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A forma jurídica da compra e venda da força de trabalho. Equivalência, interversão e forma do estado

The legal form of buy and sale of the labor force. Equivalence, interversion and form of the state

Resumo

O artigo investiga a forma jurídica da compra e venda da força de trabalho. A partir da análise do processo de produção do mais-valor absoluto, sustenta a hipótese de que esta forma projeta a aparência de juridicidade, ocultando, no entanto, sua essência expropriatória. A natureza particular desta oposição enseja a dominação econômica do capital sobre o trabalho, deslocando o domínio político para a esfera estatal. O método utilizado é a dialética marxiana, tal como desenvolvida por Karl Marx em O capital.

Palavras-chave:
Crítica marxista do direito; Dialética marxiana; Forma de dominação política

Abstract

The paper investigates the legal form of buy and sale of the labor force. Based on the analysis of the production process of the absolute surplus value, it supports the hypothesis that this form projects the appearance of legality, concealing, however, its expropriatory essence. The particular nature of this opposition leads to the economic domination of capital over labor, shifting the political domain to the state sphere. The method used is the Marxian dialectic, as such developed by Karl Marx in Capital.

Keywords:
Marxist criticism of law; Marxian dialectic; form of political domination

“Em todos os casos, é na relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtores diretos [...] que encontramos o segredo mais profundo, a base oculta de todo o arcabouço social e, consequentemente, também da forma política das relações de soberania e de dependência, isto é, da forma específica do Estado existente em cada caso”.

Karl Marx (2017 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. , p. 852)

Introdução

O problema da especificidade da forma jurídica da compra e venda da força de trabalho é um dos mais importantes, e, ao mesmo tempo, um dos mais negligenciados no interior da crítica marxista do direito. Se é verdade que Karl Marx deixou indicações suficientes ao bom desenvolvimento da questão, não é menos verdade que os autores e as autoras que desenvolvem a análise marxista do fenômeno jurídico têm mantido uma distância teórica conveniente com relação ao tema1 1 Bernard Edelman (2016, p. 27) captou bem esta situação: "Vendo as coisas mais de perto, não sabemos muito bem como e sob que formas jurídicas precisas se opera a extração de mais-valor. E essa semi-ignorância nos cega para a própria força dessas formas, dessas técnicas, para a sua eficácia concreta e ideológica. Por exemplo, sabemos verdadeiramente em que o contrato de trabalho está ligado ao capital e como o direito de propriedade está ligado ao contrato de trabalho? Não sabemos nada verdadeiramente, afora as banalidades com que nos cumulam: o contrato de trabalho introduz uma ‘falsa’ igualdade entre as partes, a ‘vontade’ do operário é uma ‘ficção’ ... trivialidades com que nos contentamos preguiçosamente por falta de ir ver na prática como as coisas se passam de fato”. . Esta conveniência, no entanto, precisa ser enfrentada.

De fato, uma vez que Marx associou a forma jurídica ao princípio da troca de equivalentes, isto é, ao intercâmbio de valores idênticos na esfera da circulação, instaura-se um problema tormentoso no momento em que entra em cena a troca entre capitalista e trabalhador. Como se sabe, a compra e venda da força de trabalho é o meio através do qual o capital integra o trabalho à produção do mais-valor. Como é até intuitivo, a produção de valor excedente deve negar a simples relação de equivalência que caracteriza a circulação. Ora, a relação jurídica entre trabalhador e capitalista não deveria ser igualmente negada?

A resposta só pode ser: não e sim. A relação jurídica não pode ser simplesmente negada, pois o contrato de trabalho é um dado muito claro da realidade. A partir dele se desenvolve toda uma série de noções e normas jurídicas que buscam disciplinar esta relação sui generis, o que desemboca no chamado “direito do trabalho”. Deve, no entanto, ser negada, pois, como afirma Marx, se a relação entre capital e trabalho fosse marcada pela equivalência haveria a produção de valor, mas nunca de mais-valor. Afinal, a criação deste não significa senão o prolongamento da jornada de trabalho para além do momento em que os valores iniciais lançados na produção são repostos, sobretudo o valor da força de trabalho.

A explicação que usualmente se oferece para este fenômeno consiste em recorrer à famosa “separação” entre as esferas da circulação e da produção. Uma vez que a alienação da força de trabalho, pelo trabalhador ou trabalhadora, opera-se mediante o recebimento de salário, isto é, de uma quantia em dinheiro que expressa o valor de sua mercadoria, todas as exigências relativas ao princípio de equivalência são contempladas. Pouco importa o momento de criação do mais-valor, pois o que se tem aí é o consumo da força de trabalho e este ocorre na esfera da produção. Aí, contudo, o valor de uso desta mercadoria já não pertence mais ao trabalhador, mas sim ao capitalista, que a adquiriu na esfera da circulação. Uma vez que pagou seu valor, o princípio de equivalência foi preservado e a relação se qualifica como jurídica.

À primeira vista esta explicação parece corroborar a apresentação feita por Marx em O capital. Um olhar mais atento, no entanto, revela o equívoco. No capítulo 22, do Livro I, intitulado Transformação de mais-valor em capital, o autor desenvolve as determinações da chamada reprodução ampliada do capital. Procura mostrar que a partir de certo momento a totalidade do valor lançado na produção já é resultado dos ciclos anteriores de acumulação, portanto, do mais-valor que já fora extraído ao trabalhador ou trabalhadora por intermédio do prolongamento de sua jornada de trabalho. Assim, o capitalista não transfere, como pagamento à aquisição da força de trabalho, qualquer parcela de valor que tenha lhe pertencido originalmente, pois todo o montante já fora anteriormente extraído ao empregado ou empregada. Marx observa, então, que, como consequência, “a relação de troca entre o capitalista e o trabalhador se converte, assim, em mera aparência pertencente ao processo de circulação, numa mera forma, estranha ao próprio conteúdo e que apenas o mistifica” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 659; 1962, p. 609).

Ora, se a partir de certo momento do ciclo de reprodução do capital todo o valor lançado na produção é resultado das operações anteriores de extração do mais-valor, portanto, que as magnitudes de valor que inauguram cada ciclo produtivo não passam do resultado do processo anterior de exploração da força de trabalho - de modo que a troca entre capitalista e trabalhador ou trabalhadora não passa de mera aparência - , então é evidente que a relação entre ambos não se caracteriza pela equivalência do intercâmbio. A expropriação entra em cena e este é o mecanismo fundamental de valorização do valor, isto é, de acumulação de capital2 2 Por expropriação deve-se entender, em princípio, a obtenção de trabalho alheio não pago. Marx utiliza esta noção ao longo do Livro I de O capital, como, por exemplo, no final do capítulo 16: “O capital, portanto, não é apenas comando sobre o trabalho, como diz A. Smith. Ele é, em sua essência, o comando sobre o trabalho não pago [...] O segredo da autovalorização do capital se resolve no fato de que este pode dispor de uma determinada quantidade de trabalho alheio não pago (MARX, 2013, p. 602; 1962, p. 556; grifos meus) Note-se que a essência do capital é dispor de trabalho alheio não pago; sua aparência, no entanto, é o livre intercâmbio de trabalhos equivalentes. . Fica claro, portanto, que a relação entre capitalista e trabalhador ou trabalhadora não é jurídica, mas apenas projeta a aparência de juridicidade3 3 Nesse sentido, a leitura de Márcio Naves: “A relação de exploração capitalista, como lembra Pachukanis, é mediada por uma específica operação jurídica, a forma de um contrato, ao contrário da sociedade feudal, em que a completa sujeição do servo ao senhor feudal, exercida pela coerção direta, não exigia uma ‘formulação jurídica particular’” (NAVES, 2000, p. 69). Perceba-se que, à luz de O capital, a operação não é jurídica, mas ostenta a aparência de juridicidade. . Este aspecto do problema é fundamental para a adequada compreensão da forma de dominação política sob o regime do capital. Como bem salientou Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 143; 2003, p. 139), a grande questão a ser elucidada quando se trata de refletir sobre a forma do Estado gira em torno de compreender como e por que, no capitalismo, a classe dominante não exerce domínio direto sobre a classe dominada - como ocorre no escravismo e no feudalismo -, mas desloca o exercício de tal domínio para a esfera estatal. A compreensão adequada do modo específico como se relacionam, na esfera econômica, capitalista e trabalhador, é um caminho seguro para que se possa encaminhar uma resposta convincente ao problema apresentado pelo autor russo.

Nesse sentido, este artigo sustenta a hipótese de que a relação social por intermédio da qual ocorre a compra e venda da força de trabalho assume a aparência de uma relação jurídica; essencialmente, contudo, tal relação consiste numa forma de expropriação, isto é, de extração de trabalho excedente ou obtenção de trabalho alheio não pago, negando, assim, o princípio de equivalência e se qualificando como relação de dominação econômica. Sustenta-se a existência de uma espécie de interversão antecipada4 4 O conceito de interversão aplicado à interpretação de O capital é desenvolvido originalmente por Ruy Fausto (2015; 2021). Neste artigo, a proposta é “radicalizada” no sentido dialético, por assim dizer, uma vez que a passagem no oposto ocorre já por ocasião da apresentação da produção do mais-valor absoluto (e não apenas no momento de reprodução do capital, como sustenta Fausto). através da qual a relação jurídica pactuada entre capitalista e trabalhador passa em seu oposto, quer dizer, assume a forma da escravidão assalariada5 5 A noção de escravidão assalariada é utilizada por Marx em muitas passagens do Livro I, de O capital. No capítulo 21 (A reprodução simples), por exemplo, ele observa: “O escravo romano estava preso por grilhões a seu proprietário; o assalariado o está por fios invisíveis. Sua aparência de independência é mantida pela mudança constante dos patrões individuais e pela fictio juris do contrato” (MARX, 2013, p. 648; 1962, p. 599). Note-se que, para Marx, o contrato de trabalho é uma ficção jurídica. . Do ponto de vista de uma dialética materialista, esta interversão significa a elevação da primeira relação ao status de aparência real. Esta aparência de juridicidade, entretanto, cumpre um papel fundamental na medida em que impõe o deslocamento da dominação política direta para uma esfera pretensamente “neutra” e “imparcial”, a saber, o chamado Estado de Direito.

O objetivo deste trabalho, entretanto, não gira em torno de fazer essa demonstração a partir do capítulo 22 de O capital. Em primeiro lugar, porque ao longo de toda a Seção VII do Livro I, intitulada O processo de acumulação do capital, há evidências muito claras de que a relação que se estabelece entre capitalista e trabalhador ou trabalhadora é uma relação de expropriação, de extração de mais-trabalho que se cristaliza em mais-valor, portanto, de dominação econômica. A apresentação deste processo culmina de modo genial no capítulo 24 (A assim chamada acumulação primitiva), que, embora possua status lógico relativamente distinto dos demais, permite compreender que a acumulação capitalista atualiza de maneira sub-reptícia os modos violentos de extração de trabalho excedente sob a carapaça “civilizatória” da equivalência e do livre contrato, ou seja, sob a forma do direito. Em segundo lugar, porque parece viável e necessário efetuar a demonstração do mecanismo expropriatório a partir das primeiras seções do Livro I, sobretudo a Seção III, denominada A produção do mais-valor absoluto. Nesse sentido, o capítulo 05 (O processo de trabalho e o processo de valorização) desempenha papel fundamental, pois permite visualizar claramente que a produção do mais-valor precisa ocorrer a partir da expropriação do mais-trabalho, o que ocorre com o necessário prolongamento da jornada de trabalho, independentemente da reprodução do capital, isto é, sem que, para tanto, o valor original lançado na produção tenha que completar um número determinado de ciclos. Em outras palavras, o mecanismo pelo qual se produz o mais-valor absoluto é suficiente à demonstração do caráter não jurídico, ou, melhor dizendo, aparentemente jurídico, da relação entre capitalista e trabalhador.

Assim, o objeto deste artigo é primordialmente o Livro I de O capital. Nada obstante, o desenvolvimento da questão impõe que se integre à análise a obra de E. B. Pachukanis, pois se trata da primeira abordagem que procurou ancorar-se explicitamente no método de análise marxiano. Embora o autor russo desenvolva adequadamente as determinações da forma jurídica a partir das indicações de Marx, há alguma dificuldade no que concerne à explicação da relação de equivalência jurídica à luz do elemento expropriatório típico da acumulação capitalista quando se trata de apresentar a compra e venda da força de trabalho. Importa explorar os limites teóricos presentes em Teoria geral do direito e marxismo, uma vez que a riqueza dos apontamentos elaborados pelo autor russo permite que se avance de modo consistente na análise da questão. Vale a pena, também, integrar à análise a crítica não dialética que se procurou fazer à teoria de Pachukanis. De fato, a pretexto da reabilitação teórica da análise empreendida pelo bolchevique, Antonio Negri não apenas oferece uma compreensão bastante problemática de Teoria geral do direito e marxismo, como reúne observações que simplesmente deformam o pensamento de Pachukanis, transformando-o em sua antítese. As inconsistências da análise levada a cabo pelo italiano também contribuirão para o deslinde do problema proposto.

Finalmente, mas não menos importante, o método utilizado é a dialética marxiana6 6 Embora a expressão dialética marxiana possa causar alguma estranheza, é importante ressaltar que as investigações sobre a dialética desenvolvidas pelo próprio Marx, sobretudo em oposição à dialética de Hegel, encontram-se bastante bem exploradas, ao menos na melhor bibliografia. Para ficar em apenas dois exemplos, cite-se Fausto (2021) e Grespan (2019, pp. 281-295). , isto é, o conjunto de apontamentos metodológicos desenvolvidos por Karl Marx ao longo de sua obra, especialmente em O capital7 7 A constatação de uma dialética própria à obra marxiana, diferente da dialética de Hegel e mesmo oposta a esta, é colocada em evidência pelo próprio Marx no posfácio à segunda edição do Livro I de O capital: “Ao descrever de modo tão acertado meu verdadeiro método, bem como a aplicação pessoal que faço deste último, que outra coisa não fez o autor senão descrever o método dialético? [...] Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto” (MARX, 2013, p. 90; 1962, p. 27, passim, grifo meu). . Deve-se chamar a atenção para a relevância do par dialético aparência/essência, cujo papel desempenhado neste artigo é fundamental. Vale ressaltar a importância deste cânon, pois é a partir dele que as oposições contraditórias que afloram na superfície da sociedade capitalista podem ser racionalmente esclarecidas. Não por outra razão, a atualização que a dialética sofre no Século XX nas mãos de Theodor Adorno faz questão de colocar em relevo a importância e incorporação desta regra metodológica8 8 Nesse sentido, Adorno observa: “Quando uma categoria se transforma - por meio da dialética negativa, a categoria da identidade e da totalidade -, a constelação de todas as categorias se altera, e, com isso, uma vez mais cada uma delas. Os conceitos de essência e de aparência são paradigmáticos para isso. Eles provêm da tradição filosófica, são mantidos, mas invertidos na tendência de sua direção” (ADORNO, 2009, p. 144). .

I. A RELAÇÃO JURÍDICA COMO RELAÇÃO DE EQUIVALÊNCIA

Normalmente se proclama que o cerne da teoria de Pachukanis consiste na aproximação entre forma mercantil e forma jurídica, de modo que sua grande descoberta estaria em demonstrar que a gênese material da figura do sujeito de direito encontra-se no proprietário de mercadorias9 9 Uma apresentação didática da teoria de Pachukanis encontra-se em Naves (2000) e Cerroni (1976, pp. 63-73). Uma leitura não ortodoxa sob o influxo do debate descolonial encontra-se em Pazello (2021, pp. 210-230). -10 10 Ingo Elbe, a propósito, anota: “O argumento central de Pachukanis é - e passarei um pouco correndo por isto, mas vocês podem depois formular perguntas e poderei voltar rapidamente a alguns pontos específicos - que da forma mercadoria devém a forma jurídica e, da forma jurídica, a forma estatal” (ELBE, 2019, 1962). . Assim, o princípio da subjetividade jurídica, tão caro à teoria tradicional, estaria ferido de morte, pois teriam sido colocados a nu seus esquemas abstratos e ideológicos de justificação da pessoa jurídica. Evidentemente este ponto de vista está correto. Aliás, este insight fundamental Pachukanis extraiu da famosa passagem que inaugura o capítulo 02, do Livro I, de O capital:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm que estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias. Na sequência de nosso desenvolvimento veremos que as máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das relações econômicas, como suporte das quais elas se defrontam umas com as outras (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., pp. 159-160; 1962, pp. 99-100, grifo meu).

Perceba-se que, de acordo com Marx, a relação jurídica é uma relação de vontade que reflete a relação econômica; portanto, a forma jurídica tem por conteúdo o intercâmbio mercantil. Este, por sua vez, exige o ajuste de vontades entre os possuidores de mercadorias, logo, a realização do contrato, desenvolvido legalmente ou não. O entrelaçamento de vontade dos guardiões mercantis impõe o reconhecimento recíproco da qualidade de proprietários privados, livres e iguais. Ora, de acordo com a teoria jurídica tradicional, quem tem autonomia e aptidão para contrair direitos e obrigações é a famosa figura do sujeito de direito. A dificuldade residia em perceber esta aproximação feita inicialmente por Marx, quer dizer, a homologia entre o proprietário da mercadoria e o sujeito jurídico. Pachukanis foi o primeiro que logrou êxito em reconhecê-la.

Nada obstante, a insistência em reduzir o fundamental do pensamento de Pachukanis a esta importante descoberta produz um efeito deletério, qual seja, a diminuição dos espaços de potencialidade teórica que podem ser deduzidos a partir de Teoria geral do direito e marxismo. Um desses espaços consiste precisamente na relação entre a forma do direito e a forma da equivalência11 11 Márcio Naves é exceção, pois coloca em destaque esse aspecto do pensamento de Pachukanis (NAVES, 2000, pp. 56-63). . De fato, o autor russo foi pioneiro no campo marxista a realizar esta associação. Para ser mais exato, foi o primeiro a perceber que esta aproximação se encontra de modo razoavelmente claro na obra de Marx. Tratava-se, então, de colocá-la em evidência e firmá-la como um dos eixos condutores de análise da forma jurídica. Assim, Pachukanis anota:

Na medida em que as relações entre produtor individual e a sociedade seguirem conservando a forma da troca de equivalentes, também a forma do direito será conservada, pois “o direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida”. Mas, uma vez que não leva em conta o desenvolvimento natural das aptidões do indivíduo, o direito, em virtude do seu conteúdo, “é, como todo direito, um direito da desigualdade”. Marx nada diz sobre a necessidade de um poder estatal que assegure, por meio da coerção, o cumprimento dessas normas do direito “desigual”, que conserva suas “limitações burguesas”, mas isso fica claro por si mesmo (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., pp. 78-79; 2003, p. 60)12 12 As passagens de Marx citadas por Pachukanis estão na Crítica do programa de Gotha. .

