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Dupla equidade em sentenças do Vice-Reinado do Prata no final do século XVIII

Double equity in court decisions in the Plata Viceroyalty during the late eighteenth century

Resumo

A finalidade deste artigo é a de discutir o tema da motivação das sentenças judiciais no Vice-reinado do Prata no século XVIII. Procurar-se-á estabelecer uma discussão com o debate historiográfico atual e, depois, analisar os fundamentos filosóficos das sentenças, mostrando como em muitas delas recorria-se à dupla equidade.

Palavras-chave:
motivação de sentenças; Vice-reinado do Prata; dupla equidade

Abstract

The purpose of this article is to discuss the issue of motivation of court decisions in the Plata Viceroyalty during the eighteenth century. We aim to establish a discussion with the current historiographical debate and then to analyze the philosophical basis of court decisions, showing that in many of them it was common to resort to double equity.

Keywords:
court decisions motivation; Viceroyalty of Plata; double equity

Introdução

A prática de não fundamentar as sentenças judiciais na Europa é um tema que se encontra dentro de um debate historiográfico com duas visões opostas: por um lado, há historiadores que defendem a ideia de que, à medida que durante a Idade Média foram sendo substituídas as formas mais elementares de juízo pela atividade de juízes que eram delegados pelo Rei para administrar a justiça, resultou ser muito natural que, nas suas resoluções, não explicassem os motivos que as justificavam. Entendia-se que justificar as sentenças, além de provocar intermináveis discussões que poderiam afetar a estabilidade das sentenças, também retiraria a força majestática daquilo que fosse decidido.

Dentro desse contexto, o juiz deveria aparecer como uma figura distante, caso procurasse que as suas resoluções fossem respeitadas1 1 Um resumo destes motivos em Accatino, “La Fundamentación de las sentencias”, p. 9-10. Aqui acrescentamos alguns motivos não indicados pela autora. . Por outro lado, os advogados, sim apresentavam motivos nas suas alegações, de maneira que, na medida em que os juízes aceitavam os argumentos de um dos litigantes, poderiam deduzir-se os motivos que o inclinaram a sentenciar de uma forma ou de outra.

Além disso, quando se tratava de tribunais colegiados, a falta de explicações reforçava a ideia de unanimidade na decisão, uma das características mais apreciadas na fase decisória, até porque poderia acontecer que a decisão fosse correta, mas não os motivos que a fundamentavam, fato que poderia provocar a dúvida dos litigantes e dos súditos2 2 Para este argumento, de Juan Álvarez Posadilla, ver Levaggi, La fundamentación de las sentencias en el Derecho Indiano, p. 49. . Por último, não há dúvidas de que este modo de proceder era muito mais rápido, facilitando, como se recomendava nas leis, uma prestação de justiça que evitasse demoras desnecessárias.

Por outro lado, há também historiadores, embora em menor número, que consideram que a ideia de uma prática comum de não motivar as sentenças parte de uma hipótese falsa e que, de fato, quando se consultam os inumeráveis processos judiciais, tanto na Península quanto na América, podem ser encontradas sentenças que claramente estão motivadas.

Do ponto de vista histórico, um dos autores que mais estudaram esta questão pode dar-nos a chave do problema. Eduardo Martiré, no seu livro sobre a administração da justiça na América espanhola, ao tratar na sua Segunda Parte sobre “O estilo castelhano-indiano de não motivar as sentenças”, faz referência a uma Lei de Las Partidasque foi observada pacificamente em Castela e se estendeu até América” (MARTIRÉ, 2009MARTIRÉ, Eduardo. Las Audiencias y la administración de justicia en las Indias. Del iudex perfectus al iudex solutus. Buenos Aires: Librería Histórica, 2009.: 69). Essa mesma lei permitia aos juízes decidir diretamente, sem necessidade de fundamentar suas sentenças, de maneira que suas decisões se realizavam dentro “da consciência do juiz, mundo fechado onde ninguém tinha acesso” (MARILUZ URQUIJO, 1976MARILUZ URQUIJO, José María. “La acción de sentenciar a través de los apuntes de Benito de La Mata Linares”. Revista de Historia del Derecho, Buenos Aires, n. 4, 1976, pp. 141-160.: 141).

De fato, como informa Martiré, na Espanha, a práxis judicial foi diferente em Castela e em Aragão: na primeira, tendia-se a não motivar as sentenças, enquanto que em Aragão, sim, o que naturalmente induz a certa confusão. Contudo, a partir da Real Cédula de Carlos III, de 23 de junho de 1768, unificou-se o mesmo procedimento, de Castela, para todo o Reino. Nessa Cédula determinava-se que as sentenças não fossem motivadas para evitar demoras, perdas de dinheiro e dilações inúteis (MARTIRÉ, 2009MARTIRÉ, Eduardo. Las Audiencias y la administración de justicia en las Indias. Del iudex perfectus al iudex solutus. Buenos Aires: Librería Histórica, 2009.: 72). Dessa forma, o texto da Real Cédula indicava que:

Para evitar os prejuízos que resultam com a prática que observa a Audiência de Mallorca de motivar as sentenças, dando lugar a disquisições dos litigantes, consumindo muito tempo na extensão das sentenças, que acabam sendo um resumo do processo, e as custas que resultam para as partes: manda S.M. cesse essa prática de motivar suas sentenças, atendo-se às palavras decisórias, como se observa no Conselho, e na maior parte dos Tribunais do Reyno; e que, a exemplo do que vai prevenido para a Audiência de Mallorca, os Tribunais Ordinários, inclusive os privilegiados, deixem de motivar as sentenças como até agora, com os vistos e atentos, referidos nos autos, e os fundamentos alegados pelas partes, derrogando, como nesta parte se derroga, o auto acordado 22 tit. 2 liv. 3. dúvida 1 ou outra qualquer Real resolução ou estilo que houver em contrário (SÁNCHEZ, 1803SÁNCHEZ, Santos. Colección de Pragmáticas, Cédulas, Provisiones, Autos Acordados y otras providencias generales expedidas por el Consejo Real en el Reynado del Señor Don Carlos III. 3ª Ed. Madrid: Imprenta de la viúda e hijo de Marin, 1803.: 113).

