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“Inclusão com mérito” e as facetas do racismo institucional nas universidades estaduais de São Paulo

“Merit-based inclusion” and the facets of institutional racism at public universities in the state of São Paulo

Resumo

As universidades estaduais de São Paulo estão entre as últimas universidades públicas brasileiras a introduzirem, nos seus processos seletivos, o sistema de reserva de vagas étnico-raciais, mais de uma década depois da primeira universidade a implementar o sistema. Mesmo diante de um quadro gritante de desigualdade racial de acesso à educação superior, por quê, ainda assim as universidades estaduais de São Paulo negaram-se por tanto tempo a aderir ao sistema de reserva de vagas? O debate suscitado ao longo do processo de decisão de adesão ou não ao sistema de cotas entre os docentes das três universidades públicas fornece algumas pistas para responder a essa pergunta. A análise das discussões realizadas pelos docentes oferece uma oportunidade para percebermos de que forma o enquadramento do debate sobre a adoção das cotas étnico-raciais, a partir de falsos dilemas como inclusão versus mérito, raça versus classe, políticas universais versus políticas focalizadas, desempenhou um papel crucial na negação do racismo. Estes debates revelaram, por um lado, como operam classe e raça na defesa dos privilégios e, por outro, como funciona a engrenagem do racismo institucional. O presente artigo buscará oferecer uma reflexão acerca da atualização da (re)produção da narrativa eurocêntrica do paradigma da integração, e de que forma essa narrativa tem impedido o enfrentamento do racismo como sistema de dominação que opera aberto e velado ao mesmo tempo, de modo a manter intocada a estruturação racializada dos espaços de poder, incluindo a educação superior pública.

Palavras-chave:
Ações afirmativas; Paradigma da integração; Racismo institucional; Universidade

Abstract

The state universities of São Paulo are among the last Brazilian public universities to introduce, in their selective processes, afirmative-action reservation programs with ethno-racial vacancies, more than a decade after the first university implemented this system. Even in the face of a glaring picture of racial inequality in access to higher education, why have the public universities of Sao Paulo refused to join this reservation system? The debate raised during the process of deciding whether or not to join the quota system among the professors of the three public universities provides some clues to answer this question. The analysis of the lecturer’s arguments offers an opportunity to understand how the framing of the debate about the adoption of ethnic-racial quotas – false dilemmas such as inclusion versus merit, race versus class, universal policies versus focused policies – played a crucial role in the denial of racism. These debates revealed, on the one hand, how class and race operate in the defense of privileges and, on the other, the workings of institutional racism. The present article will seek to offer a reflection about the (re) production of the Eurocentric narrative of the integration paradigm and how this narrative has prevented the confrontation of racism as a system of domination that operates, open and veiled at the same time in order to keep the structuring-racialized-of the power spaces, including public higher education, untouched.

Keywords:
Affirmative action; Institutional racism; Paradigm of integration; University

Introdução1 1 Este trabalho é parte da tese de doutoramento da investigadora e resulta do projeto de investigação POLITICS - A política de antirracismo na Europa e na América Latina: produção de conhecimento, decisão política e lutas coletivas. Este projeto recebe financiamento do Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro de Investigação e Inovação da União Europeia, Horizonte 2020 (acordo de subvenção nº ERC-2016-COG-725402).

[…] A alteração [a abolição da escravatura] não diferenciou o preto. Ele passou de um modo de vida a outro, mas não de uma vida a outra. […]

O Branco enquanto senhor disse ao preto: “de agora em diante és livre”. Mas o preto ignora o preço da liberdade porque não se bateu por ela. Uma vez por outra bate-se pela Liberdade e pela Justiça, mas trata-se sempre de liberdade branca e de justiça branca, isto é, de valores segregados pelos senhores. […]

Quando acontece ao preto olhar o Branco selvaticamente, o Branco diz-lhe: “Meu irmão, não há diferenças entre nós”. No entanto o preto sabe que há uma diferença. Ele deseja-a. Gostaria que o Branco lhe dissesse de repente: “Estúpido preto”. Então teria essa única oportunidade – de “lhes mostrar”…

Mas nas mais das vezes não há nada, nada além da indiferença, ou da curiosidade paternalista.

O antigo escravo exige que lhe contestem a sua humanidade, deseja uma luta, uma briga. Mas é demasiado tarde […]. (FANON, 1975FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. ED PAISAGEM, 1975., p. 229-230)

O estabelecimento de políticas afirmativas no ensino superior público brasileiro nos anos 2000, por meio da Lei Federal nº 12.711/2012 (ou Lei de Cotas como popularizou-se) foi um importante marco político para a história da ampliação do acesso ao ensino superior por negros2 2 Optarei pelo uso do termo negro ao longo do texto, sempre que possível, por entender que a terminologia – preto e pardo – empregada pelo IBGE e utilizada na formulação de algumas políticas públicas busca, por meio da nomeação dos sujeitos racializados, domesticar os espaços de enunciação, ofuscando a potência política e o poder aglutinador do termo negro. e indígenas no Brasil. No entanto, os debates realizados, por mais de uma década, quanto à possibilidade de adoção dessa política pelas universidades públicas do estado de São Paulo – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – foram pautados por um posicionamento fortemente contrário à adoção da reserva de vagas étnico-raciais.

As universidades estaduais de São Paulo mantiveram-se por mais de uma década na contramão da tendência nacional: as universidades estaduais (Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul) foram as primeiras universidades no Brasil a adotarem as cotas étnico-raciais (entre os anos de 2002 e 2003). Foi também nas universidades estaduais onde mais rapidamente esse tipo de política afirmativa teve expressiva adesão antes mesmo da criação da Lei federal em 2012 (Cf. FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, 2011; FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, BARBABELA, RAMOS, 2013).

No ano de 2012, frente à pressão dos movimentos sociais e da ampla adoção por parte das universidades brasileiras do sistema de reserva de vagas, o governador de São Paulo – à época comandado por Geraldo Alckmin (Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB) em articulação com os reitores da três universidades públicas estaduais, os representantes da Universidade Virtual do Estado de São Paulo3 3 Criada em 2008 pelo governo de Geraldo Alckimin, a UNIVESP, visando suprir a demanda por mais vagas nas universidades estaduais paulistas a baixo custo e investimento, oferece ensino superior à distância. Desde a sua criação, a Universidade à distância tem recebido inúmeras críticas, como: a qualidade duvidosa do ensino ofertado, a qualidade da aprendizagem dos estudantes, beneficiamento da iniciativa privada do setor de equipamentos e programas de informática, sucateamento do ensino superior público, desvirtuamento dos fins originais do ensino à distância e uso desse tipo de ensino para legitimar a exclusão uma vez que os estudantes que cursam Univesp não moram necessariamente em lugares distantes que os impedissem de acessar os cursos presenciais das universidades públicas estaduais paulistas. (UNIVESP) e Centro Paula Souza4 4 O Centro Paula Souza é uma autarquia do Governo do Estado de São Paulo, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (SDECTI). A instituição administra 219 Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e 66 Faculdades de Tecnologia (Fatecs). finalizaram a proposta do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (PIMESP), e colocaram para aprovação do corpo docente das três universidades. Constitui nosso corpus de análise os debates5 5 A principal fonte de pesquisa são as atas emitidas pelos departamentos à época da consulta sobre o PIMESP (entre 2012 e 2013), bem como artigos de opinião e entrevistas de alguns docentes (geralmente ligados aos cargos administrativos nas universidades como reitores e ex-reitores) em jornais de circulação nacional entre 2004 e 2018. Foram analisadas ao total 108 atas advindas das unidades e departamentos da UNESP e USP, além da documentação produzida pelos grupos de trabalhos na UNICAMP, responsáveis pela análise dos programas inclusivos, incluindo o PIMESP (contrariamente ao processo consultivo nas duas outras universidades estaduais, a UNICAMP optou por constituir grupos de trabalhos para analisar a proposta do PIMESP). realizados nos departamentos, unidades de ensino assim como as notícias, artigos de opinião, entrevistas divulgadas nos periódicos de circulação nacional entre os anos 2004 e 2018.

Em síntese, o PIMESP propunha atingir o percentual de 50% de alunos oriundos de escolas públicas e, desse total, seriam reservadas 35% das vagas para o grupo de Pretos, Pardos e Indígenas (PPIs). No entanto, ao passar no exame de seleção6 6 No caso da proposta do PIMESP, poderia ser via vestibular das universidades, Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ou outro método de seleção. , a proposta sugere que os “cotistas” teriam que fazer um curso semipresencial a ser realizado no Instituto Comunitário de Ensino Superior (ICES) com duração de dois anos e com grade curricular que incluiria disciplinas como serviços e administração do tempo, gerenciamento de projetos, profissionalização, inovação e empreendedorismo. Além do curso semipresencial, os cotistas apenas poderiam começar um curso no ensino superior se tivessem tido bons rendimentos ao longo dos dois anos.

A proposta do PIMESP contrariava os preceitos legais que legitimavam as políticas afirmativas, pois não fazia uso da discriminação positiva, mas sim negativa ao criar espaços apartados para os cotistas. Entretanto, as manifestações dos docentes contrárias ao PIMESP não foram exatamente pautadas no caráter racista da Proposta.

O debate realizado pelo corpo docente das três universidades públicas paulistas esteve marcado pelo questionamento da viabilidade e/ou da necessidade do sistema de reserva de vagas motivado por receio de que: 1) o referido sistema causasse ranhuras ao sistema meritocrático, que supostamente se faz presente nos processos seletivos das referidas instituições e, 2) que a presença dos cotistas pusesse em causa a qualidade das universidades públicas de São Paulo, internacionalmente conhecidas pela excelência na produção de conhecimento.

Com exceção da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), que aprovou o PIMESP parcialmente, UNICAMP e USP rechaçaram o Programa, realizando apenas modificações nas políticas já existentes7 7 No caso da UNICAMP, o Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social (PAAIS), criado em 2004 e que foi o primeiro programa de bonificação no país. Já no caso da USP, acompanhando o modelo centrado na bonificação e em alunos de escola pública, criou em 2006 o Programa de Inclusão Social da USP (INCLUSP). Já na UNESP apenas instituiria uma política afirmativa a partir do debate suscitado com a proposta do PIMESP. Em 2013 aprovou o PIMESP, mas não de todo (rechaçou a proposta do ICES) e em 2014 criou o Sistema de Reserva de Vagas para a Educação Básica Pública mais Preto, Pardo e Índigenas (SRVEBP+PPI). com foco na bonificação8 8 Pontos extras em cima da nota obtida no vestibular do aluno que vem de escola pública. . Apenas em 2017, a partir da forte pressão dos movimentos sociais (coletivos negros e entidades estudantis), os conselhos universitários da UNICAMP e da USP aderiram ao sistema de reserva de vagas para negros e indígenas.

O cenário de conflitos e tensões que acompanharam os debates em relação à adoção de reserva de vagas nas três universidades paulistas nos últimos anos parece ainda carecer de estudos que busquem conhecer mais profundamente os motivos da resistência à adoção das cotas. O presente texto buscará visibilizar de que forma os mecanismos pelos quais as categorias políticas de raça e racismo estiveram ocultadas ou minimizadas nos discursos e práticas políticas das universidades paulistas, revelando por um lado como a atualização dos pressupostos do paradigma da integração na formulação das soluções para “o problema do negro” se constituem nos novos contornos do racismo institucional e por outro lado como os elementos centrais dos discursos dos docentes permite que entendamos como classe e raça acomodam-se na configuração dos espaços de privilégio.