Ainda no capítulo 02, do Livro I, de O capital, Marx deixa claro que a troca de mercadorias só pode ocorrer sob influxo das relações de equivalência:

Observando a questão mais de perto, vemos que todo possuidor de mercadoria considera toda mercadoria alheia como equivalente particular de sua mercadoria e, por conseguinte, sua mercadoria como equivalente universal de todas as outras mercadorias. Mas como todos os possuidores de mercadorias fazem o mesmo, nenhuma mercadoria é equivalente universal e, por isso, tampouco as mercadorias possuem qualquer forma relativa de valor geral na qual possam se equiparar como valores e se comparar umas com as outras como grandezas de valor. Elas não se confrontam, portanto, como mercadorias, mas apenas como produtos ou valores de uso. Em sua perplexidade, nossos possuidores de mercadorias pensam como Fausto. Era no início a ação. Por isso, eles já agiram antes mesmo de terem pensado. As leis da natureza das mercadorias atuam no instituto natural de seus possuidores, os quais só podem relacionar suas mercadorias umas com as outras como valores e, desse modo, como mercadorias, na medida em que as relacionam antagonicamente com outra mercadoria qualquer como equivalente universal. A ação social de todas as outras mercadorias exclui uma mercadoria determinada, na qual todas elas expressam universalmente seu valor. Assim, a forma natural dessa mercadoria se converte em forma de equivalente socialmente válida. Ser equivalente universal torna-se, por meio do processo social, a função especificamente social da mercadoria excluída. E assim ela se torna - dinheiro (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 161, 1962, p. 101).

É importante compreender que o direito cumpre papel fundamental no que concerne à transformação do mero produto em mercadoria. Como observa Marx, “antes da troca as coisas A e B ainda não são mercadorias, mas tornam-se mercadorias apenas por meio dela” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 162; 1962, p. 102). Em outras palavras, valores de uso apenas assumem a forma mercantil por intermédio da troca; esta, por sua vez, demanda o ajuste de vontade entre os possuidores de mercadorias, ou seja, a relação jurídica contratual, desenvolvida legalmente (isto é, reconhecida pelo Estado) ou não. Nesse sentido, o direito atua como forma através da qual o intercâmbio de valores de uso os transforma em mercadorias. Assim, o elemento jurídico opera como conformador superestrutural do sentido mercantil dos valores de uso, situando-se no núcleo duro da sociedade mercantil-capitalista antes mesmo de qualquer reconhecimento legal ou estatal. Uma vez que a ação social de todas as mercadorias expele uma mercadoria determinada para funcionar como equivalente universal, percebe-se claramente que o sentido jurídico é, simultaneamente, um sentido de equivalência.

O entrelaçamento entre o fenômeno jurídico e o princípio de equivalência foi reiterado por Marx no seu escrito Crítica do programa de Gotha13 13 Em 1875 a cidade de Gotha assistiu à unificação de dois partidos ligados à classe trabalhadora: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, que estava sob a influência de Lassalle, e o Partido Operário Socialdemocrata Alemão, cujos dirigentes eram próximos de Marx. O chamado “Programa de Gotha”, documento que selava a unificação, consolidava de modo predominante as posições defendidas pelo primeiro. Marx, então, houve por bem redigir uma crítica a este programa, em que denunciava a visão ultrapassada adotada pelo novo partido. O documento foi enviado como carta a Wilhelm Bracke e circulou entre os dirigentes marxistas. Foi publicada por Engels em 1891. . Nele, a propósito da crítica ao programa do Partido Operário Socialista da Alemanha, o filósofo desenvolve, entre outras, duas temáticas especialmente importantes para este artigo: em primeiro lugar - algo que é extremamente raro nas obras marxianas -, trata de como seria uma eventual sociedade marcada pela passagem do capitalismo ao comunismo; em segundo lugar, e como elemento central desta discussão, trata do papel desempenhado pelo direito nesse contexto. As temáticas são apresentadas por Marx no momento em que comenta o seguinte princípio que consta do programa do partido operário: “A libertação do trabalho requer a transformação do meio de trabalho em patrimônio comum da sociedade e a regulação cooperativa do trabalho total, com uma distribuição justa do fruto do trabalho e seu emprego para a utilidade comum” (PROGRAMA DE GOTHA, 2012, p. 89). Sobre esta passagem, Marx observa:

O que é distribuição “justa”? Os burgueses não consideram que a atual distribuição é “justa”? E não é ela a única distribuição “justa” tendo como base o atual modo de produção? As relações econômicas são reguladas por conceitos jurídicos ou, ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações econômicas? Os sectários socialistas não têm eles também as mais diferentes concepções de distribuição “justa”? (MARX, 2012PROGRAMA DO PARTIDO OPERÁRIO SOCIALISTA ALEMÃO. In: MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 89-91., p. 27, grifo meu).

Refletindo sobre a transição do capitalismo ao comunismo, há uma passagem que esclarece a profunda relação que existente entre a troca e o valor:

No interior da sociedade cooperativa, fundada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; do mesmo modo, o trabalho transformado em produtos não aparece aqui como valor desses produtos, como uma qualidade material que eles possuem, pois agora, em oposição à sociedade capitalista, os trabalhos individuais existem não mais como um desvio, mas imediatamente como parte integrante do trabalho total. A expressão “fruto do trabalho”, que hoje é condenável por sua ambiguidade, perde assim todo o sentido (MARX, 2012PROGRAMA DO PARTIDO OPERÁRIO SOCIALISTA ALEMÃO. In: MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 89-91., p. 29).

Finalmente, Marx coloca em relevo a relação entre equivalência e direito:

Nosso objeto aqui é uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir de suas próprias bases, mas, ao contrário, como ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu. Por conseguinte, o produtor individual - feitas as devidas deduções - recebe de volta da sociedade exatamente aquilo que lhe deu. O que ele lhe deu foi sua quantidade individual de trabalho. Por exemplo, a jornada social de trabalho consiste na soma das horas individuais de trabalho. O tempo individual de trabalho do produtor individual é a parte da jornada social de trabalho que ele fornece, é sua participação nessa jornada. Ele recebe da sociedade um certificado de que forneceu um tanto de trabalho (depois da dedução de seu trabalho para os fundos coletivos) e, com esse certificado, pode retirar dos estoques sociais de meios de consumo uma quantidade equivalente de seu trabalho. A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em uma forma, agora ele a obtém de volta em outra forma. Aqui impera, é evidente, o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que esta é troca de equivalentes. Conteúdo e forma são alterados, porque, sob novas condições, ninguém pode dar nada além de seu trabalho e, por outro lado, nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios individuais de consumo. No entanto, no que diz respeito à distribuição desses meios entre os produtores individuais, vale o mesmo princípio que rege a troca entre mercadorias equivalentes, segundo o qual uma quantidade igual de trabalho em uma forma é trocada por uma quantidade igual de trabalho em outra forma. Por isso, aqui, o igual direito é ainda, de acordo com seu princípio, o direito burguês, embora princípio e prática deixem de se engalfinhar, enquanto na troca de mercadorias a troca de equivalentes existe apenas em média, mas não para o caso individual. Apesar desse progresso, esse igual direito continua marcado por uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional a seus fornecimentos de trabalho; a igualdade consiste, aqui, em medir de acordo com um padrão igual de medida: o trabalho. Mas um trabalhador supera o outro física ou mentalmente e fornece, portanto, mais trabalho no mesmo tempo ou pode trabalhar por mais tempo; e o trabalho, para servir de medida, ou tem de ser determinado de acordo com sua extensão ou sua intensidade, ou deixa de ser padrão de medida. Esse igual direito é direito desigual para trabalho desigual. Ele não reconhece nenhuma distinção de classe, pois cada indivíduo é apenas trabalhador tanto quanto o outro; mas reconhece tacitamente a desigualdade dos talentos individuais como privilégios naturais, e, por conseguinte, a desigual capacidade dos trabalhadores. Segundo seu conteúdo, portanto, ele é, como todo direito, um direito da desigualdade. O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos segundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo ponto de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado, por exemplo, quando, no caso em questão, são considerados apenas como trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros aspectos são desconsiderados (MARX, 2012PROGRAMA DO PARTIDO OPERÁRIO SOCIALISTA ALEMÃO. In: MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 89-91., p. 29-31).

A importância desta passagem não reside exatamente no que ela diz sobre uma possível sociedade do futuro, mas o que nos diz sobre a análise da forma jurídica no presente. Embora na primeira fase da sociedade comunista tenha sido abolida a troca de mercadorias, ainda permanece a estreita “limitação do direito burguês”14 14 Daí o absurdo de se pensar a possibilidade de um direito socialista. Como afirma Marx, mesmo na primeira fase da sociedade comunista (chamada por alguns de socialismo), o direito ainda é burguês. Lênin compreendeu isso com muita naturalidade. Aliás, de acordo com o bolchevique o imediato pós-revolução ainda é marcado pela existência do Estado de Direito: “É uma ‘limitação’, diz Marx, mas é uma limitação inevitável na primeira fase do comunismo, pois, a não ser que se caia na utopia, não se pode pensar que, logo que o capitalismo for derrubado, as pessoas saberão, sem um tipo de Estado de direito, trabalhar para a sociedade; além do mais, a abolição do capitalismo não dá, de uma só vez, as premissas econômicas de uma mudança semelhante. Ora, não há outras normas senão as do ‘direito burguês’. É por isso que subsiste a necessidade de um Estado que, embora conservando a propriedade comum dos meios de produção, mantém a igualdade do trabalho e a igualdade da repartição” (LÊNIN, 2017, p. 120). , porque a relação entre o tempo de trabalho ofertado pelo indivíduo à sociedade e a quantidade de produtos aos quais tem acesso é regulada pelo princípio de equivalência, o mesmo que regula a troca mercantil-capitalista. Note-se, pois, que a relação de equivalência é o padrão que regula tanto a troca de mercadorias sob o regime do capital, quanto a troca direta entre trabalho e produtos na primeira fase da sociedade comunista. E, em ambos os casos, encontra-se a forma do direito burguês, pois, como afirma Marx, “o direito, por sua natureza só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida” (MARX, 2012PROGRAMA DO PARTIDO OPERÁRIO SOCIALISTA ALEMÃO. In: MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 89-91., p. 31).

Fica claro, portanto, que a concepção marxiana de direito é muito mais complexa do que a mera associação entre forma jurídica e forma mercantil, como usualmente se faz no interior da crítica marxista do direito15 15 Nesse sentido, Márcio Naves, para quem a concepção de Pachukanis (que associa o direito à mercadoria) é basicamente a concepção do próprio Marx: “Podemos dizer que a concepção de Pachukanis corresponde inteiramente às reflexões que Marx desenvolve, sobretudo nos Grundrisse e em O capital, a propósito do lugar central que ocupa a análise da forma para compreender as relações sociais capitalistas” (NAVES, 2000, p. 48, grifo meu em “inteiramente”). Vale lembrar que os Grundrisse foram publicados pela primeira vez em 1939, enquanto Pachukanis faleceu em 1936 ou 1937, o que demonstra a pouca probabilidade de que tenha tido acesso a esta obra de Marx, que, de resto, não é citada em Teoria geral do direito e marxismo. - ou, o que é ainda pior, a associação retilínea entre direito e uma abstrata concepção de luta de classes16 16 Como ocorre, por exemplo, em Stutchka (2001, p. 76): “O Direito é um sistema (ou uma ordem) de relações sociais, que corresponde aos interesses da classe dominante e que, por isso, é assegurado pelo seu poder organizado (o Estado)”. . A relação jurídica, para Marx, envolve o princípio de equivalência, que se manifesta na troca de mercadorias com valores idênticos sob o regime do capital, e na troca de trabalho individual por produtos em quantidade proporcional à jornada de trabalho ofertada pelo indivíduo à sociedade na primeira fase do comunismo, uma vez que, neste caso, os produtos não são mais formas de manifestação do valor. A genialidade de Pachukanis consiste, pois, em ter percebido e posto em relevo este elemento importante do pensamento jurídico marxiano:

Além disso, Marx revela a condição fundamental, enraizada na própria economia, da existência da forma jurídica, que é justamente a igualação dos dispêndios do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes, ou seja, ele descobre o profundo vínculo interno entre a forma do direito e a forma da mercadoria. Uma sociedade que, devido às condições de suas forças produtivas, é forçada a conservar a relação de equivalência entre o trabalho gasto e a remuneração, que ainda remotamente lembra a troca entre valores e mercadorias, será forçada a conservar também a forma do direito. Apenas partindo desse momento fundamental é possível entender por que toda uma série de outras relações sociais recebe a forma jurídica (PACHUKANIS, 2013, p. 80; 2003, p. 61, grifo meu na última frase).

II. FORMA JURÍDICA E MAIS-VALOR

Enquanto se permanece no âmbito da troca direta (M-M) ou da circulação simples de mercadorias (M-D-M), tal como apresentadas por Marx nos capítulos 02 e 03 do Livro I de O capital, não há maiores problemas no que concerne à articulação entre forma jurídica e equivalência, pois os intercâmbios que ali ocorrem são caracterizados pela identidade de magnitude dos valores envolvidos. Os ajustes contratuais que têm lugar por ocasião das trocas projetam formas jurídicas que expressam conteúdos de equivalência material. Forma e conteúdo coincidem e a relação é essencialmente jurídica.

As coisas se complicam, entretanto, quando se passa à circulação do dinheiro como capital (D-M-D’), cuja apresentação ocorre no capítulo 04 do Livro I17 17 Giannotti destaca a importância desta passagem: “No plano do pensamento meramente abstrato é fácil passar do modo de produção simples de mercadoria (M-D-M-D ...) para o modo de produção capitalista. Basta cortar a sequência e começar pelo dinheiro (D-M-D ...). Mas o processo mudou completamente de sentido. O proprietário de D não é um entesourador, mas alguém que acumula dinheiro para investi-lo em busca de lucro. Sempre tendo um sistema legal a seu lado” (GIANNOTTI, 2013, p. 69, grifo meu). .

A partir daí, o valor inicialmente lançado na circulação assume a forma do equivalente universal, isto é, dinheiro (D). A finalidade do movimento não é mais o consumo, como ocorre na circulação simples, mas a ampliação da magnitude de valor, ou seja, a transformação do dinheiro em capital (D-D’). A extração de valor excedente, no entanto, precisa negar a relação de equivalência, pois, como se sabe, esta é marcada pela identidade das magnitudes de valor que circulam. Sabe-se também que, da circulação, considerada isoladamente, não se extrai mais-valor, pois a esfera do intercâmbio não cria valor, mas apenas viabiliza a sua realização. Afinal, como afirma Marx em uma passagem clássica, “o capital não pode ter origem na circulação, tampouco pode não ter origem na circulação. Ele tem de ter origem nela e, ao mesmo tempo, não ter origem nela” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 240; 1962, p. 180).

Do ponto de vista jurídico, a circulação do dinheiro como capital (D-M-D’) permite que se vislumbre no horizonte um problema a ser solucionado. Se a forma do direito expressa relações de equivalência e a extração de mais-valor precisa negar tais relações, como conciliar direito e capital? Como pode a sociedade do capital organizar-se como sociedade de direitos?

Uma parte da resposta pode ser adiantada quando se sabe que a circulação do dinheiro como capital (D-M-D’), em si mesma considerada, não nega os intercâmbios fundados na equivalência. Aliás, isso nem poderia ocorrer. Se assim fosse, a troca sequer ocorreria. Afinal, ninguém adquire uma mercadoria por valor acima daquele fixado pelo mercado, tanto quanto ninguém a vende por valor abaixo do que é estabelecido socialmente. Assim, o primeiro intercâmbio, a compra (D-M), reúne magnitudes idênticas de valores tanto do lado do dinheiro, quanto da mercadoria; o segundo intercâmbio, a venda (M’-D’), expressa o mesmo fenômeno, a troca de valores equivalentes, de modo que esta forma da circulação é mais bem compreendida através da fórmula D-M-M’-D’. Portanto, em ambos os casos os ajustes de vontade que dão forma à relação econômica, isto é, os contratos pactuados entre os sujeitos de direito, estão perfeitamente de acordo com o princípio da equivalência. Do ponto de vista jurídico, todas as relações exprimem essencialmente a forma do direito.

Ainda assim, o problema persiste. Se a circulação do dinheiro como capital não nega as relações de equivalência, isto é, não afasta o intercâmbio de dinheiro e mercadoria que expressam valores em magnitudes idênticas, então não se vislumbra como se possa obter o valor excedente. Marx nos apresenta a resposta:

A mudança de valor do dinheiro destinado a se transformar em capital não pode ocorrer nesse mesmo dinheiro, pois em sua função como meio de compra e de pagamento ele realiza apenas o preço da mercadoria que ele compra ou pela qual ele paga, ao passo que, mantendo-se imóvel em sua própria forma, ele se petrifica como um valor que permanece sempre o mesmo. Tampouco pode a mudança ter sua origem no segundo ato da circulação, a revenda da mercadoria, pois este ato limita-se a transformar a mercadoria de sua forma natural em forma-dinheiro. A mudança tem, portanto, de ocorrer na mercadoria que é comprada no primeiro ato D-M, porém não em seu valor, pois equivalentes são trocados e a mercadoria é paga pelo seu valor pleno. Desse modo, a mudança só pode provir de seu valor de uso como tal, isto é, de seu consumo. Para poder extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir no mercado, no interior da esfera da circulação, uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a capacidade peculiar de ser fonte de valor, cujo próprio consumo fosse, portanto, objetivação de trabalho e, por conseguinte, criação de valor. E o possuidor do dinheiro encontra no mercado uma tal mercadoria específica: a capacidade de trabalho ou força de trabalho (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., pp. 241-242; 1962, p. 181).

A produção do excedente de valor depende da aquisição, no mercado, de uma mercadoria que tem a aptidão de criar valor, e, o que é mais importante, mais valor do que ela mesma possui. Esta mercadoria é a força de trabalho. Se o valor da força de trabalho está fixado previamente e consiste no somatório de valores dos meios de subsistência do trabalhador ou trabalhadora que a levam ao mercado para trocar (valores que, expressos monetariamente, resultam na forma do salário), seu valor de uso consiste na própria atividade laborativa, isto é, no exercício de atividade criadora de valor (o trabalho abstrato). Assim, o consumo desta mercadoria, quer dizer, a integração do empregado ou empregada aos meios de produção previamente existentes, de propriedade privada do capitalista, e o efetivo exercício de suas atividades laborativas, tem a aptidão de criar valor, quer dizer, produzir valor que excede aquela magnitude reunida por ocasião do início do ciclo de produção.

O mecanismo de produção do mais-valor consiste em comprar mercadorias por seus valores e vendê-las por seus valores: o “milagre” ocorre no interregno entre os dois atos de troca, isto é, no momento do consumo produtivo, pois aí a atividade laborativa do trabalhador ou trabalhadora adiciona valor àquele já existente, reunido no início do processo produtivo18 18 Eis a razão por que, ao integrar a produção à análise, a fórmula que expressa a circulação do dinheiro como capital obtém novo formato: D - M ... P ... M’ - D’. Dinheiro (D), mercadoria (M), produção (P), mercadoria acrescida de mais-valor M’) e dinheiro acrescido de mais-valor (D’). . A produção do capital, isto é, a valorização do valor, ocorre sem que as leis de trocas de equivalentes que operam na esfera da circulação sejam negadas. O capitalista compra todas as mercadorias por seus valores (D-M) - inclusive a força de trabalho - e vende o resultado final da produção, novas mercadorias com valor agregado (M’-D’), também por seus valores, nem acima, nem abaixo do que é fixado no mercado. Os intercâmbios que ocorrem ao longo da circulação (D-M-M’-D’) caracterizam-se pela equivalência. Portanto, em princípio não há nada de errado com as relações jurídicas que são projetadas formalmente. Eis a razão por que, para Pachukanis, o mecanismo de produção do capital não é incompatível com a forma jurídica da compra e venda da força de trabalho19 19 Ressalte-se que, em nenhum momento de Teoria geral do direito e marxismo, Pachukanis traz à baila, como elemento de análise teórica, a circulação do dinheiro como capital (D-M-D’). Pelo contrário, o autor trabalha com fundamento na circulação simples de mercadorias (M-D-M). Esta é uma das razões por que sua apresentação da forma jurídica da compra e venda da força de trabalho permanece em certa medida abstrata e insuficiente. Explorei melhor esse assunto em meu O direito e a mercadoria (CASALINO, 2011). :

E se dá exatamente do mesmo modo a questão da relação de exploração. Essa não é, claro, de modo nenhum ligada às relações de troca e imaginada pela forma natural da economia. Mas, apenas na sociedade capitalista burguesa, em que o proletário aparece na qualidade de sujeito que dispõe de sua força de trabalho como mercadoria, as relações econômicas da exploração são mediadas juridicamente na forma do contrato. E a isso está ligado justamente o fato de que, na sociedade burguesa, em contraposição à escravagista e àquela baseada na servidão, a forma jurídica adquire significado universal, a ideologia jurídica torna-se a ideologia por excelência e a defesa dos interesses da classe dos explorados surge, com cada vez mais sucesso, como defesa abstrata do princípio da subjetividade jurídica (PACHUKANIS, 2013, p. 65; 2003, p. 43).

