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Questão agrária: entraves jurídico processuais recorrentes e desigualdade social

Agrarian question: procedural legal barriers and social inequality

Resumo

O artigo se propõe a analisar a permanência da desigualdade social e da conflitividade agrária verificadas por uma prestação jurisdicional inadequada, fatores que dificultam o acesso à terra. Aponta que o processo histórico de apropriação privada da terra no Brasil remete à luta de classe. Sonda se a redução da desigualdade social no campo pode ser efetivada mediante a atuação dos atores coletivos envolvidos.

Palavras-chave:
Conflitos agrários; Desigualdade social; Função social da terra

Abstract

The article proposes to analyze the permanence of social inequality and agrarian conflict, verified by an inadequate jurisdictional performance, factors that hinder access to land. It points out that the historical process of private land appropriation in Brazil refers to the class struggle. Probe if the reduction of social inequality in the field can be effected through the action of the collective actors involved.

Keywords:
Agrarian conflicts; Social inequality; Social function of land

Introdução

A estrutura agrária brasileira se caracteriza pela concentração da propriedade da terra desde sua origem. Na atualidade verifica-se a persistência de um padrão de expansão das grandes propriedades e o “engolimento” da pequena propriedade rural, com a consequente desigualdade no processo de apropriação da terra e o aumento do abismo entre classes sociais.

Desta forma, uma das dimensões sociológicas da desigualdade social no Brasil refere-se à apropriação da terra e a formação extensiva de uma estrutura latifundiária ancorada em alguns mitos pseudoconcretos, tais como da produtividade, do desenvolvimento econômico, do direito ilimitado de propriedade, dentre outros. Assim, no afã protetivo da propriedade da terra, erigem-se cercas de farpas concretas e jurídicas. Nesse passo, o Direito torna-se legitimador de um processo de apropriação privada da terra e instrumento de punição seletiva daqueles que atentam ousar contra a regulação e legislação imposta. Portanto, estabelece um cercamento e prevê como tipologia delitiva as condutas que questionam tal regramento1 1 Sobre o cercamento, a criação de condutas criminosas contra a propriedade privada e o uso da lei como máscara da dominação de classe indica-se a obra “Senhores e Caçadores – a origem da Lei Negra” de Edward Thompson. O autor discorre sobre a criação da Lei Negra que estabelecia uma vasta tipologia criminal punida com pena de morte dos florestanos ingleses que foram alijados de suas terras e, por necessidade de sobrevivência, adentravam essas terras em busca de produtos para seu sustento. Thompson aclara sua intenção: “[...] tentei mostrar, na evolução da Lei Negra, uma expressão da ascendência de uma oligarquia Whig, que criou novas leis e distorceu antigas formas legais, a fim de legitimar sua propriedade e status próprios”. (THOMPSON, 1989, p. 351) .

A Questão Agrária, tomada de uma forma reducionista, frequentemente é apresentada desde um arcabouço ideologicamente construído, abordada de maneira superficial desde os noticiários filtrados por uma clivagem de classe dos meios de comunicação de massa até as mesas de discussão das universidades, com pretensa cientificidade. Os temas ora abordados despertam paixões discursivas acerca das questões agrárias, tais como, desigualdade social, direito de propriedade ou direito à propriedade, a dramática realidade de conflito coletivo pela posse da terra, entre outras.

Mais. Trata-se de uma questão estrutural que não só revela uma estratificação social conjuntural, senão que implica a condenação de muitos brasileiros à condição de vulnerabilidade e risco. Portanto, enuncia-se a tarefa da identificação dos excluídos da terra como categoria social relevante, nascida de um processo de apropriação privada da propriedade da terra, e, ainda, a tarefa de desvelar e aprofundar o mecanismo jurídico que é um dos pontos nevrálgicos do processo de estruturação das desigualdades sociais, exercendo uma função simbólica e coercitiva fundamental.

O Direito, considerado no conjunto dos mecanismos ou instrumentos que determinam o aprofundamento do processo de desigualdade social, e, tomado na frieza metódica da percepção empírica ou positivista, pode revelar um conjunto sistemático de indicadores de risco e hipossuficiência da classe social campesina por meio de dados cotidianamente coletados da práxis judicante no país.

Não obstante, impõe-se a tarefa de sondar elementos internos ao Direito que possuem o condão de determinar a realidade concreta ou externa, quais sejam os mecanismos “intrajurídicos” (institutos jurídicos) que, uma vez invocados, via de regra, cumprem o papel de legitimação de outorga da proteção possessória ou proprietária para determinada classe social em detrimento de outra, cuja consequência é o agravamento da desigualdade social e o acirramento que pode levar a um conflito agrário.

O modelo metodológico escolhido é a hermenêutica histórico-dialética. A hermenêutica permite contextualizar a problemática, pois abre o sentido interpretativo, afastando concepções simplistas e superficiais. O método histórico-dialético, numa perspectiva sociológica e filosófica, é inconteste, pois revela que a temática apreciada se dá no chão da história brasileira e aclara as contradições entre classes e atores sociais envolvidos no contexto. Com esses instrumentais desvela-se que em relação ao jus agrarismo a produção legislativa e a práxis do Judiciário optou por não fixar marcos equidistantes no tratamento das demandas, mutilando a ideia de justiça.

Desde uma perspectiva dialética verifica-se que o processo histórico-social de apropriação da propriedade da terra no Brasil desembocou na formação do latifúndio, que é uma ferida aberta no tecido social. Neste sentido, não se descuida da afirmação de que há uma intensa produção legislativa agrária no contexto da formação ou conformação social, isto é, da atuação e aplicação do Direito.

Esboçadas as premissas de contextualização, objetivamente enuncia-se que o presente artigo se propõe a (1) analisar o processo de apropriação privada da terra no Brasil desde a perspectiva de concentração fundiária e alijamento dos trabalhadores de acesso a esse instrumento de produção, e (2) perscrutar em que medida e por meio de quais mecanismos o Direito pode ser manejado como garantidor e legitimador da desigualdade verificado historicamente na Questão Agrária Brasileira.