O presente artigo está dividido em três secções. Na primeira secção buscaremos historicizar a institucionalização da política da integração no Brasil enquanto projeto político forjado na e pela academia brasileira em estreito diálogo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a produção das ciências sociais no entre guerras. Essa historicização nos permitirá perceber como os resultados do Projeto UNESCO reafirmam a narrativa do negro enquanto minoria e como um problema que precisa da autorização/gestão do grupo “majoritário” para ser incluído em determinados espaços (Cf. GOLDBERG 1993; HESSE, 2004HESSE, Barnor. Im/Plausible Deniability: Racism’s Conceptual Double Bind. Social Identities, v. 10, n. 1, p. 9-29, 2004.; ARAÚJO; MAESO, 2013ARAÚJO, M.; MAESO, S. R. A presença ausente do racial: discursos políticos e pedagógicos sobre História, “Portugal” e (pós-)colonialismo. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 47, p. 145-171, jan./mar. 2013. Editora UFPR.).

A segunda secção examinará como o conceito eurocêntrico de raça e racismo embasa o posicionamento político dos docentes das universidades estaduais paulistas frente à politica de cotas. Buscaremos explorar como a defesa em torno da inclusão com mérito e a defesa da prioridade do perfil econômico em detrimento do racial para o estabelecimento das políticas inclusivas consiste na atualização do projeto político de integração que visam dissimular o racismo institucional, domesticando a luta pelo acesso de negros e indígenas aos espaços de poder.

Por fim, na terceira secção, buscaremos apresentar algumas reflexões em torno das implicações políticas da institucionalização da agenda da integração para a luta antirracista e das possibilidades da construção (ou consolidação) de contra narrativas que, para além de denunciar a existência do racismo institucional, possam refletir e problematizar as implicações do saber-fazer antirracista frente as armadilhas do paradigma da integração.

1. O projeto UNESCO e a consolidação das ciências sociais no Brasil: a (re)produção da narrativa da integração no contexto das universidades

[Jornal Folha de São Paulo: A universidade tem algum tipo de preocupação com a permanência dessas pessoas que entram por cotas?] [alunos cotistas] eles têm algumas deficiências básicas […] Outro problema importante é que certamente vai aumentar o número de alunos que necessitam de apoio para continuar estudando. É uma coisa que me preocupa porque a universidade está saindo da sua função de ensino e pesquisa e se tornando um órgão assistencialista. (...) precisamos discutir com os poderes públicos que não é a tarefa da universidade ser a entidade assistencialista […]” (Vahan Agopyan, reitor da USP em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo em fevereiro de 2018. Cf. BERMÚDEZ, 2018BERMÚDEZ, Ana Carla. USP não é entidade assistencialista, diz novo reitor sobre ajuda a cotistas, Portal de Notícias UOL, 1 de fevereiro de 2018. Disponível online: https://educacao.uol.com.br/noticias/2018/02/01/usp-nao-e-entidade-assistencialista-diz-novo-reitor-sobre-ajuda-a-cotistas.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 20 de janeiro de 2019.
https://educacao.uol.com.br/noticias/201...
)

“[…] O que a Universidade precisa, seja no quadro atual, seja no quadro com a introdução do sistema de cotas étnico-raciais, é de um modelo que estabeleça um limite mínimo de qualificação para que o candidato seja admitido. Ou, então, de um programa de complementação educacional […] para atender àqueles que apresentem dificuldades de adaptação […]” (Renato Pedrosa, docente do Instituto de Geociências e ex-coordenador da Comissão Permanente para os Vestibulares da UNICAMP em entrevista para o portal do Jornal da UNICAMP, maio de 2017. Cf. ALVES FILHO, 2017ALVES FILHO, Manuel. Unicamp amplia inclusão e debate implantação de cotas étnico-raciais. Portal Unicamp. Especial Cotas Étnico-raciais, 26 de Maio 2017. Disponível em: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/especial/unicamp-amplia-inclusao-e-debate-adocao-de-cotas-etnicos-raciais> Acesso: 29 de janeiro de 2019.
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/especi...
)

“[…] Não adianta incluir sem criar a cultura de emancipação […]. Precisamos até traçar políticas de acompanhamento pedagógico para esses alunos, que muitas vezes chegam à universidade com muito despreparo […]” (Roberto Valentini, reitor da UNESP em entrevista ao Jornal Estadão, 30 de novembro de 2016. Cf. PALHARES, 2016PALHARES, Isabela. “Precisamos lutar para ampliar o teto salarial” defende novo reitor da UNESP. 30 de novembro de 2016. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,precisamos-lutar-para-ampliar-o-teto-salarial-defende-novo-reitor-da-unesp,10000091539. Acesso em 22 de janeiro de 2019.
https://educacao.estadao.com.br/noticias...
)

Salta aos olhos nos trechos acima a inversão da resposta ao problema do caráter racista e classista das universidades públicas: as vítimas do caráter estruturalmente excludente das universidades são narradas nesses trechos como as verdadeiras causas do problema. Os destinatários das políticas de cotas são concebidos pelos docentes como deficientes, despreparados e, portanto, com dificuldades de adaptação ao ensino superior público- sendo esse o verdadeiro motivo da ausência desse grupo nos espaços da universidade. Portanto, a presença deles é vista como um gesto de benevolência- e por isso assistencialista- por parte do Estado e da própria Universidade, pois parte-se do pressuposto de que esse grupo beneficiário seria desprovido de dons e méritos que os tornariam aptos a adentrar no ensino superior.

Importante destacar que mesmo que a Política de reserva de vagas tenha sido destinada para negros e indígenas, uma análise pormenorizada das discussões realizadas pelos docentes das três universidades estaduais de São Paulo, permite que identifiquemos uma forte crítica ao critério étnico-racial da política mais destinada aos negros, ainda que, na maioria das vezes não explícita (sob alegada dificuldade de reconhecer quem seria negro ou não devido à miscigenação).

Ora se os beneficiários da reserva de vagas seriam pretos, pardos e indígenas que correspondem respectivamente 5,5%, 29,1% e 0,1% do total da população de São Paulo, não é arbitrário supor que era aos negros (formado por pardos e pretos) que se dirigiam às críticas, feita pelos docentes, em relação ao recorte racial. Em outras palavras, “onda negra, medo branco”9 9 Parafraseando o livro Onda Negra Medo Branco- O Negro no Imaginário das Elites Século XIX da pesquisadora Célia Maria Azevedo. A obra retrata o negro nos discursos e debates dos abolicionistas e emancipacionistas onde esses últimos ao mesmo tempo em que atuavam pela abolição da escravatura e inserção do negro como trabalhadores livres estimulavam a imigração européia como fonte de mão de obra apta e qualificada. A influência das teorias eugenistas no meio da elite, segundo, a pesquisadora não é suficiente para explicar a razão do apoio por esse grupo à imigração européia, mas o medo das elites da insurreição negra tendo em vista que nesse período explodiam inúmeras insurreições nacionais e a própria Revolução do Haiti, influenciando a construção da narrativa pelas elites de que os negros eram perigosos, vadios, incapazes e indolentes. Apenas, à título de curiosidade, a referida pesquisadora também posicionou-se contrária à modalidade de reserva de vagas no ensino superior, pois o “combate ao racismo significa lutar pela desracialização dos espíritos e das práticas sociais. Para isso é preciso rechaçar qualquer medida de classificação racial pelo Estado com vistas a estabelecer um tratamento diferencial por raça, ou, para sermos mais claros, os direitos de ‘raça’” (Cf. AZEVEDO, 2004, p. 50). .

Ao mesmo tempo em que legitimam práticas excludentes, recorrendo a imaginários que reificam a população beneficiária do sistema de reserva de vagas, as narrativas evocadas pelos docentes das universidades ocultam a relação entre poder, classe, raça e produção de conhecimento. Nesse sentido gostaríamos de tentar historicizar as principais linhas de sustentação dos discursos contrários à adoção de reserva de vagas étnico-raciais proferidas pelos docentes.

É possível encontrar pontos de conexão entre idéias como despreparo, adaptação, deficiência e mérito e certa narrativa produzida pelo pensamento social brasileiro acerca da presença do negro e do racismo no Brasil. Para tal examinaremos nessa secção de que forma a articulação ocorrida nos anos 50 entre a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e os cientistas sociais (principalmente da escola paulista) não apenas consolidou a agenda das ciências sociais no Brasil, como apontou MAIO (Cf. 1999_______________. “O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, nº 41, 1999, p. 141-158.; 2000) porém, mais que isso, consolidou, em nossa concepção, as bases para o entendimento das relações raciais a partir do prisma do paradigma da integração que segue vigoroso até os dias atuais.

O entendimento do racismo e de relações raciais evocados atualmente pela intelectualidade brasileira encontra suas raízes no contexto da Guerra Fria. Tomando o holocausto como referência, os países saídos vitoriosos da Segunda Guerra Mundial levam a cabo a domesticação das relações raciais, disseminando a narrativa de que os regimes ditos “totalitários” vividos em países como União Soviética e Alemanha Nazista seriam antidemocráticos e, portanto, passíveis de reproduzir práticas racistas já que o antirracismo enquanto razão pública estaria apenas nas bases dos sistemas ditos democráticos (Cf. GOLDBERG 1993, 2002; HESSE, 2004HESSE, Barnor. Im/Plausible Deniability: Racism’s Conceptual Double Bind. Social Identities, v. 10, n. 1, p. 9-29, 2004.; ARAÚJO; MAESO, 2013ARAÚJO, M.; MAESO, S. R. A presença ausente do racial: discursos políticos e pedagógicos sobre História, “Portugal” e (pós-)colonialismo. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 47, p. 145-171, jan./mar. 2013. Editora UFPR.).

O racismo tal como hoje é entendido, nasce, portanto em contraposição às experiências do nazismo. A construção desse mito lança as bases para criação do imaginário que aparta a origem do racismo nas sociedades modernas do processo colonial. Como afirmou Wallerstein (Cf. 2000, p. 13):

“Por que foi, então, que toda a gente se sentiu tão abalada pelo nazismo, pelo menos depois de 1945? A resposta salta à vista: por causa da Endlösung. Se bem que até 1945 quase toda a gente no mundo pan-europeu fosse aberta e alegremente racista e antissemita, a verdade é que quase ninguém desejava que isso redundasse na Endlösung. A solução final de Hitler traduzia, de facto, uma total incompreensão da razão de ser do racismo no contexto da economia-mundo capitalista. O objetivo do racismo não consiste em excluir pessoas, e muito menos em exterminá-las. O objetivo do racismo consiste em manter as pessoas dentro do sistema, mas com o estatuto de Untermenschen, seres inferiores passíveis de ser explorados economicamente e usados como bodes- expiatórios políticos. O que aconteceu com o nazismo foi aquilo a que os Franceses chamam uma dérapage- quer dizer, uma asneira, um deslize, um descontrolo. Ou talvez fosse o génio que saiu da lâmpada. […] Mas no plano coletivo, o mundo pan-europeu ia ter também que enfrentar o problema do gênio que fugira da lâmpada. E fê-lo através de um processo que passou pelo banimento do uso público do racismo […]” (idem).

O momento pós-Segunda Guerra será marcado pela criação da engrenagem que contribuirá para consolidação da construção da narrativa do racismo como algo excepcional. Diversos organismos (ex.: ONU), pactos e diretrizes internacionais assim como financiamentos de projetos de investigação são então criados para supostamente, afastar qualquer possibilidade de reedição de um novo holocausto. Entretanto, como analisou Füredi (Cf. 1998)FÜREDI, Frank. The silent war: Imperialism and Changing Perceptions of Race. Rutgers University Press. 1998., o que está por trás da criação dessa “maquinaria da paz” nada mais é do que o estabelecimento do “protocolo silencioso” das relações raciais.