A resposta de Pachukanis, no entanto, contempla apenas parte do problema. De fato, não resta dúvida de que apenas na sociedade capitalista o trabalhador e a trabalhadora aparecem na qualidade de sujeitos proprietários de suas forças de trabalho. Também não há dúvida de que a compra e venda desta mercadoria especial é mediada pelo contrato, razão pela qual a forma jurídica adquire significado universal e a ideologia jurídica se torna a ideologia por excelência de toda a sociedade. Resta, no entanto, explicar uma contradição que ainda subjaz: como pode a forma jurídica expressar relações de equivalência, nas quais valores de magnitudes idênticas são intercambiados, e, ao mesmo tempo, efetuar a mediação de relações através das quais valores excedentes são produzidos e apropriados privadamente? Como é possível que uma mesma forma exprima, simultaneamente, relações tão antagônicas e inconciliáveis?

Infelizmente as respostas que Pachukanis oferece ao problema são insuficientes. A propósito da reflexão sobre a propriedade capitalista, por exemplo, o autor observa:

A forma jurídica da propriedade não está de modo nenhum em contradição com a expropriação de um grande número de cidadãos. Isso porque a capacidade de ser sujeito de direito é uma capacidade puramente formal. Ela qualifica todas as pessoas como igualmente “dignas” de ser proprietárias, mas por nenhum meio faz delas proprietárias (PACHUKANIS, 2013, pp. 132-133; 2003, p. 127).

Sem dúvida a qualidade de sujeito de direito é uma qualidade formal; também não se contesta que tal qualidade faz os indivíduos serem “dignos” de serem proprietários, sem, no entanto, transformá-los em proprietários. Nada obstante, a forma do sujeito de direito, tal como apresentada por Marx no início do capítulo 02, do Livro I, de O capital, é a forma da representação subjetiva de mercadorias que se trocam entre si, portanto, que intercambiam equivalentes, isto é, valores de magnitudes idênticas. A forma jurídica não faz a mediação da produção de mais-valor (até porque isso seria impossível naquele momento da exposição marxiana). Se, no entanto, o capital é uma forma de produção e apropriação de valor excedente, é preciso explicar como o direito, que expressa relações de equivalência, pode ter lugar em uma sociedade como esta.

A resposta que usualmente se oferece ao problema passa pela “famosa” separação entre as esferas da circulação e da produção, como se fossem dois mundos completamente distintos e apartados20 20 Márcio Naves, por exemplo, recorre ao conceito de sobredeterminação, utilizado por Althusser e de origem sabidamente freudiana, para enfrentar o problema: “É verdade que há, para Pachukanis, uma relação de determinação imediata entre a forma jurídica e a forma da mercadoria, como vimos, mas a determinação em Pachukanis é, a rigor, uma sobredeterminação. A esfera da circulação, que determina diretamente as formas do direito, é por sua vez determinada pela esfera da produção, no sentido preciso de que só o específico processo de organização capitalista do trabalho permite a produção de mercadorias como tais, isto é, como resultado de um trabalho que se limita a ser puro dispêndio de energia laborativa indiferenciada” (NAVES, 2000, p. 72). O conceito é problemático, pois abre espaço para uma visão estruturalista da teoria de Pachukanis. A propósito da teoria althusseriana, François Dosse observa: “Essa filosofia estruturalista, que se exorna de todos os adereços da cientificidade para renovar o marxismo ou o freudismo, reforça-se, portanto, com uma ontologização das estruturas, graças ao conceito de causalidade estrutural (...) da leitura sintomatista, passando pela causalidade estrutural ausente em seus efeitos, para culminar num outro instrumento conceitual fundamental do althusserianismo, importado da psicanálise: a sobredeterminação” (DOSSE, 2007, pp. 396-397, passim). -21 21 Um primeiro enfrentamento a este argumento, no sentido que não há secção entre circulação e produção, pode ser encontrado no conhecido escrito de Marx denominado Introdução à crítica da economia política. Nele se lê: “Em primeiro lugar, é claro que a troca de atividades e capacidades que ocorre na própria produção faz diretamente parte da produção e a constitui de maneira essencial. Segundo, o mesmo vale para a troca de produtos, na medida em que é meio para a fabricação do produto acabado destinado ao consumo imediato. Nesse sentido, a própria troca é um ato contido na produção. Terceiro a assim chamada troca realizada por negociantes entre si tanto é totalmente determinada pela produção, no que diz respeito à sua organização, como é ela própria atividade produtiva. A troca só aparece independente ao lado da produção e indiferente em relação a ela no último estágio, no qual o produto é trocado imediatamente para consumo (...) O resultado a que chegamos não é que produção, distribuição, troca e consumo são idênticos, mas que todos eles são membros de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade” (MARX, 2008, p. 53, grifo meu). . Assim, o direito caracteriza a esfera das trocas generalizadas que ocorrem no primeiro momento, mas não tem relação com a extração de trabalho excedente, que caracteriza o segundo. Bernard Edelman coloca a questão da seguinte maneira:

O que me proponho demonstrar deixando voluntariamente de lado o que se passa “em qualquer parte” no “laboratório secreto da produção” é que o Direito toma a esfera da circulação como dado natural; que esta esfera tomada em si como absoluto não é outra coisa senão a noção ideológica que recebe o nome hobbesiano, rousseauniano, kantiano ou hegeliano de sociedade civil, e que o Direito ao fixar a circulação mais não faz do que promulgar os decretos dos direitos do homem e do cidadão; que ele escreve sobre o frontispício do valor de troca os sinais da propriedade, da liberdade e da igualdade, mas que estes sinais, no secreto “em qualquer parte”, se leem como exploração, escravatura, desigualdade, egoísmo sagrado (...) (EDELMAN, 1976EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976., pp. 130-131, grifo meu).

Diga-se, antes de tudo, que não há como descobrir que o direito fixa os sinais de propriedade, liberdade e igualdade, por um lado, mas que estes sinais devem ser lidos como exploração, escravatura, desigualdade e egoísmo, por outro, sem que se considere a esfera da produção. Em outras palavras, a proposta metodológica de Edelman, que consiste em deixar de lado o que se passa no laboratório secreto da produção, simplesmente inviabiliza a conclusão a que chega. Ainda assim, vejamos como se sai quando resolve introduzir a compra e venda da força de trabalho no âmbito de suas considerações:

Na relação capitalista produziu-se esta revolução: a mercadoria específica força de trabalho aparece no mercado. A circulação já não é esta região relativamente autônoma onde os indivíduos levavam ao mercado o excedente da sua produção, mas o lugar onde o capitalista vem em pessoa comprar o que lhe permitirá aumentar o seu capital: o trabalho humano. A circulação não só aparece assim como o lugar de encontro do capital e do trabalho como ainda se tornou a mediação essencial da reprodução do capital. Daí que “a forma original da relação (dos produtores de mercadorias iguais em direito que se enfrentam no mercado) não subsista doravante senão como aparência da relação que constitui o seu fundamento, a relação Capital (os possuidores da sua força de trabalho enfrentam no mercado os possuidores dos meios de produção” (...) Voltei ao meu ponto de partida: a Forma sujeito de direito, mas é um regresso que se enriqueceu. Esta categoria, a mais abstrata do direito, pode presentemente revelar a sua verdade: o pôr em circulação o homem. Isto quer dizer, para nós marxistas, o pôr em circulação a força de trabalho. E este pôr em circulação fez-se em nome da propriedade e das suas determinações, a liberdade e a igualdade. O contrato vai permitir a exploração do homem pelo homem em nome destas determinações. O contrato, isto é, o meio de ser do direito, esta razão pela qual ele existe” (EDELMAN, 1976EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976., pp. 145-148/149, passim, grifo meu).

A relação capitalista, por intermédio da qual a mercadoria força de trabalho aparece no mercado, faz com que a circulação não seja mais uma região autônoma, mas o local em que capitalista e trabalhador se defrontam. A circulação se torna, assim, a mediação essencial da reprodução do capital. Como num passe de mágica, o intercâmbio entre capitalista e trabalhador transformou-se em mera aparência e o contrato, o meio de ser do direito, permite agora a exploração do homem pelo homem. Como é possível que todas essas conclusões venham à tona sem a análise da produção do capital, quer dizer, sem que se considere não apenas intercâmbio entre capitalista e trabalhador, mas, sobretudo, o consumo da força de trabalho, é uma incógnita que Edelman não se propõe a enfrentar. De qualquer maneira, o que este artigo sustenta - bem ao contrário de Edelman, diga-se de passagem - é que a circulação não é a mediação essencial da reprodução do capital. A troca entre capitalista e trabalhador é uma mediação aparente, simples fenômeno invertido da mediação, esta sim, essencial, que consiste na produção do mais-valor absoluto.

III. A CRÍTICA NÃO DIALÉTICA À TEORIA DE PACHUKANIS

Evidentemente esta limitação da teoria de Pachukanis não passou despercebida. Ao associar o direito ao princípio de equivalência e situar a análise do fenômeno jurídico na esfera da circulação, o autor certamente chamou a atenção daqueles que reivindicam uma posição teórica mais próxima do paradigma da luta de classes22 22 A propósito, veja-se Karl Korsch (1969, pp. 09-21). .

Nesse sentido, as observações desenvolvidas por Antonio Negri (2017NEGRI, Antonio. “Relendo Pachukanis: notas de discussão”. In: PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, pp. 09-47., pp. 09-47) à obra do bolchevique, na medida em que indagam sobre o nível de proximidade com o pensamento de Marx, auxiliam na compreensão do problema apresentado por este artigo. Não se trata de aprofundar o conteúdo de suas observações, algo impossível nos limites deste trabalho, mas apenas de colocar em evidência os pontos mais salientes.

O italiano destaca inicialmente alguns dos conceitos mais utilizados por Pachukanis em Teoria geral do direito e marxismo: “Relação social, mundo das relações sociais, mundo das mercadorias. Estamos inteiramente no terreno de Marx” (NEGRI, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 09). Em seguida, introduz uma indagação contundente: “Mas a análise de Pachukanis sobre a forma jurídica é tão radical quanto a de Marx? Ela é capaz de se desenvolver com a intensidade marxiana até alcançar na fenomenologia da forma a amplitude do antagonismo e a força destrutiva que a luta de classes exerce sobre ela?” (NEGRI, 2017, p. 13). Para encaminhar a resposta, Negri observa que a teoria de Pachukanis foi capturada por uma leitura revisionista e modernizante, cujo objetivo consiste em adaptar o ponto de vista do autor russo às teorias vigentes do direito burguês (NEGRI, 2017, p. 13). Trata-se de uma certa acomodação, cujo objetivo é tornar a perspectiva do autor russo mais realista. Aliás, o italiano reconhece que a crítica revisionista à obra de Pachukanis tem lá seus pontos positivos:

Já temos matéria suficiente para fundamentar uma interpretação revisionista do pensamento de Pachukanis. Se, para dizer com Kelsen, em Pachukanis, “todo o direito é direito privado”, se “o direito público é mera ideologia dos juristas burgueses”, se a gênese do ordenamento jurídico é retilínea e institucional, então a copresença antagonista e dialética de funções de organização e comando para a exploração que constitui a característica fundamental da concepção marxiana de direito parece ficar de lado. A determinação estrutural do direito se torna necessariamente genérica, na medida em que exclui, em sua base, não a troca em geral, mas a troca específica entre mercadorias, força de trabalho e capital, sobre a qual se funda o próprio processo capitalista e a existência social desse modo de produção. E esse caráter genérico logo se torna unilateralidade, na medida em que a falta do conceito científico de troca e exploração tolhe a pesquisa da capacidade de determinar o nexo entre troca no mundo das mercadorias e capital global - autoridade, comando do Estado. Assim, o privado é exaltado numa radicalidade de funções de fundação do ordenamento jurídico que é puramente ilusória. O revisionismo capta esses elementos e, a partir deles, desenvolve uma leitura de Pachukanis que é dada cientificamente como produtiva e, o que é pior, como autenticamente marxiana (NEGRI, 2017NEGRI, Antonio. “Relendo Pachukanis: notas de discussão”. In: PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, pp. 09-47., p. 15, grifo meu).

De acordo com Negri, embora uma tal leitura (revisionista) tenha seu mérito, ela horizontaliza e restringe em demasia a análise de Pachukanis, aproximando-a de algo parecido com a tradição romanista. Eis então que o italiano apresenta sua hipótese: “Na realidade, ao lado e dialeticamente articulada a essa tendência, Pachukanis desenvolve uma abordagem altamente correta e eficaz: em última análise, o quadro global de seu pensamento acabará irredutivelmente oposto ao desejado pelo revisionismo” (NEGRI, 2017NEGRI, Antonio. “Relendo Pachukanis: notas de discussão”. In: PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, pp. 09-47. p. 16).

Uma das vias encontradas pelo italiano para a superação das contradições existentes na teoria de Pachukanis - contradições que, segundo ele, são isoladas e reiteradas pelo revisionismo - consiste em reconhecer que, para o bolchevique, “o conceito de direito não se liga simplesmente ao mundo das mercadorias, mas à lei do valor, a seu funcionamento, tendência e êxitos” (NEGRI, 2017NEGRI, Antonio. “Relendo Pachukanis: notas de discussão”. In: PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, pp. 09-47., p. 19). Assim, ao resgatar a discussão metodológica desenvolvida por Marx na Introdução à crítica da economia política - sobretudo o princípio de tendência -, Pachukanis se aproximou definitivamente da análise marxiana na medida em que permite antever o desenvolvimento da forma jurídica no momento da troca entre capital e trabalho. Embora, de acordo com Negri, deva-se reconhecer que o bolchevique não consegue manter este nível de análise, a obra aponta sem dúvida para uma perspectiva em que “o direito é a forma da relação entre organização e comando para a exploração” (NEGRI, 2013, p. 22).

“Direito como forma autoritária da relação social para a produção de mais-valor?” (NEGRI, 2013, p. 23) - indaga o italiano. Eis o ponto de sustentação a partir do qual se pode vislumbrar uma consideração dinâmica do direito à moda de Pachukanis, que busque, sobretudo, a conexão íntima com a obra de Marx. Por esta via Negri identifica, no movimento de subsunção formal do trabalho ao capital, o núcleo duro a partir do qual a forma jurídica se assenta e se projeta como o direito do modo de produção capitalista. É a partir da organização e comando que o capital exerce sobre o trabalho no interior da fábrica que se pode compreender a constituição contraditória do fenômeno jurídico:

É nesse ponto que a violência do comando se torna interna ao trabalho, a sua organização; é aqui que o direito adquire sua especificidade de forma de troca, portanto, no caso da troca entre força de trabalho e capital, de forma de mais-valor. Direito e processo do mais-valor. É, pois, sobretudo na dupla face do processo de desenvolvimento do mais-valor relativo, na articulação de organização e violência, de produção e comando, que se afirma a forma do direito burguês em sua inteireza (...) Mas, como sublinha justamente Pachukanis, por ser forma mistificada, o direito não é menos real. É “diretamente” organização e violência: em Marx, todo o processo do mais-valor, o processo que conduz da cooperação simples às formas mais evoluídas do modo de produção capitalista, vê a função direta do direito e sua transmutação adequada. À primeira vista parece simples mistificação da cooperação produtiva, adoção capitalista do contrato unionis. Mas, na realidade, sua função se interioriza rapidamente: o contractum unionis se confunde no contractum subjectionis (NEGRI, 2013, pp. 24-25, passim, grifo meu exceto nas expressões em latim).

A produção do mais-valor, em especial o relativo, coloca em marcha a ampliação dos antagonismos existentes entre organização, de um lado, e comando, de outro, exercido pelo capital sobre o trabalho. Esta dissociação é impulsionada ao extremo pelo desenvolvimento espontâneo do processo de produção, constituindo, também, a gênese do direito público. “E é exatamente no limite dessa previsão tendencial que se põe à prova o marxismo de Pachukanis” (NEGRI, 2013, p. 29). É partir deste ponto de apoio que se pode pensar a questão do Estado e sua relação com o direito: “O Estado é produto do processo jurídico, mas não é a totalidade do processo jurídico” (NEGRI, 2013, p. 33).

Nesse momento o italiano produz um avanço interessante, que não se encontra em Pachukanis, mas, segundo seu ponto de vista (de Negri), pode ser deduzido de Teoria geral do direito e marxismo: “Só a articulação, ritmada pelo funcionamento da lei do valor, permite ao direito e ao Estado a existência diversa e a função unitária que lhes atribui o capital” (NEGRI, 2017NEGRI, Antonio. “Relendo Pachukanis: notas de discussão”. In: PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, pp. 09-47., p. 35). A compreensão desta trama, urdida nas profundezas da relação de valor, desemboca na reafirmação da impossibilidade de existência de um direito proletário: “Marxianamente, Pachukanis não tinha nenhuma dúvida de que o direito era não só uma forma da sociedade do capital, mas, exclusivamente, uma forma da sociedade do capital” (NEGRI, 2017, p. 40).

Pois bem, as observações formuladas por Negri, sucintamente reunidas, permitem que se destaque algumas questões importantes relacionadas ao objeto deste artigo. Logo se percebe que, sob o pretexto de reabilitar o pensamento do bolchevique russo, acaba por deturpá-lo.

Há que se indagar, em primeiro lugar, sobre a validade do fundamento teórico a partir do qual o italiano observa que o conceito de direito apresentado em Teoria geral do direito e marxismo não se liga simplesmente ao mundo das mercadorias, mas, sobretudo, à lei do valor (NEGRI, 2013, p. 19).