Dessa forma, conclui Martiré, “fica consagrada na América, sendo assim na Península, a não motivação dos altos tribunais indianos” (MARTIRÉ, 2009MARTIRÉ, Eduardo. Las Audiencias y la administración de justicia en las Indias. Del iudex perfectus al iudex solutus. Buenos Aires: Librería Histórica, 2009.: 72) (na realidade, no texto não se distingue entre tribunais altos e inferiores, de maneira que afeta a todo tipo de tribunais, que foram atingidos pela proibição dirigida diretamente à Audiência de Mallorca, da Coroa de Aragão).

Contudo, quando se estudam os arquivos da época, é possível constatar que, a pesar da opinião dominante na historiografia e da proibição legal de Carlos III, há casos, se bem que isolados, em que os juízes, sim fundamentam as suas sentenças.

Nas páginas a seguir veremos (I) o debate historiográfico em torno à fundamentação das sentenças; (II) seis casos, cujos expedientes datam do período entre 1776-1793, isto é, posteriores à Real Cédula de 1768 (quatro desses casos tiveram lugar em Buenos Aires, um em Córdoba e outro em Luján); depois (III) faremos algumas comparações entre eles, tentando mostrar os motivos que levaram esses juízes a afastarem-se do estabelecido pela legislação que proibia a fundamentação das sentenças, e mostraremos as fontes filosóficas dessa atitude, para terminar (IV) mostrando que nesses casos encontramo-nos diante de um procedimento intelectual que qualificamos como “dupla equidade”. Os documentos podem ser encontrados no “Archivo General de la Nación” (AGN), em Buenos Aires.

I. O debate historiográfico em torno aos motivos das sentenças

Num livro de 2011, La motivación de las resoluciones judiciales, Aliste Santos, no item intitulado “Juízo crítico sobre a tese que proclama a inexistência da obrigação de motivar resoluções judiciais em Castela” indica o que poderíamos denominar de chaves para a compreensão de todo este debate. Diz o autor: “Existe uma tese geralmente aceita pela maioria dos autores que escreveram sobre este tema, que vincula o nascimento da obrigação de motivar as resoluções judiciais no marco do iusnaturalismo racionalista de finais do século XVIII” (ALISTE, 2011ALISTE SANTOS, Tomás-Javier. La motivación de las resoluciones judiciales. Madrid: Marcial Pons, 2011.: 88). E aponta como um dos responsáveis pela difusão dessa tese a influência do professor e jurista italiano Michele Taruffo, conhecido historiador do Direito, principalmente do processual, que estabeleceu como hipótese o nascimento da obrigação de fundamentar as sentenças no pensamento ilustrado do século XVIII (ALISTE, 2011ALISTE SANTOS, Tomás-Javier. La motivación de las resoluciones judiciales. Madrid: Marcial Pons, 2011.: 88).

Nessa mesma chave, num artigo ainda mais recente (2013) Ortego Gil corrobora que “a historiografia deixou de lado as sentenças de Castela por essa aparente falta de motivação” (ORTEGO, 2013ORTEGO GIL, Pedro. “Sentencias criminales en Castilla: entre jueces y abogados”. Clío & Crimen. Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, n. 10, 2013, pp. 359-372.: 361). Ortego, à hora de dar uma explicação para esses desentendimentos, nos diz que, embora pareça não existir uma explicação única, provavelmente terá a ver com o fato de “partir de critérios que são próprios da etapa codificadora” (ORTEGO, 2013ORTEGO GIL, Pedro. “Sentencias criminales en Castilla: entre jueces y abogados”. Clío & Crimen. Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, n. 10, 2013, pp. 359-372.: 361).

Nesse mesmo artigo, o autor citava García-Gallo e Tomás y Valiente como exemplos de historiadores que defendiam a hipótese da não motivação das sentenças. O primeiro, com uma extensa e profunda bibliografia, principalmente entre os anos 1940 e 1960, fazia ver que essa prática de não fundamentar as sentenças dificultava ou impedia entender quais seriam os motivos que levavam a uma determinada sentença (ORTEGO, 2013ORTEGO GIL, Pedro. “Sentencias criminales en Castilla: entre jueces y abogados”. Clío & Crimen. Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, n. 10, 2013, pp. 359-372.: 361). A afirmação desse estudioso recolhe, certamente, um fato evidente: se não forem indicados os motivos, dificilmente poderemos conhecê-los.

Por outro lado, o historiador Francisco Tomás y Valiente, também com uma importante bibliografia entre os anos 70 e 80 do século passado, apontava igualmente na mesma direção, afirmando que as sentenças não passavam de simples declarações de vontade, carentes de justificação, o qual, na sua opinião, permitia comprovar a arbitrariedade judicial da época (TOMÁS Y VALIENTE, 1969TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. El derecho penal de la Monarquía absoluta (siglos XVI-XVII-XVIII). Madrid: Ed. Tecnos, 1969.: 182).