1. A apropriação da terra no brasil: implicações histórico-jurídicas de um conflito atual

A história do Brasil é marcada pela apropriação indevida, pelo saqueamento das riquezas originárias e pela concentração da propriedade, inclusive de terras públicas. O presente estudo parte da premissa que nossas mazelas e desigualdades sociais tem como matriz e fonte a distribuição de terras e a formação do latifúndio. A “mentalidade proprietária2 2 Sobre o conceito de “mentalidade proprietária”, Paolo Grossi assinala que ela “rompe a trama superficial das formas, liga-se necessariamente, por um lado, a uma antropologia, a uma visão do homem no mundo, e por outro em graça de seu vínculo estreitíssimo com interesses vitais e de classes, a uma ideologia” (GROSSI, História da propriedade e outros ensaios. Trad. Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. (GROSSI, 2006GROSSI, Paolo. (2006). História da propriedade e outros ensaios. Trad. Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar., p. 31) nascente no país se dá com uma forma latifundista, que forja uma visão de mundo individualista em detrimento da coletividade.

Tal constatação sociológica emerge dos estudos realizados por Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, dentre outros. Verbi gratia, traz-se conclusão exarada por Celso Furtado: “a concentração da propriedade da terra está profundamente enraizada na formação histórica do país” (FURTADO, 1989FURTADO Celso. Pequena Introdução sobre o desenvolvimento. São Paulo: Editora Nacional. 1989., p. 59). Vale asseverar que a questão agrária desde sua gênese apresenta distorções sociais e jurídicas que refletem e influenciam o Direito na seara agrária da atualidade. O que ocorreu no Brasil foi a formação de extensos latifúndios, estabelecendo a segregação entre possuidores e marginalizados do acesso a terra, tendo como resultado a expropriação dos instrumentos de produção dos trabalhadores3 3 Marx revela a estratégia de intervenção da evolução capitalista no modo de produção e na expropriação dos trabalhadores do campo: “o processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira ao trabalhador a propriedade dos seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção; e converte em assalariados os produtores diretos. [...] A expropriação do produtor rural, do camponês, que fica assim privado de suas terras, constitui a base de todo o processo”. .

A formação da estrutura de poder que se desenvolve no Brasil é marcada pelo uso da violência perpetrada pela classe hegemônica, em posição dialética, deve-se grifar com toda tinta possível, a resistência correspondente do povo brasileiro, como Darcy Ribeiro de forma veemente e desmascara o conflito invisibilizado: “ao contrário do que alega a historiografia oficial, nunca faltou aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante como arma fundamental da construção da história” (RIBEIRO, 1996RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 26).

A construção da historiografia oficial revela a cristalização de uma visão dos vencedores, originariamente “herdadas, incorporadas e assimiladas a partir do processo de colonização lusitana” (WOLKMER, 2007WOLKMWER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. , p. 44). No Brasil Colônia, a visão do europeu colonizador é tida como civilizado e dos indígenas como selvagens. No contexto da discussão acadêmica, o que por si só demonstra uma desigualdade da correlação de forças, em termos do direito pátrio, sobressai a posição das correntes de pensamento que não admitem a existência de um Direito das nações indígenas no período anterior à colonização. Desta forma, constrói-se, ambivalentemente, a deslegitimação de um Direito indígena e afirma-se a atuação do colonizador, como portador de um ethos civilizatório europeizante superior.

Em posição diametralmente oposta à estreita postura legalista acerca do Direito, bem como dos históricos oficiais, há que se afirmar que a forma de organização da vida social indígena nas suas especificidades culturais de valoração e procedimento de resolução de conflitos constituem de per si em exercício de um Direito. Carlos Frederico Marés, a este respeito, escreve que “se trata de um direito originário quer dizer que o direito dos índios é anterior ao próprio direito, à própria lei” (MARÉS, 2006MARÉS, Carlos Frederico. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 2006., p. 122).

Conclui-se, assim, que, não obstante a visão imposta pela colonização, as nações indígenas são portadoras de um modo próprio de resolver os conflitos sociais e os temas atinentes à vida social, no que tange à propriedade, família, matrimônio, sucessão, delito. Descortina-se, então, a existência de um Direito, originalmente pátrio, fundado nos mores (costumes) mais profundos e íntimos das nações indígenas autóctones.

Nesse passo, necessário reportar a autores, tais como Jacques Távora Alfonsin, que, na contramão do monismo legalista jurídico, defendem a tese da existência de um “Direito insurgente, eficaz, não-estatal” (ALFONSIN, 1989ALFONSIN, Jacques Távora. Negros e Índios no Cativeiro da Terra. Rio de Janeiro: AJUP/FASE, 1989., p. 20) verificado tanto nas remotas comunidades indígenas como na experiência dos negros do Brasil colonial. Portanto, a partir da propagação de autênticas ações legais que regulavam as experiências das nações indígenas, excetuando a imposição das reduções jesuíticas, bem como as que regulavam as organizações quilombolas, pode-se inferir um pluralismo jurídico comunitário ainda que se trate de uma experiência local e como forte conteúdo cultural.

A questão fundiária brasileira, bem como os cânones oficiais, ignoram por completo a titularidade da propriedade indígena originária. Desta forma, remonta-se a apropriação da terra no Brasil ao regime de sesmaria, cujas raízes deitam-se ao reinado de D. Fernando I, que, em 1375, criou a Lei de Sesmarias em Portugal, com objetivo de estender a ocupação de terras abandonadas numa época de profunda crise de abastecimento alimentar na Europa, a qual experimentava um paulatino processo de decadência do modo de produção feudal, que apresentava esgotamento. A determinação buscava ocupar os lavradios abandonados, impunha a obrigação de lavradio aos donos das terras ociosas ou a transferência a terceiros capazes de torná-las produtivas.