Um aspecto importante de seu argumento se funda na constatação de que Pachukanis se fia em boa medida na Introdução à crítica da economia política, texto de Karl Marx redigido em 1857. Ora, o problema da Introdução é que ela faz parte de um contexto de reflexão epistemológica de Marx em que as categorias da mercadoria, e, sobretudo, do valor, ainda não haviam despontado com a clareza e centralidade que alcançariam posteriormente em O capital. Desse modo, o método dialético marxiano ainda não estava refinado àquela altura, ao menos não quando comparado ao grau de maturidade que alcança em sua crítica da economia política da maturidade23 23 Nesse sentido, confira-se a excelente descrição de Grespan (2019, pp. 25-37) a propósito das mudanças pelas quais passou o projeto marxiano de uma crítica da economia política desde 1844 até a publicação do Livro I de O capital: “Só ao chegar ao fim da redação dos Grundrisse Marx percebe a necessidade de iniciar não pelo dinheiro, e daí passar ao capital, e sim pela mercadoria ‘primeira categoria em que se apresenta a riqueza burguesa’ (...)” (GRESPAN, 2019, p. 27, nota de rodapé nº 07). Ora, por mais trivial que uma mudança como essa possa parecer, ela denota uma alteração significativa no projeto arquitetônico das categorias através das quais Marx exporá sua crítica da economia política da maturidade. . Nesse sentido, o fato de Pachukanis alicerçar seus pontos de vista neste escrito milita precisamente contra a hipótese sustentada pelo italiano. Em outras palavras, Teoria geral do direito e marxismo não ganha do ponto de vista metodológico ao associar-se à Introdução tanto quanto ganharia se estivesse associada imediatamente a O capital24 24 Sobre a Introdução de 1857, Mario Duayer observa: “As categorias descobertas por Marx não aparecem nos dois textos que abrem os Grundrisse, ‘Bastiat e Carey’ e ‘Introdução’ (...) A ‘Introdução’, por seu lado, talvez seja um dos escritos mais discutidos da obra marxiana, apesar de ter sido deixada de lado pelo próprio autor, que o menciona apenas uma vez, e aparentemente ignorado por Engels” (DUAYER, 2011, p. 18). .

Em segundo lugar, o que desponta como consequência lógica desta primeira observação, é preciso salientar que a apresentação do direito levada a cabo por Pachukanis é, em certa medida, exterior à apresentação desenvolvida por Marx em O capital, no sentido de que não acompanha, rigorosamente, o desenrolar das categorias marxianas. No que concerne ao núcleo estratégico de seu argumento, quer dizer, a relação entre mercadoria e direito, isso pode não ser tão evidente, pois o russo funda suas observações no início do capítulo 02, do Livro I, precisamente na passagem em que Marx trata dos guardiões das mercadorias e da relação jurídica que dá forma à troca de equivalentes. Ao prosseguir em sua argumentação, no entanto, Pachukanis faz vistas grossas a uma série de mediações sem as quais não se pode associar a forma do direito ao valor, e, principalmente, ao mais-valor. Uma boa ilustração desta exterioridade consiste em verificar que, em nenhum momento de sua obra, Pachukanis se refere à circulação do dinheiro como capital (D-M-D’). Pelo contrário, em um dos raros momentos em que o autor deduz suas observações imediatamente de O capital, coloca em relevo a circulação simples de mercadorias (M-D-M)25 25 É o que ocorre, por exemplo, no prefácio à segunda edição de Teoria geral do direito e marxismo. Ao tratar da propriedade privada, Pachukanis explica: “A propriedade como apropriação é uma consequência natural de qualquer modo de produção; mas apenas no interior de uma determinada formação social a propriedade adquire sua forma lógica mais simples e universal de propriedade privada, na qual é determinada como condição básica de circulação contínua de valores pela fórmula M-D, D-M” (PACHUKANIS, 2013, p. 65; 2003, p. 43). . Sabe-se, no entanto, que o valor apenas se autonomiza a ponto de se tornar substância e sujeito do processo econômico a partir do movimento expresso por aquela fórmula e não por esta26 26 Anselm Jappe (2006, p. 61) apresenta a questão de modo muito contundente: “Não se exagera muito se se afirmar que a conversão da fórmula M-D-M em D-M-D’ encerra em si toda a essência do capitalismo”. . Assim, a afirmação de que a teoria de Pachukanis acompanha não apenas a mercadoria, mas também o valor, goza de certa unilateralidade e dogmatismo.

Finalmente, a hipótese de Negri segundo a qual, para Pachukanis, o direito pode ser compreendido como “forma autoritária da relação social de exploração” (NEGRI, 2013, p. 20), não apenas não encontra amparo em Teoria geral do direito e marxismo, como contraria as indicações do autor bolchevique. De fato, como vimos, não apenas para o russo, como também para Marx, o direito é forma da relação de equivalência, portanto, incompatível com a relação social imediata de exploração. Ao contrário do que sugere o italiano, não se trata de uma leitura “revisionista” da teoria de Pachukanis: trata-se da leitura possível. Para que a forma jurídica fosse apresentada como forma autoritária da relação de exploração o bolchevique teria que ter mergulhado sua análise no interior do edifício categorial que conforma o Livro I de O capital até atingir, pelo menos, o momento da apresentação do mais-valor absoluto, ou seja, o capítulo 05 (O processo de trabalho e o processo de valorização). Sabe-se, entretanto, que sua análise está distante deste específico momento da apresentação categorial marxiana.

Em suma, o problema não está em relacionar o direito à exploração e tampouco em sustentar que a forma jurídica é a forma específica da expropriação capitalista, o que é intuitivo do ponto de vista marxista, e, num certo sentido, uma obviedade. A questão reside no modo como se faz esta apresentação sem violentar a arquitetura categorial marxiana, sobretudo no que concerne ao cuidado rigoroso que se deve dispensar à preservação do método dialético. Do que se trata, então, é de demonstrar que o direito deve ser considerado forma de troca de equivalentes, e, ao mesmo tempo, forma de troca de não equivalentes; a relação jurídica não pode coincidir com a relação autoritária de extração de mais-valor, e, simultaneamente, precisa coincidir com ela.

IV. O DIREITO E A PRODUÇÃO DO MAIS-VALOR ABSOLUTO

A adequada compreensão da forma jurídica da compra e venda da força de trabalho auxilia no esclarecimento desta contradição fundamental.

Ora, se o capital engendra a sociedade da escravidão assalariada27 27 No capítulo 07 (A taxa do mais-valor) do Livro I de O capital, Marx reitera a aproximação entre trabalho escravo e trabalho assalariado: “O que diferencia as várias formações econômicas da sociedade, por exemplo, a sociedade da escravatura daquela do trabalho assalariado, é apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extraído do produtor imediato, do trabalhador” (MARX, 2013, p. 293; 1962, p. 231). , como é possível que o trabalhador apareça no mercado como sujeito de direito que pactua contratos de modo livre e soberano? Se a produção do mais-valor implica a extração de trabalho excedente, como é possível sustentar a horizontalidade e equivalência das relações jurídicas, sobretudo aquelas reguladas pelo chamado “direito do trabalho”?

O esclarecimento destas contradições parte do pressuposto evidente de que elas existem. É um forte indício de desconsideração do método dialético quando, à luz de um problema aparentemente insolúvel, afirma-se a pura e simples inexistência do elemento contraditório. Além do mais, este esclarecimento precisa partir necessariamente de O capital, já que apenas nesta obra de maturidade o método dialético marxiano atinge o auge de seu desenvolvimento e amplitude.

Nesse sentido, o capítulo 05 do Livro I, denominado O processo de trabalho e o processo de valorização, é de fundamental importância, pois é neste momento que ocorre a apresentação da produção do mais-valor absoluto. Quer dizer, nesta altura de sua exposição, Marx coloca em destaque o mecanismo específico através do qual o capital não apenas produz, mas também como ele mesmo, o capital, é produzido.

De fato, ao final do capítulo 04 Marx mostra como capitalista e trabalhador se encontram na esfera da circulação para contratarem livremente a compra e venda da força de trabalho. Neste momento, ambos são “pessoas juridicamente iguais” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 242; 1962, p.182) que ajustam suas vontades autônomas com vistas à realização do negócio. O primeiro se compromete a entregar ao segundo uma quantia em dinheiro que corresponde ao valor de sua força de trabalho (o salário), enquanto o segundo se compromete a entregar, por um período de tempo previamente delimitado, sua capacidade para trabalhar28 28 A limitação do tempo de trabalho cedido pelo trabalhador ou trabalhadora ao capitalista é fundamental à estrutura do modo de produção capitalista. Não por outra razão, Hegel insiste nesse ponto (sem ter em mente o problema econômico, evidentemente) quando qualifica o contrato de trabalho como um contrato de locação: “Posso ceder a outrem aquilo que seja produto isolado das capacidades e faculdades particulares de minha atividade corporal e mental ou o emprego delas por um tempo limitado, pois esta limitação confere-lhe uma relação de extrinsecidade com minha totalidade e universalidade. Mas se eu alienasse todo o meu tempo de trabalho e a totalidade de minha produção, daria a outrem a propriedade daquilo que tenho de substancial, de toda a minha atividade e realidade, de minha personalidade (...) Contrato de salário (locatio operae). Alienação do meu trabalho de produção ou da minha prestação de serviço, enquanto alienável, mas por um tempo limitado ou segundo qualquer outra limitação” (HEGEL, 2003, p. 65/78, passim). . O objetivo do empresário é agregar o trabalho vivo do empregado ou empregada aos meios de produção previamente adquiridos no mercado. Como se percebe, nesse momento da exposição marxiana são repostas as categorias que foram apresentadas no início do capítulo 02, por ocasião da exposição do processo de troca. O que se tem são proprietários de equivalentes que levam seus valores de uso ao mercado para serem trocados; estes assumem a forma de mercadoria; aqueles a forma de sujeito de direito. O ajuste de vontades implica a relação jurídica, cuja forma é o contrato, legalmente desenvolvida ou não. Assim, nesta altura da apresentação marxiana estamos prestes a abandonar a esfera da circulação e a ingressar no âmbito da produção:

A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, a força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-auspiciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral. Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor da força de trabalho como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da ... despela (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., pp. 250-251; 1962, pp. 189-191).

Pois bem, na esfera da produção tudo muda de figura. Não há mais proprietários de dinheiro e força de trabalho, mas capitalista e trabalhador. A transformação na fisionomia das dramatis personae não é apenas um artifício estilístico ou retórico usado por Marx. Ela tem um importante status lógico-teórico. Significa que as pessoas que habitam o mundo jurídico, isto é, os sujeitos de direito que encenam no palco da circulação de mercadorias, deixam o tablado onde suas máscaras servem com naturalidade e se transferem a um local em que estes personagens não têm mais cabimento. O proprietário do dinheiro transformou-se em capitalista e o possuidor da força de trabalho em trabalhador. A partir de agora não se trata mais da circulação do valor, mas de sua produção; e mais do que isso, da produção de mais valor do que aquele que fora reunido inicialmente através da compra e venda operada no mercado.

Nesse sentido, desde o capítulo 01, do Livro I, de O capital, sabe-se que a substância do valor é o trabalho abstrato; a grandeza de valor advém da quantidade de trabalho depositado na mercadoria. Assim, a produção de valor depende do consumo desta mercadoria específica, a força de trabalho, única apta a desempenhar atividade laborativa, isto é, objetivar trabalho abstrato, portanto, criar valor. A magnitude do valor produzido depende do tempo de trabalho desempenhado pelo trabalhador ou trabalhadora. Quanto mais tempo o empregado ou a empregada trabalham, tanto mais valor produzem; quanto menos tempo desempenham atividade laborativa, tanto menor será a grandeza produzida. Não é difícil compreender, portanto, que a extração de valor excedente a partir da produção depende da duração da jornada de trabalho cumprida pelos trabalhadores e trabalhadoras.

O ponto-chave consiste em uma jornada cuja duração produza valor numa magnitude que exceda os valores inicialmente lançados na produção. Caso contrário, há a criação de valor, mas não de valor excedente. A primeira situação, isto é, a mera produção de valor, é justamente o que ocorre quando a empregada ou o empregado são compelidos a uma jornada de trabalho cuja duração no tempo se limita a reproduzir exatamente os valores existentes no início do ciclo produtivo - inclusive, e principalmente, o valor de suas forças de trabalho. Marx observa:

Vejamos a questão mais de perto. O valor diário da força de trabalho é de 3 xelins porque nela própria está objetivada meia jornada de trabalho, isto é, porque os meios de subsistência necessários à produção diária da força de trabalho custam meia jornada de trabalho. Mas o trabalho anterior, que está incorporado na força de trabalho, e o trabalho vivo que ela pode prestar, isto é, seus custos diários de manutenção e seu dispêndio diário, são duas grandezas completamente distintas. A primeira determina seu valor de troca, a segunda constitui seu valor de uso. O fato de que meia jornada de trabalho seja necessária para manter o trabalhador vivo por 24 horas de modo algum o impede de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas. É essa diferença de valor que o capitalista tem em mente quando compra a força de trabalho. Sua qualidade útil, sua capacidade de produzir fio ou botas, é apenas uma conditio sine qua non, já que o trabalho, para criar valor, tem necessariamente de ser despendido de modo útil. Mas o que é decisivo é o valor de uso específico dessa mercadoria, o fato de ela ser fonte de valor, e de mais valor do que aquele que ela mesma possui. Esse é o serviço específico que o capitalista espera receber dessa mercadoria e, desse modo, ele age de acordo com as leis eternas da troca de mercadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso. Ele não pode obter um sem abrir mão do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco a seu vendedor quanto o valor de uso do óleo pertencente ao comerciante que o vendeu. O possuidor do dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; a ele pertence, portanto, o valor de uso dessa de trabalho durante um dia, isto é, o trabalho de uma jornada. A circunstância na qual a manutenção diária da força de trabalho custa apenas meia jornada de trabalho, embora a força de trabalho possa atuar por uma jornada inteira, e, consequentemente, o valor que ela cria durante uma jornada seja o dobro de seu próprio valor diário - tal circunstância é, certamente, uma grande vantagem para o comprador, mas de modo algum uma injustiça para com o vendedor (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., pp. 269-270; 1962, pp. 207-208, grifo meu).

À luz desta passagem, percebe-se que o valor da força de trabalho, isto é, o salário que será percebido pelo trabalhador ou trabalhadora, representa sempre uma magnitude de valor que corresponde a um período de tempo menor do que aquele que será compelido ou compelida a permanecer trabalhando. Dizendo de outro modo, sua jornada de trabalho precisa ser sempre maior do que o período de tempo em que a execução da atividade laborativa apenas repõe o valor da força de trabalho. O capital necessita, portanto, desta diferença de tempo, quer dizer, de uma jornada de trabalho que consista sempre num excedente de tempo trabalhado e que será representado numa quantidade de valor que necessariamente excede aquele lançado no início da produção. Esse mais-tempo é apropriado pelo capital, pois ele detém a propriedade privada dos meios de produção. Ademais, Marx deixa claro que essa relação não é injusta29 29 Sobre o problema da justiça em Marx, passando também pela análise da compra e venda da força de trabalho, confira-se o instigante e já clássico trabalho de Norman Geras (2018, pp. 504-562). Também sobre o tema, mas sob uma perspectiva distinta, veja-se Sartori (2017, pp. 321-353). . Uma vez que o trabalhador aliena sua força de trabalho por seu valor de mercado, isto é, pelo salário, as leis que regem a troca de mercadorias são respeitadas. Pouco importa que sua jornada de trabalho seja prolongada por um período de tempo que excede aquele que seria necessário para repor o valor de sua força de trabalho, pois, ao alienar sua mercadoria, o vendedor transfere ao comprador o valor de uso desta, assegurando-lhe a prerrogativa de usá-la como bem entender.

Pois bem, do fato de que esta relação seja justa não decorre, necessariamente, que seja jurídica, afinal de contas, direito e justiça são fenômenos distintos. Como vimos, o direito expressa relações de equivalência por intermédio das quais valores de idênticas magnitudes são intercambiados. Chega-se, assim, ao ponto nevrálgico do problema, que consiste em desvendar o seguinte quiproquó: capitalista e trabalhador contratam a compra e venda da força de trabalho por um período de tempo determinado contratualmente; o primeiro remunera o segundo de acordo com o justo valor de mercado - o salário; ao descer à esfera da produção para executar a atividade laborativa, o empregado ou a empregada trabalha por um período de tempo que excede aquele em que há a mera reposição do valor de sua mercadoria, ou seja, o trabalhador ou a trabalhadora precisam necessariamente ultrapassar o momento em que o valor de seus salários são apenas reproduzidos. Há, portanto, uma espécie de intercâmbio por meio do qual, num primeiro momento, ajustam-se as vontades para a troca de equivalentes, mas, no momento em que se consome a mercadoria força de trabalho, a relação de equivalência é ultrapassada, passando à relação de apropriação do mais-trabalho.

Pergunta-se: esta relação é jurídica?

Como visto, a resposta que geralmente se oferece ao problema é positiva. Não há maiores dúvidas quanto à questão, pois, como afirma o próprio Marx, depois que o trabalhador assina o contrato com o capitalista ocorre a transferência do valor de uso do vendedor ao comprador, sendo que este pode usar a mercadoria como bem entender. Nesse sentido, o fato de pôr o trabalhador ou a trabalhadora para executar atividade laborativa por tanto ou quanto tempo não viola os termos do ajuste, pois o período de trabalho é uma das cláusulas contratuais ajustadas por ocasião da assinatura do contrato.

Tudo o que é óbvio, no entanto, gera desconfiança. Vejamos.

Inicie-se por recordar que, nos termos do capítulo 02, do Livro I, de O capital, o direito é a forma do intercâmbio de valores equivalentes. “O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 159; 1962, p.99). Esta concepção é reiterada por Marx na Crítica do programa de Gotha, pois “o direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida” (MARX, 2012, p. 31). Ora, do ponto de vista dialético forma e conteúdo estão em relação de oposição, de modo que se determinam reciprocamente. Assim, uma mudança de conteúdo precisa acarretar uma modificação na forma, ou, no mínimo, uma alteração no sentido da forma30 30 Na Enciclopédia das ciências filosóficas, Hegel (1995, p. 253) observa: “Quando há oposição entre a forma e o conteúdo, é essencial sustentar que o conteúdo não é carente-de-forma, mas que tanto tem a forma nele mesmo, como a forma lhe é algo exterior. Dá-se a duplicação da forma, que uma vez, como refletida-sobre-si, é o conteúdo; e outra vez, como não-refletida sobre si, é a existência exterior, indiferente ao conteúdo. Em si, está aqui presente a relação absoluta do conteúdo e da forma, a saber, o mudar deles um no outro, de modo que o conteúdo não é senão o mudar da forma em conteúdo, e a forma não é senão o mudar do conteúdo em forma. Esse mudar é uma das determinações mais importantes. Mas, posto, ele só o é na relação absoluta”. . A forma jurídica apresentada no início do capítulo 02 expressa o intercâmbio de mercadorias cujos valores de uso não têm a aptidão de produzirem valor. Pelo contrário, o consumo dos objetos trocados conduz à eliminação dos corpos mercantis, e, portanto, também de seus valores. Este intercâmbio encaminha, assim, o negativo do valor, isto é, uma diminuição ou destruição dele. A forma jurídica apresentada no capítulo 05, por outro lado, é a projeção de uma relação econômica por intermédio da qual, apenas em princípio, trocam-se equivalentes. O consumo da força de trabalho, entretanto, não acarreta a eliminação do valor; antes, trata-se de colocar em ação a atividade criadora dele: o trabalho abstrato. Este intercâmbio encaminha um positivo do valor, quer dizer, não apenas sua manutenção, como também sua ampliação. O prolongamento da jornada para além do momento em que o trabalhador ou a trabalhadora repõem o valor de sua força de trabalho significa a ultrapassagem do momento da equivalência. Troca-se valor por mais-valor31 31 Evidentemente, é preciso compreender essa “ultrapassagem” em termos dialéticos, isto é, como algo que é superado, mas, ao mesmo tempo, conservado. Sobre o assunto, Hegel (1995, p. 223) explica: “Ainda a esse propósito, só resta notar que aquilo que passou nem por isso é negado abstratamente, mas apenas suprassumido; e por isso, ao mesmo tempo, conservado”. Nesse sentido, se o prolongamento da jornada de trabalho por um período de tempo que supera o valor da força de trabalho consiste na troca de valor por mais-valor, nem por isso aquela aparência de equivalência contratual é destruída. É por isso que, aparentemente, o trabalhador ou trabalhadora mantém sua liberdade quando, por livre e espontânea vontade, pede demissão do emprego. Esta aparência de liberdade desvanece, no entanto, a partir do momento em que o empregado ou empregada têm, obrigatoriamente, de ligar-se a outro capital. Eis o mecanismo econômico-coercitivo por intermédio do qual trabalhadores e trabalhadoras são obrigados (ausente, portanto, qualquer espécie de liberdade essencial) a vender sua força de trabalho no mercado. .