Teríamos de acrescentar ainda uma figura muito influente na área da história do direito indiano, já citado acima, José María Mariluz Urquijo, quem era explícito ao explicar que as sentenças ficavam fechadas na consciência do juiz, sem que ninguém pudesse conhecer seus motivos:

Las Partidas, máximo expoente da recepção do universo jurídico romano canônico em Castela, aludem expressamente ao delicado processo de informação e reflexão que precede ao momento de sentenciar. O juiz deve catar, esquadrinhar e saber a verdade do fato e conforme a fórmula de sentença inserida na Part. III, tít. 18, lei 109, deve deixar constância nela de que ouviu as razões alegadas pelas partes, examinou as testemunhas apresentadas e tomou conselho de ‘homens bons e conhecedores do direito’. Mas essa intervenção dos expertos em direito ou a exigência de que a sentença não seja contra a lei não significa que devam ser mencionados explicitamente os fundamentos legais em que se baseia a sentença ou o raciocínio seguido pelo juiz para chegar à decisão final. (MARILUZ, 1976: 141).

Em resumo, “a obrigação de ajustar-se ao direito não implica a de explicitar os motivos de uma sentença” que é forjada na consciência do juiz, reduto inacessível ao resto dos mortais (MARILUZ, 1976: 141). Desta forma, concluía o autor, a partir desse entendimento passou-se a “rodear de secreto os motivos” (MARILUZ, 1976: 141) das sentenças, conforma se indica no capítulo II das Ordenanças de Audiência, de 1563, que prescrevia:

Que os presidentes das Reais Audiências das Índias devem levar um livro, que jurarão manter em segredo, no qual serão assentados brevemente os votos próprios e os dos ouvidores em todos aqueles pleitos que superarem certa quantidade. E a Recopilación de 1680, recolhendo essas e outras novas disposições das Ordenanças de 1596, estabelecem na Lei 156, tít. 15, Liv. II, que nesse livro secreto não devem ser consignadas ‘causas nem razões quaisquer das que moveram ou persuadiram os juízes à determinação’ (MARTIRÉ, 1976: 142).

Da mesma forma, Carlos Garriga, professor da Universidade do País Vasco e um dos historiadores que mais se dedicaram a este tema, retoma a metáfora do “fechamento na consciência” de Mariluz Urquijo, e diz que:

Como a incerteza desaconselhava a motivação das sentenças e, como consequência, a justiça não aparecia motivada na decisão judicial, mas que permanecia fechada na consciência do juiz, a única garantia de justiça possível era uma certeza moral que dependia completamente do comportamento justo exteriorizado pelo juiz (GARRIGA, 2002GARRIGA ACOSTA, Carlos. “Los límites del reformismo borbónico: a propósito de la administración de la justicia en Indias”. In BARRIOS PINTADO, Feliciano (Ed). Derecho y administración pública en las Indias hispánicas: Actas del XII Congreso internacional de Historia del Derecho indiano. Cuenca: Cortes de Castilla-La Mancha/Universidad de Castilla-La Mancha, 2002, pp. 781-822.: 791).

Contrastando com as posições anteriores, tanto Aliste quanto Ortego destacam os trabalhos do historiador argentino Abelardo Levaggi como um dos primeiros e mais importantes em apontar para a direção contrária, entendendo que a ideia de que os juízes não fundamentavam suas sentenças partia de uma confusão historiográfica, que poderia ser explicada pelo fato de não existir, entre os historiadores, uma percepção do hiato que se dá entre um direito próprio do século XIX, de cunho “racionalista liberal”, que exigia dos juízes que fundamentassem legalmente suas sentenças, e outro direito anterior, “adjetivado de absolutista, para o qual as sentenças não precisavam contar com fundamentos e, inclusive, deviam carecer deles” (LEVAGGI, 1978LEVAGGI, Abelardo. “La fundamentación de las sentencias en el Derecho Indiano”. Revista de Historia del Derecho, Buenos Aires, n. 6, 1978, pp. 45-73.: 42).

Levaggi explica como, a partir de Las Partidas, a ideia de sentenciar – e de motivar as decisões – estava muito mais vinculada a uma tradição “mais moral do que científico-jurídica” (LEVAGGI, 1978LEVAGGI, Abelardo. “La fundamentación de las sentencias en el Derecho Indiano”. Revista de Historia del Derecho, Buenos Aires, n. 6, 1978, pp. 45-73.: 48). Essa tradição determinava que os juízes “fossem leais, e sem má cobiça. E que tenham sabedoria para julgar as causas pelo seu conhecimento de forma direta ou pelo uso de um longo tempo. E que principalmente temam a Deus e a quem lá os colocou” (LAVAGGI, 1978: 48). E a continuação, traz no seu artigo um bom número de exemplos de sentenças recolhidas na Real Audiência de Buenos Aires, durante o século XVIII, que efetivamente mostram motivos e fundamentos. Contudo, e nos parece extremamente importante dar especial destaque a este ponto, trata-se de motivos principalmente morais, de senso comum e de prudência, que não seriam incluídos naquilo que hoje chamaríamos de “motivos legais”.