No Brasil as Sesmarias foram utilizadas como instrumento de apropriação e como instrumento jurídico de distribuição da propriedade com força de lei. Assim, cumpre uma estratégia do Estado português, qual seja a de estender sua prática colonizadora e garantir a soberania geopolítica sobre o vasto território brasileiro. Desta forma, demarca uma presença oponente às investidas de outros povos, especialmente, dos franceses.

Originariamente, o nascimento do latifúndio no Brasil está atrelado ao modus de apropriação e distribuição das terras por parte do colonizador. Da clivagem distintiva de classe decorre que no regime do latifúndio sesmeiro a terra é concebida como efetivo símbolo de poder que se estende sobre o bem que passa a ter a chancela de privado. A propriedade da terra ou apropriação desta determina a fonte do poder econômico, social, político e jurídico de reduzido número de pessoas, uma “elite agrária” (WOLKMER, 2007WOLKMWER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. , p. 50).

Na raiz, o latifúndio, resultante de um processo de colonização reprovável, é o eixo central não só da atividade econômica colonial e delimitador de uma sociedade extremamente desigual e de classes definidas, senão que demarca socialmente a emergência de uma classe dominante rural, a dos “senhores da terra” ou latifundiários.

Na atualidade se verificam consequências cujo nascedouro remonta à estrutura agrária estabelecida pelo modelo latifundista, quais sejam: o fortalecimento do poder político-econômico dos latifundiários, que passam a figurar nas estruturas e esferas de poder do Estado; a desigualdade social causada pela concentração da propriedade da terra; a prática e adoção de modelos agrícolas baseados na exploração predatória da terra e da natureza; a prevalência da monocultura voltada ao mercado externo.

Juridicamente, a extinção do regime de sesmarias foi efetivado pela Resolução nº 76, de 17 de julho de 1822. Ocorre que uma determinação jurídica não tem o condão de volta ao stato quo ante. Historicamente, como superação ao modelo sesmarial implantou-se o chamado sistema de posse, com a regularização definitiva dada pela Lei nº. 601- Lei de Terras, de 18 de setembro de 1850.

O denominado Regime de Posse é compreendido como o espaço de tempo sem regulação legal da aquisição originária de terras, e verificado do fim do sistema sesmarial (1822) até o advento da Lei de Terras (1850), têm-se 28 anos de lacuna no tocante à legislação agrária. Assim, o sistema jurídico não previa a transferência de terras públicas desocupadas para particulares.

É pacífico que o advento da Constituição Imperial em 1824 reforça em definitivo a extinção do instituto da sesmaria. Outrossim, não disciplinou o instrumento ou meio de aquisição de terras. O Diploma Constitucional do Império, a destarte de não tratar da estruturação fundiária do país, garantiu a plenitude do direito de propriedade, solidificando a posição oficial de recepção dos atos praticados durante o período das sesmarias. Na dicção estreita da Constituição Imperial: “[...] é garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude [...]” (Art. 179, XXII).

Dialeticamente, cabe grifar o desencadeamento de processos de resistências populares concomitantemente à investida estatal e privada de apropriação da terra. O espaço característico de insurgência e resistência popular se dá no campo, donde se experimenta dramaticamente a desigualdade social engendrada. Desta forma, o conflito agrário e social se configura inevitável.

As Revoltas dos Cabanos e de Canudos, dentre outras, são exemplos de experiências que ressoam no imaginário popular como libertárias e nas notas oficiais como barbárie e atraso coletivo. Para o poder estatal, seja do Império ou da República, não é suficiente sufocar e eliminar fisicamente o Movimento Cabano ou o Arraial de Canudos, mister apagar tal experiência da memória coletiva e firmar uma determinada versão da história, assenhoreando-se da “memória e do esquecimento” (LE GOFF, 1984LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi vol 1. História – Memória. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984., p. 408)4 4 Jacques Le Goff tematiza a incidência da memória coletiva no contexto da luta social: “A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante nas lutas sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva”. (LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi vol 1. História – Memória. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984). .

Com o processo de expropriação da terra e com a crescente pauperização no campo, um grupo de camponeses sem terra se rebela contra a escravidão e a miséria no Pará, em 1835. A miscigenação era uma das características dos cabanos, pois formado por negros, mulatos e índios, donde se destacava a influência dos negros que viviam nos quilombos. A insurgência da Cabanagem foi tão significativa que empreenderam uma marcha revolucionária do campo para a cidade, com a tomada da Capital, Belém.

Seguiram-se duas tentativas fracassadas de eliminação da Cabanagem. Na terceira investida, o Império fortaleceu suas tropas e recuperou o controle governamental com o massacre sistemático da sublevação popular cabana. Números dão conta que “40% dos habitantes da província foram mortos no enfrentamento com as forças imperiais” (VARELA, 1998VARELLA, Marcelo Dias. (1998). Introdução ao direito à reforma agrária: o direito face aos novos conflitos sociais. São Paulo: Editora de Direito., p. 141).

Os acontecimentos da insurreição de Canudos revelam a dramática situação dos trabalhadores da terra, não obstante a propaganda oficial pautada em torno de demonstrar o destempero da figura messiânica de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro. Geograficamente Canudos era um vilarejo encravado no Norte da Bahia, numa região isolada e de difícil acesso.

O que se sucedeu no Arraial de Belo Monte apresenta características fortes e utópicas de uma experiência igualitária, profundamente inclusiva e visionária. O discurso pela posse coletiva da terra, a ausência de impostos e a predisposição da resolução de conflitos que excluía a presença do Estado opera uma mobilização grande de ex-escravos, índios, camponeses desamparados, artesãos, migrantes, pequenos proprietários de terra. Um traço interessante que une os deserdados do campo na defesa da cidadela edificada é a convicção de que é preferível antes a morte do que abandonar a cidade santa e se render.

