas e práticas nos principais setores sociais que produzem resultados desvantajosos para certos grupos, que se mantêm, de forma injustificada, em condições inferiores de acesso aos bens sociais ( ALTMAN, 2016ALTMAN, Andrew. Discrimination. In: ZALTHA, Edward (org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition). Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/discrimination/. Acesso em: 30 dez. 2018.
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). O uso do termo “estrutural”, entretanto, não significa dizer que a discriminação seja uma condição incontornável. Pelo contrário, leva-nos a olhar de uma forma mais complexa para os fatores da discriminação e para as formas de seu enfrentamento ( ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. ). Além de medidas individuais e institucionais, torna-se imperativo realizar mudanças profundas em diversos campos sociais, incluindo o Direito.

Essa concepção da discriminação traz inúmeras questões sobre o papel do sistema de justiça na promoção da igualdade. As instituições jurídicas devem buscar o apaziguamento de conflitos pontuais, ou, por outro lado, a transformação de estruturas sociais discriminatórias, podendo até provocar um acirramento dos confrontos entre grupos sociais? Elas têm instrumentos capazes de combater estereótipos enraizados no imaginário social e de subverter processos históricos de desigualdades de oportunidades? Se o próprio sistema de justiça contribui para a manutenção da discriminação estrutural, é suficiente pensar em reformas institucionais? Qual deve ser a relação dos profissionais do Direito com grupos historicamente discriminados?

Essas questões emergem de quatro tensões que serão analisadas neste estudo, presentes na atuação de instituições jurídicas no combate à discriminação: primeiro, a tensão entre solucionar conflitos pontuais ou realizar transformações sociais de caráter estrutural (pontual/estrutural); segundo, utilizar instrumentos de repressão ou de prevenção de violações de direito (repressão/prevenção); terceiro, direcionar estruturas internas e práticas institucionais para todos os cidadãos, de forma abstrata e universal, ou para determinados grupos específicos, em situação de maior vulnerabilidade social (universal/específico); por último, a tensão entre um profissional do Direito que se reconhece como técnico, voltado para a defesa do ordenamento jurídico, ou um profissional que busca promover impacto social a partir do diálogo com diferentes atores (técnico/político).2 2 As tensões foram identificadas e classificadas a partir de diferentes estudos empíricos realizados pela autora ( RADOMYSLER, 2015 e 2019a ). Outros autores abordam questões relacionadas a essas tensões e auxiliaram na construção dessas categorias de análise. Sobre a tensão pontual/estrutural, ver, por exemplo, Falcão (1981) , Campilongo (1991) , Bagenstos (2006) e Lauris (2015) . Discussões sobre litígio estrutural e litígio estratégico também perpassam aspectos relevantes dessa primeira tensão ( CARDOSO, 2019 ). Na tensão repressão/prevenção, estudos apontam desafios das ações judiciais no caso do racismo: Carneiro (2000) , Pires (2014) , Santos (2015) e Machado (2015) . Na tensão universal/específico, cabe mencionar Scott (1990) , Brah (2006) , Fraser (2007) , Rios (2008) , Debert (2012) e Lemgruber et al . (2016) . Na tensão técnico/político, especialmente Goulart (1998) , Silva (2001) , Arantes (1999) , Da Ros (2009) e Rodriguez et al. (2013) .

As tensões indicadas anteriormente não são vivenciadas da mesma forma pelos integrantes do sistema de justiça.3 3 Conforme Sadek (2002) , o sistema de justiça é composto pelas organizações estatais encarregadas de garantir os preceitos constitucionais, de aplicar a lei e de distribuir justiça. Envolve, portanto, diferentes instituições, como o Judiciário, a Defensoria Pública, o Ministério Público, a Advocacia-Geral da União e a Polícia Federal. Cada instituição possui especificidades que condicionam suas formas de atuação. Além disso, seus integrantes podem adotar perspectivas diversas, dependendo do órgão interno em que atuam, de seu perfil e da situação particular que se apresenta. Neste artigo, veremos como a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) se posiciona em relação a cada uma dessas tensões.

A escolha por pesquisar a Promotoria justifica-se por diferentes razões. Em primeiro lugar, de acordo com suas prerrogativas constitucionais, o Ministério Público (MP) é uma instituição do sistema de justiça que está apta a enfrentar dinâmicas de discriminação na sociedade brasileira. A partir da Constituição de 1988 houve uma ampla redefinição do perfil do MP como ator político no cenário nacional. Além da sua tradicional função de acusação penal, a instituição passa a contar com atribuições para a defesa dos direitos difusos e coletivos, com ampla autonomia e independência em face dos demais poderes da República ( ARANTES, 1999ARANTES, Rogério Bastos. Direito e política: o Ministério Público e a defesa dos direitos coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 14, n. 39, p. 83-102, 1999. , 2007ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público na fronteira entre justiça e a política. Justitia , São Paulo, v. 64, n. 197, p. 325-338, jul./dez. 2007. ; KERCHE, 1999KERCHE, Fábio. O Ministério Público e a Constituinte de 1987/1988. In: SADEK, Maria Tereza (org.). O sistema de justiça . São Paulo: Sumaré, 1999. p. 106-137. , 2014KERCHE, Fábio. O Ministério Público no Brasil: relevância, características e uma agenda para o futuro. Revista USP , v. 101, p. 113-120, 2014. ; SADEK, 2009SADEK, Maria Tereza. Cidadania e Ministério Público. In: SADEK, Maria Tereza (org.). Justiça e cidadania no Brasil . Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. p. 3-22. ; SILVA, 2001SILVA, Cátia Aida. Promotores de justiça e novas formas de atuação em defesa de interesses sociais e coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 16, n. 45, p. 127-144, 2001. ; LEMGRUBER et al ., 2016LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; DUARTE, Thais. Ministério Público: guardião da democracia brasileira? Rio de Janeiro: CESeC, 2016. ).

O fortalecimento do MP na defesa dos interesses coletivos não incluiu, entretanto, uma preocupação específica com as demandas de grupos historicamente discriminados: a defesa de certos grupos sociais, como minorias étnicas e a população LGBT, é mencionada em poucos sites institucionais dos MPs Estaduais e não é vista pelos seus integrantes como prioridade institucional ( LEMGRUBER et al. , 2016LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; DUARTE, Thais. Ministério Público: guardião da democracia brasileira? Rio de Janeiro: CESeC, 2016. , p. 25 e 31).

A Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social é o primeiro órgão de execução do MPSP destinado ao combate à discriminação. Ela foi criada apenas em 2009, após o Estado brasileiro ser considerado responsável, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no caso Simone André Diniz, por um padrão de violações ao direito à igualdade racial.4 4 Entre outras recomendações ao país, a CIDH solicitou aos Ministérios Públicos Estaduais a criação de promotorias públicas estaduais especializadas no combate ao racismo e à discriminação racial. Sobre o contexto de criação das Promotorias de Direitos Humanos dentro do MPSP, um promotor entrevistado afirmou a importância da pressão de setores da sociedade civil e de uma configuração política favorável na direção do MPSP, com um procurador-geral de justiça mais sensível a demandas sociais. O relatório do caso Simone André Diniz pode ser encontrado em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm . Acesso em: 10 jan. 2022. Até 2009, a defesa dos interesses dos grupos discriminados, no maior Ministério Público Estadual do país, era realizada de forma fragmentada por diversos órgãos de execução.5 5 As questões relacionadas a grupos vulneráveis eram majoritariamente direcionadas para a Promotoria de Justiça e Cidadania, que tinha uma atribuição bastante ampla, incluindo a defesa da probidade e legalidade administrativas e a proteção do patrimônio público e social.

A Promotoria fica no centro de São Paulo, na Rua Riachuelo, e conta com uma equipe formada por dois promotores de justiça, dois analistas jurídicos, três oficiais de justiça e dois estagiários de Direito. O órgão tem competência para atuar na capital paulista e é especializado na área dos direitos difusos e coletivos, não ingressando com ações judiciais no âmbito penal.6 6 Na capital, há aproximadamente 444 promotores divididos em diferentes áreas temáticas: 129 na área criminal, 44 no Tribunal do Júri, 3 no Juizado Especial Criminal (Jecrim), 53 na área cível e 69 em promotorias especializadas. Nas promotorias especializadas temos os seguintes números de promotores por área: Consumidor (6), Enfrentamento à Violência Doméstica (20), Falências (17), Família (12), Habitação e Urbanismo (6), Infância e Juventude (25), Mandados de Segurança (5), Meio Ambiente (6), Militar (6), Patrimônio Público e Social (10), Registros Públicos (3), Repressão à Sonegação Fiscal (5) e Direitos Humanos (8). Essas informações foram coletadas em 2018 do site institucional do MPSP. Sua atribuição, conforme o Ato Normativo n. 593/2009 do MPSP, é atuar em casos de práticas discriminatórias que atinjam interesse público relevante, o que inclui diversos temas, como questões de gênero, raça, etnia, orientação sexual e liberdade religiosa. A Promotoria também tem uma competência residual sobre o que escapa às demais Promotorias de Justiça de Direitos Humanos (da Saúde, do Idoso e das Pessoas com Deficiência), abrangendo casos relacionados a justiça de transição, pessoas em situação de rua e pessoas presas.

A principal motivação para investigar a Promotoria foi o fato de apresentar, em relação às quatro tensões apontadas, atribuições institucionais bastante particulares em comparação com os demais órgãos do sistema de justiça, que sugerem uma maior potencialidade para o enfrentamento da discriminação. Diferentemente da atribuição mais tradicional das instituições jurídicas, a Promotoria não tem como objetivo resolver conflitos interpessoais, mas, sim, transformar condutas que afetam todo um grupo social e que geram graves danos para a sociedade. Além disso, conta com instrumentos extrajudiciais – como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e o Procedimento Administrativo de Acompanhamento (PAA) – que permitem uma atuação menos voltada para a repressão de atos discriminatórios pontuais, e mais direcionada para o monitoramento de políticas públicas e o estabelecimento de acordos com órgãos públicos e privados para a mudança de práticas institucionais.