Além do mais, há que se destacar que a forma jurídica apresentada no início do capítulo 02 expressa a relação entre mercadorias que se comunicam entre si através de seus possuidores, as pessoas ou sujeitos de direito. Uma vez que o contrato é firmado e o intercâmbio se realiza, os proprietários têm diante de si objetos, isto é, bens que serão consumidos. Trata-se, como afirma Marx (2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 148; 1962, p.87), de uma relação social entre coisas. A forma jurídica que expressa a compra a venda da força de trabalho, por outro lado, tem como objeto o dinheiro (do lado do comprador) e a aptidão física para o trabalho (do lado do vendedor ou vendedora). A realização do intercâmbio opera a transferência recíproca de propriedade dos valores de uso em jogo. Se do lado do empregado ou da empregada o dinheiro será convertido em mercadoria para consumo imediato (D-M), do lado do empresário a força de trabalho será consumida no processo de produção (FT ... P). Isso significa que o trabalhador ou trabalhadora serão postos sob comando do capital para a extração do mais-trabalho. Portanto, a forma jurídica, neste caso, é apenas o primeiro momento de uma relação social que não se exaure com o ajuste de vontades, mas que deve se prolongar pelo período fixado no contrato de trabalho. Trata-se da relação coisificada entre pessoas (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 148; 1962, p. 87).

A questão fundamental, portanto, reside na compreensão do papel desempenhado pelo direito no âmbito da troca direta (M-M) e da circulação simples de mercadorias (M-D-M), de um lado, e da função que cumpre no momento da circulação do dinheiro como capital (D-M-D’), quando encaminha o ciclo produtivo, de outro. E isso porque o processo de produção de mercadorias é distinto do processo de produção do capital. No primeiro caso a produção do valor não significa a superação das relações de equivalência; no segundo caso, sim. Marx observa:

Esse ciclo inteiro, a transformação de seu dinheiro em capital, ocorre no interior da esfera da circulação e, ao mesmo tempo, fora dela. Ele é mediado pela circulação porque é determinado pela compra e venda da força de trabalho no mercado. Mas ocorre fora da esfera da circulação, pois esta apenas dá início ao processo de valorização, que tem lugar na esfera da produção. E assim tudo está tout pour le mieux dans le meilleur des mondes possibles. Ao transformar o dinheiro em mercadorias, que servem de matérias para a criação de novos produtos ou como fatores do processo de trabalho, ao incorporar força viva de trabalho à sua objetividade morta, o capitalista transforma valor - o trabalho passado, objetivado, morto - em capital, em valor que se autovaloriza, um monstro vivo que se põe a “trabalhar” como se seu corpo estivesse possuído de amor. Ora, se compararmos o processo de formação de valor com o processo de valorização, veremos que este último não é mais do que um processo de formação de valor que se estende para além de certo ponto. Se tal processo não ultrapassa o ponto em que o valor de força de trabalho pago pelo capital é substituído por um novo equivalente, ele é simplesmente um processo de formação de valor. Se ultrapassa esse ponto, ele se torna processo de valorização (...) O processo de produção, como unidade dos processos de trabalho e de formação de valor, é processo de produção de mercadorias; como unidade dos processos de trabalho e de valorização, ele é processo de produção capitalista, forma capitalista da produção de mercadorias (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 271/273; 1962, p. 209-211, passim, grifo meu, exceto nas palavras estrangeiras).

Note-se que é na conjugação das esferas da circulação e da produção que se encontra a origem do capital. O problema é que o elemento central desta conjugação reside no consumo de uma mercadoria especial, consumo que é, ao mesmo tempo, uma relação social. Portanto, o comando que o capital exerce sobre o trabalho no momento da produção, comando por meio do qual extrai o trabalho excedente e, como consequência, cria o mais-valor, não passa de uma relação social cuja origem remonta à contratação que ocorreu na esfera da circulação. Trata-se, portanto, de uma e mesma relação, que apenas se desdobra em dois momentos distintos, relativamente opostos e separados. O sentido conceitual desta relação depende da conjugação destes dois momentos que se determinam reciprocamente e da exata compreensão da natureza da oposição que os une32 32 A propósito, Grespan observa: “A distinção categorial entre a ‘diversidade’ e a ‘oposição’ é sabidamente um ponto-chave da lógica hegeliana; no texto de Marx ela comparece para definir o vínculo das partes como de recíproca determinação e negação. Ou seja, mais do que distintas, as duas partes o são uma para a outra, uma pela outra” (GRESPAN, 2019, p. 67). . Se num primeiro momento a relação se apresenta como livre troca de equivalentes contratada juridicamente, logo ela se transforma em intercâmbio econômico-coercitivo de não equivalentes, ou seja, mais-trabalho extraído pela violência inerente ao processo produtivo capitalista33 33 Grespan descreve com perfeição esse movimento: “Para Marx, a oposição entre igualdade jurídica e desigualdade social é dialética. Elas não são esferas alternativas nem ocorrem ao mesmo tempo, apesar uma da outra, e sim por causa uma da outra (...) A desigualdade social se opõe à igualdade do contrato, mas a determina; por seu turno, essa igualdade se opõe à desigualdade social, mas a alimenta (...) O reforço da igualdade na esfera da circulação esconde seu contrário, o reforço da desigualdade na esfera da produção” (GRESPAN, 2019, p. 83, passim). .

Assim, a hipótese que se sustenta é a de que se verifica a ocorrência de uma espécie de interversão já neste momento da exposição marxiana, isto é, logo que se tem a produção do capital - sem que, para tanto, tenha que se esperar a reprodução deste, tal como apresentada por Marx no capítulo 22, do Livro I34 34 Como se sabe, no capítulo 22, do Livro I, de O capital (Transformação de mais-valor em capital), Marx apresenta o modo como ocorre a conversão das leis de propriedade que regem a produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista. Esta conversão se opera pela inversão da lei de apropriação fundada no próprio trabalho, que passa à lei de apropriação do trabalho alheio, sem, no entanto, violar o primeiro paradigma. -35 35 O que se sustenta neste artigo é que esta conversão dialética pode ser pensada já por ocasião do capítulo 05. Portanto, ela seria apenas explicitada por Marx no capítulo 22, no momento em que trata da lei de propriedade. Seu sentido inicial, contudo, remete à exposição da produção do mais-valor absoluto, pois é neste momento que ocorre a apropriação do mais-trabalho alheio, ainda que permaneça imperceptível. Trata-se de uma leitura que diverge sensivelmente daquela que é sustentada por Ruy Fausto, que sugere que a interversão ocorre apenas no momento da reprodução do capital: “Assim, encontramos a interversão da propriedade - ou antes, da lei da propriedade fundada no trabalho - e da liberdade nos seus contrários, expressa na própria construção de O capital. A interversão se opera na passagem da perspectiva descontinuísta das primeiras seções à perspectiva continuísta da acumulação. A teoria de Marx acolhe a interversão na sua própria construção; o discurso de Marx se deixa ‘arrastar’ pela interversão, é atravessado por ela” (FAUSTO, 2015, p. 81). . Do ponto de vista dialético, pode-se compreender a interversão como a passagem de uma forma no seu oposto. Isso ocorre quando as formas em oposição expressam uma contradição no seu grau máximo, que, no entanto, não pode ser superada36 36 Marx passa por essa questão no início do item 02, do capítulo 03, do Livro I de O capital, ao apresentar a metamorfose das mercadorias: “Vimos que o processo de troca das mercadorias inclui relações contraditórias e mutuamente excludentes. O desenvolvimento da mercadoria não elimina essas contradições, porém cria a forma em que elas podem ser mover. Esse é, em geral, o método com que se solucionam contradições reais” (MARX, 2013, p. 178; 1962, p. 118). .

É precisamente o que ocorre com a relação social entre capitalista e trabalhador, tal como apresentada nos capítulos 04 e 05 do Livro I de O capital. Há que se levar com a devida seriedade a exposição marxiana quanto à simultaneidade das esferas da circulação e produção no que concerne à gênese do capital, uma vez que este “não pode ter origem na circulação, tampouco pode não ter origem na circulação. Ele tem de ter origem nela e, ao mesmo tempo, não ter origem nela” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 240; 1962, p. 180); de modo que a transformação do dinheiro em capital “ocorre no interior da esfera da circulação e, ao mesmo tempo, fora dela” (MARX, 2013, p. 271; 1962, p. 209). Esta sincronicidade, isto é, o fato de o capital ter necessariamente que surgir e não surgir da circulação; ter e não ter, ao mesmo tempo, origem na produção, é fundamental para compreender que a compra e venda da força de trabalho e o consumo produtivo desta constituem uma única e mesma relação, que apenas se desdobra em dois momentos distintos e contraditórios. A compreensão desta relação, principalmente do ponto de vista jurídico, impõe que se reconheça que estes opostos conferem sentidos recíprocos a si mesmos, de modo que circulação e produção são determinantes na análise, com precedência significativa desta última, evidentemente.

Nesse sentido, se num primeiro momento, isto é, na circulação, a relação entre capitalista e trabalhador assume a forma jurídica da compra e venda da força de trabalho, ou seja, uma relação de equivalência que expressa liberdade, igualdade, propriedade privada e autonomia da vontade; no momento seguinte, quer dizer, na produção, esta relação é negada, na medida em que o prolongamento da jornada de trabalho ultrapassa a criação do equivalente original, caracterizando-se, então, pela coerção econômica da expropriação, desigualdade material e submissão. O ponto fundamental é compreender que o sentido da relação que se forma entre empresário e empregado ou empregada na circulação é determinado pelo sentido da relação que se prolonga na produção e vice-versa. São formas opostas e reciprocamente significativas, que, no entanto, exprimem uma genuína interversão, pois constituem o momento da contradição máxima e insuperável do modo de produção capitalista, portanto, seu fundamento37 37 Ressalte-se que Ruy Fausto considerou o problema da “interversão antecipada”, por assim dizer, apresentando-o nos seguintes termos: “Observemos que esse questionamento não estava dado no momento em que foi introduzida a ideia de mais-valia. Pelo contrário, a mais-valia era considerada como sendo resultado normal de uma troca” (FAUTO, 2021, p. 33, nota de rodapé nº 11). Nada obstante, no momento em que refina a sua hipótese, fiel ao método dialético, observa: “Essa leitura passa a valer retrospectivamente, também para a primeira mais-valia consumida, o primeiro elo da cadeia (quando se descobre que o sentido do processo é o de sucessivas punções sobre o capital original, não há por que eximir disso o primeiro gasto [...]” (FAUSTO, 2021, p. 35, grifo meu). E, numa nota de rodapé, registra: “De certo modo, independentemente mesmo do problema da liberdade do contrato. Aliás, a descoberta do caráter forçado do segundo contrato (e seguintes) introduz a continuidade do processo (e a comparação entre os gastos sucessivos) e é essa continuidade que leva a pensar que se trata de diferentes punções sobre o capital original. Estabelecida a continuidade, e a mensuração dos gastos, a questão da liberdade não é mais uma condição necessária. Passa-se a um registro quantitativo, a um cálculo, e não há razões maiores para excluir dele o gasto com a primeira mais-valia” (FAUSTO, 2021, pp. 35-36, nota de rodapé nº 13, grifo meu). .

Assim, se a interversão deve ser compreendida como a passagem de um oposto no outro, do ponto de vista de uma dialética materialista, como é a dialética marxiana, deve ser pensada mais propriamente como a centralidade significativa de um dos opostos em detrimento do outro; neste caso específico, da forma que caracteriza a produção em detrimento daquela que conforma circulação. Isso significa que, mais do que a passagem de um oposto no outro, a interversão deve ser compreendida mais apropriadamente como a elevação de uma das formas ao status de aparência38 38 Apoio-me no trecho final da seguinte passagem de Marx: “Ora, embora esta não seja mais do que a repetição do processo de produção na mesma escala, esta mera repetição ou continuidade imprime ao processo certas características novas, ou, antes, dissolve as características aparentes que ele ostentava quando transcorria de maneira isolada” (MARX, 2013, p. 642; 1962, p. 592, passim, grifo meu). . No caso de uma dialética materialista, é evidente que a forma que caracteriza a circulação é significada pelo seu oposto da produção. Portanto, aquela se conforma como aparência de uma relação social cuja essência pode ser apreendida a partir da análise da esfera produtiva.

Do que se depreende, pois, que a forma jurídica da compra e venda da força de trabalho, que caracteriza a circulação, é a aparência invertida da relação de dominação econômica expropriatória conformadora da esfera da produção capitalista39 39 Sobre a aparência invertida das relações sociais, Marx observa: “Na expressão ‘valor do trabalho’, o conceito de valor não só se apagou por completo, mas converteu-se em seu contrário. É uma expressão imaginária, como valor da terra. Essas expressões imaginárias surgem, no entanto, das próprias relações de produção. São categorias para as formas em que se manifestam relações essenciais. Que em sua manifestação as coisas frequentemente se apresentam invertidas é algo conhecido em quase todas as ciências, menos na economia política” (MARX, 2013, p. 607; 1962, p. 559, grifo meu). .

É importante ressaltar, no entanto, que tal aparência é real. Vale dizer, não se trata de uma deformação ilusória da realidade, criada pela articulação interna da esfera produtiva e captada pela mente dos indivíduos que vivem na sociedade de mercado ou de uma imagem distorcida formada no interior de seus intelectos a partir de elementos reais contraditórios. Trata-se, antes, da própria realidade tal como ela é, quer dizer, tal como se constitui realmente e do modo como é imediatamente captada pelos sentidos dos indivíduos. O caráter de aparência não provém, portanto, de qualquer inversão no real ou na mente individual, mas é resultado do próprio modo de articulação interna da produção capitalista de mercadorias. Por outro lado, a constatação de aparência da forma é viabilizada pela análise crítico-cientifica da realidade que se apresenta e que é captada pelo processo de investigação dialético40 40 Nesse sentido, Adorno observa: “Essa essência também precisa aparecer exatamente como a hegeliana: mascarada em sua própria contradição. A essência não pode ser reconhecida senão junto à contradição do ente em relação àquilo que ele afirma ser. Com certeza, em face dos pretensos fatos, ela é conceitual e não imediata” (ADORNO, 2009, p. 144). .

A compra e venda da força de trabalho, portanto, é e não é, simultaneamente, um intercâmbio de equivalentes; confirma o encontro inicial de possuidores de mercadoria, ao mesmo tempo em que o nega. Assim, tal relação social é, de fato, uma relação jurídica, que, no entanto, aparece como forma invertida da relação econômica expropriatória.

É absolutamente relevante compreender o status ontológico de realidade desta aparência, pois ele é fundamental do ponto de vista dialético. Uma vez que aparece como dado concreto da realidade, a forma jurídica da compra e venda da força de trabalho não é questionada no que concerne à sua existência. Antes, é apreendida e interpretada como realidade autêntica e bastante em si mesma41 41 É o que Karel Kosik denomina de pseudoconcreticidade: “No mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece” (KOSIK, 2002, p. 16). Esse “desaparecer” deve ser interpretado de modo rigoroso, o que significa que o ponto de vista da imediatez não capta qualquer relação entre o fenômeno e uma eventual totalidade que lhe confira o status de aparência. O fenômeno aparece isoladamente, apresentando-se como se fosse a própria essência. . Justamente por isso, a própria forma veda o acesso ao momento posterior da relação, isto é, ao consumo da força de trabalho, à extração de mais-trabalho através do comando pela coerção econômica que o capital exerce sobre o trabalhador ou trabalhadora. A interpretação imediata desta forma social pelos indivíduos que vivem na sociedade do capital, o que inclui capitalistas e trabalhadores, não pode, pois, conduzir a outra conclusão senão a de que se trata, essencialmente, de uma relação jurídica42 42 Daí se compreende o culto ingênuo do chamado “direito do trabalho”, ou, o que é ainda pior, a falta de substância teórica daqueles que sustentam a possibilidade de uma “Justiça do Trabalho” democrática ou emancipatória. De fato, as próprias expressões são contradições nos termos, pois nem o direito pode ser “do trabalho”, nem a justiça pode ser “do trabalho”, ao menos sob o modo de produção capitalista. Em ambos os casos o que se tem são estruturas de dominação e comando do capital sobre a classe trabalhadora, portanto, mecanismos de dominação através do quais se assegura a extração do mais-valor. .

Em suma, a produção do mais-valor absoluto, que consiste na ampliação da jornada de trabalho para além do momento em que a força de trabalho produz apenas um equivalente de seu valor - o que não significa senão o comando através da coerção econômica direta para extração de mais-trabalho, e, portanto, forma de dominação - não passa do segundo momento de uma única e mesma relação social cujo início ocorre na esfera da circulação através da compra e venda da força de trabalho - momento em que capitalista e trabalhador aparecem como sujeitos de direito, livres, iguais, proprietários privados e com vontades autônomas. A análise conjugada das esferas da circulação e da produção permite compreender que ocorre uma genuína interversão, de modo que a forma jurídica consistente na troca de equivalentes passa a seu oposto, isto é, a troca de não equivalentes. Do ponto de vista da dialética materialista, esta interversão deve ser compreendida como elevação da primeira forma ao status de aparência real da contradição insuperável. A forma jurídica da compra e venda da força de trabalho não passa, portanto, de aparência do processo de dominação econômico-espoliativa do capital sobre o trabalho.

V. DIREITO, MAIS-VALOR ABSOLUTO E ESTADO

Uma vez que se compreende de modo mais concreto como se produz o mais-valor absoluto e como esta produção envolve dois aspectos opostos, mas ligados, a dominação econômica expropriatória do capital sobre o trabalho, que aparece como relação jurídica equitativa entre sujeitos de direito, pode-se enfrentar mais coerentemente a pergunta feita por Pachukanis sobre o problema do Estado43 43 É importante registrar que, nos limites deste artigo, o problema da dedução lógica do Estado a partir de O capital pode apenas ser encaminhado. Neste momento da apresentação marxiana ainda não há elementos suficientes para o aprofundamento da questão. Apenas para dar um exemplo, a exposição da forma do Estado depende, antes, da apresentação das classes sociais, o que Marx fará apenas a partir do capítulo 06, do Livro I. Trata-se, pois, tão somente de indicar caminhos possíveis para uma futura pesquisa. .

De fato, no capítulo 05 de Teoria geral do direito e marxismo, ao tratar dos pontos de vista no interior do marxismo sobre a forma estatal, em especial a perspectiva de Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, o autor observa:

Por trás de todas essas controvérsias, está colocada uma única questão fundamental: por que a dominação de classe não se apresenta como é, ou seja, a sujeição de uma parte da população a outra, mas assume a forma de uma dominação estatal oficial ou, o que dá no mesmo, por que o aparelho de coerção estatal não se constitui como aparelho privado da classe dominante, mas se destaca deste, assumindo a forma de um aparelho do poder público e impessoal, separado da sociedade? (PACHUKANIS, 2013, p. 143; 2003, p. 139)44 44 Um desenvolvimento teórico do problema do Estado à luz da obra de Pachukanis e sob o influxo da teoria da derivação encontra-se em Mascaro (2013). .