O projeto de Canudos desafia a recém criada República. Toda mística que envolvia Belo Monte despertou a ira das autoridades e do clero católico, que consideravam-no uma ameaça ao establishment. Dentre outras acusações figura a de que teria comandado uma queima de editais de cobrança de impostos.

Carmela Panini assinala que a “cidade livre dos camponeses” suportou três investidas do exército da República. Entretanto, com a arregimentação de forças estatais, a investida sobre Belo Monte determinou a sua aniquilação em 05 de outubro de 1897:

Para a quarta investida, o governo mobiliza doze mil soldados com o mais moderno equipamento bélico da época [...]. Desta feita, a cidade é destruída. Grande parte dos camponeses é torturada e exterminada. Alguns se suicidam para não se entregarem ao exército [...]. (PANINI, 1990PANINI, Carmela. Reforma agrária dentro e fora da Lei: 500 anos de história inacabada. São Paulo: Paulinas, 1990., p. 48).

Canudos, na atualidade, reveste-se de um simbolismo de resistência na história campesina brasileira. Resistiu até o esgotamento completo. Euclides da Cunha, a quem se cita meramente como testemunha e narrador, na obra “Os Sertões”, assinala o momento em que caíram os seus últimos defensores: “Canudos resistiu até o esgotamento completo. [...] Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados” (CUNHA, 1984CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Editora Três, 1984., p. 351).

A tensão de classe e a resistência caracteriza o processo de formação do povo brasileiro. Ante as insurgências populares, fortalece-se o rearranjo de um mecanismo de freio e deslegitimação pela ideia de legalidade em torno da apropriação da propriedade. Assim, pelo Direito se forja uma “cerca jurídica” da propriedade, o famigerado direito de propriedade. Para impedir invasões desordenadas (fora da ordem), necessário se faz o uso da repressão e para reprimir é necessário um permissivo legal coercitivo. Neste sentido, são erigidos os diplomas legais reguladores da questão agrária brasileira.

Nem mesmo o advento da República foi capaz de cambiar as desigualdades sociais verificadas no campo. Ao contrário, continuam as velhas práticas de políticas voltadas a salvaguardar os interesses dos latifundiários, portanto, dos interesses privados em detrimento de políticas públicas estatais que poderiam ter alcance social relevante.

2. A Questão Agrária no século XX e o ressurgimento da luta pela terra: as Ligas Agrárias Campesinas

O limiar do século XX demarca um otimismo ímpar em todas as dimensões da vida social, com impacto direto no campo prático e teórico no badalado conhecimento científico. Assim, com a imposição do pensamento cientificista, há um despertar da fé cega na razão como instrumento, nas ciências da natureza e no liberalismo como modelo econômico hegemônico. Não obstante, conforme denúncia da Escola de Frankfurt, esse século se defrontará com problemas herdados e com situações limites de uma humanidade capaz de se desumanizar a tal ponto de conceber, fulcrada na legitimidade jurídica, governos totalitários, beligerância de caráter mundial, subjugação da natureza e aprofundamento da concentração da propriedade fundiária.

As promessas da Razão Iluminista, qual seja da Modernidade, de emancipação do sujeito não se realizam no Brasil. No que concerne ao jus agrarismo verifica-se que a atuação estatal é de manutenção da estrutura agrária preestabelecida, com o incremento de uma pretensa modernização no campo, que se mostrou uma modernização conservadora.

Em contrapartida ao pretenso desenvolvimento estatal no campo, verifica-se a emergência e insurgência do campesinato brasileiro com características de levantes populares. Neste passo, há um ressurgimento da luta pela terra entre 1940 e 1964, com uma característica organizativa inédita no Brasil em torno das associações e dos sindicatos dos trabalhadores rurais. Ocorre, então, verdadeira efervescência no campo brasileiro, tais como:

Resistência dos camponeses em Porecatu, norte do Paraná (1950); Revolta de Formoso e Trombas, no norte de Goiás (1954); a Resistência do Sudoeste do Paraná, Pato Branco e Francisco Beltrão (1957); Liga Camponesa, em Pernambuco e Paraíba; o Movimento dos Agricultores Sem Terra – MASTER -, anos 60, Rio Grande do Sul (SANTOS, 1995SANTOS, Fábio Alves dos. Direito Agrário: Política Fundiária no Brasil. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1995., p. 106).

O nascimento das Ligas Camponesas merece destaque no ressurgimento da luta pela terra no Brasil, tendo à frente a atuação de Francisco Julião, que pertencia aos quadros de lideranças do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Concretamente, a crise da cana-de-açúcar no Nordeste, no início do século, fez com que os senhores de engenho arrendassem terras a foreiros, passando a viver de rendas provenientes do foro e do cambão5 5 Fábio Alves dos Santos explica que o cambão, também conhecido como “canga”, “era a obrigação de trabalhar cerca de vinte dias de trabalho gratuito por ano” (SANTOS, 2002, p. 107). . Ocorre que, com a Segunda Guerra, cresce a demanda pelo açúcar e o preço sobe e, consequentemente, levas de foreiros foram expulsos ou obrigados a se sujeitarem a trabalhos forçados nas usinas, sem justa remuneração.

As Ligas se fortalecem não somente na denúncia, mas na prática da organização dos trabalhadores rurais a empreender resistência contra a situação de espoliação. O ascenso organizacional do campesinato brasileiro é tão significativo que se formam Ligas Camponesas em treze estados membros da Federação. Assim, pauta-se a discussão pela Reforma Agrária, sob o lema “Reforma Agrária na lei ou na marra”, e, como forma de estratégia e pressão, pela primeira vez desencadeia-se a prática de ocupações de terras. Em contrapartida, a reação por parte dos latifundiários, em eterno relacionamento com as estruturas estatais, foi o recrudescimento com uso da violência e estratégias jurídicas de deslegitimação das organizações, como, por exemplo, a declaração legal de clandestinidade do Partido Comunista.