De fato, quando se observa o corpo documental de muitos processos, chega-se à conclusão de que os juízes inferiores, sim motivavam em alguns casos as suas sentenças, embora esses motivos fossem muito mais jurídicos do que estritamente legais. Com efeito, vistos a partir de uma perspectiva legalista e contemporânea, chama a atenção a pouca ou nenhuma referência que normalmente se faz aos diferentes ordenamentos legais (Direito canônico, Reais Cédulas, Recopilación, etc); contudo isso não significa que essas sentenças fossem imotivadas, pelo contrário. Os motivos eram, como dissemos, jurídicos, embora não legais. Estavam baseados tanto na teologia moral como na tradição jurídica clássica e medieval, e, portanto, faziam referência à prudência, à clemência, à equidade e benignidade ou, em outras palavras, atendiam ao bom senso do homem prudente (que era como se entendia que deveria ser o juiz) e não tanto ao determinado por uma lei, uma cédula ou uma provisão régia.

É também Ortego quem destaca um artigo de Garriga que procura explicar como durante os séculos XVI e XVII coexistiram na Espanha duas modalidades diferentes de justiça em cada uma das suas Coroas, Castela e Aragão; por isso

Enquanto que na Coroa de Castela, a partir do momento em que temos notícias da sua atuação, os tribunais tam Supremis quam infimis sententiae proferunt absque motivo, rationes vel causa3 3 “Tanto os Supremos quanto os inferiores davam sentenças sem <indicar> motivos, razões ou causa”. [sic] -como constatava Matheu y Sanz no final do século XVII – os reinos da Coroa de Aragão viram como ao longo do século XVI era imposta aos seus juízes a obrigação de motivar as sentenças que proferiam (GARRIGA e LORENTE, 1997GARRIGA ACOSTA, Carlos; LORENTE SARIÑENA, Marta María. “El juez y la Ley: La motivación de las sentencias (Castilla, 1489-España, 1855). Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, Madrid, n. 1, 1997, pp. 97-144.: 101).

Nesse sentido, Garriga opinava que podia tratar-se mais de uma questão de estilo do que de uma proibição legal; por isso, poderia haver sentenças motivadas (mais provavelmente na América do que em Castela) (GARRIGA e LORENTE, 1997GARRIGA ACOSTA, Carlos; LORENTE SARIÑENA, Marta María. “El juez y la Ley: La motivación de las sentencias (Castilla, 1489-España, 1855). Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, Madrid, n. 1, 1997, pp. 97-144.: 102), contudo considerava que a regra geral, derivada da tradição clássica conhecida como “direito comum” era a de não motivar as sentenças (GARRIGA e LORENTE, 1997GARRIGA ACOSTA, Carlos; LORENTE SARIÑENA, Marta María. “El juez y la Ley: La motivación de las sentencias (Castilla, 1489-España, 1855). Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, Madrid, n. 1, 1997, pp. 97-144.: 105).

Porém, voltando à obra de Aliste Santos, o nó górdio deste emaranhado novelo de interpretações talvez possa ser resolvido se a questão for reduzida “a sabermos se as resoluções judiciais do ‘ius commune’ em Castela eram proferidas conforme à arbitrariedade absoluta dos juízes ou não” (ALISTE, 2011ALISTE SANTOS, Tomás-Javier. La motivación de las resoluciones judiciales. Madrid: Marcial Pons, 2011.: 95). O autor é enfático, contrariando a Garriga e seguindo a opinião de Filippo Ranieri, ao declarar que se deve rejeitar a opinião estendida entre os historiadores de que “as sentenças durante a época do Direito comum não eram motivadas, generalizando-se entre os juristas contemporâneos a crença de que as mesmas eram resultado da mais absoluta arbitrariedade judicial” (ALISTE, 2011ALISTE SANTOS, Tomás-Javier. La motivación de las resoluciones judiciales. Madrid: Marcial Pons, 2011.: 95). Em sua opinião, a motivação

Acompanharia os argumentos que fossem expostos pelas partes fundamentando as suas pretensões, de maneira que a decisão judicial condenando ou absolvendo não seria muda ou sem motivos, e muito menos ainda arbitrária, mas que, implicitamente, acolheria total ou parcialmente, sempre de forma obrigatória, as razões argumentadas por uma das partes processuais fazendo-as próprias (ALISTE, 2011ALISTE SANTOS, Tomás-Javier. La motivación de las resoluciones judiciales. Madrid: Marcial Pons, 2011.: 97).

O próprio Pedro Ortego chega a essa mesma conclusão quando considera que a sentença é a elaboração madura de um processo deliberativo do juiz que, estando convencido dos motivos e razões que uma das partes lhe apresenta, chega a uma sentença fundamentada, embora nem sempre a explicita e a translade ao texto da própria sentença (ORTEGO, 2013ORTEGO GIL, Pedro. “Sentencias criminales en Castilla: entre jueces y abogados”. Clío & Crimen. Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, n. 10, 2013, pp. 359-372.: 360). E, nesse sentido, o autor distingue entre

uma motivação formal e escrita (forma sententiae) e outra subjetiva e não expressa no texto da sentença (relatio judiciaalis). O juiz para chegar a um resultado, a uma decisão condenatória ou absolutória, deve pensar, meditar e raciocinar sobre isso (ORTEGO, 2013ORTEGO GIL, Pedro. “Sentencias criminales en Castilla: entre jueces y abogados”. Clío & Crimen. Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, n. 10, 2013, pp. 359-372.: 360).