O diagnóstico atual das entidades da sociedade civil, entretanto, é que o MP possui inúmeras limitações para contribuir com a luta antidiscriminatória. Além de considerar seu braço penal um grande responsável pelo encarceramento em massa da população jovem, negra e pobre, o diagnóstico sobre a área dos direitos coletivos e difusos do MP, que inclui a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social, é o de que os seus membros estão atuando sem diálogo com movimentos sociais e Organizações não Governamentais (ONGs) ( CARDOSO, 2019CARDOSO, Evorah. Pretérito imperfeito da advocacia pela transformação social. Revista Direito e Práxis , Rio de Janeiro, v. 10, p. 543-570, 2019. , p. 561). Mesmo possuindo instrumentos e desenho institucional que possibilitariam sua atuação mais estrutural, o MP tende a trabalhar sob a lógica do caso a caso ( CARDOSO, 2019CARDOSO, Evorah. Pretérito imperfeito da advocacia pela transformação social. Revista Direito e Práxis , Rio de Janeiro, v. 10, p. 543-570, 2019. , p. 560).

Aponta-se também para o perfil elitizado dos membros do MP (na sua maioria, homens, brancos, de classes média e alta), o que pode influenciar na capacidade dos profissionais de atenderem às demandas de grupos historicamente discriminados ( LEMGRUBER et al ., 2016LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; DUARTE, Thais. Ministério Público: guardião da democracia brasileira? Rio de Janeiro: CESeC, 2016. , p. 64). Estudos também revelam que há pouca padronização na forma de atuação do órgão e uma margem grande de autonomia para os promotores. A garantia de interesses dos segmentos mais pobres e vulneráveis depende em grande parte da vontade política dos promotores ( LEMGRUBER et al ., 2016LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; DUARTE, Thais. Ministério Público: guardião da democracia brasileira? Rio de Janeiro: CESeC, 2016. , p. 67).

A análise realizada, portanto, não deve ser generalizada, pois reflete principalmente a atuação dos promotores integrantes da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social no período analisado. Apesar disso, a observação e a interpretação sobre como a Promotoria lida com as quatro tensões analisadas neste estudo pretendem contribuir para a discussão sobre as diferenças entre as atribuições do MP previstas legalmente na Constituição Federal de 1988, decorrentes dos anseios sociais na época da democratização, e a sua atuação na prática trinta anos depois. As tensões, as potencialidades e os limites identificados neste trabalho tratam de discussões fundamentais para o aprimoramento do papel do sistema de justiça no combate à discriminação.

1. METODOLOGIA DA PESQUISA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO NO MPSP

A abordagem teórico-metodológica utilizada neste estudo foi a realização de uma etnografia na Promotoria de Justiça da Inclusão Social do MPSP entre setembro de 2017 e setembro de 2018.7 7 O artigo apresenta resultados da dissertação de mestrado realizada pela autora entre 2016 e 2019 (ver RADOMYSLER, 2019b ). A etnografia propõe uma grande aproximação com o universo investigado, para que o pesquisador busque se familiarizar com as práticas realizadas, a linguagem e os significados compartilhados nesse contexto ( PROENÇA, 2008PROENÇA, Wander de Lara. O método da observação participante. Revista Antropos , Brasília, v. 2, n. 1, p. 8-31, 2008. ). Possibilita uma verdadeira relação de troca com os sujeitos pesquisados, que permite ao pesquisador “comparar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente” ( MAGNANI, 2009MAGNANI, José Guilherme Cantor. A etnografia como prática e experiência. Horizontes antropológicos , Porto Alegre, v. 15, n. 32, p. 129-156, jul./dez. 2009. , p. 135).

As práticas internas do sistema de justiça são geralmente conhecidas por um pequeno grupo de pessoas que integram e atuam nessas instituições. A etnografia é capaz de “rasgar véus” desse campo tradicionalmente hermético, possibilitando uma contribuição única para a reflexão sobre o sistema de justiça e para a formulação de estratégias institucionais de mudança do seu quadro atual ( LIMA e BAPTISTA, 2014LIMA, Roberto Kant de; BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Como a antropologia pode contribuir para a pesquisa jurídica? Um desafio metodológico. Anuário Antropológico , Brasília, v. 39, n. 1, p. 9-37, 2014. ).

A inserção do pesquisador no campo nunca é fácil e implica a necessidade de se desenvolverem vínculos de confiança ( JACCOUD e MAYER, 2008JACCOUD, Mylène; MAYER, Robert. A observação direta e a pesquisa qualitativa. In: POUPART, Jean et al. (org.).: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 254-294. ). Nas instituições jurídicas, pode tornar-se ainda mais desafiante. No caso da presente pesquisa, entretanto, a entrada no campo foi facilitada pelo perfil específico de um dos promotores, que considera relevante o diálogo entre a instituição e a academia e foi fundamental para a viabilidade deste estudo. Após a apresentação dos objetivos da pesquisa e a assinatura de um termo de consentimento pelos dois promotores integrantes da Promotoria, passei a comparecer ao menos um dia por semana no órgão.8 8 Como grande parte do trabalho dos integrantes da Promotoria é realizada individualmente em frente a um computador, muitos dos meus dias em campo passei analisando documentos, ouvindo e participando de conversas pontuais que surgiam e fazendo algumas perguntas quando tinha a oportunidade. A Promotoria é dividida em quatro salas: uma para oficiais de justiça, uma para analistas e duas para os promotores. Tentei alternar a sala, os dias da semana e os horários nos quais realizava a observação participante. Quando possível, procurava acompanhar ações específicas, como reuniões entre os próprios integrantes da Promotoria, reuniões com atores envolvidos nos casos de discriminação, assim como eventos e visitas externas.

Além do acompanhamento do dia a dia de trabalho da Promotoria, a etnografia incluiu: (i) um mapeamento de todas as denúncias realizadas na Promotoria e registradas no sistema interno de gestão dos procedimentos do MPSP, o SIS-MP Integrado;9 9 Como esse sistema foi implantado em 2010 e incorporou apenas quatro casos anteriores a essa data, realizei o mapeamento da atuação da Promotoria a partir desse ano. O acesso ao SIS-MP Integrado foi autorizado pelos integrantes da Promotoria, e os dados foram divulgados respeitando o anonimato e o sigilo requeridos. (ii) uma análise qualitativa de 32 casos no tema da discriminação; e (iii) entrevistas semiestruturadas com seus integrantes.

Com o mapeamento, procurou-se revelar quais demandas concernentes ao eixo da discriminação chegam à Promotoria e como elas são registradas pelo órgão. A coleta inicial do mapeamento no SIS-MP relacionou um total de 2.106 casos registrados desde 2010 até agosto de 2018, classificados, por indicadores do próprio sistema, nos seguintes temas: serviços de relevância pública (1.147); população de rua (384); discriminação/preconceito (383); pessoas presas (70); ações afirmativas (51); mulheres (19) e outros (52).

A análise qualitativa dos 32 casos de discriminação buscou identificar de que forma as tensões emergem em casos concretos da Promotoria considerados relevantes pelos seus integrantes.10 10 Pedi aos integrantes da Promotoria que mencionassem casos marcantes para eles no tema da discriminação, que mostrassem desafios da atuação da Promotoria e potencialidades. Uma lista inicial foi compilada a partir dessas conversas. Essa primeira lista foi apresentada aos participantes, que incluíram mais alguns casos, resultando no número final analisado. A análise qualitativa foi realizada por meio da leitura de todos os documentos pertinentes aos procedimentos, como ofícios, despachos, portarias, atas de reuniões, TACs e pedidos de arquivamento. Diferentes questões de discriminação se misturam nos casos analisados, mas, para os fins desta pesquisa, foi possível classificá-las nos seguintes temas: raça (14), gênero (6), religião (2), identidade de gênero (travestis e transexuais) (2), orientação sexual (1), identidade cigana (1), imigrantes e refugiados (1), pessoas com HIV (1), pessoas obesas (1), discriminação social (1), discriminação social, racial e estética (1), neonazismo e discurso de ódio (1).11 11 Foi também possível classificar os casos em: comentários ofensivos em mídias e redes sociais (8), reprodução de estereótipos em propagandas, exposições artísticas e discursos acadêmicos (5), comportamentos discriminatórios em espaços públicos e privados (6), ações afirmativas (8) e políticas públicas (5).

As entrevistas semiestruturadas com os integrantes da Promotoria foram relevantes para compreender as suas visões sobre o papel da instituição na luta antidiscriminatória.12 12 Foram entrevistados dois promotores, três analistas e duas oficiais que integraram a Promotoria no período da pesquisa. Também foram entrevistados dois analistas da equipe de psicólogos e assistentes sociais do Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial do MPSP (NAT), que atuavam junto à Promotoria. Para resguardar a confidencialidade e o sigilo das entrevistas, bem como a identidade dos entrevistados, não foram mencionados os seus nomes, apenas o gênero e a função. As entrevistas foram conduzidas presencialmente, gravadas e transcritas, com duração de trinta minutos a duas horas. O momento da realização das entrevistas ocorreu após seis meses da pesquisa de campo, e o roteiro abordou quatro principais tópicos: (i) trajetória pessoal do entrevistado e interesse no tema da discriminação; (ii) visão sobre os objetivos e o papel da Promotoria no combate à discriminação; (iii) potencialidades e desafios das práticas da Promotoria; e (iv) relação da Promotoria com a sociedade civil.

Os diferentes métodos utilizados foram fundamentais para que eu me familiarizasse com o universo da atuação da Promotoria e identificasse possíveis diferenças entre os discursos realizados pelos integrantes nas entrevistas, a observação das práticas diárias e os documentos presentes nos casos concretos. Não caberá ao escopo deste artigo, entretanto, expor com profundidade todos os dados coletados durante a pesquisa de campo. O objetivo será discutir o principal posicionamento da Promotoria em relação às quatro tensões que instituições jurídicas enfrentam no combate à discriminação. O objetivo deste artigo também não é propor uma solução para essas tensões. Não há como afirmar que, em todos os casos, uma perspectiva será sempre melhor do que outra. O foco é compreender como as tensões emergem no cotidiano da Promotoria e identificar como cada posicionamento escolhido apresenta potencialidades e desafios no enfrentamento da discriminação na sociedade brasileira.