A nova gramática para entender e narrar as relações raciais, forjada no pós-segunda guerra, por um lado nega o racismo enquanto elemento estruturante das relações nas democracias liberais capitalistas atuais- persistindo enquanto forma de dominação- e por outro lado passa a fomentar a ideologia da crença nas instituições democráticas e na educação como redentora de qualquer resíduo de crenças individuais na inferioridade de “outras raças” - não brancas.

O racismo passa a ser entendido como um problema moral e individual que residiria na mente das pessoas (Cf. GOLDBERG 1993, 2002; HESSE, 2004HESSE, Barnor. Im/Plausible Deniability: Racism’s Conceptual Double Bind. Social Identities, v. 10, n. 1, p. 9-29, 2004.) e, portanto, para mudar essas mentes é preciso fazer circular ideias, estimular o contato entre as diversas culturas que elevem os padrões morais dos indivíduos. Nesse contexto surge no fim dos anos 40 a proposta10 10 Sobre a escolha do Brasil como “laboratório de civilização” (Cf. Maio (1999; 2000) podemos dizer, em síntese, que a presença de alguns intelectuais que já tinham realizado estudos sobre o Brasil, em organismos de cooperação internacional como a UNESCO e até mesmo a circulação nesse tipo de espaço, propiciando contatos com pesquisadores internacionais contribuiu para a decisão pelo Brasil, além, obviamente da imagem que desde os anos 30 estava-se a exportar do Brasil como pátria miscigenada e harmônica. Alguns dos intelectuais eram: Ruy Coelho, ex-aluno de Roger Batisde e assistente de Alfred Métraux, diretor do Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO e coordenador dos estudos no Brasil; Charles Wagley, antropólogo norte-americano e colaborador na UNESCO; Otto Klineberg, um dos fundadores do departamento de psicologia da USP, muito influenciado pelo antropólogo Franz Boas (que foi professor de Giberte Freyre), e que esteve envolvido com os estudiosos norte americanos na busca por solucionar os conflitos raciais nos Estados Unidos (tendo colaborado na pesquisa An American Dilemma de Gunnar Myrdal); o sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, um dos participantes do debate sobre conceito de raça na UNESCO em 1950, e Roger Bastide que já conhecia Alfred Métraux com quem partilhava ideias e projetos de investigação. da UNESCO de financiar estudos sobre as relações raciais no Brasil e entender como funcionava a- internacionalmente famosa “democracia racial” afim de que essa pudesse inspirar as relações raciais harmoniosas no mundo pós-guerra.

O estudo financiado pela UNESCO sobre as relações raciais no Brasil11 11 Acerca do tema há extensa produção, mas gostaríamos de destacar o contributo do pesquisador Marcos Chor Maio (Cf. 1996, 1997, 1998, 1999, 2000). Seus estudos contêm detalhes preciosos acerca do processo de construção e desenvolvimento da pesquisa UNESCO no Brasil. em 1951 e 1952 marca profundamente a ciência social brasileira que naquela altura estava à procura de consolidar-se como ciência e como referência nacional no campo de análises propositivas acerca dos dilemas colocados pela rápida urbanização e industrialização do País. Nesse contexto, o estudo realizado em São Paulo ganhou grande relevo não apenas por ser liderado por intelectuais reconhecidos nacional e internacionalmente como Roger Batisde e Florestan Fernandes, mas também porque São Paulo “era um estado em rápido processo de industrialização e urbanização que estaria indicando sinais claros de tensões raciais” (Cf. MAIO, 1999, p. 149).

As conclusões aos quais chegaram a equipe envolvida nos estudos permitem que vislumbremos dois elementos chaves que consideramos cruciais para compreensão da relação entre classe, raça, poder e conhecimento no Brasil: (i) o papel fundamental da classe média branca (Cf. SAES, 1975_________.Classe média e Política na Primeira República brasileira (1989-1930). Editora Vozes, Petrópolis, 1975.; BOURDIEU & PASSERON, [1970] 1992) 12 12 O referido conceito é empregue seguindo a definição do estudioso Décio Saes (Cf. Décio Saes, 1975; 1985; 2005) que por sua vez está em estrita conexão com as obras dos sociólogos franceses Bourdieu e Passeron (Cf. Décio Saes 1975). As referidas obras se constituem como referências centrais da discussão do conceito de classe média a partir da abordagem marxista. No contexto do presente trabalho, recorremos ao conceito de classe média, a partir de um viés marxista, pois entendemos que o principal grupo que desempenhou papel ativo e crucial no debate acerca da reserva de vagas étnico-raciais nas universidades públicas paulistas foi a classe média. Dado o formato do presente artigo, de modo sucinto podemos definir classe média como a classe que agrupa todos os trabalhadores, assalariados ou não, que, além de desempenharem algum trabalho indiretamente produtivo (isto é, não gerador diretamente de mais-valia), está relacionado às atividades não-manuais, e procuram distinguir-se, apresentando-se superiores aos trabalhadores manuais na estrutura de classes mobilizando o conceito de meritocracia. , reordenando o imaginário e as narrativas acerca das relações raciais, não deixando restar dúvidas acerca do poder daquela classe na construção dos discursos e imaginários sobre raça e racismo, assumindo o papel de intelligentsia13 13 Esse termo está sendo tomado no sentido que Werneck Viana (Cf. 1994) atribui a ele, ou seja, como intérpretes da sociedade. Nesse sentido, estabelecemos para esse estudo um paralelo entre esse conceito e o conceito de classe média, pois entendemos que há uma interconexão muito potente entre os referidos conceitos para compreendermos como se movimenta politicamente a classe média branca na busca pela manutenção dos seus privilégios via controle do aparelho educacional, produzindo narrativas “científicas” que justificam a sua própria condição. nacional e; (ii) a forte influência do enquadramento internacional acerca da concepção de racismo (e dos caminhos para o seu enfrentamento) na agenda antirracista brasileira. Para além de terem influenciado fortemente o pensamento social, os resultados dos estudos da UNESCO consolidam o imaginário sobre as relações raciais no Brasil14 14 Sobre a consolidação da narrativa do racismo pós segunda guerra, cabe ainda chamarmos atenção para as reverberações dessa narrativa no sistema de justiça. O conceito de racismo visto como aberração, portanto, gestado e reproduzido na mente de pessoas antidemocráticas e apenas em contextos em que as instituições democráticas não estão funcionando plenamente, tem (limitado) pautado a prática jurídica no que tange às condenações de casos de racismo antinegro. O cerne da atuação jurídica é no combate ao racismo moral, com foco no crimes de injúria racial, discriminação e preconceito impedindo a discussão sobre as múltiplas facetas assumidas pelo racismo enquanto estruturante da sociedade. Prova disso é que no Brasil temos apenas um único caso condenado pelo Supremo tribunal Federal (STF) no qual restou decidido crime de racismo que foi o caso o “Caso Ellwanger”. O Caso foi a julgamento no STF em 2003 e envolvia acusações de racismo e anti-semitismo. Siegfried Ellwanger foi condenado pelo cometimento de crime de racismo pela publicação e venda de livros de temática anti-semita. Válido dizer que casos de racismo antinegro já chegaram ao STF como exemplo mais recente temos a acusação feita contra o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro acusado de racismo depois de fazer declarações acerca da situação dos quilombolas entretanto ele foi absolvido pois o STF entendeu que as falas se inseriam num contexto de liberdade de expressão. Link para o caso: https://www.jn.pt/mundo/interior/supremo-tribunal-rejeita-denuncia-contra-bolsonaro-por-racismo-9833870.html .

Os resultados do estudo colocaram em xeque a real existência da democracia racial, desapontando – apenas em parte, em nossa opinião – as expectativas da UNESCO, pois se, por um lado, Roger Batisde15 15 Sobre a obra do sociólogo francês, ver Pereira de Queiroz (Cf. 1977; 1978; 1983), Nogueira (Cf. 1978), Dauty (Cf. 1985), Peirano (Cf. 1991), Peixoto (Cf. 2000), Braga (Cf. 1944; 2000). , Florestan Fernandes e os demais investigadores do Projeto UNESCO16 16 Gostaríamos de destacar esses dois pesquisadores tanto porque tiveram maior visibilidade se comparados com os demais estudiosos envolvidos no Projeto UNESCO, como porque suas obras compõem a bibliografia base dos cursos de ciências sociais no Brasil. Dito isto, o projeto foi desenvolvido na Bahia (que era o foco inicial por ser considerada por alguns pesquisadores o exemplo da boa convivência entre diferentes povos), São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco (sob a tutela do Instituto Joaquim Nabuco, órgão criado por Gilberto Freyre que se colocou disponível junto a UNESCO para colaborar com o estudo). puseram por terra o mito da democracia racial, por outro, suas análises e conclusões acerca da situação do negro no Brasil no período da grande expansão urbana e industrial, em nossa análise, sofisticaram os mecanismos de ocultamento do racismo institucional no Brasil moderno.

Cabe uma breve definição do conceito de racismo institucional (Cf. Carmichael; Hamilton, 1967CARMICHAEL, Stokely; HAMILTON, Charles. V. Black power: the politics of liberation in America. 1992. Vintage Edition.). O racismo institucional opera a partir de mecanismos rotineiros, assegurando a dominação e a inferiorização do negro sem explicitação ou publicização, pelo contrário o racismo institucional opera de modo velado. E é a partir dessa perspectiva- da negação dos condicionantes institucionais que perpetuam o racismo- que inscrevemos a produção do pensamento social brasileiro.

A crença na democracia e nas instituições da nova ordem competitiva (capitalismo) como asseguradoras da igualdade e o enquadramento da solução do “dilema do negro” a partir da perspectiva da integração são as principais diretivas indicadas nos resultados do projeto UNESCO no Brasil:

O risco, no caso brasileiro, não procede […] do agravamento das tensões raciais e das perspectivas […] de uso crônico do conflito racial como técnica de mudança. Eles provem da persistência de estruturas arcaicas que atravessam mais ou menos incólumes as grandes transformações que estão afetando a sociedade brasileira […]. As contradições sociais herdadas do passado e que entravavam a integração do “negro” e do” mulato” à ordem social competitiva emergente não interessava senão à população de cor […] em consequência a reintegração do sistema de relações raciais ficou entregue a processos espontâneos (Cf. FERNANDES, 2007____________. O negro no mundo dos brancos. São Paulo. Global Editora. 2007., p. 49).

As conclusões do estudo, apesar de terem contribuído definitivamente para problematizar o paradigma culturalista– problematizando o modo de interpretar as relações raciais no Brasil a partir do prisma da boa convivência entre as raças –, limitou-se a refletir acerca da situação do negro apenas de um ponto de vista de inserção daquele na nascente sociedade de classes brasileira.

A narrativa da crença na integração do negro na sociedade de classes assentou-se de modo tão forte no meio intelectual brasileiro que mesmo as vozes dissonantes frente às conclusões do projeto UNESCO como Guerreiro Ramos17 17 Guerreiro Ramos tinha fortes críticas à produção desenvolvida por boa parte dos pesquisadores envolvidos nos estudos da UNESCO por entender que aquelas análises viam o negro como objeto de estudo e como problema. , sociólogo e militante do Teatro Experimental do Negro, endossavam o enquadramento assimilacionista e moralizador do racismo (no espectro das “atitudes”). Ao referir-se à UNESCO, Guerreiro Ramos afirmou que esta estava a cumprir uma função de grande importância na “integração das minorias raciais nos vários países onde elas se encontram mais ou menos discriminadas” (Cf. GUERREIRO RAMOS, 1982, p. 237, apud MAIO, 1999, p. 146).