Como o mesmo Ortego adverte, é preciso ter em conta a diversidade e heterogeneidade da Monarquia Hispânica para entendermos corretamente a questão da motivação e fundamentação das sentenças. Isso exigiria deixar de colocar as questões nos termos que até agora foram colocadas (motivar ou não motivar as sentenças) e passar a dar atenção à distinção, por exemplo, entre juízes ordinários e juízes de tribunais e audiências, entre processos civis e criminais, e entre sentenças do final do século XVI e as que foram proferidas no XVIII (ORTEGO, 2013ORTEGO GIL, Pedro. “Sentencias criminales en Castilla: entre jueces y abogados”. Clío & Crimen. Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, n. 10, 2013, pp. 359-372.: 360-1).

De maneira geral, pode-se dizer que, assim como Ortego Gil verificou que os juízes inferiores, em Castela, motivavam com frequência as suas sentenças, enquanto que os superiores, por terem um maior arbítrio, não; na América, os inferiores podiam motivar as suas sentenças, embora nem todos o fizessem ou não fosse uma prática comum. Por outro lado, ainda na América, é mais comum encontrar sentenças motivadas nos processos criminais do que nos cíveis, e nos do século XVIII mais do que nos do XVI.

Diante de tudo isso, tendemos a concordar com Ortego Gil quando diz que a historiografia que estudou este tema partiu de uma hipótese, se não errada, pelo menos capaz de levar a engano a muitos historiadores. Por isso, muitos desistiram de estudar as sentenças porque pensavam que não tinham nada a oferecer ao pesquisador. Como conclui este autor “a historiografia jurídica deixou de lado as sentenças de Castela por causa dessa aparente falta de motivação” (ORTEGO, 2013ORTEGO GIL, Pedro. “Sentencias criminales en Castilla: entre jueces y abogados”. Clío & Crimen. Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, n. 10, 2013, pp. 359-372.: 361). Igualmente, outros pesquisadores tiraram conclusões erradas ou tentaram argumentos e explicações que dessem conta de um segredo que se pressupunha existente em todas as instâncias judiciais.

É provável que não tenha existido uma única forma homogênea e universal para toda a Monarquia Hispânica com relação à forma de emitir sentenças judiciais. Talvez em alguns lugares seguiu-se um estilo, e em outros lugares, outro. Alguns juízes podem ter elaborado sentenças sem a preocupação de motivá-las e outros, não. Como dissemos, este artigo tratará de alguns casos de sentenças de primeira instância proferidas no âmbito jurisdicional da Real Audiência de Buenos Aires. E as suas sentenças foram, sim, motivadas, apesar da proibição de 1768.

II. Os casos estudados

O primeiro caso é da cidade de Córdoba, em 1789 (AGN, 38-02-06, L. 184, n.3, 1789) e tem a ver com um suposto caso de abuso de autoridade, porque um juiz é acusado de ter agredido, com uma bofetada na cara, ao autor de um processo que tramitava diante do seu tribunal. Na sentença, em primeiro lugar, esclarecem-se algumas dúvidas sobre a legitimidade da investidura do juiz e suposto agressor. Logo depois, vem a absolvição porque resulta “não justificado o crime que lhe é imputado”, embora se reconheça que existem “graves indícios” do mesmo. E, a continuação, o juiz e suposto agressor é condenado ao pagamento das custas do juízo (mesmo tendo sido absolvido do crime) “advertindo [ao juiz] que se abstenha em adiante de não obscurecer com procedimentos atropelados o caráter da sua dignidade no emprego de juiz” (AGN, 38-02-06, L. 184, n. 3, 1789: f.21).

O segundo caso é de 1780 e teve lugar em Buenos Aires (AGN, 39-08-04, L 280, n. 18, 1780). Neste juízo por injúria o réu confessou, mas o juiz considerou ocioso continuar adiante com o processo devido à pouca importância do assunto, além de levar em consideração que o réu já esteve no cárcere por essa causa por um tempo. Daí que o juiz se limitou a fazer-lhe uma advertência formal e a exigir-lhe o pagamento das custas. De fato, o próprio demandante reconhece que “a palavra proferida que o injuriou foi dita por um improviso fervor”. E o juiz explicava na sua sentença:

Sem dúvida nascido das antecedentes reconvenções de que se segue não ser pronunciada com ânimo sério que induza conceito do que significa, pelo mesmo motivo e do fato de que continuando nesta causa não haverá mais fruto do que aumentar gastos inúteis, portanto, tendo-se em conta como parte da pena o tempo que esteve dito réu no cárcere e a advertência que lhe é feita de que em adiante seja mais moderado nas suas palavras não se deixando levar por frívolos arranques e, não fazendo assim, será punido com todo o rigor juntamente com a satisfação de todas as custas em que se lhe condena; seja posto em liberdade, desembarguem-se e entreguem-lhe os seus bens, deixando na sua boa fama e opinião o querelante (AGN, 39-08-04, L 280, n. 18, 1780: f. 9r).

Temos aqui, de novo, uma sentença absolutória, na qual, embora se reconheça a verdade dos fatos alegados pela parte querelante, e de forma ainda mais clara e explícita do que no caso anterior, apesar disso, não há condenação contra o acusado.