2. ATUAÇÃO PONTUAL OU ESTRUTURAL: “NÃO QUEREMOS APENAS ENXUGAR GELO”

A tensão pontual/estrutural revela duas concepções diversas sobre os objetivos das instituições jurídicas. Podemos entender, por um lado, que a principal atribuição do sistema de justiça é a pacificação social por meio da solução de conflitos específicos. Os conflitos são compreendidos como ocorrências isoladas, geralmente entre duas pessoas, um acusado e uma vítima. O foco é comprovar a veracidade do ocorrido e a intencionalidade do ato. Ao final, espera-se que o sistema de justiça ofereça uma resposta adequada ao caso por meio da responsabilização ou punição do autor da violação.

O papel das instituições jurídicas no combate à discriminação, portanto, volta-se para respostas pontuais a denúncias de condutas discriminatórias e para a responsabilização de indivíduos com evidente intenção de discriminar. Nessa perspectiva, os profissionais agem a partir das demandas que surgem no dia a dia e geralmente são contra o estabelecimento de metas e objetivos institucionais, pois acreditam que interferem na sua imparcialidade e liberdade de convicção.

Por outra perspectiva, o sistema de justiça deveria contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária. O conflito, ainda que isolado, é percebido como uma manifestação intrínseca de problemas sociais mais complexos, envolvendo uma ampla rede de fatores, para além do ato realizado pelos indivíduos explicitamente ligados a cada situação. A resolução do conflito não é o foco, mas sim a análise e transformação das causas que dão origem às violações de direitos. A resposta não se concentra em remédios direcionados a atores específicos, mas na reorganização de prioridades, discursos e dinâmicas institucionais.

Conforme essa perspectiva, em um sistema jurídico que estabelece a eliminação da marginalização como um de seus objetivos principais, as instituições jurídicas não podem perder de vista que fenômenos como o racismo e o sexismo são verdadeiros sistemas de dominação, que reproduzem desigualdades culturais e materiais ( MOREIRA, 2017MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? São Paulo: Letramento/Justificando, 2017. v. 1. , p. 33). Caberia ao sistema de justiça enfrentar esses sistemas discriminatórios, e não somente pacificar conflitos pontuais e interpessoais de discriminação.

A pesquisa mostrou que a Promotoria se identifica mais com esta segunda perspectiva. Conforme promotor, o órgão busca identificar e combater as causas dos conflitos e não os sintomas ou suas consequências:

Nós sempre tentamos entender as coisas na sua estrutura. Por que está acontecendo isso, [qual] a causa, a origem dessa prática? Não vamos atacar as consequências ou sintomas finais. Se tiver uma violência policial, vamos tentar atacar a causa da violência policial. Se tiver uma prática de racismo, vamos tentar buscar a política antirracismo institucional da empresa.

Além de procurar analisar a origem dos problemas trazidos nas denúncias, os objetivos definidos como relevantes pelos integrantes da Promotoria vão além da responsabilização individual e da reparação de violações específicas. Os mais recorrentes foram: promover maior conscientização sobre questões de discriminação, implementar novas práticas institucionais e aprimorar políticas públicas.

Em um caso que tratava da baixa porcentagem de pessoas negras em campanhas publicitárias, a Promotoria alcançou seus objetivos por meio de uma campanha de conscientização articulada com diferentes atores sociais, desde faculdades com cursos de propaganda e marketing até entidades de profissionais da área. Em duas ocorrências de discriminação racial, uma no Burger King e outra no Shopping Higienópolis, a Promotoria fez com que as duas empresas promovessem a realização de eventos de sensibilização sobre o tema. Conforme oficial: “Você vê um resultado prático, você vê uma tentativa de mudança de pensamento, de atitude, que funcionários foram treinados para tentar lidar com esse tipo de situação. Então esses funcionários vão sair com outra mentalidade” .

Outro exemplo é as reiteradas ações discriminatórias especialmente contra mulheres e homossexuais na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A Promotoria buscou implementar novas práticas na instituição, como a criação de núcleos de acolhimento e escuta, e a inserção na grade curricular de cursos sobre ética e direitos humanos. Em outro caso relevante, a Promotoria realizou medidas para promover o reconhecimento de necessidades específicas da população de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) em centros de acolhida de São Paulo, como a capacitação de funcionários no tema e a existência de centros com vagas reservadas apenas para LGBTs.

Essa abordagem da Promotoria promove medidas com potencial de impacto social mais amplo do que a prisão do autor de uma conduta discriminatória ou o pedido de indenização, e envolve diversos atores sociais. Contudo, foi possível identificar vários desafios dessa abordagem. Em primeiro lugar, a cultura jurídica ainda compreende os critérios de intencionalidade e arbitrariedade como elementos indispensáveis para identificação de atos discriminatórios ( MOREIRA, 2017MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? São Paulo: Letramento/Justificando, 2017. v. 1. , p. 17-18). A Promotoria enfrenta resistências dentro do próprio MP e no Judiciário para que se reconheça a existência de sistemas estruturais de violações de direitos e a abrangência de seus efeitos.

Um exemplo é o inquérito civil instaurado pela Promotoria para investigar a prática de clubes esportivos de São Paulo que obriga o uso de roupas brancas por babás, exigência dispensada aos demais acompanhantes cadastrados. A Promotoria argumentou que a origem dessa prática era uma mentalidade de divisão social na sociedade brasileira construída desde o período da escravidão, que tinha de ser combatida. No entanto, tanto o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) quanto o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) foram contrários ao posicionamento da Promotoria.

Em outros casos, principalmente relacionados à reprodução de estereótipos, em que não é possível identificar uma intenção clara de discriminar, percebeu-se que essa dificuldade atingiu a própria Promotoria. Um exemplo é o inquérito civil sobre uma boneca denominada “Neguinha do Espanador”, realizada por uma artista para um projeto cultural. A Promotoria recebeu várias denúncias sobre a boneca, que apontavam para a reprodução de estereótipos negativos sobre a mulher negra. A Promotoria, em manifestação de arquivamento do caso, afirmou que não houve prática discriminatória, pois reconheceu a liberdade artística da autora da obra e entendeu que ela não teve a intenção de discriminar. Mesmo assim, a Promotoria contribuiu para que as organizações e empresas envolvidas realizassem eventos de valorização da cultura negra e de sensibilização sobre o racismo no Brasil.

Um segundo desafio é dimensionar a importância da perspectiva individual. Há um entendimento entre os integrantes da Promotoria de que atuar em casos individuais é menos efetivo para provocar relevantes transformações sociais. Nas palavras de uma analista: “A gente achava que seria mais efetivo [trabalhar de uma perspectiva coletiva]. Que trabalhar o individual seria só [...] enxugar gelo, e olhar coletivamente daria mais efetividade para nossas ações”. No entanto, também reconhecem a importância da atuação individual, pois proporciona um acolhimento das pessoas que sofreram condutas discriminatórias e promove a consciência de que a discriminação deve ser repreendida. Apesar de não ser sua atribuição e da limitação de recursos, a Promotoria atua em muitos casos individuais de denúncias de violações realizadas contra pessoas em situação de rua. Conforme promotor:

São as questões individuais, que a gente não tem atribuição mas faz, porque as pessoas estão desesperadas. A gente acaba articulando com o município para ajudar as pessoas, sobretudo com a assistência social para a população em situação de rua. E a gente faz porque a população em situação de rua é um público preferencial nosso. [...] quando no procedimento individual eu aciono a rede, estou também avaliando o trabalho da rede, estou monitorando o funcionamento da rede indiretamente. [...] E eu consigo avaliar a partir dos casos individuais que eu assumo. Então é um instrumento importante.

Outro grande desafio da dimensão estrutural é a definição de objetivos e a escolha das estratégias para maior impacto social. A Promotoria tem muitas atribuições, todas abrangentes e complexas. Apesar de ser favorável a que o MPSP estabeleça diretrizes institucionais e um plano de atuação, ela não consegue definir metas a longo prazo. Busca estabelecer objetivos específicos caso a caso, de acordo com uma avaliação da conjuntura política, das possibilidades de avanço em determinado contexto e a receptividade dos atores envolvidos. Conforme promotor:

A estratégia é pensada sempre caso a caso, dentro do que seja possível. Por exemplo, no caso de abordagem de LGBTs na rua. A gente vai discutir como a polícia aborda LGBTs. A gente tem contato com a coordenação de LGBTs da Secretaria de Justiça para pensar na formação de pessoas que vão lidar com LGBTs – no sistema prisional, nas delegacias de polícia – para [que usem] o nome social, e o pronome de gênero flexionado de acordo com a identidade de gênero da população trans. São questões que a gente vai caminhando em cada situação no que seja possível.

Como não há uma construção de metas de forma organizada e explícita, a Promotoria acaba atuando mais de uma forma reativa do que proativa. Nesse sentido, comentou o promotor: “A gente vai mais reagindo do que agindo, o que é muito ruim. Uma promotoria de projetos, voltada para a busca de soluções efetivas, o que a gente chama de resolutividade, ela tem mais que agir do que reagir”.

Os casos analisados revelaram um último desafio da atuação da Promotoria voltada para uma perspectiva estrutural. Na perspectiva pontual e individual, as ocorrências têm começo, meio e fim, após a imposição de alguma medida de reparação e a verificação de seu cumprimento. Quando se fala de mudanças estruturais, fica evidente a necessidade de acompanhamento das medidas implementadas de forma duradoura. Foi possível perceber que não há uma prática institucional de análise, acompanhamento e avaliação da atuação da Promotoria. O sistema de registro dos casos, o SIS-MP, foi desenhado apenas da perspectiva de suas funcionalidades operacionais. O formato do sistema é eficiente para registro do andamento e acompanhamento dos prazos, mas há uma dificuldade muito grande para a realização de pesquisas estatísticas sobre os casos.