A resposta encaminhada por Pachukanis decorre, evidentemente, do núcleo essencial de seu pensamento. A partir da troca de mercadorias e dos pressupostos por ela estabelecidos, o autor observa que a forma estatal é produzida e está adequada ao asseguramento e perpetuação dos ciclos de intercâmbio mercantil. Nesse sentido, “o Estado ‘moderno’, no sentido burguês do termo, é concebido no momento em que a organização do poder de um grupo e de uma classe inclui em seu escopo relações mercantis suficientemente abrangentes” (PACHUKANIS, 2013, p. 141; 2003, p. 136). Desse modo, enquanto estrutura de comando, o Estado precisa elevar-se e, portanto, é conformado, a partir da forma do sujeito de direito, isto é, de pessoas livres, iguais, autônomas e proprietárias privadas. É precisamente a reprodução contínua da lógica mercantil no âmbito da infraestrutura econômica que impõe à organização social político-coercitiva sua forma específica de Estado:

A máquina de Estado se realiza de fato como “vontade geral” impessoal, como “poder de direito” etc., na medida em que a sociedade representa um mercado. No mercado, cada comprador e cada vendedor é um sujeito de direito par excellence. A partir do momento em que entram em cena as categorias do valor e do valor de troca, a vontade autônoma das pessoas que participam da troca passa a ser o pressuposto. O valor de troca deixa de ser valor de troca e a mercadoria deixa de ser mercadoria se a proporção da troca for determinada por uma autoridade que se situa fora das leis imanentes do mercado. A coerção como prescrição de uma pessoa sobre outra, sustentada pela força, contradiz a premissa fundamental da relação entre os possuidores de mercadorias. Por isso, em uma sociedade de possuidores de mercadorias e dentro dos limites do ato de troca, a função de coerção não pode aparecer como função social, já que não é abstrata e impessoal. A subordinação de um homem como tal, como indivíduo concreto, significa para a sociedade de produção de mercadorias a subordinação ao arbítrio, pois isso equivale à subordinação de um possuidor de mercadoria a outro. É por isso que a coerção não pode aparecer aqui em sua forma não mascarada, como um simples ato de conveniência. Ela deve aparecer como uma coerção proveniente de uma pessoa abstrata e geral, como uma coerção que representa não os interesses do indivíduo da qual provém - já que na sociedade mercantil toda a pessoa é egoísta -, mas o interesse de todos os participantes da relação jurídica. O poder de uma pessoa sobre outra é exercido como o poder do próprio direito, ou seja, como poder de uma norma objetiva e imparcial (PACHUKANIS, 2013, p. 146; 2003, pp. 142-143).

A passagem demonstra os evidentes avanços da perspectiva pachukaniana e, ao mesmo tempo, seus limites. Ao associar a máquina do Estado ao valor e ao valor de troca, isto é, a categorias fundamentais da dinâmica econômica capitalista, Pachukanis põe em evidência a gênese do Estado, que não tem lugar em abstratos conflitos de classe, mas em relações concretamente situadas, isto é, mediadas pela forma mercantil do produto do trabalho. Com isso, a vontade dos guardiões de mercadorias passa a ser o pressuposto da própria forma estatal. Ocorre que no mundo das mercadorias o valor dos bens é determinado pela quantidade de tempo de trabalho abstrato contido em cada um deles, de modo que os níveis de produtividade a partir dos quais as mercadorias se relacionam entre si proporcionalmente para fins de troca são estabelecidos pela própria dinâmica mercantil. Qualquer impulso exterior que vise à fixação do valor de troca fora dos parâmetros postos pelo próprio mercado é rechaçado, pois significa uma agressão ao “equilíbrio natural” das forças econômicas.

Ao mesmo tempo em que contratos são firmados com vistas à circulação de mercadorias, também são residualmente descumpridos, dando ensejo a interrupções circunstanciais das relações de troca por intermédios das quais os produtos assumem a forma mercantil. Esta interrupção precisa ser restabelecida, em razão da lógica própria do sistema. Nada obstante, este restabelecimento não pode ser levado a cabo por qualquer das partes contratantes, pois, como afirma Marx no início do capítulo 02, do Livro I, de O capital, a relação entre os possuidores de mercadorias impõe o reconhecimento mútuo de suas qualidades de proprietários privados, de modo que o laço social é posto por meio de “um ato de vontade comum a ambos” (2013, p. 159; 1962, p.99). Ora, se o ato de vontade comum repele o ato de vontade alheio, o circuito contratual precisa ser restabelecido por um terceiro, já que as partes discordaram. Assim, um agente externo e que, ao mesmo tempo, preserve a forma do sujeito de direito; equidistante relativamente às partes e simultaneamente capaz de impor o restabelecimento do fluxo contratual à força, se necessário, deve emergir neste cenário. Esta autoridade, produzida pelo mercado, só pode assumir a forma dos habitantes do mercado, quer dizer, só pode aparecer como sujeito igualmente dotado de personalidade jurídica autônoma. Nada obstante, uma vez que sua função não está em contratar, mas em restabelecer o fluxo contratual interrompido, esta pessoa aparece situada acima das partes, justamente porque equidistante relativamente a elas, representando não a vontade de cada qual, mas uma vontade comum a ambas, precisamente aquele “ato de vontade comum” que constitui o fundamento do momento jurídico e que deveria ter sido preservado.

Desse modo, o direito ajustado no momento da troca e posteriormente descumprido pelas partes é aparentemente reposto por esta pessoa jurídica imparcial, que se situa acima dos sujeitos contratantes e tem a legitimidade do uso da força não porque a usa, mas porque a usa no interesse comum de todas as pessoas que compõem o mercado. Esta pessoa jurídica abstrata é o Estado. O direito pactuado entre as partes no momento da troca aparece agora como norma jurídica objetiva e abstrata, isto é, como comando fundado na vontade geral e não em qualquer vontade particular que pretenda se impor perante as outras45 45 Esse ponto de vista dialoga com Fausto (1987, pp. 287-329), que também parte de Pachukanis. A discordância fundamental, no entanto, consiste em que, para Fausto, a lei posta pelo Estado não passa da própria relação jurídica que dá forma à relação econômica de intercâmbio mercantil: “Da relação jurídica diretamente ligada à relação econômica se passa a que precisamente? Se passa ao direito. A passagem vai assim do direito ao Direito. Se vai do direito, isto é, da relação enquanto relação interior à sociedade civil e independente do Estado ao direito ‘legalizado’ pelo Estado. Como pensar o sentido desta passagem? Ainda uma vez, e aqui de maneira inteiramente rigorosa, a passagem só pode ser pensada em termos de posição. O Estado põe o direito - que até aqui era uma relação jurídica interior à sociedade civil - enquanto direito que emana do Estado. A relação jurídica ligada à relação econômica pressupõe a lei, mas não a põe. A lei enquanto lei é posta pelo Estado. O direito se torna direito positivo” (FAUSTO, 1987, p. 297). Fausto propõe uma passagem linear da relação jurídica que caracteriza a esfera da circulação para a norma posta pelo Estado. Que a lei estatal reflete o acordo comum de vontades que marca a troca de mercadorias, quanto a isso não há dúvida. O problema consiste em sustentar que a regra estatal tem a mesma natureza da regra contratual. A hipótese que se sustenta neste artigo sugere o contrário, pois a relação jurídica de fundo a partir da qual a norma estatal se eleva como estrutura de comando político global é a compra e venda da força de trabalho, e não o intercâmbio simples de mercadorias. Assim, embora pareça refletir a forma jurídica descrita no capítulo 02, do Livro I, de O capital, a lei estatal assegura e é conformada pela forma jurídica apresentada no capítulo 05, reproduzindo aquela interversão. É neste sentido - que ainda precisa ser desenvolvido - que se entende que a posição do “direito” pelo Estado é mais bem explicada pela categoria da interversão e não pela posição, como sugere Fausto. .

Reitere-se, uma vez mais, que o ponto de vista do autor russo revela seus avanços e, ao mesmo tempo, suas limitações. Se a apresentação marxiana da sociedade capitalista acabasse no capítulo 03, do Livro I, de O capital, a exposição de Pachukanis sobre a gênese do Estado seria perfeita. De fato, no mundo das mercadorias a função estatal consiste precisamente em repor os fluxos contratuais residualmente descumpridos, restaurando, à força se necessário, a circulação pontualmente interrompida, desde que ele, o Estado, apareça igualmente como um habitante do mercado, isto é, como uma pessoa jurídica abstrata. O problema, no entanto, está em conciliar esta exposição com o surgimento do capital. Não se trata apenas de situar a forma do Estado no contexto da circulação D-M-D’ porque, como assinalado, os atos de troca isoladamente considerados (D-M - M’-D’) são efetuados com base na equivalência de valores. A relação estatal acomoda-se muito bem a este cenário. O problema reside na dedução da forma do Estado a partir da compra e venda da força de trabalho e, consequentemente, da produção do mais-valor absoluto através do prolongamento da jornada de trabalho (D-M ... P ... M’-D’).

Em outras palavras, o bolchevique aproxima-se da apresentação dialética de Marx ao introduzir as categorias do valor e do valor de troca no que concerne à análise do Estado, mas não avança suficientemente, pois a categoria fundamental é a do mais-valor. Pachukanis tem consciência deste problema e o reconhece, embora deixe de enfrentar a questão:

A submissão e a dependência do trabalhador assalariado em relação ao capitalista existem também de modo indireto: o trabalho morto acumulado domina o trabalho vivo. Mas a submissão desse mesmo trabalhador ao Estado capitalista não é igual à dependência que ele tem em relação ao capitalista singular, que se desdobra ideologicamente. Em primeiro lugar, porque existe um aparato de classe dominante particular e independente, que se coloca sobre cada capitalista individual e figura como uma força impessoal. Segundo, porque essa força impessoal não medeia cada relação específica de exploração, pois o trabalhador assalariado não é obrigado política nem juridicamente a trabalhar para dado empregador, mas aliena sua própria força de trabalho com base em um contrato livre. Na medida em que a relação de exploração se realiza formalmente como uma relação entre dois proprietários de mercadorias “independentes” e “iguais”, dos quais um, o proletário, vende a sua força de trabalho, e o outro, o capitalista, compra-a, o poder político de classe pode adquirir a forma do poder público (PACHUKANIS, 2013, p. 144; 2003, p. 141).

Nesse sentido, a crítica de Negri (2013, pp. 09-47) à leitura “revisionista” que se faz de Pachukanis tem lá sua razão de ser. Do que se trata é de compreender o direito no processo de produção do mais-valor e não apenas à luz do valor ou do valor de troca. O problema, no entanto, reside no modo como o italiano propõe a crítica e as consequências que daí advêm. Ao sustentar sua análise numa suposta opção metodológica que teria sido levada a cabo pelo russo, opção que permitiria antever na teoria pachukaniana muito mais do que ali existe, o italiano constata que o direito é “a forma autoritária da relação social para a produção de mais valor” (NEGRI, 2013, p. 23). O autor observa:

Do ponto de vista da substância - qualquer que seja sua opção, ligada por outro lado, como veremos, aos limites contemporâneos do programa comunista soviético -, portanto do ponto de vista do conteúdo, o olhar de Pachukanis é dirigido, sobretudo, à determinação do comando como momento fundamental do desenvolvimento (ou da destruição) do direito, de todo modo, da tendência jurídica capitalista no mais alto grau (NEGRI, 2013, p. 22).

A conclusão é paradoxal. Como visto, para Pachukanis o comando é um elemento que desestabiliza o sentido da forma jurídica, muito mais do que o constitui. Afinal, como observa o russo, “a coerção como prescrição de uma pessoa sobre outra, sustentada pela força, contradiz a premissa fundamental da relação entre os possuidores de mercadorias” (PACHUKANIS, 2013, p. 146). O momento fundamental do direito não pode ser pensado, ao menos sob a perspectiva pachukaniana, como “determinação do comando”, por mais desanimador que isso possa parecer do ponto de vista das ambições políticas que se pretenda sustentar à luz de Teoria geral do direito e marxismo. Pois, se a sociedade capitalista é, de fato, uma sociedade da dominação de classe, há que se esperar que o direito perfaça, de alguma maneira, a mediação desta dominação. É por isso que o ponto de vista de Pachukanis soa muitas vezes como “niilista” ou “conformista” para aqueles e aquelas que buscam uma ação transformadora mais concreta no interior do sistema jurídico.

A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: não seria mais adequado, do ponto de vista teórico, admitir as limitações do pensamento de Pachukanis no lugar de forçar uma interpretação que foge visivelmente ao âmbito dos sentidos possíveis apresentados por sua obra? Feita esta admissão, não seria interessante procurar as soluções para os problemas formulados a partir das linhas fundamentais de sua perspectiva, isto é, partindo dos pressupostos corretamente estabelecidos de que o direito está ligado à forma da mercadoria e ao princípio da equivalência, e, a partir daí, buscar uma formulação que integre dialeticamente tais pressupostos ao domínio de classe típico e constitutivo de uma sociedade que gira em torno da produção do mais-valor? E tudo isso, finalmente, não deveria ser feito à luz da dialética marxiana, tal como apresentada por Karl Marx em O capital? Pois bem, parece que a resposta só pode ser afirmativa. Há que se partir de Pachukanis, reconhecendo e aceitando suas limitações e procurando os encaminhamentos necessários à solução dos problemas teóricos na obra de maturidade de Marx.

Nesse sentido, há uma passagem fundamental sobre a forma estatal que se encontra no capítulo 47, do Livro III, de O capital, denominado Gênese da renda fundiária capitalista46 46 Há que se ressaltar, uma vez mais, as dificuldades teóricas da dedução da forma do Estado a partir de O capital. Como antecipado (ver nota de rodapé nº 41), Marx não avançou na apresentação categorial da forma estatal. Não houve tempo. Vale lembrar que o Livro III termina com o início da apresentação das classes sociais, o que é um pressuposto à análise do Estado. Nada obstante, parece que as poucas passagens que existem na obra marxiana de maturidade são muito mais ricas e interessantes à reflexão sobre os problemas do Estado do que muitos extensos trabalhos, inclusive situados no interior do paradigma marxista. Por isso, esta opção metodológica, certamente inconveniente do ponto de vista dialético, por este “salto” ao Livro III, em que Marx registra características importantes da forma estatal. De resto, sigo as orientações de Ruy Fausto sobre o assunto: “A apresentação de O capital não põe o Estado, mais do que isto, não temos nem mesmo o início de uma apresentação do Estado como ocorre para as classes. E, entretanto, as categorias de O capital contêm implicitamente, isto é, pressupõem, (no sentido de que o posto se opõe ao pressuposto como o explícito ao implícito, qualquer que seja o lugar deste último na ordem da apresentação) uma teoria do Estado. Com efeito, se pode ‘tirar’, da apresentação de O capital - não das ‘ideias’ de O capital - uma teoria do Estado” (FAUSTO, 1987, pp. 287-288). :

A forma econômica específica em que o mais-trabalho não pago é extraído dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta advém diretamente da própria produção e, por sua vez, retroage sobre ela de modo determinante. Nisso se funda, porém, toda a estrutura da entidade comunitária econômica, nascida das próprias relações de produção; simultaneamente com isso, sua estrutura política peculiar. Em todos os casos, é na relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtores diretos - relação cuja forma eventual sempre corresponde naturalmente a determinada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho e, assim, a sua força produtiva social - que encontramos o segredo mais profundo, a base oculta de todo o arcabouço social e, consequentemente, também a forma política das relações de soberania e de dependência, isto é, da forma específica do Estado existente em cada caso (MARX, 2017MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 852; 1971, p. 799-780).

A passagem é importante porque demonstra a insuficiência da premissa adotada por Pachukanis, ao menos no que concerne à análise do Estado. É claro que o russo não erra ao assinalar que a gênese da forma estatal deve remeter ao encontro dos guardiões de mercadorias que se encontram para estabelecer contratos, cuja apresentação inicial se dá no capítulo 02, do Livro I, de O capital. Ocorre que neste momento da exposição o nível de abstração do qual se vale Marx ainda é muito superficial, representando a face mais externa dos vínculos de sociabilidade capitalistas. Os sujeitos de direito que ali se apresentam são possuidores de valores de uso produzidos por eles mesmos. É o trabalho privado e individual de cada agente da troca que é levado ao mercado, na forma de uma coisa, para ser trocado. Embora este seja um momento absolutamente importante das relações sociais capitalistas, não é o momento fundamental. Pois a sociedade regida pelo capital não é apenas uma sociedade de produção do valor, mas, sobretudo, de produção do mais-valor. Este, no entanto, não é somente tempo de trabalho, mas tempo de trabalho excedente produzido por outrem, isto é, por um não proprietário dos meios de produção. Algo que é simplesmente incompatível com o pressuposto do intercâmbio do trabalho próprio, tal como exposto nos capítulos iniciais do Livro I, de O capital. Isso significa que a produção do mais-valor implica necessariamente a apropriação de trabalho alheio, isto é, de atividade desenvolvida por alguém que não seja proprietário dos meios de produção. Assim, o pressuposto inicial de Pachukanis, se não está errado, está, de qualquer maneira, razoavelmente incompleto.

Ora, como afirma Marx, o segredo da forma do Estado deve ser desvendado a partir da “relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtores diretos” (MARX, 2017MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 852; 1971, p. 780). Isso significa que o pressuposto fundamental para a análise da forma estatal deve ser a compra e venda da força de trabalho, cuja apresentação ocorre nos capítulos 04 e 05 do Livro I, de O capital. Afinal de contas, é ali que se dá, no capitalismo, o início da relação entre proprietários dos meios de produção e produtores diretos. O intercâmbio apresentado no capítulo 02 não remete a esta relação específica, mas ao encontro de possuidores de coisas produzidas por eles mesmos, a partir do trabalho próprio.