No terceiro caso, temos um crime de abigeato (furto de animais no campo), em 1791 (AGN, 39-09-03, L 222, n. 2, 1791)4 4 Não há numeração. A sentença está na última folha. . A sentença confirma o crime cometido tendo em conta as repetidas confissões do réu, porém, conclui, “atendendo à pequena quantidade das espécies roubadas [dois bois] [...] encerre-se a continuação desta causa”. E ainda rejeita o pedido punitivo, feito pelo fiscal, de açoites e presídio para o réu. O juiz, contudo, ainda acrescenta, levando em consideração que o réu já tinha ficado por um tempo no cárcere, que pague as custas do processo, que restitua o valor dos animais roubados e adverte o réu para que tenha um melhor comportamento no futuro, “dando-lhe a entender que, à menor reincidência nestes particulares, ter-se-á presente o mérito da causa”.

O quarto é um caso de injúria, acontecido em 1781 na cidade de Buenos Aires (AGN, 39-07-09, L. 276, n. 7, 1781). O mestre de uma orquestra, Antonio Beles (ou Vélez) fez uma queixa-crime ao Vice-Rei pelas expressões ofensivas e injuriosas de alguns músicos da orquestra contra ele. A sentença reconhece que, de fato, tratou-se de palavras fortes contra ele, contudo considera que devem ser compreendidas por causa da moléstia desses músicos perante uma suposta dívida que não teria sido satisfeita pelo querelante, e “de todo o seu contexto não se descobre ânimo de caluniá-lo”. Além disso, a sentença destaca que são homens rudes, “imperitos e sem conhecimento do verdadeiro estilo com que as pessoas devem relacionar-se”. Por último, o juiz expressa o seu desagrado por ter de se ocupar dessas nimiedades, “impedindo-o de conhecer de outras <causas> de maior consideração” por estar ocupado em matérias que não justificam um processo criminal:

Sendo um assunto ridículo pela sua natureza em que não é conveniente fomentar ressentimentos de pouca entidade com igual ruído e empenho que teria um negócio sobre homicídio ou outro semelhante. Por isso mesmo determino que lhe seja imposto perpétuo silêncio ao dito Vélez e os Músicos sejam advertidos para que daqui em diante guardem moderação e estilo tanto de palavra como por escrito contra o citado Vélez, dando-lhes a entender pelo escrivão da causa o excesso repreensível em que incorreram por ter representado a S.E. uns fatos falsos procedendo com ligeireza e falta de sinceridade (AGN, 39-07-09, L. 276, n. 7, 1781: f. 41v).

Além disso, a sentença ameaça os músicos com castigos em caso de reincidência, condena-os ao pagamento das custas, e ordena riscar as expressões ofensivas contidas no memorial (como, de fato, pode constatar-se quando se examina hoje o documento, que contém partes que resultam ilegíveis por terem sido riscadas propositadamente).

No quinto caso (AGN, 39-09-03, L. 288, n. 8, 1793), a sentença informa os fundamentos da sua decisão não para explicar os motivos da sua indulgência, como nos casos anteriores, mas para justificar a sua especial severidade. Neste assunto, condena-se Manuel Rodríguez por ter ferido um escravo de Francisco Piñero. A sentença assinala que as alegações da defesa resultam inverossímeis e acrescenta uma circunstância que torna ainda mais plausível a realização do delito e que justifica a dureza da justiça:

nos tempos de colheita em que se executou o atentado é costume fatal entre os ceifadores o uso de faca pelo motivo mais leve e mesmo sem ele, cuja contenção afasta toda indulgência exigindo as mais severas penas da necessidade pública (AGN, L. 288, 39-09-03, n. 8, 1793: f. 12v).

Como consequência, Rodríguez foi condenado a receber 50 açoites e prestar dois meses de serviços em obras públicas (AGN, 39-09-03, L. 288, n. 8, 1793: f. 13r).

No último caso, trata-se de mais um processo de abigeato que está perfeitamente provado (AGN, 39-07-09, L. 276, n. 4, 1776). Mais ainda, o juiz tem presente a gravidade do delito e a necessidade de dissuadir os possíveis delinquentes (“sendo conveniente ao bom governo desta república conter os excessos de roubos que se fazem nos gados dos vizinhos e que escarmentem conforme a sua classe e circunstância”) (AGN, 39-07-09, L. 276, n. 4, 1776: f. 13r). Contudo, passa a ter em conta o fato de o réu ter passado um tempo no cárcere, o qual “paga em parte este delito” e, especialmente, a sua situação de pobreza e o fato de ter uma família numerosa. Diante de tudo isso, o juiz decidiu simplesmente aplicar-lhe uma multa, condená-lo ao pagamento das custas e adverti-lo para que “em adiante proceda regradamente porque, não sendo assim, tomar-se-ão as mais sérias providências que forem convenientes” (AGN, 39-07-09, L. 276, n. 4, 1776: f. 13r).

III. Motivos que fundamentam as sentenças

Os casos estudados têm vários traços em comum, mas, sem dúvida, o mais singular consiste na decisão dos juízes de dar uma fundamentação para as suas sentenças, contrariando o disposto pelas leis então vigentes, concretamente, a Real Cédula de Carlos III, da que já falamos, determinando a não motivação das sentenças.

O motivo parece-nos ser o seguinte: as sentenças em questão resolvem os casos de forma diferente ao esperado: são absolvidas determinadas pessoas, porém, também são condenadas nas custas; em outros casos, reconhece-se que são culpáveis, mas, atendidas as circunstâncias, não se lhes aplica nenhuma sanção; aplica-se uma pena particularmente grave tendo em conta a extensão de um mau costume ou, finalmente, admite-se que o querelante tem razão, mas se considera que o assunto é ridículo e não vale a pena seguir adiante com o processo.