Podemos concluir que a Promotoria busca realizar uma atuação estrutural: procura identificar as causas por trás dos conflitos e implementar medidas que vão além da responsabilização individual, como capacitações, mudanças de práticas institucionais e melhoria de políticas públicas. Por outro lado, a Promotoria tem inúmeras atribuições, não consegue delimitar objetivos específicos a longo prazo nem realizar um acompanhamento contínuo das medidas realizadas. Além disso, há o desafio de dimensionar a importância da atuação pontual e de oferecer acolhimento e reparação para as pessoas que sofreram episódios específicos de discriminação.

3. INSTRUMENTOS DE REPRESSÃO OU PREVENÇÃO: “INGRESSAR NO JUDICIÁRIO JÁ É UMA DERROTA”

A concepção voltada para instrumentos de repressão pressupõe um sistema de justiça centrado na ideia de resolução de conflitos. Nessa perspectiva, as instituições jurídicas devem ter instrumentos capazes de identificar o dano e responsabilizar os autores de atos ilícitos. Tradicionalmente, o Judiciário assume o papel central no estabelecimento de uma resposta ao conflito, e os principais instrumentos utilizados são direcionados para essa esfera, como ações civis e penais. Cada vez mais, entretanto, instrumentos extrajudiciais, como a mediação e a conciliação, ganham força para a solução de conflitos. No caso do MP, a ação civil pública tem deixado de ser adotada como estratégia principal na área de direitos difusos e coletivos. Instrumentos extrajudiciais, como o inquérito civil e o TAC, são preferidos pelos promotores, principalmente em razão da morosidade do Poder Judiciário ( SADEK, 2009SADEK, Maria Tereza. Cidadania e Ministério Público. In: SADEK, Maria Tereza (org.). Justiça e cidadania no Brasil . Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. p. 3-22. ; LEMGRUBER et al. , 2016LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; DUARTE, Thais. Ministério Público: guardião da democracia brasileira? Rio de Janeiro: CESeC, 2016. , p. 50-51).

As estratégias de caráter preventivo, diferentemente das práticas repressivas, não se vinculam à ocorrência de um conflito específico. Elas partem do princípio de que é importante realizar medidas para impedir novas violações de direitos, independentemente da existência ou não de uma situação específica. Remédios jurídicos de caráter repressivo, como a prisão ou a indenização, não são considerados suficientes para enfrentar estereótipos enraizados no nosso imaginário social e sistemas discriminatórios presentes na “normalidade” das dinâmicas sociais. Nessa perspectiva, os instrumentos necessários são bastante diferentes. Entre outras práticas, as estratégias de prevenção incluem a educação em direitos e o acompanhamento de políticas públicas.

A atuação da Promotoria vincula-se mais à perspectiva de repressão de conflitos sociais, pois a maior parte dos seus instrumentos é utilizada para oferecer respostas a ocorrências específicas de violações de direito. Por outro lado, a Promotoria evita punições individuais, buscando estabelecer acordos com os atores envolvidos. O foco não é a comprovação dos fatos narrados nas denúncias, mas a promoção de maior conscientização social e o estabelecimento de mudanças em práticas institucionais. Conforme promotor:

Aqui [na Promotoria] a gente não tem nenhum viés punitivista, a gente não quer punir ninguém que viole os direitos. Acho isso uma grande conquista, por se tratar de uma promotoria. Queremos que as pessoas parem de violar os direitos humanos e passem a respeitar. É isso que a gente busca. A gente senta com uma empresa que viola direitos humanos por racismo; quem vai apurar [o caso] sobre racismo é a Promotoria Criminal. Aqui a intenção é de criar uma política de igualdade racial.

As principais ferramentas utilizadas pela Promotoria são: a instauração dos inquéritos civis para a investigação do caso, o envio de ofícios solicitando informações e a realização de reuniões de trabalho com os atores envolvidos. A partir das reuniões, a Promotoria busca promover o diálogo e a construção de acordos. Conforme promotor: “Nós começamos a criar aqui um método de ação muito baseado no diálogo. Então eu sempre chamo as pessoas em torno dessa mesa redonda, com muita clareza e honestidade sobre o que a gente pretende. E tentamos chegar a um ponto de consenso”. Segundo ele, uma importante estratégia da Promotoria é a horizontalidade na construção de alianças:

Eu acho que não há nada mais destruidor da possibilidade do consenso do que a verticalidade, a arrogância, a prepotência, o complexo de autoridade, de o promotor se colocar como o doutor, a “excelência”, e sentar na cabeceira da mesa e [...] assumir um tom professoral. Isso estraga completamente, porque toda a possibilidade do consenso está na aliança. Você cria alianças para construir direitos. E essa criação de alianças passa por essa coisa da horizontalidade, do trato ameno, da sinceridade de propósito, do olho no olho. Então é dar um caráter muito mais humano e menos “de autoridade” nessa relação. Acho que essa é a ferramenta base fundamental, as outras são coadjuvantes.

A Promotoria acredita que essa forma de atuação menos repressora e impositiva favorece a cooperação para obtenção de objetivos comuns aos envolvidos . Conforme analista, é uma possibilidade de todos saírem ganhando:

Eu lembro que, no caso do Shopping Higienópolis, o racismo foi muito claro. [...] E o advogado veio com um papo de que não foi assim. E o Dr. disse que não queria entrar com ação, mas que iria pedir ao shopping para fazer uma campanha afirmativa nesse sentido. Mas, se eles começassem a negar o fato e a falar na mídia que não aconteceu, aí [seria] obrigado a falar que aconteceu e a entrar com uma ação. Aí eles falaram “não, não, tudo bem”. Para eles é melhor fazer a campanha, e ainda saem de bonzinhos. E é o que a gente quer (fazer ações afirmativas), porque não é vantajoso entrar com uma ação judicial que a gente vai perder ou que vai demorar vinte anos. [...] Então todo mundo sai ganhando.

A escolha por essa forma de atuação decorre também das próprias dificuldades e limitações dos instrumentos judiciais. O Judiciário é visto pela Promotoria como recurso apenas em situações excepcionais, como última alternativa. Conforme promotor entrevistado, há vários problemas na esfera judicial:

Além de demorar, são vários problemas quando você entra com uma ação. O primeiro deles é que encerrou o diálogo, porque o assunto está sub judice . Segundo problema, você mandou o conflito para alguém que não estava interessado nele. Você estava tocando o conflito e mediando aquilo, e o juiz não está interessado. E terceiro, você vai enviar para um órgão que não tem nenhuma visão humanista e de direitos humanos do mundo; eles são meramente técnicos formais. Então, entrar com ação é uma decisão drástica que praticamente “joga a toalha”.

É um consenso entre os integrantes da Promotoria que o Judiciário possui uma postura conservadora, não sendo um espaço efetivo para uma atuação em prol dos direitos humanos. Instrumentos extrajudiciais, segundo eles, são mais rápidos e muitas vezes têm um efeito mais pedagógico e mais duradouro do que medidas judiciais, pois valorizam o diálogo e a interação entre os envolvidos.

Por outro lado, estudos revelam que os promotores precisam realizar um grande trabalho de articulação, de abertura de canais de diálogo e de negociação para enfrentar inércias e resistências ao acatamento de acordos e recomendações estabelecidas pelos instrumentos extrajudiciais ( LEMGRUBER et al. , 2016LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; DUARTE, Thais. Ministério Público: guardião da democracia brasileira? Rio de Janeiro: CESeC, 2016. , p. 54).

Em muitos casos analisados foi possível perceber a recusa ou a demora de diferentes organizações em responder às providências solicitadas pela Promotoria. A pesquisa identificou também a ausência de mecanismos efetivos para exigir o cumprimento dos acordos estabelecidos. No caso da inobservância de um TAC, por exemplo, a única alternativa é o ingresso de ação judicial, que não é considerada uma estratégia eficiente, como apontado anteriormente.

Outra dificuldade mencionada foi o poder de coerção desses instrumentos junto ao setor público. Integrantes da Promotoria relataram maior facilidade e receptividade no setor privado. Conforme analista da Promotoria: “A gente percebe que, quando se trata até de alguma política para mudar uma empresa privada, parece que é mais receptivo, sabe? Parece que há esse respeito maior pelo Ministério Público do que quando se trata com o Poder Público”. Para um promotor, também há uma dificuldade maior na parte da execução em relação ao Poder Público: “Eu tenho a impressão de que a resistência do Poder Público é sempre maior. Se não cumprir, não vai pagar, não vai acontecer nada. Ficamos de mãos atadas no fim das contas. É sempre a solução no âmbito criativo para tentar alguma efetividade”.

As medidas com caráter preventivo, por sua vez, são muito diferentes das práticas repressivas, pois não se vinculam à ideia de conflito ou de denúncia de discriminação. A Promotoria conta com dois instrumentos relevantes para atuação preventiva: o Procedimento Administrativo de Acompanhamento (PAA) e o Procedimento Administrativo de Fiscalização (PAF). Esses procedimentos permitem monitorar políticas públicas e fiscalizar determinados serviços, como centros de acolhida e unidades prisionais.

Como objetivo institucional, a Promotoria realiza visitas anuais a todos os centros de acolhida de São Paulo, inclusive aqueles para a população LGBT e para imigrantes. Essa fiscalização, afirmou um promotor, é indispensável, pois permite uma compreensão mais profunda sobre as limitações das políticas públicas e as necessidades dos grupos vulneráveis. No mesmo sentido, um analista afirmou que essa forma de atuação é bastante efetiva para a prevenção de violações: “Toda a rede sabe que a gente está visitando. E como a gente vai de surpresa e avisa meia hora antes, a qualquer dia e a qualquer momento a gente pode aparecer. Do ponto de vista pedagógico é suficiente para a prevenção”. Conforme promotor, possibilita uma integração com a rede socioassistencial, que melhora a eficiência da política pública:

E outra coisa é também criar uma relação de proximidade com os técnicos e trabalhadores da assistência social. Eles passam a saber que existe uma Promotoria, que tem dois promotores, que tem técnicos da assistência social e da psicologia no Ministério Público acompanhando o trabalho deles. Tanto para saberem que estão sendo fiscalizados, como para saberem que têm uma ajuda, se precisar. Acho muito importante também pela própria operacionalidade da política pública.