Isso não significa que a troca simples deve ser eliminada da análise. Pelo contrário, aí reside justamente o avanço teórico de Pachukanis. No entanto, o intercâmbio direto não é o fundamento a partir do qual a forma do Estado pode ser explicada, pois aí não se encontra a relação entre possuidores dos meios de produção, de um lado, e produtores diretos, de outro. Esse encontro tem início precisamente no momento em que se tem a compra e venda da força de trabalho. Desnecessário dizer que, do ponto de vista dialético, o sentido deste intercâmbio, que dizer, a troca entre capital e trabalho, carrega consigo o sentido daquele, isto é, da troca direta, conservando-o e superando-o no que concerne ao significado. Como afirmado, a compra e venda da força de trabalho é e não é, simultaneamente, um intercâmbio de equivalentes; reitera, portanto, aquele encontro inicial de possuidores de mercadoria, ao mesmo tempo em que o nega47 47 Insista-se, uma vez mais, na importância das categorias dialéticas para a sustentação da hipótese deste artigo (ver nota de rodapé nº 29). Ora, afirmar que a compra e venda da força é trabalho é e não é, ao mesmo tempo, uma relação jurídica, é uma contradição. Sem dúvida, pois a contradição é o impulso dialético por excelência. Fixar a atenção em apenas um dos aspectos da oposição (equivalência do primeiro momento ou extorsão do segundo) é justamente o caminho da abstração vazia não científica. Nesse sentido, Hegel anota: “Quando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradição - e por toda a parte, não há absolutamente nada em que não possa e não deva ser mostrada a contradição, isto é, determinações opostas: o abstrair do entendimento é o fixar-se à força em uma só determinidade, é um esforço de obscurecer e de afastar a consciência da outra determinidade - quando pois tal contradição é reconhecida, costuma-se fazer a conclusão: ‘Logo, este objeto é nada’” (HEGEL, 1995, p. 185). Como afirma Marx (2013, p. 91; 1962, p. 27), trata-se de reconhecer que a dialética hegeliana apresenta pioneiramente as “formas gerais do movimento”. Do ponto de vista metodológico, ela precisa, portanto, ser incorporada a uma dialética materialista (que seja, de resto, negativa). Logo, as oposições devem ser esclarecidas pela predominância do momento produtivo em detrimento do momento circulatório. Por isso, a troca de equivalentes qualifica-se como aparência invertida da relação essencial de exploração do trabalho pelo capital, e não o contrário. . Assim, este pressuposto, a compra e venda da força de trabalho, não está apenas de acordo com a premissa geral do pensamento de Pachukanis, vale dizer, o intercâmbio de valores equivalentes como momento de gênese da forma estatal, como está também de acordo com a apresentação marxiana da produção do mais-valor, isto é, a apropriação de trabalho excedente produzido por outrem.

Enfim, à pergunta levada a cabo por Pachukanis, no sentido de saber por que razão a sociedade regida pelo capital apresenta-se como um sociedade jurídica, regulada por um Estado de Direito, ao mesmo tempo em que é conformada como sociedade da exploração e da escravidão assalariada48 48 Ainda no capítulo 21 (A reprodução simples), Marx reitera a aproximação da forma do trabalho assalariado com outras formas de extração coercitiva de mais-trabalho, neste caso, a forma da servidão: “Na realidade, o trabalhador pertence ao capital ainda antes de vender-se ao capitalista. Sua servidão econômica [ökonomische Hörigkeit] é a um só tempo mediada e escondida pela renovação periódica de sua venda de si mesmo, pela mudança de seus patrões individuais e pela oscilação do preço de mercado do trabalho” (MARX, 2013, pp. 652-653; 1962, p. 603). Ressalte-se que Hörigkeit também pode ser traduzida como escravidão . , este artigo responde: porque a produção do mais-valor absoluto, base geral da produção capitalista, cujo encaminhamento inicial se dá por intermédio da compra e venda da força de trabalho, projeta esta relação, o contrato pactuado entre capitalista e trabalhador, como forma jurídica aparente e invertida da relação essencial, que consiste na dominação econômica direta para extração de mais-valor; esta aparência, contudo, por ser real, impede o domínio político imediato de uma classe sobre outra, deslocando tal domínio para uma estrutura aparentemente autônoma, equidistante relativamente às partes e tutora da reprodução infinita dos ciclos de acumulação: o Estado.

CONCLUSÃO

A análise da forma jurídica da compra e venda da força de trabalho tem sido subestimada pela crítica marxista do direito. Acomodou-se ao argumento de que há uma espécie de “separação” entre as esferas da circulação e produção, de modo que o contrato estabelecido entre capitalista e trabalhador, por transferir o comando sobre o trabalho ao primeiro, é suficiente à caracterização da relação jurídica fundada na liberdade e igualdade dos contratantes. Deixa-se de lado, propositalmente ou não, o pressuposto fundamental de que as relações jurídicas são marcadas pelo princípio de equivalência, de modo que a produção do mais-valor absoluto, a partir da incorporação do trabalhador ou trabalhadora ao processo produtivo e do prolongamento da jornada de trabalho, precisa necessariamente negar a relação de equidade inicialmente estabelecida na esfera da circulação.

A apresentação teórica da produção do mais-valor permite compreender que a relação pactuada entre capitalista e trabalhador, marcada pela equivalência da troca entre salário e força de trabalho, interverte-se, isto é, passa em seu oposto, caracterizando-se como relação de dominação para a expropriação econômica. Do ponto de vista de uma dialética materialista, esta interversão é mais bem compreendida como elevação da primeira relação ao status de aparência real, isto é, dado constitutivo da realidade efetiva. Assim, a compra e venda da força de trabalho aparece como relação jurídica equitativa, quando, na realidade concreta, não passa do encaminhamento, aparentemente isonômico e livre, da relação de escravidão econômica49 49 “Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo” (MARX, 2013, p. 829; 1962, p. 787). do trabalhador operada pelo sistema do capital.

A realidade desta aparência jurídica, no entanto, é constitutiva da forma de dominação política que tem lugar na sociedade capitalista. Desse modo, o domínio direto de uma classe social por outra é afastado pela aparência do direito. A consequência é o deslocamento desta dominação a uma estrutura de força mediadora, que é conformada pela lógica de mercado e reproduz os pressupostos desta lógica, aparecendo, ela mesma, como pessoa jurídica abstrata. A mediação aparentemente jurídica do domínio político direto resulta nesta entidade denominada Estado de Direito, autoexplicado e autolegitimado a partir de uma vontade pretensamente comum expressa de modo equidistante e isonômica numa norma jurídica geral e abstrata para a qual se dá o nome de Constituição.