Em todos esses juízos, em resumo, recorre-se à equidade e sentencia-se não de acordo com o teor literal da lei, mas a partir do modo exigido pela natureza do caso, isto é, da maneira em que teria resolvido o assunto o próprio legislador caso estivesse presente. O antecedente filosófico desta prática encontra-se numa célebre passagem da Ética a Nicômaco, onde Aristóteles diz que

O equitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei é universal, mas a respeito de certas coisas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta. Nos casos, pois, em que é necessário falar de modo universal, mas não é possível fazê-lo corretamente, a lei considera o caso mais usual, se bem que não ignore a possibilidade de erro. E nem por isso tal modo de proceder deixa de ser correto, pois o erro não está na lei, nem no legislador, mas na natureza da própria coisa, já que os assuntos práticos são dessa espécie por natureza (ARISTÓTELESARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1984., V 10, 1137b11-19).

Portanto, quando a lei se expressa universalmente e surge um caso que não é abrangido pela declaração universal, é justo, uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade, corrigir a omissão - em outras palavras, dizer o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse conhecimento do caso.

Por isso o equitativo é justo, superior a uma espécie de justiça - não à justiça absoluta, mas ao erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. E essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade (ARISTÓTELESARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1984., V, 10, 1137b11-27).

Como explica Gadamer, ao afastar-se da letra da lei, o juiz “não elimina aspectos da justiça, mas, ao contrário, encontra um direito melhor” (GADAMER, 2010GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke: Hermeneutik: Wahrheit und Method – I. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Bd. I. Mohr Siebeck, 2010.: 323). Esta ideia foi recolhida, por Tomás de Aquino (AQUINO, 1969AQUINO, Tomás de, Suma Teológica, 3ª Ed., BAC, Madrid, 1969., II-II, q.120, a.1) e, por meio dele, chegou à Escola de Salamanca (e Coimbra), onde se formaram os juristas indianos. Dessa forma, Suárez diz que nesses casos:

interpretamos que uma lei falha num caso particular por razão da sua universalidade, isto é, porque a lei deu-se em termos gerais e em algum caso particular erra de tal forma que nele não pode observar-se justamente (SUÁREZ, 1612, II, XVI, 4 [174a]5 5 Consultamos a edição bilíngue (latim-castelhano) que reproduz a edição príncipe de Coimbra (1612), indicando entre colchetes a página e a coluna da mesma: Suárez, Tratado de las leyes y de Dios legislador. Muitos anos antes, na sua juventude, Suárez tinha se ocupado do tema da equidade, nas suas Quaestiones de Iustitia et Iure, Disputatio 4, q. 5, cfr. Francisco Suárez, Die Gerechtigkeitslehre des jungen Suárez; Edition und Untersuchung seiner römischen Vorlesungen De iustitia et iure. Os demais autores da época pronunciam-se de forma semelhante. .

Os juristas recolhem esta doutrina e por essa via chega a influir nos juízes em lugares tão afastados de Salamanca como podem ser Buenos Aires, Córdoba ou Luján6 6 Para um exame das amplas manifestações desta mentalidade no Direito Indiano, ver Tau Anzoátegui, Casuismo y sistema, 512-541. . É por isso que o famoso jurista indiano Solórzano dizia que

mesmo que o direito seja fixo e estável, a equidade, que é filha da razão natural, o tempera, modera e, às vezes, o altera, conforme o peçam os casos que costumam acontecer, porque esses mesmos casos, conforme o tempo, o lugar, as pessoas e outros variados acidentes, pedem que se o direito se ajuste e acomode às ocasiões (SOLÓRZANO PEREIRA, 1648SOLÓRZANO PEREIRA, Juan de. Política Indiana. En Madrid: Por Diego Díaz de la Carrera, 1648.: III, VIII, 37-38).

Nos casos analisados, os juízes recorrem à equidade atendendo à pobreza do réu, ou à sua rusticidade, ou ao caráter ridículo do caso, ou ao fato de que não faz sentido continuar a demanda, porque por essa via tão só se conseguiria aumentar os gastos do juízo e se considera preferível fazer uma advertência formal ao acusado para que tenha um melhor comportamento no futuro.

Essa adaptação da lei ao caso singular não pode realizar-se de forma caprichosa. Daí que Rivadeneira advertisse que a prudência não é suficiente

se não se juntar a ela um rendimento e uma sujeição à lei; porque existem pessoas tão confiadas no seu próprio juízo, que corrigem e entortam e interpretam a lei como a eles lhes parece, e [...] pervertem o sentido verdadeiro da mesma e a intenção do legislador (RIBADENEYRA, 1788RIBADENEYRA, Pedro de. Tratado de la religión y virtudes que debe tener el Príncipe Christiano para gobernar y conservar sus estados: conta lo que Nicolás Maquiavelo y los políticos en este tiempo enseñan. En la Oficina de Pantaleón Aznar, 1788.: II, XIII, 348).