No caso do pesquisador Costa Pinto, responsável pela pesquisa na cidade do Rio de Janeiro, o autor chega mesmo a reduzir o racismo a uma questão de “preconceito” e a reação do povo negro à existência do “preconceito” se daria pela organização coletiva por meio da classe, esvaziando de sentido toda contestação baseada na racialização da sociedade:

“[…] E como o preconceito não se apresenta numa frente única e unida, apoiado pela lei e cristalizado numa doutrina, consistindo antes num sistema de atitudes e estereótipos […], moralmente batido pela ciência e pela história, o negro-massa encara-o sempre face a face […] pensando, sentindo e agindo menos como raça, mais como massa, cada vez mais como classe” (Cf. COSTA PINTO, 1953PINTO, Luiz de Aguiar Costa. O Negro no Rio de Janeiro: Relações de Raças numa Sociedade em Mudança. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1953., pp. 337-338).

O “problema do negro” passa a ser lido como um problema passível de correção via distribuição de renda (reduzindo a questão a um problema de classe), de reeducação dos brancos e da responsabilização dos negros como principais agentes da transformação da própria situação no qual se encontram:

“[…] Seria preciso mudar a estrutura da distribuição de renda, do prestígio social e do poder [entretanto] a persistência ou eliminação gradual dessas desigualdades passam a depender do modo pelo qual as demais categorias sociais reagem, coletivamente, às deformações que assim se introduzem no padrão de integração […] da ordem social competitiva […] é do próprio negro que deveria partir a resposta inicial ao desafio imposto pelo dilema racial brasileiro […] assim ele despertaria os brancos dos diferentes níveis sociais […]” (Cf. FERNANDES, 2007, p. 129).

Apenas situando a produção do pensamento social brasileiro a partir da classe que ocupa a intelligentsia nacional é que podemos compreender porquê o “problema do negro” permanece sendo enquadrado como um problema de integração à sociedade de classes. A “miopia” gera a negação do racismo enquanto estruturante das relações de ser, poder e saber (Cf. QUIJANO, 2005QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. En libro: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. pp.227-278.) nas democracias capitalistas e a disseminação da crença de que as instituições democráticas civilizam os grupos racializados via integração/assimilação como fica explícito na análise de Florestan Fernandes:

“[…] Penetramos, aqui, na área de incentivos e motivações sociais. Ao se reeducar para o sistema de trabalho livre, o “negro” repudia sua herança cultural rústica e o ônus que ela envolvia. Vence hábitos, avaliações e comprometimentos pré ou anticapitalistas. E descobre uma posição, que o nivela, material e socialmente, ao “branco” […]”. (Cf. FERNANDES, 1978____________. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1978., p.154).

O paradigma da integração descola o Estado-Nação moderno da bagagem colonialista que orienta suas ações, reificando valores da modernidade como assimilação dos sujeitos racializados considerados pré-modernos, vulneráveis. Esse projeto reproduz distanciamentos entre uma suposta maioria não marcada racialmente e uma minoria racializada, objetificando corpos negros (visto apenas como recetores de políticas públicas) e tem como consequência a produção de politicas na naturalização dos lugares de dominação, opressão e desigualdades (Cf. MAESO; CAVIA, 2014; ARAÚJO; MAESO, 2016).

Importante dizer que as últimas análises sociológicas18 18 Como o livro Significado do Protesto Negro de 1989. de Florestan Fernandes acerca do “problema do negro” divergem (em alguma medida) dos achados do projeto UNESCO principalmente pela incorporação da dialética marxista, pondo fim à crença na capacidade integracionista do capitalismo em relação ao negro. Florestan faz críticas substanciais à sociedade capitalista e consequentemente as suas “soluções” (tangenciais) para o desmantelamento do racismo. Entretanto, mesmo em suas últimas análises, o autor parece não ter conseguido superar a análise que deposita no passado toda a responsabilidade pela situação do negro nas sociedades capitalistas:

[…] A nossa situação racial foi elaborada ao longo do desenvolvimento do modo de produção escravista e da sociedade senhorial. Atentei logo o quanto o passado moldara o presente […] escrevi um ensaio sobre o peso do passado. É preciso extipar esse passado para que nos livremos dele […]” (FERNANDES, [1989] 2017 p. 25)

A evocação do passado, em nossa concepção, acaba, por um lado, negando as estruturas atuais que mantêm a reprodução do mundo anti-negro, desresponsabilizando a classe dominante (incluindo a classe média) e por outro lado amortecendo os conflitos e os enfrentamentos (racial e de classe) necessários para a emancipação negra.

“Inclusão com Mérito”

[…] O inventário do real é uma tarefa colossal (Cf. FANON, 2008, p. 181)

Negros e indígenas correspondem a 37,5% da população total do estado de São Paulo (Cf. IBGE, 2010), entretanto a presença desses grupos nas três universidades estaduais, mesmo com as “políticas de inclusão” adotadas desde 2004 – como o sistema de bonificação19 19 O sistema de bonificação consiste em acrescentar pontos nas provas do vestibular para os grupos considerados desprivilegiados, entretanto inúmeros estudos já comprovaram que esse tipo de Sistema alcança resultados inexpressivos (Cf. Feres Júnior, Daflon, Campos, Barbabela & Ramos, 2013), pouco alterando o quadro de desigualdade. que atribui pontos aos inscritos no vestibular tendo como critério ser egresso de escola pública e ou nível de renda –, esteve sempre abaixo do percentual da população negra e indígena no estado. Por exemplo, em 2012, ano da criação da lei federal de cotas, a presença de negros e indígenas na UNESP e Unicamp no corpo discente não passava dos 16% e na USP dos 14%20 20 Dados disponíveis em: VOGT, Carlos. O que é Pimesp? Disponível em: http://docplayer.com.br/38005979-O-que-e-o-pimesp-carlos-vogt-o-programa-de-inclusao-com-merito-no-ensino-superior-publico-paulista-pimesp-tem-como-metas.html. Acesso em 22 de janeiro de 2019. .

Partimos da tese de que o debate sobre a exclusão de negros e indígenas do espaço da universidade tem sido enquadrado, por certa parcela21 21 Dizemos parcela visto que desde a década de 70, com a contribuição decisiva de Carlos A. Hasenbalg (1979, 1982, 1983, 1992, 1998, 1999, 2003, 2014), os estudos das relações raciais no Brasil são reposicionados a partir da do conceito de ‘ciclo de desvantagens cumulativas’, rechaçando “explicações historicistas ou culturalistas de herança escravocrata ou de etos católico e assimilacionista” (GUIMARÃES, 2016, p. 280) acerca da situação do negro na sociedade brasileira. Apesar desse fato, as análises do autor, em nossa concepção, ainda não tem a importância e visibilidade merecida em comparação com a escola paulista de sociologia e seus achados decoorentes do Projeto UNESCO. da universidade brasileira, como um “problema de integração” ou “assimilação” das minorias e, portanto, que se há de intervir (Cf. MAESO; CAVIA, 2014) a partir de parâmetros que narram os sujeitos racializados como culturalmente deficitários e que, portanto, precisariam provar estarem realmente aptos à serem incluídos nas instituições de produção de conhecimento.

A “presença ausente do racial” (Cf. APPLE, 1999APPLE, Michael W. The Absent Presence of Race in Educational Reform, Race Ethnicity and Education, 2:1, 9-16, 1999. link para o artigo: https://doi.org/10.1080/1361332990020102
https://doi.org/10.1080/1361332990020102...
apudARAÚJO; MAESO, 2013ARAÚJO, M.; MAESO, S. R. A presença ausente do racial: discursos políticos e pedagógicos sobre História, “Portugal” e (pós-)colonialismo. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 47, p. 145-171, jan./mar. 2013. Editora UFPR.) nos discursos proferidos pelos docentes marca profundamente a narrativa em torno da adoção da reserva de vagas. Se olharmos para os dados22 22 Sobre os dados, no caso da USP os dados estão disponíveis na página da Universidade (https://uspdigital.usp.br/portaltransparencia/informacaoServidorRacaCor) mas no caso da UNICAMP e UNESP é necessário fazer uma solicitação, por meio da Lei de Acesso livre à informação, pedindo as informações e o tempo de avaliação do pedido leva entre 20 e 30 dias úteis. da composição étnica-racial do corpo docente das estaduais paulistas de 2019, talvez seja possível estabelecer alguma conexão entre a composição racial e a razão da “presença ausente do racial” nos discursos. A percentagem de docentes autodeclarados negros e indígenas na UNESP (7%), UNICAMP (4%) e USP (2%) não chega aos 15% do total, o que aponta para uma sub-representação de negros e sobre-representação de brancos nos cargos de docência nas universidades estaduais de São Paulo.

A categoria cor/raça está presente no censo demográfico brasileiro desde 1872, e tem sido instrumento fundamental na elaboração de políticas públicas focadas no enfrentamento às disparidades raciais. Entretanto, estamos nos anos 2000 e a produção e disseminação de dados acerca da composição étnico-racial dos docentes das universidades brasileiras parecem ainda não estar no horizonte político dessas instituições, e talvez isso já é um forte indício da negação da academia de defrontar-se com sua condição racial privilegiada. As universidades de São Paulo endossam essa invisibilização da composição racial dos seus quadros na medida em que ainda não há uma sistematização, a nível estadual, desses dados, o que pode ser lido, a nosso ver de duas formas: a primeira é que o nível de homogeneização racial é tão naturalizado que um censo sequer se coloca como uma questão ou a ausência de sistematização estadual é de fato um recurso estratégico na medida em que torna invisível a materialidade do poder da branquidade na estrutura de dominação racializada.

A negação das categorias raça e racismo como centrais para compreender as dinâmicas de não acesso de determinados grupos à universidade também esteve fortemente presente nas manifestações dos docentes contrários ao PIMESP, mas que não se resumem apenas a esse contexto. A invisibilização do elemento cor/raça e a substituição por classe e egressos da escola pública são dispositivos sob os quais o racismo institucional operacionaliza práticas que asseguram a reprodução dos lugares de poder principalmente nas universidades:

“ […] o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (PIMESP)] peca também por não incluir critérios de renda familiar, considerada unanimemente como o principal fator de exclusão [...] que, em qualquer modelo de inclusão social que a USP venha a adotar, o critério de renda familiar seja considerado de modo explícito e com peso significativo […]” (Congregação do Instituto de Geociências da USP, 2013).

“ […] em se tratando de obrigatoriedade da utilização de quotas, a FMVZ entende que para a inclusão de alunos cotistas deve ser considerado, exclusivamente o aspecto socioeconômico, ou seja, apenas alunos provenientes do ensino obtido por escolas públicas, excluindo-se o caráter racial da proposta original […]” (Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, UNESP, 2013).

“[…] ações afirmativas que busquem compensar esse quadro histórico podem e devem ser realizadas [...] entende-se que tais ações, ainda que justas e necessárias, são paliativas sem, por si só, apresentarem poder de alterar o perfil da distribuição de renda da sociedade brasileira [...] políticas que transformem a qualidade da escola pública nos níveis fundamental e médio são fundamentais e urgentes para que todos os extratos sociais possam competir em igualdade pelas vagas no ensino superior [...]” (Instituto de Biociência, Letras e Ciências Exatas, UNESP, 2013).