A retórica predominante em torno das questões ligadas ao mundo agrário era de que o progresso adviria da modernização e do incremento da produtividade agrícola, o que propiciaria o desenvolvimento da classe de trabalhadores no campo. A ideia atraía pelo simplismo, como se tivesse o condão de sanar uma ferida histórica no tecido social: a modernização agrícola como solução do problema agrário. Na prática, como acentua José Graziano da Silva, sucedeu-se um acordo entre classe, cujo resultado do projeto vitorioso da burguesia agrária foi o êxodo rural:

Houve uma aliança entre a burguesia industrial e o latifúndio, num pacto político que, além de manter a estrutura agrária existente nas regiões de colonização mais antiga, impediu qualquer medida destinada a democratizar o acesso à posse da terra nas regiões mais novas (SILVA, 1982SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa – estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982., p. 119).

Nesse mesmo contexto, os governos do regime militar empreenderam uma verdadeira epopeia de ocupação territorial do que chamavam de fronteiras agrícolas, com uma propaganda épica. Como bem denomina Becker, há uma investida para dominação dos “espaços vazios”, sendo que “a noção de ‘espaço vazio’ serve estrategicamente de válvula de escape para investimentos em áreas em que o capital ainda não se estruturou” (BECKER, 1997BECKER, Bertha Koiffmann. Amazônia: geopolítica na virada do III Milênio. 5. ed. São Paulo: Ática, 1997., p. 10).

Noutra frente, o governo Militar esmerou-se em conter o avanço das organizações populares no campo e na cidade. Quanto às reivindicações agrárias, houve verdadeira intervenção na questão da propriedade, obviamente em desfavor dos trabalhadores rurais. Implantou-se a estratégia da política do medo, da desconfiança e da perseguição. Seguiu-se brutal repressão às organizações de trabalhadores. Lideranças populares foram presas, assassinadas ou forçadas a se exilarem. Disso resultou o esvaziamento do conteúdo reivindicatório das organizações agrárias. A campanha caracterizada pela violência estatal e sistemática consistiu em reduzir a questão fundiária e agrária a uma questão política aceitável.

Forçosamente, há que se considerar a atuação da Igreja Católica no Brasil quanto ao Governo Militar. Vale ressaltar que, de início, prestou apoio ao golpe militar. Entretanto, quando alguns membros da instituição foram alvos da ação estatal, então passou a desempenhar um papel contraditório, visto que setores da Igreja comungavam da ideia de legitimidade do governo. Fato é que, do distanciamento do regime, converte-se em refúgio para lideranças perseguidas e, por meio de seus agentes, implanta o projeto das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Nasce dentro dessa experiência a Comissão Pastoral da Terra (CPT), inclusive como principal espaço de organização para ocupações de terras. A CPT é considerada uma das responsáveis pelo nascimento dos movimentos campesinos, dentre eles o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil - MST. Muitas lideranças passaram pela experiência comunitária das CEBs.

Paulatinamente com o enfraquecimento das bases do regime militar dá-se o ressurgimento da luta pela terra. O enfrentamento jurídico dos conflitos agrários dá-se no palco discursivo da Assembleia Nacional Constituinte de 1987(ANC). Desde a convocação o tema da Justiça Agrária de pronto acirra os ânimos. A bancada ruralista se organiza em torno da UDR (União Democrática Ruralista) e os parlamentares afins da luta popular expressam a reivindicação de acesso à terra, pautada pelos movimentos sociais campesinos.

Neste contexto, acolhe-se o princípio da função social da propriedade, na exata redação do art. 186:

A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado, II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 186).

Com a previsão constitucional do princípio da função social da propriedade descortina-se para os movimentos sociais a possibilidade de nova hermenêutica constitucional e de judicialização dos conflitos coletivos agrários pela posse da terra, tendo como fundamento os valores de uma Constituição Dirigente que vincula o legislador e o aplicador do Direito.

3. A questão jurisdicional agrarista: mecanismos de acesso e entraves

Resta demonstrada, ainda que num breve recorte, a análise de elementos e eventos indicadores da imbricação e implicação histórico-social e jurídica da apropriação privada da terra com o consequente aprofundamento da dramática situação de desigualdade social no Brasil, que revela a origem e o abismo de classes sociais, donde se verifica um processo de pauperização do campesinato e de setores da sociedade civil, a destarte de posicionamentos contrários.

À frente problematiza-se o uso prático-ideológico do Direito por meio dos instrumentos jurígenos legitimadores do acesso de determinada classe social aos mecanismos de apropriação privada da terra. Assim se explica o trâmite e a facilidade política com que os latifundiários alçam às estruturas do Estado e o fechamento dos pórticos aos campesinos e outras classes sociais marginais.

A questão agrária no Brasil é objeto de extensa previsão legislativa (isto é, de produção legislativa), e, do ponto de vista crítico, expressa a vitória das elites sobre as reivindicações populares, visto que o resultado final da regulação jurídico-agrária demonstra a hegemonia dos senhores da terra.

Outrossim, a Questão Agrária é objeto de apreciação pelo Poder Judiciário. Nesse passo, vale reafirmar que o fenômeno da judicialização dos conflitos agrários por parte dos Movimentos Sociais Campesinos é fenômeno de recente data. Entretanto, numa perspectiva de correlação de forças, cabe lembrar a origem da magistratura brasileira e sua íntima relação com a oligarquia rural. Assim, ainda que haja posições confessadas em defesa da neutralidade e imparcialidade dos juízes e de julgamento, fato é que as elites sempre figuraram nos postos da magistratura e, consequentemente as decisões jurisprudenciais nada mais revelam que uma posição de classe dominante em favor do latifúndio.

Neste sentido, emergem as artimanhas e artifícios jurídicos desenhados à luz de uma hegemonia de classe e finalísticamente voltadas a estabelecer uma cerca quase instransponível no que tange ao acesso à terra pelos que não a possuem. Os mecanismos de entrave do acesso dos trabalhadores rurais à terra são, portanto, incrementados por um corpo legal e por uma estrutura judicante devidamente alinhadas ao interesse de uma classe possuidora de latifúndios. O processo é um desses mecanismos absurdos de produção do real ou de justificação da exclusão.