A equidade está muito longe de significar uma espécie de governo de juízes, e unicamente tem sentido num esquema doutrinal onde a lei tem primazia. A equidade não pretende substituir a lei, mas assegurar que se cumpra o sentido último da mesma. Como explicava Gadamer, enquanto que no campo técnico o fato de afastar-se do que determina a regra (porque as circunstâncias não permitem outra coisa) significa certa imperfeição, porque se renuncia ao ideal em atenção aos obstáculos que coloca a realidade, quando, no campo jurídico, a atenção à singularidade do caso obriga a “fazer concessões com relação à lei em sentido estrito”, isto não acontece “porque não seja possível fazer as coisas melhor, mas porque fazendo-o de outra forma não seria justo. Fazendo concessões diante da lei, não se eliminam aspectos da justiça, mas, pelo contrário, encontra-se um direito melhor” (GADAMER, 2010GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke: Hermeneutik: Wahrheit und Method – I. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Bd. I. Mohr Siebeck, 2010.: 323).

IV. A dupla equidade

O recurso à equidade nas sentenças que foram analisadas tem, além disso, uma singularidade, porque o juiz não se afasta apenas da letra da lei para dar origem a uma solução capaz de fazer justiça à natureza peculiar do caso, mas, além disso, afasta-se também da letra da Real Cédula de 1768 que proibia fundamentar as sentenças, como também da prática forense mais habitual. E o faz explicitando esses fundamentos, mesmo que de forma sucinta.

Há, portanto, um duplo jogo da equidade, que abarca tanto a norma que soluciona o caso, como também a lei que indica a forma que deve ter a sentença que o resolve. Este recurso à “dupla equidade” tem lugar, primeiro, porque o caso tem um caráter completamente único, e também, em segundo lugar, porque por cima da letra da lei considera-se necessário explicar em que consiste essa singularidade, porque, caso contrário, a solução escolhida aparecia como incompreensível ou caprichosa.

A fundamentação dada pelos juízes nestes casos não tem uma especial profundidade doutrinal. Não resulta muito sofisticada de um ponto de vista teórico, e nem sequer se faz referência expressa à equidade. Mas é a fundamentação suficiente para conseguir o objetivo que se persegue: resolver o caso e dar uma explicação às partes e à sociedade com relação a quais seriam os motivos ou razões de justiça que levaram o juiz a resolver a causa dessa maneira.

É interessante, por último, prestar atenção às datas das sentenças (1776-1793), todas do fim do século XVIII, época em que, para empregar a terminologia de Tau Anzoátegui, já se tinha abandonado o modo “casuísta” de entender o Direito, substituindo-o pela maneira “sistemática” de concebê-lo, o qual acabará, no século seguinte, tirando importância da equidade na tarefa judicial. Contudo, como vimos, constata-se certa sobrevivência da antiga mentalidade casuísta e a sua vigência no Vice-reinado do Prata, expressada no valor que se lhe concede à equidade.

Tudo isto provoca a interessante questão, a ser verificada em pesquisas posteriores, de saber em que medida aconteceu o mesmo no resto da América hispânica ou se essa práxis jurisdicional constitui apenas uma singularidade do Vice-reinado do Prata.

  • *
    Este coautor agradece o apoio de Fondecyt (Projeto n. 1150561).
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    Este coautor agradece o apoio da FAPESP (Projeto n. 2013/05641-4).
  • 1
    Um resumo destes motivos em AccatinoACCATINO, Daniela. “La Fundamentación de las sentencias: Un rasgo distintivo de las judicaturas modernas?”. Revista de Derecho, Valdivia, 15, Diciembre 2003, pp. 9-35., “La Fundamentación de las sentencias”, p. 9-10. Aqui acrescentamos alguns motivos não indicados pela autora.
  • 2
    Para este argumento, de Juan Álvarez Posadilla, ver LevaggiLEVAGGI, Abelardo. “La fundamentación de las sentencias en el Derecho Indiano”. Revista de Historia del Derecho, Buenos Aires, n. 6, 1978, pp. 45-73., La fundamentación de las sentencias en el Derecho Indiano, p. 49.
  • 3
    “Tanto os Supremos quanto os inferiores davam sentenças sem <indicar> motivos, razões ou causa”.
  • 4
    Não há numeração. A sentença está na última folha.
  • 5
    Consultamos a edição bilíngue (latim-castelhano) que reproduz a edição príncipe de Coimbra (1612), indicando entre colchetes a página e a coluna da mesma: SuárezSUÁREZ, Francisco. Tratado de las leyes y de Dios legislador. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1968., Tratado de las leyes y de Dios legislador. Muitos anos antes, na sua juventude, Suárez tinha se ocupado do tema da equidade, nas suas Quaestiones de Iustitia et Iure, Disputatio 4, q. 5, cfr. Francisco SuárezFRANCISCO SUÁREZ. Die Gerechtigkeitslehre dês jungen Suárez; Edition und Untersuchung seiner römischen Vorlesungen De iustitia et iure. Freiburger theologische Studien; 72. Bd Freiburg: Verlag Herder, 1958., Die Gerechtigkeitslehre des jungen Suárez; Edition und Untersuchung seiner römischen Vorlesungen De iustitia et iure. Os demais autores da época pronunciam-se de forma semelhante.
  • 6
    Para um exame das amplas manifestações desta mentalidade no Direito Indiano, ver Tau AnzoáteguiTAU ANZOÁTEGUI, Víctor. Casuismo y sistema: indagación histórica sobre el espíritu del Derecho indiano. Buenos Aires: Instituto de Investigaciones de Historia del Derecho, 1992., Casuismo y sistema, 512-541.
  • * Este coautor agradece o apoio de Fondecyt (Projeto n. 1150561).+ Este coautor agradece o apoio da FAPESP (Projeto n. 2013/05641-4).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2016
  • Aceito
    19 Jul 2016
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