“[…] As ações afirmativas da USP são focadas na instituição escola pública, que tem todos os perfis de pessoas, não no indivíduo. São jovens que trazem consigo a questão econômica […] Pretos, pardos e indígenas estão dentro desse contexto social. É uma maneira diferente de olhar para a mesma coisa […]” (Pró-reitor de Graduação da USP, António Carlos Hernandes, junho de 2016. Cf. JORNAL DA USP ESPECIAL, 2016JORNAL DA USP ESPECIAL. Modelo de inclusão adotado pela USP foca o aluno de escola pública. Junho de 2016. Publicação da Superintendência de Comunicação Social, Universidade de São Paulo. Disponível em: http://jornal.usp.br/especial/wp-content/uploads/jornal_da_usp_especial_inclusao.pdf. Acesso em 22 de janeiro de 2019.
http://jornal.usp.br/especial/wp-content...
, p.5).

Recorrer à melhoria do ensino básico como justificativa para negar ou colocar como não prioridade a adoção de políticas afirmativas com reserva de vagas, mascara um dos principais pilares de sustentação e, logo, reprodução da classe média: a defesa do Mito da Escola Única (Cf. SAES, 2005_________. Classe média e escola capitalista. Revista Crítica Marxista, São Paulo, 2005, p. 97-112.). O Mito da Escola Única consiste na crença de que a existência de escolas públicas com qualidade no ensino básico seria suficiente para resolver o problema da desigualdade de acesso ao ensino superior, já que colocaria todos nas mesmas condições para competir por uma vaga nas universidades públicas.

O Mito da Escola Única se constitui com mito na medida em que o cerne da sua construção narrativa - reivindicação da escola pública - desemboca na valorização econômica e social da classe média, à qual pertencem os docentes das estaduais paulistas, falseando a verdadeira estrutura que permite a manutenção do controle de determinados postos de trabalho pela classe média (majoritariamente branca). É essa classe que se define pelo desempenho no trabalho predominantemente não-manual ou intelectual e, portanto, precisa difundir que o que determina o acesso desse grupo a postos de trabalho não-manuais é unicamente a escolarização. Por isso podemos afirmar que é na recusa de mudanças institucionais que poderiam modificar a situação dos negros, mantendo intocados os lugares de privilégios, que visualizamos a força da ação da classe média e como se dá a operacionalização do racismo institucional.

Atrelado à reivindicação da melhoria do ensino básico e do foco no critério socioeconômico, a desconfiança na ‘qualidade’ dos ingressantes via sistema de cotas – expressa na defesa do mérito – foi preponderante em todos os discursos analisados:

“[...] propostas de ingresso por privilégio sejam quais forem elas, acobertam mensagens despóticas e demagógicas travestidas de democracia. Cabe as universidades mostrar aos governos os limites para o arrojo sem ferir princípios como responsabilidade e mérito. Cabe a UNESP mostrar caminhos para inclusão social sem se tornar cúmplice de situações embaraçosas para o mérito que ela tanto cultiva […]” (Faculdade de Odontologia- Departamento de Fisiologia e Patologia, UNESP, 2013).

“[...]. Como é bem sabido, no entanto, essas políticas [de cotas] não fazem tábula rasa da qualificação acadêmica, apenas alteram o padrão de seleção dos candidatos [...] com a política de cotas, a competição por vagas permanecerá – e nos cursos mais procurados, permanecerá muito forte –, porém, com efeitos menos injustos do que os verificados hoje […]” (Manifestação da Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas / USP, 2013).

Cabe fazermos um brevíssimo comentário no sentido de ampliar o conceito de ideologia meritocrática aqui empregada e fundamentada na contribuição do pesquisador marxista Décio Saes (Cf. SAES 1975_________.Classe média e Política na Primeira República brasileira (1989-1930). Editora Vozes, Petrópolis, 1975.; 1985_________. Classe média e sistema político no Brasil. T. A. Queiroz Editor. São Paulo. 1985.; 2005). Gostaríamos de chamar atenção para o fato da classe média brasileira (e a ideologia que sustenta a sua existência, a meritocrática) ter se consolidado no período de transição do período escravocrata para a instituição da primeira república com a instauração do regime de trabalho assalariado. Esse ponto é fundamental se quisermos compreender a fundo a reprodução da meritocracia como uma ideologia classista e racista no contexto brasileiro. Essa ampliação do conceito nos permitirá compreender, por exemplo, porque não é contraditório que as universidades de São Paulo tenham aceitado flexibilizar a meritocracia ao instituir os programas de bonificação no vestibular para egressos do ensino público, mas tenham se posicionado contrários à reserva de vagas com recorte étnico-racial.

Segundo Saes (2005), a classe média (desprovida de capital, mas totalmente inserida e subordinada na ordenação capitalista), busca diferenciar-se das outras classes por possuir dons e méritos que a tornaria apta ao trabalho não-manual (funções ligadas à gestão, administração e especialidades técnico científicas). A configuração da esfera jurídico-política23 23 Sobre as leis, podemos citar inúmeras leis mantidas na república que impactaram profundamente a situação dos negros como: incentivo a política migratória européia (acarretando a disputa entre europeus e negros libertos por postos de trabalho, onde os últimos foram preteridos em lugar dos primeiros), proibição do exercício de certas profissões por negros libertos e por fim o acesso à educação formal que entre o século XIX e XX foi marcada por interdições e restrições (como o ensino obrigatório para negros apenas no período noturno e com vistas a formação profissionalizantes ou ainda no caso de São Paulo onde os negros só poderiam estudar com consentimento dos seus ex-proprietários). (liderada pelo Estado e negociada com classe média e as oligarquias cafeeira) que reestruturou as instituições políticas na primeira república de modo a manter a distinção não apenas de classe, mas de raça, ou seja, entre negros libertos e brancos, permite-nos afirmar que a classe média, se constituiu como grupo na divisão de classes afirmando um posicionamento que é marcadamente racializado.

A valorização do trabalho não-manual, segundo Saes (1975), “tende a ser valorizada [pelas camadas médias urbanas], pois paira sobre o trabalho braçal a condenação social imposta por séculos de escravidão” (cf. SAES, 1975, p. 27). Ora, parece-nos que consoante à condenação social da escravidão (diga-se de passagem, alimentada muito mais pelo temor classe média em tornar-se mercadoria, já que também eram desprovidos de capital), a própria constituição das camadas médias confunde-se com a construção de uma narrativa que liga ausência de dons e méritos à desumanização do negro na nascente República democrática brasileira.

Ao analisar a natureza do movimento antiescravista urbano no século XIX e a participação da classe média, Saes (1981) afirma que a classe média urbana defendeu o igualitarismo jurídico- e não igualitarismo socioeconômico- pois:

“Na verdade, é o seu interesse político geral que a leva a lutar pela cidadania: só a supressão do trabalho escravo e a igualização jurídico- formal de todo os indivíduos permitirão o desenvolvimento de um processo- impossível numa formação social escravista- de valorização social do trabalhador não-manual. Por que a valorização social do trabalhador não-manual é impossível na formação social brasileira de meados do século XIX? É que, tendo o trabalho manual um caráter dominantemente compulsório, torna-se impossível para os trabalhadores não-manuais, provar- para eles mesmos e para as outras classes sociais- que a sua superioridade social sobre o escravo advém de uma superioridade de ‘dons e méritos’. Impossibilitado o confronto de capacidade entre o trabalhador não-manual, torna-se impossível, para toda e qualquer classe social, alimentar a ilusão da existência de uma ‘meritocracia’ no país […] essa classe […] deve buscar a construção de uma hierarquia de trabalho, fundada na suposição da existência de uma escala de ‘dons e méritos’ [...]” (Cf. SAES, 1981_________. A participação das massas brasileiras na Revolução anti-escravista e anti-monárquica (1888-1891). Revista Brasileira de História. N 1, volume 1, São Paulo, 1981. Print version ISSN 0102-0188. On-line version ISSN 1806-9347., p. 21).

Se a classe média esteve envolvida na luta antiescravista sem preocupar-se com a melhoria das condições materiais de vida e de trabalho do negro, antes exerceu um papel crucial na elaboração da justificativa da sua própria condição privilegiada24 24 Como explica Saes “[…] os esforços de mobilidade individual ascendente dos membros destas camadas [camadas médias] eram facilitados pelas situações oligárquicas (que encontravam prepostos à medida para o desempenho de altos cargos políticos e burocráticos) e justificados, aos seus próprios olhos, pela necessidade imperativa de que os mais cultos e aptos assumissem a direção da sociedade brasileira. Eis por que foi o grande número de apadrinhados e bacharéis, egressos dos setores médios tradicionais, a ocuparem altos cargos no legislativo, executivo e judiciário” (1975, p. 67). , justificativa que passa pela reafirmação da justificativa da condição subalternizada dos negros25 25 Quanto a justificativa para a subalternização gostaríamos de frisar dois pontos. Em primeiro lugar que nos primeiros na transição do século XIX para o XX as idéias eugenistas ganhavam força e uma parte considerável da intelectualidade brasileira aderiu a essa corrente, apoiando publicamente a imigração européia. Podemos citar alguns dos muitos nomes como Júlio de Mesquita (proprietário do jornal O Estado de S. Paulo); Oliveira Vianna; Arnaldo Vieira de Carvalho (fundador da Faculdade de Medicina em São Paulo) dentre outros. As idéias eugenistas também estiveram expressas na constituição de 1934: “Art. 138. Incumbe á União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica”. E em segundo lugar as centenas de revoltas lideradas pelos negros tanto no Brasil (Revolta dos Malês, Conjuração baiana, Levante dos Haussás) como em outras partes da América (caso da Revolução do Haiti) alimentou a construção de uma narrativa dos negros como indomáveis, não afeitos ao trabalho. - e não de outros grupos como os imigrantes europeus, é preciso compreender de que forma essa ideologia dinamizará o racismo no contexto de formação de classes no Brasil. E com esse posicionamento não queremos afirmar que a estrutura de relações de produção capitalistas seja uma mera extensão de seus antecedentes históricos, mas compreender a fundo a relação entre classe e raça na formação social brasileira moderna.

O igualitarismo abstrato que invoca a meritocracia para justificar a divisão entre dominados e dominantes é antes uma ideologia que facilita uma transição de formas legais de desumanização dos negros para formas dissimuladas de reprodução do racismo estrutural. O que nos leva a afirmar que a consolidação da ideologia meritocrática está profundamente relacionada “a novas maneiras de legitimar as antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominados e dominantes” (Cf. QUIJANO, 2005QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. En libro: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. pp.227-278., p. 203).

Outro elemento presente no discurso dos docentes é naturalização da existência do vestibular, sem qualquer tipo de questionamento desse instrumento, que é em si um mecanismo que assegura a monopolização das vagas por parte daqueles que tiveram condições financeiras para prepararem-se para a prova:

“[…] Não violamos os princípios de mérito acadêmico porque não temos cotas. Nós simplesmente tratamos de uma forma diferente os egressos de escola pública, não reservamos vaga pra [sic] ninguém […]. Apesar ser um programa de ação afirmativa, não abrimos mão de uma seleção que leve em conta o mérito. E nós confiamos muito no nosso vestibular. Nós achamos que o nosso vestibular – o que não é regra para todos os vestibulares – é um bom avaliador de mérito” (Leandro Russovski Tessler, ex-coordenador-executivo da Comissão Permanente do Vestibular da Universidade de Campinas em entrevista ao site de notícias Terra, julho de 2007. Cf. BRANDÃO REN 2007BRANDÃO REN, Renato. Coordenador defende critério de inclusão que tenha “mérito acadêmico”. Agência Brasil 29 de julho de 2007. Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/agenciabrasil/noticia/2007-07-29/coordenador-defende-criterio-de-inclusao-que-tenha-merito-academico. Acesso em 15 de janeiro de 2019.
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/...
, online).