A demanda coletiva pela posse da terra é resultado das tensões sociais. A luta coletiva pela posse da terra atinge níveis de dramaticidade. Nesse passo, a questão agrária e a luta pela terra gozam de legitimidade, porquanto, trata-se de realização do preceito constitucional de promoção da dignidade humana.

O ponto crucial em relação ao Direito Agrário e à luta dos Movimentos Sociais pela posse da terra refere-se ao entrave jurisdicional. O Direito Agrário não possui permeabilidade no Judiciário e carece de autonomia jurisdicional no sentido de uma correlação de forças internas capazes de mudar o “olhar” judicante sobre a questão agrária. O problema situa-se com relação à práxis.

Pesa sobre a atividade judicante da magistratura, em medida extrema, a ausência de julgados que acolham os preceitos constitucionais da função social da propriedade como efetivação de direitos fundamentais.

Os conflitos agrários, via de regra, acontecem nos recônditos sertões do país. Assim, conforme regulação das normas processuais, as demandas devem ser propostas diante de um foro da Justiça Estadual, exceto se há presença da União, cujo foro será da Justiça Federal. Ocorre que a formação bacharelesca privilegia o legalismo e formalismo jurídico, privilegiando postulados privativos-civilísticos em detrimento da ordem principiológica e constitucional. Assim, a defesa de interesses privados de classe sobrepõe-se ao Texto Constitucional.

Um embate interessante deve ser relembrado. Trata-se das discussões travadas sobre a Questão Agrária Nacional Constituinte de 19876 6 José Gomes da Silva trata da temática específica da discussão da Questão Agrária na ANC de 1987. Consultar a obra: José Gomes da Silva. Buraco negro – A Reforma Agrária na Constituinte, São Paulo: Paz e Terra, 1989. . Não há de se olvidar o esforço e o protagonismo dos jusagraristas que, cônscios da necessidade de uma justiça agrária para o país, intensificaram a luta para ver a sua previsão na Constituição Federal. Vários trabalhos e estudos sobre o assunto foram publicados e verificou-se uma mobilização significativa nas bases e movimentos organizados da sociedade civil em torno de uma proposta de previsão da Justiça Agrária no contexto do Poder Judiciário.

Em sentido contrário à toda mobilização e participação popular, o que surgiu da Constituinte foi uma “solução paliativa” a que se refere o dispositivo do artigo 126 inserido na Constituição Federal de 1988. A redação originária assim previa:

Art. 126. Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça designará juízes de entrância especial, com competência exclusiva para questões agrárias. Parágrafo único. Sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 126, redação original).

Na prática a instituição de “entrâncias especiais” revelou-se inoperante. Ato contínuo, como se um problema de conflito social se resolvesse com contorcionismo legislativo, os parlamentares aprovaram a Emenda Constitucional n°. 45, de 08 de dezembro de 2004, conhecida como Reforma do Judiciário, que, dentre outros, alterou o art. 126 da CF/88, passando a apresentar a redação que segue:

Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias. Parágrafo único. Sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 126).

Assim, a competência para resolver os conflitos e litígios resultantes das questões agrárias passa das “entrâncias especiais” para as “varas agrárias”. Paulo Tormin Borges expressa causticamente sua indignação com as manobras legais denunciando-as de engodo, nestes termos:

Considero (...) péssimo que a Constituição não tenha instituído a Justiça Agrária. Isto de Varas especializadas ou entrâncias especiais (...) é engodo. Não resolve nem ajuda. Precisamos, isto sim, é de juízes especializados, isto é, juízes com cabeça de agraristas, juízes com mentalidade agrarista” (BORGES, 1995BORGES, Paulo Tormin. Institutos básicos do Direito Agrário. 9. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 1995., p. 65).

Salta aos olhos a intenção de transferir a resolução de conflitos agrários para instâncias judiciais, sem levar em consideração aspectos sociais relevantes no deslinde dos problemas, que trata, em ultima ratio, de uma questão social e estrutural de desigualdade que se resolve com medidas profundas de desconcentração da renda e da propriedade.

Dentre os entraves que se pode verificar para a perpetuação das desigualdades sociais, uma delas é a construção legislativa ancorada numa pretensa legitimidade reclamada pelo Direito. Levando-se em consideração que as estruturas estatais em suas mais diferentes esferas e funções encontram-se nas mãos de uma elite mandatária e proprietária, logo não há uma correlação de forças capaz de assegurar uma derrota da hegemonia de classe. Desta forma, a legislação acerca da questão agrária expõe a nu a vontade da classe que domina.

Nesse passo, não obstante a hegemonia legislativa, a classe dominante detém a hegemonia judicante. Vale dizer, a magistratura brasileira, desde sua gênese, foi espaço um espaço privilegiado de uma casta lusitana, transmutando-se, mais tarde, em espaço ocupado pela elite agrária.

O espaço da magistratura e, por extensão do sistema jurídico nacional, sempre foi apropriado a partir de uma política entre grupos influentes detentores do poder sobre o sistema. Tal elite estendia seus tentáculos por todos os setores do sistema jurídico, vale dizer, na dominação do ensino bacharelesco e no reduzido nicho da produção doutrinária. Aliás, é recente a investida de setores organizados da sociedade civil e dos Movimentos Sociais em direção aos cargos e conquistas de espaços no Poder Judiciário.