Um importante desafio, entretanto, é a falta de recursos materiais e humanos para realizar um monitoramento efetivo dos 102 centros de acolhida de São Paulo. A Promotoria não consegue cumprir a meta de visitar todos os centros de acolhida pelo menos uma vez durante o ano. Outro desafio é considerar a política pública em sua amplitude, levando em consideração a rede de instituições e atores envolvidos, como as Secretarias de Saúde e de Assistência Social, e não apenas as demandas específicas de cada centro de acolhida. Conforme analista:

A gente às vezes traz o discurso de que a gente trabalha com políticas públicas, mas a gente não trabalha tanto assim com políticas públicas, mas com serviços. Com alguma fiscalização de uma instituição específica, não com a política mais ampla além desses serviços ou dessa instituição. Então tem uma questão de que, por ora, nós não somos demandados para pensar em políticas públicas, mas mais para visitar e fiscalizar certos serviços, de maneira um pouco mais isolada do que a gente gostaria.

Além da fiscalização (PAF) e do acompanhamento (PAA), a educação em direitos é também uma estratégia preventiva realizada pela Promotoria e, para o promotor, chega a ser o principal papel do órgão: “a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos deveria ser, sobretudo, uma usina difusora de formações na área de direitos humanos”. A educação em direitos, entretanto, é realizada apenas pela participação pontual em eventos e por meio da exigência da realização de capacitações em casos específicos. Não há uma organização interna para o uso dessa estratégia de forma sistemática, por meio de ciclos de eventos, de cursos de capacitação ou do uso constante de canais de comunicação internos.

Uma última medida preventiva importante a ser considerada é a atuação da Promotoria em espaços de participação social, como conselhos e comitês municipais e estaduais. Um dos promotores participou de alguns desses espaços, relacionados a intolerância religiosa e população de rua. Não houve, entretanto, menção dessa prática nas entrevistas, e também não constou de nenhum dos casos analisados.

Concluindo, a Promotoria prioriza a utilização de instrumentos extrajudiciais, buscando uma atuação mais pessoal e dialógica, por meio do envio de ofícios e da realização de reuniões com os atores envolvidos nos casos investigados. Seu principal objetivo não é punir indivíduos que realizaram condutas discriminatórias, mas promover medidas de sensibilização e mudança de práticas institucionais. Instrumentos de prevenção como a educação em direitos e a atuação em espaços de participação social, entretanto, são ainda incipientes e faltam recursos para o acompanhamento de políticas públicas.

4. PRÁTICAS INTERNAS UNIVERSAIS OU ESPECÍFICAS: “VOCÊ TEM QUE REDIRECIONAR A PRÓPRIA RAZÃO DE SER DA INSTITUIÇÃO”

Um dos desafios centrais da luta contra discriminações é a constante tensão entre as reivindicações por medidas que reconheçam especificidades de grupos sociais e as reivindicações por uma atuação igualitária, que trate todos de forma abstrata e universal ( SCOTT, 1990SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade , Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990. ; BRAH, 2006BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu , Campinas, n. 26, p. 329-376, 2006. ; RIOS, 2008RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. ). No caso do sistema de justiça, por um lado, entende-se que as instituições jurídicas devam tratar os cidadãos como iguais, proporcionando um acesso efetivo para todos. Os indivíduos merecem os mesmos direitos e acesso à justiça independentemente de marcadores da sua identidade, como classe, raça, gênero e orientação sexual. Nessa perspectiva, a organização das estruturas internas do Judiciário deve voltar-se principalmente para a localização geográfica do ocorrido e para a natureza jurídica da demanda (civil, criminal, etc.).

Por outro lado, nas últimas décadas do século XX, a ênfase nas diferenças entre grupos sociais adquiriu um grande peso na reivindicação de direitos e acesso a bens sociais. Um pressuposto da ação desses atores é o entendimento de que a universalidade dos direitos só pode ser conquistada se contemplar demandas específicas de determinados grupos sociais ( DEBERT, 2012DEBERT, Guita Grin. Desafios da politização da justiça e a antropologia do direito. Revista de Antropologia , São Paulo, v. 53, n. 2, p. 475-492, 2012. ). Exemplos de práticas internas nas instituições do sistema de justiça para atender a essas reivindicações são a formação de órgãos especializados em demandas de grupos sociais específicos, a implementação de ações afirmativas, a capacitação sobre questões relacionadas a grupos vulneráveis e a coleta de dados com indicadores sociais, como raça e gênero ( VIEIRA e RADOMYSLER, 2015VIEIRA, Vanessa Alves; RADOMYSLER, Clio Nudel. A Defensoria Pública e o reconhecimento das diferenças: potencialidades e desafios de suas práticas institucionais em São Paulo. Revista Direito GV [ on-line ], São Paulo, v. 11, n. 2, p. 455-478, 2015. ).

Nessa segunda perspectiva, entende-se que, se a discriminação faz parte de nossas estruturas sociais, ela também é reproduzida pelas instituições. Segundo Silvio de Almeida, as instituições são racistas porque a sociedade é racista ( ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. , p. 36). O autor aponta que é dever das instituições investir em práticas antirracistas efetivas, como a adoção de políticas internas que visem remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de direção e manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais discriminatórias ( ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. , p. 37).

A pesquisa identificou que, na Promotoria e no MPSP como um todo, predomina a perspectiva universal, pois ainda é recente a criação de estruturas internas e a realização de práticas direcionadas para o combate à discriminação e para a defesa de minorias desprivilegiadas. Conforme entrevistados, a defesa de grupos historicamente discriminados não é uma prioridade para a instituição. A própria Promotoria foi criada apenas em 2009 e é bastante grande e variada a abrangência da sua atuação. Um risco da variedade de atribuições da Promotoria e de seus poucos recursos é a instituição dar prioridade para alguns grupos vulneráveis em detrimento de outros. Foi possível identificar que a população em situação de rua é o grande foco de sua atuação.

Sobre esse tema, um analista da Promotoria comentou: “É preocupante que o Ministério Público tenha 1.900 promotores, 444 na capital e só dois promotores trabalhando aqui. Quer dizer, não tem um apoio dentro da instituição”. O promotor afirmou, entretanto, que não basta exigir mais cargos e recursos para a Promotoria, pois o necessário é uma ampla reavaliação das prioridades institucionais:

É claro que, numa cidade como São Paulo, com os índices de miséria e exclusão que a gente tem aqui, deveríamos ter uma estrutura maior. Agora, eu acho irreal pleitear mais dois, três, quatro cargos, porque não é essa a visão da instituição. A instituição está interessada em colocar o promotor no criminal, em colocar um promotor para cada juiz no interior. Então não adianta eu pleitear isso, cria uma assimetria. E a educação, não precisa? Como pode ter dois promotores para a educação em São Paulo? Como pode ter dois promotores para a saúde pública? Se eu falar que quero mais dois, eles também vão querer. O certo é fazer uma super reestruturação da instituição para redirecionar suas prioridades. Porque quando você tem dois promotores para a educação e 220 no crime, na mesma cidade, você está mostrando qual é o perfil dessa instituição. Se você não consegue redirecionar, você tem que redirecionar a própria razão de ser da instituição. O crime é menos e a educação é mais. Aí é outro MP, é outro país, é outro mundo.

Para esse promotor, portanto, o MPSP ainda está mais voltado ao “tipo tradicional” de Ministério Público descrito por Sadek (2009)SADEK, Maria Tereza. Cidadania e Ministério Público. In: SADEK, Maria Tereza (org.). Justiça e cidadania no Brasil . Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. p. 3-22. , em que a prioridade institucional é a ação penal, e não ao “tipo novo”, em que há um comprometimento com a justiça social e a defesa dos interesses difusos e coletivos.

As ações afirmativas são outro tópico sensível na estrutura organizacional do MPSP. Apesar de 93% dos promotores se identificarem como brancos, a política de cotas raciais nos concursos de ingresso na instituição foi estabelecida somente em 2016.13 13 Os resultados do censo racial do MPSP, realizado em 2015, podem ser encontrados em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/GT_Igualdade_Racial/Producao_GT_Igualdade_Racial/RELATÓRIO%20DE%20LEVANTAMENTO%20CENSO%20RACIAL.pdf . Acesso em: 13 jul. 2020. Na Promotoria, os dois promotores titulares são homens brancos de meia-idade. A única pessoa negra no momento desta pesquisa era uma estagiária de Direito.

A seleção para fazer parte da Promotoria acontece por meio de concurso público. O principal critério para preenchimento das duas vagas de promotor titular é a antiguidade e o merecimento. Ao assumir o cargo de titular, o promotor pode ficar na vaga até se tornar procurador. Sobre essa permanência, um analista entrevistado indicou que há um ponto positivo devido à especialização no tema e ao estabelecimento de vínculos com a sociedade civil. Por outro lado, pode ser bastante prejudicial se o promotor não tiver sensibilidade para o cargo. A Promotoria, paradoxalmente, pode atrair alguém que queria trabalhar menos, porque a produtividade do órgão depende muito da iniciativa do próprio promotor. Segundo ele: “Essa é a melhor Promotoria para quem quer trabalhar muito, e é a melhor Promotoria para quem não quer trabalhar. Porque você não vai ter cobrança”.

Vale mencionar também que os promotores são frequentemente afastados de seus cargos para assumir funções administrativas, sendo sucedidos pelos promotores substitutos, que podem ter pouca ou nenhuma sensibilidade para o tema. Essa alternância de promotores também pode prejudicar a realização de estratégias de prevenção a longo prazo e o estabelecimento de laços com atores sociais.

Para as vagas de oficial, analista e estagiário, o candidato aprovado, dependendo da classificação e da disponibilidade de vagas, tem a possibilidade de manifestar interesse por determinada área dentro do MPSP, mas a margem de escolha é geralmente pequena. As entrevistas são feitas apenas para cargo de estagiário. Para os integrantes da Promotoria, o fato de não haver a possibilidade de entrevistar e selecionar um analista ou um oficial pode ser uma desvantagem, pois o cargo exige formação específica e certa sensibilidade.