“[…] Existe a possibilidade de um dia substituir o vestibular. Mas esse ‘um dia’ talvez não esteja muito próximo. Por quê? Temos uma estrutura de vestibular consagrada, conceituada, com qualidade de seleção muito boa, compatível com que queremos nos nossos cursos. Nosso vestibular há anos vem sendo feito com uma qualidade muito boa, posso falar pela Unicamp e USP também […]” (Júlio Durigan, ex-reitor da UNESP em entrevista concedida ao Portal G1 janeiro de 2013. Cf. FARJADO, 2013FARJADO, Vanessa. Novo reitor da Unesp diz que vai dar condições de igualdade aos cotistas. Portal G1, 22 de janeiro de 2013. Disponível online: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2013/01/novo-reitor-da-unesp-diz-que-vai-dar-condicoes-de-igualdade-aos-cotistas.html http://noticias.terra.com.br/vestibular/interna/0,,OI1794337-EI8281,00.html. Acesso em 29 de janeiro de 2019.
http://g1.globo.com/educacao/noticia/201...
, online).

Importante assinalar que os cotistas têm que passar por alguma seleção e atingir notas mínimas, ou seja, eles não estariam isentos de passar pela suposta comprovação dos conhecimentos necessários para entrar na universidade que é feita via vestibular geralmente. Entretanto, gostaríamos de assinalar que o mais importante no que tange à defesa de processos seletivos que assegurariam o mérito, é que a flexibilização desse tipo de processo meritocrático já vinha ocorrendo nas três universidades se entendermos que os programas de bonificação são, em si, o reconhecimento por parte dos docentes de que há disparidades e que não é possível estabelecer os mesmos critérios de seleção quando a sociedade tem desigualdades absurdas, mas a ênfase (sem comprovação a priori) na incapacidade dos cotistas é recorrente nos discursos e justificativa para o rechaço da reserva de vagas para negros e indígenas:

“[…] A cota não é solução. Nossas universidades estão tomando iniciativas para responder a demandas muito mais políticas do que acadêmicas. As melhores universidades do mundo consomem enorme energia para selecionar os melhores e, com as cotas, viola-se isso […]” (Leandro Tessler, ex-coordenador do vestibular da Unicamp, em artigo publicado no Jornal Estadão em julho de 2017. Cf. O ESTADO DE SÃO PAULO, 2017O ESTADO DE SÃO PAULO. A USP se rende às cotas. 7 de julho de 2017. Disponível em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-usp-se-rende-as-cotas,70001880048. Acesso em 20 de janeiro de 2019.
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/...
).

“[…] O PIMESP se propõe a ser um programa de Inclusão com Mérito, o que pressupõe que haja alguma preocupação com o perfil dos cotistas futuros e ações para recuperar as deficiências e as lacunas que, porventura, o sistema de educação básica tenha deixado, [grifo nosso] preocupação está aliás, que, se posta deveria ser geral e não restrita aos cotistas [...] Dado o problema de fundo, que é a considerável falta de vagas públicas na educação superior paulista, o perfil dos cotistas e as necessidades de intervenção dele decorrente, dependerá muito do curso escolhido. É preciso insistir que eventuais programas de recuperação devem depender de cada curso, tanto por causa das eventuais deficiências apresentadas pelos ingressantes nos diferentes cursos, como pelas exigências destes mesmos cursos […]” (Texto publicado na página oficial da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo/ADUSP, 1 março de 2013. Cf. ADUSP, 2013ADUSP. PIMESP: ensino à distância travestido de política de cotas?. 1 de março de 2013. Disponível em: http://www.adusp.org.br/index.php/textos/1575-pimesp-ensino-a-distancia-travestido-de-politica-de-cotas. Acesso em 20 de janeiro de 2019.
http://www.adusp.org.br/index.php/textos...
, online).

“[…] queremos que os cotistas tenham o mesmo nível dos alunos que entram pelo vestibular. A política federal não prevê isso. Vamos ter um aluno na medicina que é de altíssimo nível e outro que é baixíssimo nível. Os dois vão estar na mesma sala, fazendo o mesmo curso. Se não dermos condições para que eles se aproximem, vamos ter problemas na sala de aula, não adianta dizer que não. O governo estadual e o CRUESP [Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo] pensaram nisso: vamos melhorar o nível dos cotistas […]” (Júlio Durigan, ex-reitor da UNESP em entrevista concedida ao Portal G1 janeiro de 2013. Cf. FARJADO, 2013FARJADO, Vanessa. Novo reitor da Unesp diz que vai dar condições de igualdade aos cotistas. Portal G1, 22 de janeiro de 2013. Disponível online: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2013/01/novo-reitor-da-unesp-diz-que-vai-dar-condicoes-de-igualdade-aos-cotistas.html http://noticias.terra.com.br/vestibular/interna/0,,OI1794337-EI8281,00.html. Acesso em 29 de janeiro de 2019.
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A medida que o movimento negro e o movimento estudantil pressionava os docentes das universidades pelo rechaço do PIMESP e inclusão do modelo federal de cotas, o discurso dos docentes e representantes políticos passou a flertar com as concepções de inclusão das diferenças, de valorização da diversidade mas com vistas a desenvolver competências e habilidades para incluir apenas a diversidade desejável, forjando uma narrativa que mascara a reprodução da essencialização das pessoas negras:

“[…] A Universidade sinaliza que reconhece a existência de múltiplas experiências educacionais que merecem ser consideradas na busca pelos melhores estudantes […]” (José Alves de Freitas Neto, Presidente do GT Ingresso e coordenador-executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares da UNICAMP, entrevista ao jornal da Unicamp, após aprovação do sistema de reserva de vagas em 2017. Cf. ALVES FILHO, 2017ALVES FILHO, Manuel. Unicamp amplia inclusão e debate implantação de cotas étnico-raciais. Portal Unicamp. Especial Cotas Étnico-raciais, 26 de Maio 2017. Disponível em: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/especial/unicamp-amplia-inclusao-e-debate-adocao-de-cotas-etnicos-raciais> Acesso: 29 de janeiro de 2019.
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).

“[…] A diversidade da população universitária também é fator a ser considerado na caracterização de uma universidade de renome mundial, pois os alunos se beneficiam de uma educação mantida em um ambiente plural, originado por diferenças culturais, socioeconômicas, raciais, entre outras. Nesse espaço, há mais oportunidades para a expressão e o aperfeiçoamento de talentos e habilidades, o que resulta em melhoria da qualidade da experiência educacional e no preparo para uma cultura cada vez mais complexa. Como consequência, o processo de proposição e avaliação de ideias novas pode ser aprofundado e conduzido de maneira respeitosa e civilizada, com vistas à excelência individual e coletiva[…]” (Mauro Bertotti, Professor Titular do Instituto de Química da USP em entrevista à Quimica Nova, Vol. 36, No. 2, 205, 2013).

“[…] A universidade não pode ser só universal em seu conhecimento, mas também em sua abrangência social […]” (ex-governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin e um dos idealizadores do PIMESP, entrevista ao portal G1, dezembro de 2012. Cf. STOCHERO, 2012STOCHERO, Tahiane. SP lança programa de cotas sociais e raciais para a USP, Unesp e Unicamp. Portal G1, 22 de dezembro de 2012. Disponível online: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2012/12/sp-lanca-programa-de-cotas-sociais-e-raciais-para-usp-unesp-e-unicamp.html. Acesso em 15 de janeiro de 2019.
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).

Cabe analisarmos o que não está explícito na defesa dessa tal “diversidade” como justificativa para implementação de políticas afirmativas. A defesa da diversidade, lugar comum na agenda dos mais diferentes setores (esquerda, algumas alas dos movimentos negros, intelectuais), é mais uma das armadilhas da gramática da integração na medida em que essa “bandeira”, na realidade, não desafia os pressupostos que reificam os grupos racializados assim como reitera a concepção de diversidade como apenas um “recurso” dentro de uma ordem capitalista, mantendo intacta a estrutura de classes.

A diversidade, portanto, só é desejável na medida em que está dentro dos critérios definidos pela intelligentsia paulista ou nas palavras do reitor da USP, Vahan Agopyan, “as cotas não são favor ou assistencialismo, mas uma maneira de a universidade recrutar ótimos alunos e avançar”26 26 Fonte: Revista Veja, edição online, 18 de maio de 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/revista-veja/um-passo-decisivo/ . Acesso em 20 de janeiro de 2019. . O discurso da diversidade como potência criativa para dar novos contornos a formação superior com vistas ao desenvolvimento de competências e capacidades é, por um lado, uma tentativa de domesticação da luta pela emancipação da universidade e por outro o desejo pela manutenção dos lugares de poder.

Por fim, cabe ainda uma breve análise sobre o suposto caráter consultivo do PIMESP, frente aos prazos de apreciação (definidos pelo conselho de reitores das três universidades e pelo governo executivo), ameaçando, segundo os docentes, a autonomia universitária:

“[…] é perfeitamente possível aliar inclusão com valor acadêmico desde que não haja interferências externas e estranhas ao mundo acadêmico, como a invenção das tais cotas, que o governo quer impor de cima pra baixo na reforma universitária, ao invés de estabelecer objetivos e metas e deixar que as universidades usem a sua inteligência, a sua capacidade de pensar e de entender o ambiente no qual estão inseridas para criar soluções como essa [programa de bonificação] que a UNICAMP criou (Carlos Henrique de Brito Cruz, ex-reitor da UNICAMP e reitor que liderou a criação do programa de bonificação da UNICAMP em entrevista à revista Serviço Social e Saúde, maio de 2005. Cf. SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE, 2005SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE. Entrevista com o Reitor da Universidade Estadual de Campinas professor doutor Carlos Henrique de Brito Cruz. Revista Serviço Social & Saúde Campinas v. 4 n. 4 p. 1− 156, Maio 2005. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=43719. Acesso em 20 de janeiro de 2019.
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/...
).

“[…] A forma delineada de pensar essa proposta e um método que contraria a tradição de debate plural e democrático tão cultivado na universidade. Concebida pelos reitores das universidades públicas paulistas e pelo governo estadual, a proposta carece de legitimidade acadêmica [...]. É de suma importância que se abra um período adequado de debates sobre a proposta oficial e que haja espaço e receptividade para apresentação de sugestões alternativas [...]” (Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação/ UNESP).

“[…] O programa, por ter sido feito dentro de um contexto ‘fora’ da Universidade não contempla a estrutura da Universidade e pode ocasionar mudanças drásticas do seu funcionamento [..] o Departamento é favorável ao INCLUSP pelas seguintes razões […] foi proposto pela própria Universidade, de acordo com suas características, e, portanto, já está acomodado à estrutura da Universidade [...]” (Departamento de Fisiologia/USP, abril de 2013).

A análise dos trechos supracitados permite que identifiquemos dois elementos principais que estão dissimulados na defesa da autonomia universitária: gestão e controle da “diversidade” e a encenação do espaço da universidade como espaço democrática, justo, fora dos conflitos de classe e raça que permeiam a comunidade política.

O primeiro elemento nada mais é do que a reivindicação da gestão da “diversidade”, isto é, o controle do perfil dos ingressantes que adentrarão ao espaço da Universidade. Na maioria das atas analisadas, ao mencionarem o cunho pouco democrático da condução da Proposta, não encontramos menção à participação do corpo discente ou mesmo dos movimentos negro e indígena, por exemplo.