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida, em tese denominada “A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil”, defendida na Universidade de São Paulo, problematiza o estrato social originário da magistratura brasileira e crava que:

O poder das elites da administração da justiça é o poder de seus capitais e das estruturas que permitem a produção, a reprodução, a circulação e o exercício desse poder. É, portanto, um poder acumulado nas trajetórias dos indivíduos e nas estruturas que fizeram essas trajetórias possíveis. (ALMEIDA, 2010ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 2010., p. 288)

Historicamente formou-se um imaginário simbólico popular permeado da ideia de que os operadores jurídicos, especialmente os juízes, são inatingíveis, uma espécie de detentores do saber de uma cultura oculta. Assim, em favor da elite dominante das estruturas judiciais, forjaram-se os mitos, os tabus e a imposição do Direito. Luis Alberto Warat denuncia a fetichização do direito, quer dizer, a conversão “do discurso jurídico em um mito, não só permite tomá-lo pelo que não é realidade, senão que também converte os operadores do discurso jurídico em tabu: amos intocáveis da lei, a verdade e o desejo” (WARAT, 2002WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II – A epistemologia jurídica da Modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002., p. 91).

O conflito agrário judicializado revela o poder hegemônico das partes em disparidade de armas, visto que de um lado estão os trabalhadores rurais organizados em movimentos sociais, que agem para pressionar o governo a tomar posição de realizar a Reforma Agrária, e, no polo oposto, os proprietários rurais ou latifundiários, cujos tentáculos se estendem nas estruturas do poder judicante, alcançando a intocável classe da “nobreza togada”.

Conforme afirmado, o fenômeno da judicialização dos conflitos agrários é recente e se configura numa estratégia de tentar dar visibilidade à desumana situação de desigualdade social que planteia o campo brasileiro. Assim, as demandas desafiam a atuação do Poder Judiciário. Os problemas apontados soam invencíveis de tal modo que não se resolvem os conflitos agrários e muito menos a redistribuição da terra na via estreita dos processos judiciais, visto que não há uma Justiça Agrária especializada, as varas agrárias não funcionam e a magistratura, numa postura corporativista de classe, reverbera o interesse da classe dominante.

Outro entrave, para além da ausência de uma Justiça Agrária, é a inexistência de uma formação jusagrarista no contexto ensino jurídico, prevalecendo um civilismo legalista e privatista. Portanto, não há juízes com perfil agrarista, especializado em Direito Agrário e nas questões concretas agrárias, sem olvidar os outros ramos do conhecimento, da Sociologia, Filosofia, Política, etc. Deontologicamente, o juiz agrarista é, antes de tudo, conciliador e profissional de mentalidade agrarista. Está implícita aqui a necessidade de reformulação da finalidade do ensinamento jurídico e da urgente reinserção da disciplina de Direito Agrário nos currículos das universidades.

Quanto à figura do juiz agrário, alguns questionamentos se impõem. Qual a tarefa que se impõe ao Juiz agrário? Qual o perfil que se espera desse juiz especializado? E quanto à acessibilidade a esse magistrado? De pronto, diga-se que o juiz agrário deve ser acessível e, pela característica sui generis do conflito agrário deverá estar aberto à possibilidade de se deslocar ao local do fato. Ainda, não obstante toda segurança necessária, deve ter predisposição em vencer a barreira burocrática física que o afasta da realidade fática, do chão concreto onde se desenrola o dramático enredo do conflito de classe. Isso não significa ferir princípios já consagrados como o da inércia ou do impulso oficial.

Num litígio possessório, especialmente quando se trata de conflito coletivo envolvendo luta ou disputa de terra, não há que levar em conta somente o direito de propriedade sustentado pelo autor, até porque na possessória, salvo excepcionalidade, se discute posse e não domínio. A ocupação dá-se como ato coletivo de pressão por parte de cidadãos e cidadãs que veem nessa forma de luta um mecanismo de conquistar condições dignas de vida, já garantidas na Constituição e não efetivadas pelo Estado. Aliás, a prática da ocupação já foi matéria de deliberação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sede de Habeas Corpus e, nas considerações do voto do relator, Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, encontra-se consignado verdadeira decisão garantista:

[...] a conduta do agente do esbulho possessório é substancialmente distinta da conduta da pessoa com interesse na reforma agrária. No esbulho possessório, o agente, dolosamente, investe contra a propriedade alheia, a fim de usufruir um de seus atributos (uso). Ou alterar os limites do domínio para enriquecimento sem justa causa. [...]Na ocupação pode haver do ponto de vista formal, diante do direito posto, insubordinação: materialmente, entretanto, a ideologia da conduta não se dirige a perturbar, por perturbar, a propriedade. Há sentido, finalidade diferente. Revela sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual seja, a implantação da reforma agrária (CERNICCHIARO, 1996CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Voto proferido em habeas corpus HC STJ – 4.399/96 – SP, 1996., Voto em Habeas Corpus STJ – 4.399/96).

Diante de todos os entraves jurídico-legais que cercam a judicialização da questão agrária, advoga-se a tese de que é possível pensar na organização de uma Justiça Agrária, com previsão recursal dos tribunais agrários, observando, no que for compatível, a forma da Justiça do Trabalho, e privilegiando postulados que propiciam o contato do judiciário com a realidade concreta. Enfim, tudo o que for necessário para instrução e realização do escopo jurisdicional. O processo agrário, nesse passo, deve primar pela informalidade, pela publicidade, pela uniformização nos casos de situações semelhantes, pela oralidade e pela concentração dos atos processuais. Faz-se imperioso que os tribunais agrários sejam independentes, com juízes nomeados por concursos públicos de provas e títulos, impregnados com a mentalidade agrarista, pois, somente desta forma, pode-se alcançar o verdadeiro sentido de existir da justiça agrária.

Nunca demais ressaltar que o processo é mero “instrumento da prestação jurisdicional” (DINAMARCO, 1998DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 179). Nesse passo, para se vencer os entraves endoprocessuais há que se pensar na mudança estrutural do sistema judicante a respeito das questões agrárias. Assim, as dificuldades impostas ao acesso à Justiça cairiam por terra diante de profundas transformações sociais e seriam superadas excrescências processuais quanto à ausência das práticas das audiências de justificação da posse (ou de Mediação), da ausência do Ministério Público como garantista dos direitos advindos do Código de Processo Civil, dos institutos processuais das condições da ação, dentre outras.