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  • STUTCHKA, Piotr. Direito de classe e revolução socialista. Trad. Emil Von München. 2ª ed. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2001.
  • 1
    Bernard Edelman (2016EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. Trad. Flávio Roberto Batista et al. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 27) captou bem esta situação: "Vendo as coisas mais de perto, não sabemos muito bem como e sob que formas jurídicas precisas se opera a extração de mais-valor. E essa semi-ignorância nos cega para a própria força dessas formas, dessas técnicas, para a sua eficácia concreta e ideológica. Por exemplo, sabemos verdadeiramente em que o contrato de trabalho está ligado ao capital e como o direito de propriedade está ligado ao contrato de trabalho? Não sabemos nada verdadeiramente, afora as banalidades com que nos cumulam: o contrato de trabalho introduz uma ‘falsa’ igualdade entre as partes, a ‘vontade’ do operário é uma ‘ficção’ ... trivialidades com que nos contentamos preguiçosamente por falta de ir ver na prática como as coisas se passam de fato”.
  • 2
    Por expropriação deve-se entender, em princípio, a obtenção de trabalho alheio não pago. Marx utiliza esta noção ao longo do Livro I de O capital, como, por exemplo, no final do capítulo 16: “O capital, portanto, não é apenas comando sobre o trabalho, como diz A. Smith. Ele é, em sua essência, o comando sobre o trabalho não pago [...] O segredo da autovalorização do capital se resolve no fato de que este pode dispor de uma determinada quantidade de trabalho alheio não pago (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 602; 1962, p. 556; grifos meus) Note-se que a essência do capital é dispor de trabalho alheio não pago; sua aparência, no entanto, é o livre intercâmbio de trabalhos equivalentes.
  • 3
    Nesse sentido, a leitura de Márcio Naves: “A relação de exploração capitalista, como lembra Pachukanis, é mediada por uma específica operação jurídica, a forma de um contrato, ao contrário da sociedade feudal, em que a completa sujeição do servo ao senhor feudal, exercida pela coerção direta, não exigia uma ‘formulação jurídica particular’” (NAVES, 2000NAVES, Mário Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000., p. 69). Perceba-se que, à luz de O capital, a operação não é jurídica, mas ostenta a aparência de juridicidade.
  • 4
    O conceito de interversão aplicado à interpretação de O capital é desenvolvido originalmente por Ruy Fausto (2015FAUSTO, Ruy. Sentido da dialética: Marx, lógica e política. Tomo I. Petrópolis (RJ): Vozes, 2015.; 2021). Neste artigo, a proposta é “radicalizada” no sentido dialético, por assim dizer, uma vez que a passagem no oposto ocorre já por ocasião da apresentação da produção do mais-valor absoluto (e não apenas no momento de reprodução do capital, como sustenta Fausto).
  • 5
    A noção de escravidão assalariada é utilizada por Marx em muitas passagens do Livro I, de O capital. No capítulo 21 (A reprodução simples), por exemplo, ele observa: “O escravo romano estava preso por grilhões a seu proprietário; o assalariado o está por fios invisíveis. Sua aparência de independência é mantida pela mudança constante dos patrões individuais e pela fictio juris do contrato” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 648; 1962, p. 599). Note-se que, para Marx, o contrato de trabalho é uma ficção jurídica.
  • 6
    Embora a expressão dialética marxiana possa causar alguma estranheza, é importante ressaltar que as investigações sobre a dialética desenvolvidas pelo próprio Marx, sobretudo em oposição à dialética de Hegel, encontram-se bastante bem exploradas, ao menos na melhor bibliografia. Para ficar em apenas dois exemplos, cite-se Fausto (2021FAUSTO, Ruy. O capital e a lógica de Hegel: dialética marxiana, dialética hegeliana. Trad. Arthur Hussne Bernardo et al. São Paulo: Editora UNESP, 2021.) e Grespan (2019GRESPAN, Jorge Luís da Silva. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019., pp. 281-295).
  • 7
    A constatação de uma dialética própria à obra marxiana, diferente da dialética de Hegel e mesmo oposta a esta, é colocada em evidência pelo próprio Marx no posfácio à segunda edição do Livro I de O capital: “Ao descrever de modo tão acertado meu verdadeiro método, bem como a aplicação pessoal que faço deste último, que outra coisa não fez o autor senão descrever o método dialético? [...] Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 90; 1962, p. 27, passim, grifo meu).
  • 8
    Nesse sentido, Adorno observa: “Quando uma categoria se transforma - por meio da dialética negativa, a categoria da identidade e da totalidade -, a constelação de todas as categorias se altera, e, com isso, uma vez mais cada uma delas. Os conceitos de essência e de aparência são paradigmáticos para isso. Eles provêm da tradição filosófica, são mantidos, mas invertidos na tendência de sua direção” (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009., p. 144).
  • 9
    Uma apresentação didática da teoria de Pachukanis encontra-se em Naves (2000NAVES, Mário Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000.) e Cerroni (1976CERRONI, Umberto. O pensamento jurídico soviético. Trad. Maria de Lurdes Sá Nogueira. Póvoa de Varzim: Publicações Europa-América, 1976., pp. 63-73). Uma leitura não ortodoxa sob o influxo do debate descolonial encontra-se em Pazello (2021PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito insurgente: para uma crítica marxista ao direito. Volume 01. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021., pp. 210-230).
  • 10
    Ingo Elbe, a propósito, anota: “O argumento central de Pachukanis é - e passarei um pouco correndo por isto, mas vocês podem depois formular perguntas e poderei voltar rapidamente a alguns pontos específicos - que da forma mercadoria devém a forma jurídica e, da forma jurídica, a forma estatal” (ELBE, 2019ELBE, Ingo. “Teoria geral do direito e marxismo de Eugen Pachukanis”. In: Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 02, 2019, p. 1554-1582. Disponível em: < https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/42607/29536 > Acesso em: 10/02/2021.
    https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
    , 1962).
  • 11
    Márcio Naves é exceção, pois coloca em destaque esse aspecto do pensamento de Pachukanis (NAVES, 2000NAVES, Mário Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000., pp. 56-63).
  • 12
    As passagens de Marx citadas por Pachukanis estão na Crítica do programa de Gotha.
  • 13
    Em 1875 a cidade de Gotha assistiu à unificação de dois partidos ligados à classe trabalhadora: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, que estava sob a influência de Lassalle, e o Partido Operário Socialdemocrata Alemão, cujos dirigentes eram próximos de Marx. O chamado “Programa de Gotha”, documento que selava a unificação, consolidava de modo predominante as posições defendidas pelo primeiro. Marx, então, houve por bem redigir uma crítica a este programa, em que denunciava a visão ultrapassada adotada pelo novo partido. O documento foi enviado como carta a Wilhelm Bracke e circulou entre os dirigentes marxistas. Foi publicada por Engels em 1891.
  • 14
    Daí o absurdo de se pensar a possibilidade de um direito socialista. Como afirma Marx, mesmo na primeira fase da sociedade comunista (chamada por alguns de socialismo), o direito ainda é burguês. Lênin compreendeu isso com muita naturalidade. Aliás, de acordo com o bolchevique o imediato pós-revolução ainda é marcado pela existência do Estado de Direito: “É uma ‘limitação’, diz Marx, mas é uma limitação inevitável na primeira fase do comunismo, pois, a não ser que se caia na utopia, não se pode pensar que, logo que o capitalismo for derrubado, as pessoas saberão, sem um tipo de Estado de direito, trabalhar para a sociedade; além do mais, a abolição do capitalismo não dá, de uma só vez, as premissas econômicas de uma mudança semelhante. Ora, não há outras normas senão as do ‘direito burguês’. É por isso que subsiste a necessidade de um Estado que, embora conservando a propriedade comum dos meios de produção, mantém a igualdade do trabalho e a igualdade da repartição” (LÊNIN, 2017LÊNIN, Vladímir Ilitch. O Estado e a revolução: a doutrina do marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução. Tradução: Editora Avante! Revisão da tradução: Paula Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 120).
  • 15
    Nesse sentido, Márcio Naves, para quem a concepção de Pachukanis (que associa o direito à mercadoria) é basicamente a concepção do próprio Marx: “Podemos dizer que a concepção de Pachukanis corresponde inteiramente às reflexões que Marx desenvolve, sobretudo nos Grundrisse e em O capital, a propósito do lugar central que ocupa a análise da forma para compreender as relações sociais capitalistas” (NAVES, 2000NAVES, Mário Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000., p. 48, grifo meu em “inteiramente”). Vale lembrar que os Grundrisse foram publicados pela primeira vez em 1939, enquanto Pachukanis faleceu em 1936 ou 1937, o que demonstra a pouca probabilidade de que tenha tido acesso a esta obra de Marx, que, de resto, não é citada em Teoria geral do direito e marxismo.
  • 16
    Como ocorre, por exemplo, em Stutchka (2001STUTCHKA, Piotr. Direito de classe e revolução socialista. Trad. Emil Von München. 2ª ed. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2001., p. 76): “O Direito é um sistema (ou uma ordem) de relações sociais, que corresponde aos interesses da classe dominante e que, por isso, é assegurado pelo seu poder organizado (o Estado)”.
  • 17
    Giannotti destaca a importância desta passagem: “No plano do pensamento meramente abstrato é fácil passar do modo de produção simples de mercadoria (M-D-M-D ...) para o modo de produção capitalista. Basta cortar a sequência e começar pelo dinheiro (D-M-D ...). Mas o processo mudou completamente de sentido. O proprietário de D não é um entesourador, mas alguém que acumula dinheiro para investi-lo em busca de lucro. Sempre tendo um sistema legal a seu lado” (GIANNOTTI, 2013GIANNOTTI, José Arthur. “Considerações sobre o método”. In: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 59-73., p. 69, grifo meu).
  • 18
    Eis a razão por que, ao integrar a produção à análise, a fórmula que expressa a circulação do dinheiro como capital obtém novo formato: D - M ... P ... M’ - D’. Dinheiro (D), mercadoria (M), produção (P), mercadoria acrescida de mais-valor M’) e dinheiro acrescido de mais-valor (D’).
  • 19
    Ressalte-se que, em nenhum momento de Teoria geral do direito e marxismo, Pachukanis traz à baila, como elemento de análise teórica, a circulação do dinheiro como capital (D-M-D’). Pelo contrário, o autor trabalha com fundamento na circulação simples de mercadorias (M-D-M). Esta é uma das razões por que sua apresentação da forma jurídica da compra e venda da força de trabalho permanece em certa medida abstrata e insuficiente. Explorei melhor esse assunto em meu O direito e a mercadoria (CASALINO, 2011CASALINO, Vinícius. O direito e a mercadoria: para a crítica marxista da teoria de Pachukanis. São Paulo: Dobra Editorial, 2011.).
  • 20
    Márcio Naves, por exemplo, recorre ao conceito de sobredeterminação, utilizado por Althusser e de origem sabidamente freudiana, para enfrentar o problema: “É verdade que há, para Pachukanis, uma relação de determinação imediata entre a forma jurídica e a forma da mercadoria, como vimos, mas a determinação em Pachukanis é, a rigor, uma sobredeterminação. A esfera da circulação, que determina diretamente as formas do direito, é por sua vez determinada pela esfera da produção, no sentido preciso de que só o específico processo de organização capitalista do trabalho permite a produção de mercadorias como tais, isto é, como resultado de um trabalho que se limita a ser puro dispêndio de energia laborativa indiferenciada” (NAVES, 2000NAVES, Mário Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000., p. 72). O conceito é problemático, pois abre espaço para uma visão estruturalista da teoria de Pachukanis. A propósito da teoria althusseriana, François Dosse observa: “Essa filosofia estruturalista, que se exorna de todos os adereços da cientificidade para renovar o marxismo ou o freudismo, reforça-se, portanto, com uma ontologização das estruturas, graças ao conceito de causalidade estrutural (...) da leitura sintomatista, passando pela causalidade estrutural ausente em seus efeitos, para culminar num outro instrumento conceitual fundamental do althusserianismo, importado da psicanálise: a sobredeterminação” (DOSSE, 2007DOSSE, François. História do estruturalismo. Volume I. Trad. Álvaro Cabral. Bauru (SP): Edusc, 2007., pp. 396-397, passim).
  • 21
    Um primeiro enfrentamento a este argumento, no sentido que não há secção entre circulação e produção, pode ser encontrado no conhecido escrito de Marx denominado Introdução à crítica da economia política. Nele se lê: “Em primeiro lugar, é claro que a troca de atividades e capacidades que ocorre na própria produção faz diretamente parte da produção e a constitui de maneira essencial. Segundo, o mesmo vale para a troca de produtos, na medida em que é meio para a fabricação do produto acabado destinado ao consumo imediato. Nesse sentido, a própria troca é um ato contido na produção. Terceiro a assim chamada troca realizada por negociantes entre si tanto é totalmente determinada pela produção, no que diz respeito à sua organização, como é ela própria atividade produtiva. A troca só aparece independente ao lado da produção e indiferente em relação a ela no último estágio, no qual o produto é trocado imediatamente para consumo (...) O resultado a que chegamos não é que produção, distribuição, troca e consumo são idênticos, mas que todos eles são membros de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade” (MARX, 2008, p. 53, grifo meu).
  • 22
    A propósito, veja-se Karl Korsch (1969KORSCH, Karl. “En guise d’introduction”. In: PACHUKANIS, E. B. La théorie générale du droit et le marxisme. Trad. Jean-Marie Brohm. Paris (França): EDI, 1969., pp. 09-21).
  • 23
    Nesse sentido, confira-se a excelente descrição de Grespan (2019GRESPAN, Jorge Luís da Silva. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019., pp. 25-37) a propósito das mudanças pelas quais passou o projeto marxiano de uma crítica da economia política desde 1844 até a publicação do Livro I de O capital: “Só ao chegar ao fim da redação dos Grundrisse Marx percebe a necessidade de iniciar não pelo dinheiro, e daí passar ao capital, e sim pela mercadoria ‘primeira categoria em que se apresenta a riqueza burguesa’ (...)” (GRESPAN, 2019GRESPAN, Jorge Luís da Silva. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 27, nota de rodapé nº 07). Ora, por mais trivial que uma mudança como essa possa parecer, ela denota uma alteração significativa no projeto arquitetônico das categorias através das quais Marx exporá sua crítica da economia política da maturidade.
  • 24
    Sobre a Introdução de 1857, Mario Duayer observa: “As categorias descobertas por Marx não aparecem nos dois textos que abrem os Grundrisse, ‘Bastiat e Carey’ e ‘Introdução’ (...) A ‘Introdução’, por seu lado, talvez seja um dos escritos mais discutidos da obra marxiana, apesar de ter sido deixada de lado pelo próprio autor, que o menciona apenas uma vez, e aparentemente ignorado por Engels” (DUAYER, 2011DUAYER, Mario. “Apresentação”. In: MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857/1858. Trad. Mario Duayer et al. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2011, pp. 11-24., p. 18).
  • 25
    É o que ocorre, por exemplo, no prefácio à segunda edição de Teoria geral do direito e marxismo. Ao tratar da propriedade privada, Pachukanis explica: “A propriedade como apropriação é uma consequência natural de qualquer modo de produção; mas apenas no interior de uma determinada formação social a propriedade adquire sua forma lógica mais simples e universal de propriedade privada, na qual é determinada como condição básica de circulação contínua de valores pela fórmula M-D, D-M” (PACHUKANIS, 2013, p. 65; 2003, p. 43).
  • 26
    Anselm Jappe (2006, p. 61) apresenta a questão de modo muito contundente: “Não se exagera muito se se afirmar que a conversão da fórmula M-D-M em D-M-D’ encerra em si toda a essência do capitalismo”.
  • 27
    No capítulo 07 (A taxa do mais-valor) do Livro I de O capital, Marx reitera a aproximação entre trabalho escravo e trabalho assalariado: “O que diferencia as várias formações econômicas da sociedade, por exemplo, a sociedade da escravatura daquela do trabalho assalariado, é apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extraído do produtor imediato, do trabalhador” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 293; 1962, p. 231).
  • 28
    A limitação do tempo de trabalho cedido pelo trabalhador ou trabalhadora ao capitalista é fundamental à estrutura do modo de produção capitalista. Não por outra razão, Hegel insiste nesse ponto (sem ter em mente o problema econômico, evidentemente) quando qualifica o contrato de trabalho como um contrato de locação: “Posso ceder a outrem aquilo que seja produto isolado das capacidades e faculdades particulares de minha atividade corporal e mental ou o emprego delas por um tempo limitado, pois esta limitação confere-lhe uma relação de extrinsecidade com minha totalidade e universalidade. Mas se eu alienasse todo o meu tempo de trabalho e a totalidade de minha produção, daria a outrem a propriedade daquilo que tenho de substancial, de toda a minha atividade e realidade, de minha personalidade (...) Contrato de salário (locatio operae). Alienação do meu trabalho de produção ou da minha prestação de serviço, enquanto alienável, mas por um tempo limitado ou segundo qualquer outra limitação” (HEGEL, 2003HEGEL, G.W.F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. 1ª ed.; 3ª tir. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 65/78, passim).
  • 29
    Sobre o problema da justiça em Marx, passando também pela análise da compra e venda da força de trabalho, confira-se o instigante e já clássico trabalho de Norman Geras (2018GERAS, Norman. “A controvérsia sobre Marx e o conceito de justiça”. In: Revista Direito & Praxis, Rio de Janeiro, vol. 09, nº 1, 2018, pp. 504-562. Disponível em: < https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/33017/23462 > Acesso em: 05/03/2021.
    https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
    , pp. 504-562). Também sobre o tema, mas sob uma perspectiva distinta, veja-se Sartori (2017SARTORI, Vitor Bartoletti. “Apontamentos sobre a justiça em Marx”. In: NOMOS, Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito - UFC, Fortaleza (CE), vol. 37, nº 01 (2017): jan./jun. 2017, pp. 321-353. Disponível em: < http://www.periodicos.ufc.br/nomos/article/view/3056/30837 > Acesso em: 05/03/2021.
    http://www.periodicos.ufc.br/nomos/artic...
    , pp. 321-353).
  • 30
    Na Enciclopédia das ciências filosóficas, Hegel (1995HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Trad. Paulos Meneses e José Machado. São Paulo: Loyola, 1995., p. 253) observa: “Quando há oposição entre a forma e o conteúdo, é essencial sustentar que o conteúdo não é carente-de-forma, mas que tanto tem a forma nele mesmo, como a forma lhe é algo exterior. Dá-se a duplicação da forma, que uma vez, como refletida-sobre-si, é o conteúdo; e outra vez, como não-refletida sobre si, é a existência exterior, indiferente ao conteúdo. Em si, está aqui presente a relação absoluta do conteúdo e da forma, a saber, o mudar deles um no outro, de modo que o conteúdo não é senão o mudar da forma em conteúdo, e a forma não é senão o mudar do conteúdo em forma. Esse mudar é uma das determinações mais importantes. Mas, posto, ele só o é na relação absoluta”.
  • 31
    Evidentemente, é preciso compreender essa “ultrapassagem” em termos dialéticos, isto é, como algo que é superado, mas, ao mesmo tempo, conservado. Sobre o assunto, Hegel (1995HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Trad. Paulos Meneses e José Machado. São Paulo: Loyola, 1995., p. 223) explica: “Ainda a esse propósito, só resta notar que aquilo que passou nem por isso é negado abstratamente, mas apenas suprassumido; e por isso, ao mesmo tempo, conservado”. Nesse sentido, se o prolongamento da jornada de trabalho por um período de tempo que supera o valor da força de trabalho consiste na troca de valor por mais-valor, nem por isso aquela aparência de equivalência contratual é destruída. É por isso que, aparentemente, o trabalhador ou trabalhadora mantém sua liberdade quando, por livre e espontânea vontade, pede demissão do emprego. Esta aparência de liberdade desvanece, no entanto, a partir do momento em que o empregado ou empregada têm, obrigatoriamente, de ligar-se a outro capital. Eis o mecanismo econômico-coercitivo por intermédio do qual trabalhadores e trabalhadoras são obrigados (ausente, portanto, qualquer espécie de liberdade essencial) a vender sua força de trabalho no mercado.
  • 32
    A propósito, Grespan observa: “A distinção categorial entre a ‘diversidade’ e a ‘oposição’ é sabidamente um ponto-chave da lógica hegeliana; no texto de Marx ela comparece para definir o vínculo das partes como de recíproca determinação e negação. Ou seja, mais do que distintas, as duas partes o são uma para a outra, uma pela outra” (GRESPAN, 2019GRESPAN, Jorge Luís da Silva. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 67).
  • 33
    Grespan descreve com perfeição esse movimento: “Para Marx, a oposição entre igualdade jurídica e desigualdade social é dialética. Elas não são esferas alternativas nem ocorrem ao mesmo tempo, apesar uma da outra, e sim por causa uma da outra (...) A desigualdade social se opõe à igualdade do contrato, mas a determina; por seu turno, essa igualdade se opõe à desigualdade social, mas a alimenta (...) O reforço da igualdade na esfera da circulação esconde seu contrário, o reforço da desigualdade na esfera da produção” (GRESPAN, 2019GRESPAN, Jorge Luís da Silva. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 83, passim).
  • 34
    Como se sabe, no capítulo 22, do Livro I, de O capital (Transformação de mais-valor em capital), Marx apresenta o modo como ocorre a conversão das leis de propriedade que regem a produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista. Esta conversão se opera pela inversão da lei de apropriação fundada no próprio trabalho, que passa à lei de apropriação do trabalho alheio, sem, no entanto, violar o primeiro paradigma.
  • 35
    O que se sustenta neste artigo é que esta conversão dialética pode ser pensada já por ocasião do capítulo 05. Portanto, ela seria apenas explicitada por Marx no capítulo 22, no momento em que trata da lei de propriedade. Seu sentido inicial, contudo, remete à exposição da produção do mais-valor absoluto, pois é neste momento que ocorre a apropriação do mais-trabalho alheio, ainda que permaneça imperceptível. Trata-se de uma leitura que diverge sensivelmente daquela que é sustentada por Ruy Fausto, que sugere que a interversão ocorre apenas no momento da reprodução do capital: “Assim, encontramos a interversão da propriedade - ou antes, da lei da propriedade fundada no trabalho - e da liberdade nos seus contrários, expressa na própria construção de O capital. A interversão se opera na passagem da perspectiva descontinuísta das primeiras seções à perspectiva continuísta da acumulação. A teoria de Marx acolhe a interversão na sua própria construção; o discurso de Marx se deixa ‘arrastar’ pela interversão, é atravessado por ela” (FAUSTO, 2015FAUSTO, Ruy. Sentido da dialética: Marx, lógica e política. Tomo I. Petrópolis (RJ): Vozes, 2015., p. 81).
  • 36
    Marx passa por essa questão no início do item 02, do capítulo 03, do Livro I de O capital, ao apresentar a metamorfose das mercadorias: “Vimos que o processo de troca das mercadorias inclui relações contraditórias e mutuamente excludentes. O desenvolvimento da mercadoria não elimina essas contradições, porém cria a forma em que elas podem ser mover. Esse é, em geral, o método com que se solucionam contradições reais” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 178; 1962, p. 118).
  • 37
    Ressalte-se que Ruy Fausto considerou o problema da “interversão antecipada”, por assim dizer, apresentando-o nos seguintes termos: “Observemos que esse questionamento não estava dado no momento em que foi introduzida a ideia de mais-valia. Pelo contrário, a mais-valia era considerada como sendo resultado normal de uma troca” (FAUTO, 2021, p. 33, nota de rodapé nº 11). Nada obstante, no momento em que refina a sua hipótese, fiel ao método dialético, observa: “Essa leitura passa a valer retrospectivamente, também para a primeira mais-valia consumida, o primeiro elo da cadeia (quando se descobre que o sentido do processo é o de sucessivas punções sobre o capital original, não há por que eximir disso o primeiro gasto [...]” (FAUSTO, 2021FAUSTO, Ruy. O capital e a lógica de Hegel: dialética marxiana, dialética hegeliana. Trad. Arthur Hussne Bernardo et al. São Paulo: Editora UNESP, 2021., p. 35, grifo meu). E, numa nota de rodapé, registra: “De certo modo, independentemente mesmo do problema da liberdade do contrato. Aliás, a descoberta do caráter forçado do segundo contrato (e seguintes) introduz a continuidade do processo (e a comparação entre os gastos sucessivos) e é essa continuidade que leva a pensar que se trata de diferentes punções sobre o capital original. Estabelecida a continuidade, e a mensuração dos gastos, a questão da liberdade não é mais uma condição necessária. Passa-se a um registro quantitativo, a um cálculo, e não há razões maiores para excluir dele o gasto com a primeira mais-valia” (FAUSTO, 2021, pp. 35-36, nota de rodapé nº 13, grifo meu).
  • 38
    Apoio-me no trecho final da seguinte passagem de Marx: “Ora, embora esta não seja mais do que a repetição do processo de produção na mesma escala, esta mera repetição ou continuidade imprime ao processo certas características novas, ou, antes, dissolve as características aparentes que ele ostentava quando transcorria de maneira isolada” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 642; 1962, p. 592, passim, grifo meu).
  • 39
    Sobre a aparência invertida das relações sociais, Marx observa: “Na expressão ‘valor do trabalho’, o conceito de valor não só se apagou por completo, mas converteu-se em seu contrário. É uma expressão imaginária, como valor da terra. Essas expressões imaginárias surgem, no entanto, das próprias relações de produção. São categorias para as formas em que se manifestam relações essenciais. Que em sua manifestação as coisas frequentemente se apresentam invertidas é algo conhecido em quase todas as ciências, menos na economia política” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 607; 1962, p. 559, grifo meu).
  • 40
    Nesse sentido, Adorno observa: “Essa essência também precisa aparecer exatamente como a hegeliana: mascarada em sua própria contradição. A essência não pode ser reconhecida senão junto à contradição do ente em relação àquilo que ele afirma ser. Com certeza, em face dos pretensos fatos, ela é conceitual e não imediata” (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009., p. 144).
  • 41
    É o que Karel Kosik denomina de pseudoconcreticidade: “No mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece” (KOSIK, 2002KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 7ª ed. Trad. de Célia Neves e Alderico Toríbio. São Paulo: Paz e Terra, 2002., p. 16). Esse “desaparecer” deve ser interpretado de modo rigoroso, o que significa que o ponto de vista da imediatez não capta qualquer relação entre o fenômeno e uma eventual totalidade que lhe confira o status de aparência. O fenômeno aparece isoladamente, apresentando-se como se fosse a própria essência.
  • 42
    Daí se compreende o culto ingênuo do chamado “direito do trabalho”, ou, o que é ainda pior, a falta de substância teórica daqueles que sustentam a possibilidade de uma “Justiça do Trabalho” democrática ou emancipatória. De fato, as próprias expressões são contradições nos termos, pois nem o direito pode ser “do trabalho”, nem a justiça pode ser “do trabalho”, ao menos sob o modo de produção capitalista. Em ambos os casos o que se tem são estruturas de dominação e comando do capital sobre a classe trabalhadora, portanto, mecanismos de dominação através do quais se assegura a extração do mais-valor.
  • 43
    É importante registrar que, nos limites deste artigo, o problema da dedução lógica do Estado a partir de O capital pode apenas ser encaminhado. Neste momento da apresentação marxiana ainda não há elementos suficientes para o aprofundamento da questão. Apenas para dar um exemplo, a exposição da forma do Estado depende, antes, da apresentação das classes sociais, o que Marx fará apenas a partir do capítulo 06, do Livro I. Trata-se, pois, tão somente de indicar caminhos possíveis para uma futura pesquisa.
  • 44
    Um desenvolvimento teórico do problema do Estado à luz da obra de Pachukanis e sob o influxo da teoria da derivação encontra-se em Mascaro (2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.).
  • 45
    Esse ponto de vista dialoga com Fausto (1987FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política (investigações para a reconstituição do sentido da dialética) Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987., pp. 287-329), que também parte de Pachukanis. A discordância fundamental, no entanto, consiste em que, para Fausto, a lei posta pelo Estado não passa da própria relação jurídica que dá forma à relação econômica de intercâmbio mercantil: “Da relação jurídica diretamente ligada à relação econômica se passa a que precisamente? Se passa ao direito. A passagem vai assim do direito ao Direito. Se vai do direito, isto é, da relação enquanto relação interior à sociedade civil e independente do Estado ao direito ‘legalizado’ pelo Estado. Como pensar o sentido desta passagem? Ainda uma vez, e aqui de maneira inteiramente rigorosa, a passagem só pode ser pensada em termos de posição. O Estado põe o direito - que até aqui era uma relação jurídica interior à sociedade civil - enquanto direito que emana do Estado. A relação jurídica ligada à relação econômica pressupõe a lei, mas não a põe. A lei enquanto lei é posta pelo Estado. O direito se torna direito positivo” (FAUSTO, 1987FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política (investigações para a reconstituição do sentido da dialética) Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987., p. 297). Fausto propõe uma passagem linear da relação jurídica que caracteriza a esfera da circulação para a norma posta pelo Estado. Que a lei estatal reflete o acordo comum de vontades que marca a troca de mercadorias, quanto a isso não há dúvida. O problema consiste em sustentar que a regra estatal tem a mesma natureza da regra contratual. A hipótese que se sustenta neste artigo sugere o contrário, pois a relação jurídica de fundo a partir da qual a norma estatal se eleva como estrutura de comando político global é a compra e venda da força de trabalho, e não o intercâmbio simples de mercadorias. Assim, embora pareça refletir a forma jurídica descrita no capítulo 02, do Livro I, de O capital, a lei estatal assegura e é conformada pela forma jurídica apresentada no capítulo 05, reproduzindo aquela interversão. É neste sentido - que ainda precisa ser desenvolvido - que se entende que a posição do “direito” pelo Estado é mais bem explicada pela categoria da interversão e não pela posição, como sugere Fausto.
  • 46
    Há que se ressaltar, uma vez mais, as dificuldades teóricas da dedução da forma do Estado a partir de O capital. Como antecipado (ver nota de rodapé nº 41), Marx não avançou na apresentação categorial da forma estatal. Não houve tempo. Vale lembrar que o Livro III termina com o início da apresentação das classes sociais, o que é um pressuposto à análise do Estado. Nada obstante, parece que as poucas passagens que existem na obra marxiana de maturidade são muito mais ricas e interessantes à reflexão sobre os problemas do Estado do que muitos extensos trabalhos, inclusive situados no interior do paradigma marxista. Por isso, esta opção metodológica, certamente inconveniente do ponto de vista dialético, por este “salto” ao Livro III, em que Marx registra características importantes da forma estatal. De resto, sigo as orientações de Ruy Fausto sobre o assunto: “A apresentação de O capital não põe o Estado, mais do que isto, não temos nem mesmo o início de uma apresentação do Estado como ocorre para as classes. E, entretanto, as categorias de O capital contêm implicitamente, isto é, pressupõem, (no sentido de que o posto se opõe ao pressuposto como o explícito ao implícito, qualquer que seja o lugar deste último na ordem da apresentação) uma teoria do Estado. Com efeito, se pode ‘tirar’, da apresentação de O capital - não das ‘ideias’ de O capital - uma teoria do Estado” (FAUSTO, 1987FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política (investigações para a reconstituição do sentido da dialética) Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987., pp. 287-288).
  • 47
    Insista-se, uma vez mais, na importância das categorias dialéticas para a sustentação da hipótese deste artigo (ver nota de rodapé nº 29). Ora, afirmar que a compra e venda da força é trabalho é e não é, ao mesmo tempo, uma relação jurídica, é uma contradição. Sem dúvida, pois a contradição é o impulso dialético por excelência. Fixar a atenção em apenas um dos aspectos da oposição (equivalência do primeiro momento ou extorsão do segundo) é justamente o caminho da abstração vazia não científica. Nesse sentido, Hegel anota: “Quando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradição - e por toda a parte, não há absolutamente nada em que não possa e não deva ser mostrada a contradição, isto é, determinações opostas: o abstrair do entendimento é o fixar-se à força em uma só determinidade, é um esforço de obscurecer e de afastar a consciência da outra determinidade - quando pois tal contradição é reconhecida, costuma-se fazer a conclusão: ‘Logo, este objeto é nada’” (HEGEL, 1995HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Trad. Paulos Meneses e José Machado. São Paulo: Loyola, 1995., p. 185). Como afirma Marx (2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 91; 1962, p. 27), trata-se de reconhecer que a dialética hegeliana apresenta pioneiramente as “formas gerais do movimento”. Do ponto de vista metodológico, ela precisa, portanto, ser incorporada a uma dialética materialista (que seja, de resto, negativa). Logo, as oposições devem ser esclarecidas pela predominância do momento produtivo em detrimento do momento circulatório. Por isso, a troca de equivalentes qualifica-se como aparência invertida da relação essencial de exploração do trabalho pelo capital, e não o contrário.
  • 48
    Ainda no capítulo 21 (A reprodução simples), Marx reitera a aproximação da forma do trabalho assalariado com outras formas de extração coercitiva de mais-trabalho, neste caso, a forma da servidão: “Na realidade, o trabalhador pertence ao capital ainda antes de vender-se ao capitalista. Sua servidão econômica [ökonomische Hörigkeit] é a um só tempo mediada e escondida pela renovação periódica de sua venda de si mesmo, pela mudança de seus patrões individuais e pela oscilação do preço de mercado do trabalho” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., pp. 652-653; 1962, p. 603). Ressalte-se que Hörigkeit também pode ser traduzida como escravidão .
  • 49
    “Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 829; 1962, p. 787).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2021
  • Aceito
    03 Mar 2022
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