Causo-nos também estranhamento, ainda quanto ao primeiro elemento, que a demanda por mais tempo para análise do PIMESP tenha apenas surgido nesse contexto, não tendo ocorrido o mesmo incômodo à época da implantação dos programas de bonificação, por exemplo, na UNICAMP e na USP quando foram os reitores a fazerem propostas de implantação dos programas de bonificação que foram aprovadas em prazos relativamente curtos. Na UNICAMP, o Reitor Carlos Henrique de Brito Cruz por meio de uma resolução (GR-055/200327 27 Disponível em: https://www.pg.unicamp.br/mostra_norma.php?id_norma=1753. Acesso em 29 de janeiro de 2019. ) criou em 2003 um grupo de trabalho para analisar formas de ação afirmativa e em 2004, por 62 votos a favor e 2 abstenções, o PAAIS foi aprovado. Já na USP, foi em 2006 na gestão da então reitora Suelly Vilela Sampaio que o INCLUSP foi aprovado. Válido frisar que a referida ex-reitora ao assumir a reitoria em novembro de 2005 já fazia referência à criação de um programa de inclusão e qual seria o modelo desse programa:

“[…] Qual o desafio do vestibular? É não premiar apenas a informação, porque assim você não privilegia uma determinada classe econômica [a mais alta]. É preciso também ver as habilidades dos candidatos. Agora, como fazer isso? Estamos procurando. Sou contra as cotas, a simples reserva de vagas. A entrada na universidade precisa privilegiar o mérito acadêmico, o aluno precisa ter condição de acompanhar o curso. Mas podemos até criar um sistema de pontuação […]” (Entrevista concedida à Folha de São Paulo em novembro de 2005. Cf. TAKAHASHI & MELO, 2005TAKAHASHI, Fábio & MELO, Ricardo. “Metade dos alunos da USP deve ser de escola pública”, diz reitora. Folha de São Paulo, 12 de dezembro de 2005. Disponível online: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1212200518.htm. Acesso em 15 de janeiro de 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil...
).

O Grupo de Trabalho criado em 2006, na gestão da ex-reitora, elaborou e conseguiu aprovação do INCLUSP pelo conselho universitário já em junho do mesmo ano e tinha como mecanismo de “inclusão” a bonificação para alunos de escolas públicas. Diante disso, concluímos que os docentes ao rechaçarem a falta de tempo e participação na escrita do PIMESP estavam a reivindicar na realidade a tutela na elaboração da política de inclusão (e o rechaço da inclusão do critério étnico-racial incluído no referido Programa).

O segundo ponto, relativo à crença do espaço da universidade como espaço democrática por excelência, fora dos conflitos e tensões da comunidade política nos leva a confrontar a própria condição de classe e raça dos docentes. E por quê? Nos discursos sobressai-se uma universidade quase ontologicamente democrática, como espaço plural em si negando o pacto do aparelho educacional de Estado com a reprodução da divisão do trabalho (Cf. SAES, 2008, p. 174) que é ao mesmo tempo classista e racista, comprometendo ou pelo menos limitando qualquer pretensão democrática desse espaço.

O racismo institucional, como sistema de dominação, opera ressignificando lugares de poder e privilégio. A força do racismo institucional está em justamente seguir vigoroso mesmo com o consenso da inexistência das raças em termos biológicos (e as doutrinas dai decorrentes), mesmo que atitudes ou opiniões declaradamente racistas não estejam no bojo da discussão.

Do envolvimento (oportunista) nas lutas antiescravistas ao reduto opositor da adoção de reserva de vagas étnicos-raciais no vestibular, a ação política da classe média ao mesmo tempo em que tem conformado sua posição na hierarquia de trabalho tem contribuído para a manutenção racializada da sociedade de classes. Procuramos nesse artigo demonstrar que esse último não é um mero efeito colateral da busca por manutenção da sua condição de classe, mas é precisamente, a reificação do negro, fonte por excelência da afirmação da suposta superioridade da classe média.

O debate gerado nas universidades paulistas acerca da adoção da reserva de vagas com recorte étnico racial é uma oportunidade para entendermos em que medida o apego político da classe média à ideologia meritocrática informa acerca da estreita relação entre a prática política dessa classe e a reprodução de mecanismos racistas na democracia brasileira.

Considerações finais

Com o efeito a negritude aparece como tempo fraco de uma progressão dialética: a afirmação teórica e prática da supremacia do Branco é a tese; a declaração da negritude como valor antitético é o momento da negatividade. Mas este momento negativo não tem suficiência em si mesmo e os Negros que o usam sabem-no muito bem; sabem que ele visa a preparar a síntese ou a realização do humano numa sociedade sem raças. Assim a Negritude existe para ser destruída, é passagem e não conclusão, meio e não fim último (Cf. FANON, 1975FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. ED PAISAGEM, 1975., p. 145).

A crítica ao PIMESP pelos docentes foi de todo uma crítica conservadora e racista, ou seja, a recusa ao PIMESP não foi necessariamente pelo caráter descaradamente racista e classista do Programa, mas pela possibilidade real de desorganizar os espaços de privilégio já que a política de cotas instituiu o mecanismo que reserva vagas, limitando – ainda que pouco – a reprodução e manutenção da supremacia branca. A condição duplamente privilegiada – classe e raça – do corpo docente das universidades de São Paulo aponta para a necessidade de enquadrar as narrativas produzidas por esse grupo a partir de certo referencial que se bem não nega a perspetiva de classe marxista para compreender a ação política dos docentes, precisa estar atenta para os meandros destas abordagens. Ao privilegiarem o recorte de classe, estas perspectivas acabam por engrossar as fileiras das análises que não problematizam o racismo que, mesmo não-dito, orienta a produção das narrativas em torno da situação do negro no Brasil.

A defesa da manutenção, por parte dos docentes, do sistema de bonificação como sistema capaz de, por um lado, garantir o mérito pessoal e, por outro, afastar o perigo da deterioração da “excelência do ensino e pesquisa das universidades”, assim como a aprovação do sistema de reserva de vagas em 2017 – apenas mediante a pressão dos movimentos sociais e com a condição de que a implementação do total de vagas a serem reservadas fosse feito de modo progressivo –, nada mais é do que a defesa de um projeto político que atualiza o paradigma da integração.

A ‘flexibilização’ da meritocracia em nome de um projeto de universidade diversa merece ainda uma última consideração de nossa parte. Frantz Fanon, já em 1952, alertava para os perigos do que ele chamou de processo de cristalização cultural (1975, p. 210). Com essa terminologia, Fanon estava a chamar atenção para o caráter discriminatório do arcabouço culturalista que naturaliza as diferenças, reifica hierarquias ao mesmo tempo em que falseia a dominação, constituindo-se como uma armadilha sedutora. A luta antirracista nas democracias modernas não superou essa armadilha – construída pela branquidade – e o paradigma da integração (com toda o seu imaginário da diversidade) tem dado apenas uma nova forma ao mundo racializado, mantendo o seu conteúdo. O enquadramento da luta antirracista nos limites da gramática da integração constitui-se como armadilha colonial que age numa espécie de dupla perversão: no silenciamento acerca da mistificação dos sujeitos e na tutelagem da práxis negra pela branquidade.

As narrativas produzidas em torno das políticas afirmativas nas universidades de São Paulo têm construído legitimidade – via políticas de integração –, para a difusão da crença de que o racismo ainda existe apenas porque as pessoas negras não foram “incorporadas” adequadamente ou suficientemente às sociedades modernas e que se faz necessário intervir junto às “minorias” para que essas sejam integradas. Integração enquanto discurso e prática politica institucionalizada tem sido imposto – por agentes internacionais, financiadores, Estados – como única ou principal solução para o combate ao racismo – sem fazer menção à estrutura que mantem essa maquinaria de moer corpos negros funcionando.

O infiltramento, silencioso, na atuação política dos movimentos antirracistas negros, a nosso ver, tem limitado a radicalidade dos mesmos. O paradigma da integração circunscreve o atual fazer antirracista, retardando a ampliação da critica radical às políticas eurocêntricas de “combate ao racismo” – silenciando o nexo entre colonialidade, racismo e democracia. A tarefa de repensar as políticas antirracistas na modernidade não é uma missão fácil já que como afirmou Fanon: “[…] o inventário do real é uma tarefa colossal” (1975, p. 181). Isso implica dizer que identificar os elementos que denunciam a continuidade das estruturas racializadas nas democracias modernas e suas implicações para a emancipação negra é uma tarefa que precipita a erosão das bases sob as quais está assentada a alienação do mundo moderno.