Considerações Finais

Nas linhas e entrelinhas deparou-se com problemas que, tomados no contexto e conjunto da Questão Agrária, revelam a distribuição desigual da propriedade da terra no Brasil. Ao longo do presente arrazoado aclarou-se a estruturação da desigualdade social, bem como se traçaram-se os contornos de uma estratificação social resultantes da exclusão.

Didaticamente foi abordado temáticas no que tange aos processos sociais que estruturaram a desigualdade social, tais como: o processo da apropriação privada da terra; a dialética insurgência da resistência por parte de organizações e movimentos populares e a contrarreação dos “senhores da terra” (latifundiários); o uso do Direito como mecanismo de entraves legais para estabelecer uma cerca jurídica da propriedade privada; a estratégica dominação das estruturas de poder por meio de uma articulação de classe no seio do estado, especialmente com a dominação das instâncias do Poder Judiciário, dando azo a uma “nobreza togada”.

Tratar da Questão Agrária é vindicar que se coloque na pauta-do-dia a discussão e implementação acerca do Direito fundamental do acesso à terra. Para além de um mera discussão acadêmica, está envolvida aqui a sobrevivência e a subsistência de muitos cidadãos e cidadãs, a constituírem um “patrimônio mínimo” de existir no mundo e ter reconhecida sua dignidade humana

Historicamente, quando se pensa em questão agrária no Brasil, emerge o equivalente: conflito. Juridicamente, tem emergido o equivalente: prevalência do interesse do mais forte (do latifúndio). A atualidade da temática é atestada pela presença na mídia, no imaginário popular expressado nas rodas de conversas e nos tribunais. A polêmica evidentemente vem junto com a paixão causada pelo mesmo. Paixão, tomada no melhor sentido literal: como patere, do latim, que significa sofrimento, doença. Paixão que provoca, que mobiliza os deserdados do chão agrário, em um país onde a realidade de sofrimento dos campesinos é presente.

Se o Estado, que detém o monopólio da jurisdição, é responsável pela prestação jurisdicional como forma de solucionar e dirimir conflitos, então, impõe como tarefa a este, em última análise, não só exercer o jus puniendi advindo do conflito agrário, mas, sobretudo, implementar instrumentos materiais de Acesso à Justiça, seja por meio judicial ou extrajudicial.

Vale frisar, que não se trata de mera previsão formal de um rol de direitos que habitam a forma-código das legislações. A reivindicação é de Justiça Material, que tenha o condão de desigualar para criar igualdade, isto é, que seja capaz de reduzir as desigualdades sociais.

Assim, ao lado de uma verdadeira política de Reforma Agrária, dever-se-ia conceber a possibilidade de resolução judicial das demandas advindas pela posse da terra, bem como de prover os órgãos com missão de pacificação social por meio de instrumentos conciliatórios, tais como a valorização da Mediação de Conflitos levada a cabo pelas Ouvidorias Agrárias que atuam no âmbito do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) nos Estados.

A conclusão é de que a aplicação efetiva da função social da terra depende de uma correlação de forças, em que os Movimentos Sociais e Movimentos Populares envolvidos devem exercer um protagonismo vindicatório, ainda que isso signifique a adoção de instrumentos de questionamento do sistema e de exercício da desobediência civil nos marcos democráticos.

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    Sobre o cercamento, a criação de condutas criminosas contra a propriedade privada e o uso da lei como máscara da dominação de classe indica-se a obra “Senhores e Caçadores – a origem da Lei Negra” de Edward Thompson. O autor discorre sobre a criação da Lei Negra que estabelecia uma vasta tipologia criminal punida com pena de morte dos florestanos ingleses que foram alijados de suas terras e, por necessidade de sobrevivência, adentravam essas terras em busca de produtos para seu sustento. Thompson aclara sua intenção: “[...] tentei mostrar, na evolução da Lei Negra, uma expressão da ascendência de uma oligarquia Whig, que criou novas leis e distorceu antigas formas legais, a fim de legitimar sua propriedade e status próprios”. (THOMPSON, 1989THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e Caçadores. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989., p. 351)
  • 2
    Sobre o conceito de “mentalidade proprietária”, Paolo Grossi assinala que ela “rompe a trama superficial das formas, liga-se necessariamente, por um lado, a uma antropologia, a uma visão do homem no mundo, e por outro em graça de seu vínculo estreitíssimo com interesses vitais e de classes, a uma ideologia” (GROSSIGROSSI, Paolo. (2006). História da propriedade e outros ensaios. Trad. Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar., História da propriedade e outros ensaios. Trad. Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
  • 3
    MarxMARX, Karl. O Capital. Livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. revela a estratégia de intervenção da evolução capitalista no modo de produção e na expropriação dos trabalhadores do campo: “o processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira ao trabalhador a propriedade dos seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção; e converte em assalariados os produtores diretos. [...] A expropriação do produtor rural, do camponês, que fica assim privado de suas terras, constitui a base de todo o processo”.
  • 4
    Jacques Le Goff tematiza a incidência da memória coletiva no contexto da luta social: “A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante nas lutas sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva”. (LE GOFF, JacquesLE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi vol 1. História – Memória. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984.. Memória. Enciclopédia Einaudi vol 1. História – Memória. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984).
  • 5
    Fábio Alves dos Santos explica que o cambão, também conhecido como “canga”, “era a obrigação de trabalhar cerca de vinte dias de trabalho gratuito por ano” (SANTOS, 2002, p. 107).
  • 6
    José Gomes da Silva trata da temática específica da discussão da Questão Agrária na ANC de 1987. Consultar a obra: José Gomes da Silva. Buraco negro – A Reforma Agrária na Constituinte, São Paulo: Paz e Terra, 1989.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2016
  • Aceito
    16 Jan 2017
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