Conforme os entrevistados, o MPSP não oferece cursos nem capacitações nos temas da discriminação e da inclusão social. Atualmente, há apenas algumas palestras pontuais no ciclo inicial de formação dos promotores que acabaram de ingressar no órgão. Os integrantes da Promotoria afirmaram que aprendem muito na prática, e que são obrigados a estudar sozinhos. Indicaram que as faculdades de Direito não tratam dos assuntos trabalhados na Promotoria e que, nos concursos públicos, os temas não são abordados em profundidade ou, às vezes, nem sequer são mencionados. A área de atuação da Promotoria abrange temas muito diversos e é bastante difícil se especializar em todos eles. Conforme promotor:

Como a gente tem aqui múltiplas atribuições e todas muito complexas – assistência social, população em situação de rua, racismo, LGBT, justiça de transição, presídios – não é possível a gente dominar todos esses saberes, não apenas do ponto de vista do direito inerente a cada um deles, mas do próprio conteúdo dessas questões. O racismo envolve psicologia, antropologia, sociologia, economia e política. E o direito tangencia.

Para outro promotor entrevistado, entretanto, essa variedade temática não é uma dificuldade tão intransponível. O necessário é uma formação sólida em direitos fundamentais: “Sabe que não são [temas muito diferentes]? Porque o pressuposto deles são todos os direitos fundamentais. Então se você consegue estudar bem esses temas, ter uma formação sólida nesses temas, você só precisa depois estudar a legislação específica dentro de cada um deles”. Esse promotor, no entanto, focou apenas nos aspectos jurídicos das diferentes questões de discriminação, sem considerar a complexidade que envolve compreender como cada sistema discriminatório opera na sociedade brasileira.

A pesquisa constatou que o MPSP em geral, e a Promotoria em particular, não têm grande preocupação com a coleta e análise de dados estatísticos com indicadores sociais de grupos discriminados. No sistema de registro institucional, o SIS-MP, não há a possibilidade de identificação étnico-racial das partes envolvidas e os indicadores de classificação dos casos são bastante limitados. Foi possível perceber que não há uma grande preocupação para que o registro seja feito de forma sistemática e consistente.

Todas essas práticas institucionais – criação de órgãos especializados, ações afirmativas, capacitação e coleta de dados – visam promover a igualdade substancial por meio de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos historicamente discriminados. A análise dessa tensão demonstra que, na Promotoria e no MPSP como um todo, a preocupação em implementar estruturas internas e práticas institucionais voltadas para a proteção de grupos específicos é recente e se encontra ainda em estágio inicial.

5. PERFIL TÉCNICO OU POLÍTICO: “O DIÁLOGO EM UMA INSTITUIÇÃO DONA DA VERDADE”

A tensão entre um perfil técnico ou político diz respeito à percepção dos profissionais do sistema de justiça sobre seu papel e sobre sua relação com a sociedade civil. Por um lado, há um entendimento de que possuem um perfil diferente dos demais atores públicos do Executivo e do Legislativo. Ao contrário de representantes eleitos na disputa político-partidária, são especialistas na interpretação e aplicação da legislação vigente. Como profissionais do Direito, agentes do Estado, sua função é direcionada para a manutenção do ordenamento jurídico.

A legitimidade da sua atuação decorre principalmente do conhecimento jurídico, comprovado pela aprovação em concursos públicos, e do compromisso com a legalidade. Há uma crença de que essa seja uma atuação politicamente neutra ou, ao menos, mais neutra do que as práticas dos agentes nos outros poderes. Há também um distanciamento entre esses profissionais e a sociedade civil. Subentende-se a relativa incapacidade dos grupos sociais para combaterem violações de seus direitos, por não apresentarem o conhecimento jurídico necessário. Por isso precisam ser tutelados, protegidos, e cabe aos juristas o monopólio ou protagonismo das escolhas sobre o encaminhamento das denúncias.

Por outro lado, há profissionais do Direito que se definem menos como agentes do Estado e operadores do Direito, e mais como defensores dos interesses da sociedade e agentes indutores de novas realidades sociais. Neste segundo paradigma, os membros das instituições do sistema de justiça entendem que seu papel é a promoção do projeto democrático delimitado pela Constituição. Sua atuação é direcionada para promover o bem público e uma sociedade mais justa e igualitária, não se diferenciando tanto de atores do Executivo ou do Legislativo. Admite-se, assim, que há um fim político em suas práticas.

Como o conhecimento jurídico não é o único saber relevante, existe um reconhecimento da importância do diálogo com uma variedade de atores, e as instituições tendem a contar com equipes compostas por profissionais de diferentes áreas. Busca-se maior proximidade com a sociedade civil: configura-se mais uma relação de parceria do que de tutela ou de proteção. A abertura para o diálogo com os movimentos sociais, o estabelecimento de canais permanentes de participação social e a realização de visitas para a constatação direta da realidade são algumas das práticas possíveis.

Essa diferenciação assemelha-se aos dois perfis identificados e descritos por Silva (2001)SILVA, Cátia Aida. Promotores de justiça e novas formas de atuação em defesa de interesses sociais e coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 16, n. 45, p. 127-144, 2001. em relação à atuação dos promotores na área dos direitos e interesses coletivos no MPSP. Conforme a autora, é possível separá-los em dois tipos ideais: promotores de gabinete e promotores de fato. Os promotores de gabinete correspondem ao primeiro perfil descrito, com uma atuação mais legalista e afastada da comunidade. Já os promotores de fato buscam agir como articuladores políticos, usando medidas extrajudiciais para a negociação com diferentes atores sociais. Eles interpretam sua atuação como atividade que transcende o sistema de justiça e requer legitimação na comunidade ( SILVA, 2001SILVA, Cátia Aida. Promotores de justiça e novas formas de atuação em defesa de interesses sociais e coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 16, n. 45, p. 127-144, 2001. , p. 138).

A Promotoria identifica-se mais com essa segunda perspectiva. A visão do promotor sobre as competências necessárias para cumprir sua função demonstra uma concepção distante da ideia de um profissional neutro e técnico:

A primeira coisa de que se precisa em qualquer área do Ministério Público é humildade. Essa é a primeira e fundamental qualidade. Você precisa saber que você não sabe tudo que você vai fazer; que você não sabe mais do que as outras pessoas; que você não pode mandar naquilo que os outros fazem porque você se acha a autoridade. A segunda condição indispensável, que decorre dessa, é a capacidade do diálogo. É saber ouvir, o que é completamente diferente de escutar. Escutar é um ato biológico e ouvir é compreender, ponderar as razões do outro e buscar o consenso. A partir dessas duas condições básicas, a terceira é o conhecimento técnico.

Ele também aponta para a necessidade de integrar outros saberes, além do Direito, e adquirir uma visão humanista, enriquecida pela literatura, pela música e pelas artes:

O promotor que não tem uma visão humanista é apenas um técnico e ele vai lidar com o Direito como um conhecimento meramente técnico. O Direito sem essas interações humanistas é inócuo. E pior que inócuo, ele vai ser prejudicial, porque ele sempre vai partir para a repressão, para a imposição. Como ele não consegue dialogar porque não tem conhecimento humanista, ele impõe.

Há um grande reconhecimento da importância dos analistas da área da psicologia e da assistência social no MPSP, e os integrantes da Promotoria consideram fundamental a proximidade com diferentes setores da sociedade civil. Segundo promotor, é a sociedade civil que legitima a atuação da Promotoria: “Uma coisa importante é esse trabalho em constante parceria e diálogo com movimentos sociais, professores, institutos de pesquisa e empresas, quando é o caso. Quer dizer, essa atuação em aliança serve ao mesmo tempo para obter esses saberes e também para legitimar o que a gente faz”.

Escutar a sociedade civil também é considerado fundamental para compreender melhor as situações investigadas. Durante a pesquisa foi possível observar diferentes formas de participação da sociedade civil na atuação da Promotoria, por meio do encaminhamento de denúncias, do envio de informações nos procedimentos e da realização de reuniões e visitas aos centros de acolhida.

Por outro lado, foi possível identificar diversos desafios dessa perspectiva de atuação da Promotoria. O MPSP não tem uma diretriz institucional para que seus integrantes atuem de forma mais dialógica. Essas iniciativas ficam, portanto, dependentes do perfil de cada promotor, ou seja, de seus interesses e de sua capacidade de atuação, e também de seus contatos.

Outro desafio é ampliar a relação com a sociedade civil. A Promotoria realizou apenas uma audiência pública. Além disso, um analista apontou que há uma aproximação maior com entidades profissionais e conselhos de participação social. Ele considera que há um grande receio de aproximação dos movimentos sociai s: “Eu vejo receio na articulação com eles [os movimentos sociais]. Até compreendo. Não sei se tem como… não se envolver com certos interesses que não se conhece. Quais interesses estão por trás. Partidários inclusive. Tem esse receio e acho compreensível”.

Esse receio de aproximação dos movimentos sociais também explica por que a Promotoria não realiza um planejamento mais amplo de seus objetivos com a participação da sociedade civil. Segundo o promotor, a principal explicação para a ausência de um plano de atuação do órgão é o risco de criar expectativas com a sociedade civil e, em razão da falta de recursos, não conseguir cumpri-las:

Primeiro... para organizar um plano desses tem que ter tempo e energia; e a gente tem demandas crescentes que a gente tem que dar conta. Mas sobretudo, quando você faz um plano como esse, em que você chama os movimentos e abre para a perspectiva de que eles opinem sobre os objetivos a serem alcançados, você cria uma expectativa. E muito pior do que não chamá-los e não ouvi-los é chamá-los e ouvi-los e não os atender! É frustrar essas expectativas. Aí é o fim, você se desmoraliza. E eu nunca quis correr esse risco porque nunca senti firmeza de que, com o pouco recurso que temos e com o volume de cobranças e demandas, nós conseguiríamos dar conta disso.