  • 1
    Este trabalho é parte da tese de doutoramento da investigadora e resulta do projeto de investigação POLITICS - A política de antirracismo na Europa e na América Latina: produção de conhecimento, decisão política e lutas coletivas. Este projeto recebe financiamento do Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro de Investigação e Inovação da União Europeia, Horizonte 2020 (acordo de subvenção nº ERC-2016-COG-725402).
  • 2
    Optarei pelo uso do termo negro ao longo do texto, sempre que possível, por entender que a terminologia – preto e pardo – empregada pelo IBGE e utilizada na formulação de algumas políticas públicas busca, por meio da nomeação dos sujeitos racializados, domesticar os espaços de enunciação, ofuscando a potência política e o poder aglutinador do termo negro.
  • 3
    Criada em 2008 pelo governo de Geraldo Alckimin, a UNIVESP, visando suprir a demanda por mais vagas nas universidades estaduais paulistas a baixo custo e investimento, oferece ensino superior à distância. Desde a sua criação, a Universidade à distância tem recebido inúmeras críticas, como: a qualidade duvidosa do ensino ofertado, a qualidade da aprendizagem dos estudantes, beneficiamento da iniciativa privada do setor de equipamentos e programas de informática, sucateamento do ensino superior público, desvirtuamento dos fins originais do ensino à distância e uso desse tipo de ensino para legitimar a exclusão uma vez que os estudantes que cursam Univesp não moram necessariamente em lugares distantes que os impedissem de acessar os cursos presenciais das universidades públicas estaduais paulistas.
  • 4
    O Centro Paula Souza é uma autarquia do Governo do Estado de São Paulo, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (SDECTI). A instituição administra 219 Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e 66 Faculdades de Tecnologia (Fatecs).
  • 5
    A principal fonte de pesquisa são as atas emitidas pelos departamentos à época da consulta sobre o PIMESP (entre 2012 e 2013), bem como artigos de opinião e entrevistas de alguns docentes (geralmente ligados aos cargos administrativos nas universidades como reitores e ex-reitores) em jornais de circulação nacional entre 2004 e 2018. Foram analisadas ao total 108 atas advindas das unidades e departamentos da UNESP e USP, além da documentação produzida pelos grupos de trabalhos na UNICAMP, responsáveis pela análise dos programas inclusivos, incluindo o PIMESP (contrariamente ao processo consultivo nas duas outras universidades estaduais, a UNICAMP optou por constituir grupos de trabalhos para analisar a proposta do PIMESP).
  • 6
    No caso da proposta do PIMESP, poderia ser via vestibular das universidades, Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ou outro método de seleção.
  • 7
    No caso da UNICAMP, o Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social (PAAIS), criado em 2004 e que foi o primeiro programa de bonificação no país. Já no caso da USP, acompanhando o modelo centrado na bonificação e em alunos de escola pública, criou em 2006 o Programa de Inclusão Social da USP (INCLUSP). Já na UNESP apenas instituiria uma política afirmativa a partir do debate suscitado com a proposta do PIMESP. Em 2013 aprovou o PIMESP, mas não de todo (rechaçou a proposta do ICES) e em 2014 criou o Sistema de Reserva de Vagas para a Educação Básica Pública mais Preto, Pardo e Índigenas (SRVEBP+PPI).
  • 8
    Pontos extras em cima da nota obtida no vestibular do aluno que vem de escola pública.
  • 9
    Parafraseando o livro Onda Negra Medo Branco- O Negro no Imaginário das Elites Século XIX da pesquisadora Célia Maria Azevedo. A obra retrata o negro nos discursos e debates dos abolicionistas e emancipacionistas onde esses últimos ao mesmo tempo em que atuavam pela abolição da escravatura e inserção do negro como trabalhadores livres estimulavam a imigração européia como fonte de mão de obra apta e qualificada. A influência das teorias eugenistas no meio da elite, segundo, a pesquisadora não é suficiente para explicar a razão do apoio por esse grupo à imigração européia, mas o medo das elites da insurreição negra tendo em vista que nesse período explodiam inúmeras insurreições nacionais e a própria Revolução do Haiti, influenciando a construção da narrativa pelas elites de que os negros eram perigosos, vadios, incapazes e indolentes. Apenas, à título de curiosidade, a referida pesquisadora também posicionou-se contrária à modalidade de reserva de vagas no ensino superior, pois o “combate ao racismo significa lutar pela desracialização dos espíritos e das práticas sociais. Para isso é preciso rechaçar qualquer medida de classificação racial pelo Estado com vistas a estabelecer um tratamento diferencial por raça, ou, para sermos mais claros, os direitos de ‘raça’” (Cf. AZEVEDO, 2004AZEVEDO, C. M. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004. 144p., p. 50).
  • 10
    Sobre a escolha do Brasil como “laboratório de civilização” (Cf. Maio (1999; 2000MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco: ciências sociais e o “credo racial brasileiro”. Revista Usp, São Paulo, n.46, p. 115-128, junho/agosto 2000.) podemos dizer, em síntese, que a presença de alguns intelectuais que já tinham realizado estudos sobre o Brasil, em organismos de cooperação internacional como a UNESCO e até mesmo a circulação nesse tipo de espaço, propiciando contatos com pesquisadores internacionais contribuiu para a decisão pelo Brasil, além, obviamente da imagem que desde os anos 30 estava-se a exportar do Brasil como pátria miscigenada e harmônica. Alguns dos intelectuais eram: Ruy Coelho, ex-aluno de Roger Batisde e assistente de Alfred Métraux, diretor do Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO e coordenador dos estudos no Brasil; Charles Wagley, antropólogo norte-americano e colaborador na UNESCO; Otto Klineberg, um dos fundadores do departamento de psicologia da USP, muito influenciado pelo antropólogo Franz Boas (que foi professor de Giberte Freyre), e que esteve envolvido com os estudiosos norte americanos na busca por solucionar os conflitos raciais nos Estados Unidos (tendo colaborado na pesquisa An American Dilemma de Gunnar Myrdal); o sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, um dos participantes do debate sobre conceito de raça na UNESCO em 1950, e Roger Bastide que já conhecia Alfred Métraux com quem partilhava ideias e projetos de investigação.
  • 11
    Acerca do tema há extensa produção, mas gostaríamos de destacar o contributo do pesquisador Marcos Chor Maio (Cf. 1996, 1997_______________. “Uma Polêmica Esquecida: Costa Pinto, Guerreiro Ramos e o Tema das Relações Raciais”, in Dados, Rio de Janeiro, Iuperj, 40, 1, 1997, pp. 1: 127-162., 1998, 1999, 2000). Seus estudos contêm detalhes preciosos acerca do processo de construção e desenvolvimento da pesquisa UNESCO no Brasil.
  • 12
    O referido conceito é empregue seguindo a definição do estudioso Décio Saes (Cf. Décio Saes, 1975; 1985; 2005) que por sua vez está em estrita conexão com as obras dos sociólogos franceses Bourdieu e Passeron (Cf. Décio Saes 1975). As referidas obras se constituem como referências centrais da discussão do conceito de classe média a partir da abordagem marxista. No contexto do presente trabalho, recorremos ao conceito de classe média, a partir de um viés marxista, pois entendemos que o principal grupo que desempenhou papel ativo e crucial no debate acerca da reserva de vagas étnico-raciais nas universidades públicas paulistas foi a classe média. Dado o formato do presente artigo, de modo sucinto podemos definir classe média como a classe que agrupa todos os trabalhadores, assalariados ou não, que, além de desempenharem algum trabalho indiretamente produtivo (isto é, não gerador diretamente de mais-valia), está relacionado às atividades não-manuais, e procuram distinguir-se, apresentando-se superiores aos trabalhadores manuais na estrutura de classes mobilizando o conceito de meritocracia.
  • 13
    Esse termo está sendo tomado no sentido que Werneck Viana (Cf. 1994) atribui a ele, ou seja, como intérpretes da sociedade. Nesse sentido, estabelecemos para esse estudo um paralelo entre esse conceito e o conceito de classe média, pois entendemos que há uma interconexão muito potente entre os referidos conceitos para compreendermos como se movimenta politicamente a classe média branca na busca pela manutenção dos seus privilégios via controle do aparelho educacional, produzindo narrativas “científicas” que justificam a sua própria condição.
  • 14
    Sobre a consolidação da narrativa do racismo pós segunda guerra, cabe ainda chamarmos atenção para as reverberações dessa narrativa no sistema de justiça. O conceito de racismo visto como aberração, portanto, gestado e reproduzido na mente de pessoas antidemocráticas e apenas em contextos em que as instituições democráticas não estão funcionando plenamente, tem (limitado) pautado a prática jurídica no que tange às condenações de casos de racismo antinegro. O cerne da atuação jurídica é no combate ao racismo moral, com foco no crimes de injúria racial, discriminação e preconceito impedindo a discussão sobre as múltiplas facetas assumidas pelo racismo enquanto estruturante da sociedade. Prova disso é que no Brasil temos apenas um único caso condenado pelo Supremo tribunal Federal (STF) no qual restou decidido crime de racismo que foi o caso o “Caso Ellwanger”. O Caso foi a julgamento no STF em 2003 e envolvia acusações de racismo e anti-semitismo. Siegfried Ellwanger foi condenado pelo cometimento de crime de racismo pela publicação e venda de livros de temática anti-semita. Válido dizer que casos de racismo antinegro já chegaram ao STF como exemplo mais recente temos a acusação feita contra o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro acusado de racismo depois de fazer declarações acerca da situação dos quilombolas entretanto ele foi absolvido pois o STF entendeu que as falas se inseriam num contexto de liberdade de expressão. Link para o caso: https://www.jn.pt/mundo/interior/supremo-tribunal-rejeita-denuncia-contra-bolsonaro-por-racismo-9833870.html
  • 15
    Sobre a obra do sociólogo francês, ver Pereira de Queiroz (Cf. 1977; 1978; 1983), Nogueira (Cf. 1978), Dauty (Cf. 1985), Peirano (Cf. 1991), Peixoto (Cf. 2000), Braga (Cf. 1944; 2000).
  • 16
    Gostaríamos de destacar esses dois pesquisadores tanto porque tiveram maior visibilidade se comparados com os demais estudiosos envolvidos no Projeto UNESCO, como porque suas obras compõem a bibliografia base dos cursos de ciências sociais no Brasil. Dito isto, o projeto foi desenvolvido na Bahia (que era o foco inicial por ser considerada por alguns pesquisadores o exemplo da boa convivência entre diferentes povos), São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco (sob a tutela do Instituto Joaquim Nabuco, órgão criado por Gilberto Freyre que se colocou disponível junto a UNESCO para colaborar com o estudo).
  • 17
    Guerreiro Ramos tinha fortes críticas à produção desenvolvida por boa parte dos pesquisadores envolvidos nos estudos da UNESCO por entender que aquelas análises viam o negro como objeto de estudo e como problema.
  • 18
    Como o livro Significado do Protesto Negro de 1989.
  • 19
    O sistema de bonificação consiste em acrescentar pontos nas provas do vestibular para os grupos considerados desprivilegiados, entretanto inúmeros estudos já comprovaram que esse tipo de Sistema alcança resultados inexpressivos (Cf. Feres Júnior, Daflon, Campos, Barbabela & Ramos, 2013), pouco alterando o quadro de desigualdade.
  • 20
  • 21
    Dizemos parcela visto que desde a década de 70, com a contribuição decisiva de Carlos A. Hasenbalg (1979, 1982, 1983, 1992, 1998, 1999, 2003, 2014), os estudos das relações raciais no Brasil são reposicionados a partir da do conceito de ‘ciclo de desvantagens cumulativas’, rechaçando “explicações historicistas ou culturalistas de herança escravocrata ou de etos católico e assimilacionista” (GUIMARÃES, 2016GUIMARÃES, A. S. A. O Legado de Carlos Hasenbalg (1942-2014). Revista Afro-Ásia, n. 53, 2016, p.277-290., p. 280) acerca da situação do negro na sociedade brasileira. Apesar desse fato, as análises do autor, em nossa concepção, ainda não tem a importância e visibilidade merecida em comparação com a escola paulista de sociologia e seus achados decoorentes do Projeto UNESCO.
  • 22
    Sobre os dados, no caso da USP os dados estão disponíveis na página da Universidade (https://uspdigital.usp.br/portaltransparencia/informacaoServidorRacaCor) mas no caso da UNICAMP e UNESP é necessário fazer uma solicitação, por meio da Lei de Acesso livre à informação, pedindo as informações e o tempo de avaliação do pedido leva entre 20 e 30 dias úteis.
  • 23
    Sobre as leis, podemos citar inúmeras leis mantidas na república que impactaram profundamente a situação dos negros como: incentivo a política migratória européia (acarretando a disputa entre europeus e negros libertos por postos de trabalho, onde os últimos foram preteridos em lugar dos primeiros), proibição do exercício de certas profissões por negros libertos e por fim o acesso à educação formal que entre o século XIX e XX foi marcada por interdições e restrições (como o ensino obrigatório para negros apenas no período noturno e com vistas a formação profissionalizantes ou ainda no caso de São Paulo onde os negros só poderiam estudar com consentimento dos seus ex-proprietários).
  • 24
    Como explica Saes “[…] os esforços de mobilidade individual ascendente dos membros destas camadas [camadas médias] eram facilitados pelas situações oligárquicas (que encontravam prepostos à medida para o desempenho de altos cargos políticos e burocráticos) e justificados, aos seus próprios olhos, pela necessidade imperativa de que os mais cultos e aptos assumissem a direção da sociedade brasileira. Eis por que foi o grande número de apadrinhados e bacharéis, egressos dos setores médios tradicionais, a ocuparem altos cargos no legislativo, executivo e judiciário” (1975, p. 67).
  • 25
    Quanto a justificativa para a subalternização gostaríamos de frisar dois pontos. Em primeiro lugar que nos primeiros na transição do século XIX para o XX as idéias eugenistas ganhavam força e uma parte considerável da intelectualidade brasileira aderiu a essa corrente, apoiando publicamente a imigração européia. Podemos citar alguns dos muitos nomes como Júlio de Mesquita (proprietário do jornal O Estado de S. Paulo); Oliveira Vianna; Arnaldo Vieira de Carvalho (fundador da Faculdade de Medicina em São Paulo) dentre outros. As idéias eugenistas também estiveram expressas na constituição de 1934: “Art. 138. Incumbe á União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica”. E em segundo lugar as centenas de revoltas lideradas pelos negros tanto no Brasil (Revolta dos Malês, Conjuração baiana, Levante dos Haussás) como em outras partes da América (caso da Revolução do Haiti) alimentou a construção de uma narrativa dos negros como indomáveis, não afeitos ao trabalho.
  • 26
    Fonte: Revista Veja, edição online, 18 de maio de 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/revista-veja/um-passo-decisivo/ . Acesso em 20 de janeiro de 2019.
  • 27
    Disponível em: https://www.pg.unicamp.br/mostra_norma.php?id_norma=1753. Acesso em 29 de janeiro de 2019.

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Documentos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2019
  • Aceito
    10 Jul 2019
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