Para contornar essa dificuldade, segundo ele, foi feita a escolha de ouvir os anseios da sociedade civil de maneira informal:

Eu fiz opção por um prejuízo menor, que é de não criar essa estrutura democrática da construção dos objetivos e tentar colher dessas pessoas no diálogo do dia a dia. Eu saio muito para eventos, palestras, você me encontra em vários lugares. Nesses lugares eu estou ouvindo. Estou procurando, nessa escuta informal que eu faço, colher isso que eu deveria colher formalmente na audiência pública. Só que quando eu colho informalmente eu não crio essa expectativa, porque eles não sabem que eu estou ouvindo isso tudo e que depois, com os companheiros daqui, a gente estabelece “vamos por aqui, vamos buscar essa iniciativa, instaurar esse procedimento”.

Uma última dificuldade é a falta de apoio, dentro do próprio MPSP, para a atuação da Promotoria. Não há um alinhamento interno no MPSP em questões de discriminação, e a atuação da Promotoria é muitas vezes criticada pelos demais integrantes da instituição. Conforme analista:

Existe uma resistência em relação a esses temas de discriminação dentro do Ministério Público. A Promotoria de Justiça de Direitos Humanos encontra muita resistência. Acho que muita gente não acredita que a gente precisa do que a gente está fazendo aqui. [...] Eu acho que as pessoas não acreditam mesmo no nosso trabalho. É uma barreira muito grande, uma resistência muito grande, dentro mesmo do próprio MP. [...] mesmo quando sai matéria sobre a nossa atuação, a maioria dos comentários é no sentido de “que falta do que fazer do promotor, esse promotor tá com o pé na mesa”. As pessoas não entendem a importância do assunto. Não entendem.

Além disso, o MP é uma instituição que historicamente pouco ouve a sociedade civil.14 14 Sobre a relação do MP com a sociedade civil, estudos indicam a prevalência de uma postura voluntarista e tutelar dos promotores, ancorada na ideia de que a sociedade seria incapaz de defender seus próprios interesses, o que seria agravado por instituições políticas insatisfatórias no cumprimento do seu papel representativo ( ARANTES, 1999 e 2007 ). Para alguns autores, esse modo de atuação dificulta iniciativas emancipadoras por parte da sociedade civil e permite uma politização excessiva da instituição. Sobre diferentes visões da relação do MP com a sociedade civil ver: DA ROS (2009) . Segundo promotor, essa forma de atuação da Promotoria foi uma grande conquista, que não reflete a realidade do MPSP: “Esse foi um avanço importante: a gente aprender a conversar com a sociedade, em uma instituição historicamente fechada, que se acha a dona da verdade”.

Por fim, a própria imagem do MP perante a sociedade e as diferentes formas de atuação dentro da instituição criam obstáculos para o diálogo com grupos discriminados. Em decorrência da sua tradicional função de acusação penal, o MP é muitas vezes associado ao sistema criminal, um órgão de repressão insensível a demandas de grupos discriminados, e não à promoção da igualdade. Há também um grande desconhecimento na sociedade civil sobre as atribuições do MPSP no tema da discriminação. Conforme analista, o MP às vezes é visto como “salvador”, mas frequentemente como inimigo ou opressor:

Várias pesquisas são feitas por vários órgãos e o Ministério Público está sempre como uma das instituições com maior confiança da população. [...] É muito comum a visita do MP ser vista ora com muita apreensão: “se o MP está aqui ele vai fiscalizar e vai ver pontos”. [...] E ao mesmo tempo, eles e elas veem como uma possibilidade, “ah, agora vai resolver”. [...] Então, eu fico pensando no MP… acho que isso é contraditório. Ele é algoz e ao mesmo tempo salvador, ele vai punir mas ao mesmo tempo ele salva.

Para concluir, os integrantes da Promotoria colocam-se como agentes indutores de mudanças sociais, reconhecem a limitação do conhecimento jurídico para resolver questões sociais complexas e posicionam-se de forma aberta para o diálogo com a sociedade civil. Por outro lado, há uma grande dificuldade de aproximação dos movimentos sociais e de definição de objetivos institucionais que reflitam as principais demandas de grupos historicamente discriminados. Além disso, a Promotoria enfrenta resistências dentro do MPSP por ser uma instituição em geral mais voltada para uma atuação tecnicista, que se percebe como imparcial e centrada na fiscalização do ordenamento jurídico.

CONCLUSÕES

Neste artigo, a partir de uma etnografia da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social, identifiquei e analisei quatro tensões presentes no enfrentamento da discriminação pelo sistema de justiça: entre atuar para mudanças pontuais ou estruturais, entre utilizar instrumentos de repressão ou de prevenção, entre direcionar práticas institucionais para um cidadão abstrato ou para grupos específicos e entre assumir um perfil técnico ou político.

Foi possível constatar que a Promotoria, por um lado, possui uma sensibilidade inovadora para o combate à discriminação, no âmbito tanto do MP quanto das instituições do sistema de justiça como um todo. A Promotoria busca provocar mudanças de maior impacto social, e não apenas resolver conflitos pontuais de discriminação. Por meio de medidas extrajudiciais, estabelece acordos com órgãos públicos e privados para a promoção de maior conscientização social sobre o tema e para a mudança de práticas institucionais. A visão dos integrantes da Promotoria demonstra uma concepção distante da ideia do profissional neutro e técnico. Reconhecem as limitações do conhecimento jurídico e consideram a sociedade civil uma importante aliada, e não um grupo a ser tutelado, de forma hierárquica e distante.

Por outro lado, a Promotoria enfrenta diferentes desafios e limitações em sua atuação. A própria Promotoria foi criada apenas em 2009 e tem ampla variedade de atribuições para poucos recursos materiais e humanos. Há uma grande dificuldade para a definição de objetivos a longo prazo e para o monitoramento do impacto das medidas realizadas. Ela também não consegue realizar estratégias preventivas de forma contínua, como a educação em direitos e o acompanhamento de políticas públicas; e há um grande receio de aproximação com os movimentos sociais.

Por fim, uma última dificuldade é a falta de apoio dentro do próprio MPSP, pois a atuação da Promotoria é muitas vezes criticada pelos demais integrantes da instituição. Além disso, dentro do MPSP, é recente e incipiente a implementação de estruturas internas direcionadas para grupos historicamente discriminados, como órgãos especializados, ações afirmativas, capacitações no tema da discriminação, e a coleta de dados com indicadores relacionados a esses grupos.

A reflexão sobre a forma como a Promotoria lida com as quatro tensões analisadas neste artigo buscou abordar e ampliar discussões fundamentais sobre o papel do sistema de justiça, e especificamente do MP, em sociedades profundamente desiguais e discriminatórias, como a brasileira. Seria importante que outras pesquisas analisassem a presença dessas tensões em diferentes contextos e que verificassem a existência de outras tensões centrais para pensar, ou mesmo repensar, a atuação dos integrantes das instituições jurídicas na promoção da igualdade.

Apesar dos inúmeros desafios, foi possível constatar que a Promotoria da Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social do MPSP possui uma atuação capaz de inspirar a adoção de novos objetivos, instrumentos, práticas e atitudes no sistema de justiça. Em uma sociedade profundamente desigual como a brasileira, esse sistema não pode ser hermético, distante da sociedade civil e apenas repressivo, voltado para a pacificação de conflitos pontuais e interpessoais. É fundamental que as instituições jurídicas estejam atentas à realidade das estruturas sociais discriminatórias presentes na nossa sociedade.

AGRADECIMENTOS

Este artigo é resultado de dissertação de mestrado realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), sob orientação do Prof. Conrado Hübner Mendes, e apresentada à Banca Examinadora composta pelas professoras Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Gislene Aparecida dos Santos e Luciana Gross Cunha, a quem a autora agradece imensamente. Os(as) pareceristas da Revista Direito GV também ofereceram comentários relevantes ao artigo, a quem também agradece. Por fim, a autora agradece à equipe da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Inclusão Social do MPSP, em especial ao promotor Eduardo Ferreira Valerio, pela colaboração fundamental para que essa pesquisa pudesse ser construída.

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  • 1
    Cabe ressaltar que a um sistema estrutural de discriminação corresponde também um sistema estrutural de privilégio: indivíduos são sistematicamente privilegiados em diversos setores sociais apenas por pertencerem a determinados grupos. Além disso, apesar de apresentarem especificidades, eles se interseccionam, dando forma a desigualdades sociais complexas em cada contexto específico. O racismo e o machismo, por exemplo, articulam-se e determinam formas específicas de discriminação contra mulheres negras no Brasil. Ver Gonzalez (1984)GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984. , Bairros (1995)BAIRROS, Luiza. Novos feminismos revisitados. Revista de Estudos Feministas , Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 458-463, 1995. e Carneiro (2003)CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDEDORES SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (org.). Racismos contemporâneos . Rio de Janeiro: Takano Ed., 2003. p. 49-58. .
  • 2
    As tensões foram identificadas e classificadas a partir de diferentes estudos empíricos realizados pela autora ( RADOMYSLER, 2015RADOMYSLER, Clio. A Defensoria Pública no combate à discriminação racial: sensibilidades, discursos e práticas. Revista Diversitas , São Paulo, ano 3, n. 4, p. 276-309, mar./set. 2015. e 2019aRADOMYSLER, Clio. “Somos Racistas?” Enfrentando o racismo institucional no Ministério Público de São Paulo. Revista de Estudos Empíricos em Direito , v. 6, n. 3, p. 81-110, 2019a. https://doi.org/10.19092/reed.v6i3.235
    https://doi.org/10.19092/reed.v6i3.235...
    ). Outros autores abordam questões relacionadas a essas tensões e auxiliaram na construção dessas categorias de análise. Sobre a tensão pontual/estrutural, ver, por exemplo, Falcão (1981)FALCÃO, Joaquim. Cultura jurídica e democracia: a favor da democratização do judiciário. In: LAMOUNIER, Bolívar (org.). Direito, cidadania e participação . São Paulo: Tao, 1981. p. 3-20. , Campilongo (1991)CAMPILONGO, Celso Fernandes. Acesso à justiça e formas alternativas de resolução de conflitos: serviços legais em São Bernardo do Campo. Revista Forense , Rio de Janeiro, v. 315, p. 3-17, jul./set. 1991. , Bagenstos (2006)BAGENSTOS, Samuel. The Structural Turn and the Limits of Antidiscrimination Law. California Law Review , v. 94, n. 1, jan. 2006. e Lauris (2015)LAURIS, Élida. Para uma concepção pós-colonial do direito de acesso à justiça. Hendu – Revista Latino-Americana de Direitos Humanos , v. 6, n. 1, p. 5-25, nov. 2015. . Discussões sobre litígio estrutural e litígio estratégico também perpassam aspectos relevantes dessa primeira tensão ( CARDOSO, 2019CARDOSO, Evorah. Pretérito imperfeito da advocacia pela transformação social. Revista Direito e Práxis , Rio de Janeiro, v. 10, p. 543-570, 2019. ). Na tensão repressão/prevenção, estudos apontam desafios das ações judiciais no caso do racismo: Carneiro (2000)CARNEIRO, Sueli. Estratégias legais para promover a justiça social. In: GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo; HUNTLEY, Lynn (org.).Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 311-323. , Pires (2014)PIRES, Thula Rafaela de Oliveira; LYRIO, Caroline. Racismo institucional e acesso à justiça: uma análise da atuação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos anos de 1989-2011. In: CONPEDI/UFSC; COUTO, Mônica Bonetti; ESPINDOLA, Angela Araújo da Silveira; SILVA, Maria dos Remédios Fontes (org.). Acesso à justiça I. Florianópolis: CONPEDI, 2014. p. 513-541. , Santos (2015)SANTOS, Gisele Aparecida. Nem crime, nem castigo: o racismo na percepção do judiciário e das vítimas de atos de discriminação. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros , Brasil, n. 62, p. 184-207, 2015. e Machado (2015)MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; SANTOS, Natália Neris da Silva; FERREIRA, Carolina Cutrupi. Legislação antirracista punitiva no Brasil: uma aproximação à aplicação do direito pelos Tribunais de Justiça brasileiros. Revista de Estudos Empíricos em Direito , v. 2, n. 1, p. 60-92, 2015. . Na tensão universal/específico, cabe mencionar Scott (1990)SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade , Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990. , Brah (2006)BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu , Campinas, n. 26, p. 329-376, 2006. , Fraser (2007)FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova , São Paulo, n. 70, p. 101-138, 2007. , Rios (2008)RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. , Debert (2012)DEBERT, Guita Grin. Desafios da politização da justiça e a antropologia do direito. Revista de Antropologia , São Paulo, v. 53, n. 2, p. 475-492, 2012. e Lemgruber et al . (2016)LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; DUARTE, Thais. Ministério Público: guardião da democracia brasileira? Rio de Janeiro: CESeC, 2016. . Na tensão técnico/político, especialmente Goulart (1998)GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e democracia: teoria e práxis. São Paulo: Editora de Direito, 1998. , Silva (2001)SILVA, Cátia Aida. Promotores de justiça e novas formas de atuação em defesa de interesses sociais e coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 16, n. 45, p. 127-144, 2001. , Arantes (1999)ARANTES, Rogério Bastos. Direito e política: o Ministério Público e a defesa dos direitos coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 14, n. 39, p. 83-102, 1999. , Da Ros (2009)DA ROS, Luciano. Ministério Público e sociedade civil no Brasil contemporâneo: em busca de um padrão de interação. Revista Política Hoje , v. 18, n. 1, p. 29-53, 2009. e Rodriguez et al. (2013)RODRIGUEZ, José Rodrigo et al. (coord.). Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Brasília: Ministério da Justiça – Secretaria de Reforma do Judiciário, 2013. .
  • 3
    Conforme Sadek (2002)SADEK, Maria Tereza. Estudos sobre o sistema de justiça. In: MICELI, Sérgio (ed.). O que ler na ciência social brasileira. São Paulo: Sumaré, 2002. v. 4. p. 233-265. , o sistema de justiça é composto pelas organizações estatais encarregadas de garantir os preceitos constitucionais, de aplicar a lei e de distribuir justiça. Envolve, portanto, diferentes instituições, como o Judiciário, a Defensoria Pública, o Ministério Público, a Advocacia-Geral da União e a Polícia Federal.
  • 4
    Entre outras recomendações ao país, a CIDH solicitou aos Ministérios Públicos Estaduais a criação de promotorias públicas estaduais especializadas no combate ao racismo e à discriminação racial. Sobre o contexto de criação das Promotorias de Direitos Humanos dentro do MPSP, um promotor entrevistado afirmou a importância da pressão de setores da sociedade civil e de uma configuração política favorável na direção do MPSP, com um procurador-geral de justiça mais sensível a demandas sociais. O relatório do caso Simone André Diniz pode ser encontrado em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm . Acesso em: 10 jan. 2022.
  • 5
    As questões relacionadas a grupos vulneráveis eram majoritariamente direcionadas para a Promotoria de Justiça e Cidadania, que tinha uma atribuição bastante ampla, incluindo a defesa da probidade e legalidade administrativas e a proteção do patrimônio público e social.
  • 6
    Na capital, há aproximadamente 444 promotores divididos em diferentes áreas temáticas: 129 na área criminal, 44 no Tribunal do Júri, 3 no Juizado Especial Criminal (Jecrim), 53 na área cível e 69 em promotorias especializadas. Nas promotorias especializadas temos os seguintes números de promotores por área: Consumidor (6), Enfrentamento à Violência Doméstica (20), Falências (17), Família (12), Habitação e Urbanismo (6), Infância e Juventude (25), Mandados de Segurança (5), Meio Ambiente (6), Militar (6), Patrimônio Público e Social (10), Registros Públicos (3), Repressão à Sonegação Fiscal (5) e Direitos Humanos (8). Essas informações foram coletadas em 2018 do site institucional do MPSP.
  • 7
    O artigo apresenta resultados da dissertação de mestrado realizada pela autora entre 2016 e 2019 (ver RADOMYSLER, 2019bRADOMYSLER, Clio Nudel. Acesso à justiça e transformação social: tensões na luta contra a discriminação. 2019. 200 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019b. ).
  • 8
    Como grande parte do trabalho dos integrantes da Promotoria é realizada individualmente em frente a um computador, muitos dos meus dias em campo passei analisando documentos, ouvindo e participando de conversas pontuais que surgiam e fazendo algumas perguntas quando tinha a oportunidade. A Promotoria é dividida em quatro salas: uma para oficiais de justiça, uma para analistas e duas para os promotores. Tentei alternar a sala, os dias da semana e os horários nos quais realizava a observação participante. Quando possível, procurava acompanhar ações específicas, como reuniões entre os próprios integrantes da Promotoria, reuniões com atores envolvidos nos casos de discriminação, assim como eventos e visitas externas.
  • 9
    Como esse sistema foi implantado em 2010 e incorporou apenas quatro casos anteriores a essa data, realizei o mapeamento da atuação da Promotoria a partir desse ano. O acesso ao SIS-MP Integrado foi autorizado pelos integrantes da Promotoria, e os dados foram divulgados respeitando o anonimato e o sigilo requeridos.
  • 10
    Pedi aos integrantes da Promotoria que mencionassem casos marcantes para eles no tema da discriminação, que mostrassem desafios da atuação da Promotoria e potencialidades. Uma lista inicial foi compilada a partir dessas conversas. Essa primeira lista foi apresentada aos participantes, que incluíram mais alguns casos, resultando no número final analisado. A análise qualitativa foi realizada por meio da leitura de todos os documentos pertinentes aos procedimentos, como ofícios, despachos, portarias, atas de reuniões, TACs e pedidos de arquivamento.
  • 11
    Foi também possível classificar os casos em: comentários ofensivos em mídias e redes sociais (8), reprodução de estereótipos em propagandas, exposições artísticas e discursos acadêmicos (5), comportamentos discriminatórios em espaços públicos e privados (6), ações afirmativas (8) e políticas públicas (5).
  • 12
    Foram entrevistados dois promotores, três analistas e duas oficiais que integraram a Promotoria no período da pesquisa. Também foram entrevistados dois analistas da equipe de psicólogos e assistentes sociais do Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial do MPSP (NAT), que atuavam junto à Promotoria. Para resguardar a confidencialidade e o sigilo das entrevistas, bem como a identidade dos entrevistados, não foram mencionados os seus nomes, apenas o gênero e a função. As entrevistas foram conduzidas presencialmente, gravadas e transcritas, com duração de trinta minutos a duas horas.
  • 13
    Os resultados do censo racial do MPSP, realizado em 2015, podem ser encontrados em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/GT_Igualdade_Racial/Producao_GT_Igualdade_Racial/RELATÓRIO%20DE%20LEVANTAMENTO%20CENSO%20RACIAL.pdf . Acesso em: 13 jul. 2020.
  • 14
    Sobre a relação do MP com a sociedade civil, estudos indicam a prevalência de uma postura voluntarista e tutelar dos promotores, ancorada na ideia de que a sociedade seria incapaz de defender seus próprios interesses, o que seria agravado por instituições políticas insatisfatórias no cumprimento do seu papel representativo ( ARANTES, 1999ARANTES, Rogério Bastos. Direito e política: o Ministério Público e a defesa dos direitos coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 14, n. 39, p. 83-102, 1999. e 2007ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público na fronteira entre justiça e a política. Justitia , São Paulo, v. 64, n. 197, p. 325-338, jul./dez. 2007. ). Para alguns autores, esse modo de atuação dificulta iniciativas emancipadoras por parte da sociedade civil e permite uma politização excessiva da instituição. Sobre diferentes visões da relação do MP com a sociedade civil ver: DA ROS (2009)DA ROS, Luciano. Ministério Público e sociedade civil no Brasil contemporâneo: em busca de um padrão de interação. Revista Política Hoje , v. 18, n. 1, p. 29-53, 2009. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2020
  • Aceito
    25 Nov 2021
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