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O primado da Constituição como fator de desenvolvimento das relações de produção capitalistas

The primacy of Constitution as a factor of development of the capitalists production relations

Resumo

A Constituição é considerada lei fundamental do Estado. Essa noção se formula num processo histórico, que está relacionado à acumulação primitiva de capital. Assim, indaga-se: como a concepção da Constituição como lei fundamental do Estado se relaciona com e contribui para o desenvolvimento das relações de produção capitalistas? Com o escopo de compreender esse processo, emprega-se o método dialético e o referencial teórico marxista.

Palavras-chave:
Constituição; Estado; Capitalismo

Abstract

The Constitution is considered the fundamental law of the State. This notion is formulated in a historical process, which is related to the primitive accumulation of capital. Thus, it is questioned: how the conception of Constitution as the fundamental law of the State is related to and contribute with the development of capitalists’ production relations? With the goal of understanding this process, it is used the dialect method and the Marxist theoretical reference.

Keywords:
Constitution; State; Capitalism

Introdução

A doutrina constitucional clássica considera a Constituição como o principal conjunto de normas jurídicas de um Estado de Direito. Ela seria a lei fundamental de um Estado, sendo responsável por limitar e organizar o poder, distribuir as competências, regular o exercício de autoridade, dispor sobre a forma de governo, assim como afirmar os direitos e garantias da pessoa humana (SILVA, 2005).

Em razão de seu papel na composição e no funcionamento da sociedade, alguns constitucionalistas como Kleber Couto Pinto (2013) e Paulo Bonavides (2004BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.), apontam que toda e qualquer comunidade política, independente do período histórico, que possua regras organizativas do seu corpo social detém, no fim, uma Constituição. Nessa perspectiva, a origem da Constituição remonta à estruturação do poder na sociedade.

Embora essa percepção decorra da existência de aspectos similares na organização política de diversas comunidades ao longo da história, não se pode atribuir um conteúdo unívoco e atemporal à Constituição. Afinal, essa expressão somente ganha forma, conteúdo e sentido específicos a partir do século XVIII com as revoluções liberais, em especial com a Revolução Francesa, acontecimentos que marcam o advento do modo de produção capitalista, como adiante será melhor explicado.

Nesse sentido, o conceito de Constituição adquire uma nova roupagem. Anuncia-se a separação do poder político das classes sociais, de modo a evitar que ele seja exercido em prol de interesses econômicos específicos. Ademais, indica-se um rol de direitos individuais, que não podem ser violados pelas autoridades nem por particulares, que se consubstanciam na forma de direitos fundamentais, conforme explica Ingo Wolfgang Sarlet (2003).

Em razão desses novos atributos, torna-se essencial conceber a Constituição como instrumento superior aos demais regulamentos normativos, pois, assim, todas as normas inferiores terão que respeitar e proteger os seus dispositivos. Consequentemente, ao reproduzir os seus preceitos, essas normas inferiores operarão a legitimação do arranjo jurídico-político que toma forma com o advento do capitalismo.

Nessa perspectiva, a noção do primado da Constituição se forma em um contexto de advento do capitalismo. Portanto, insta o seguinte questionamento: como a concepção da Constituição como o principal conjunto de normas jurídicas em um Estado de Direito se relaciona com e contribui para o desenvolvimento das relações de produção capitalistas?

Para responder essa questão, emprega-se o referencial teórico de matriz marxista. Enquanto a doutrina constitucional clássica realiza uma leitura analítica, teleológica e linear da assimilação da Constituição como lei fundamental de um Estado, o arsenal conceptual marxista, principalmente a partir da contribuição teórica de Evguiéni Pachukanis (2017), possibilita compreender e questionar a especificidade que a Constituição assume com o advento das relações de produção capitalistas, ao relacioná-la com as estruturas produtivas e suas formas sociais.

Ademais, Karl Marx foi um dos principais filósofos a estudar o funcionamento do capitalismo, apontando os mecanismos que amparam a reprodução das suas relações de produção e asseguram a sociabilidade burguesa. Assim, a compreensão da sua teoria permite situar, em uma perspectiva crítica e holística, o processo histórico, político e econômico em que a Constituição assume a posição de superior hierárquica em um dado ordenamento jurídico.

A teoria marxista é oportuna para correlacionar o primado da Constituição com as relações de produção capitalistas não tanto por causa da análise realizada por Karl Marx sobre o Direito, mas, principalmente, em razão do método legado por este filósofo: o método materialista histórico dialético.

É cediço que Marx não construiu uma teoria do Direito, apenas realizou determinados incursos neste tema, principalmente em suas obras de juventude, como se pode conferir na coletânea de textos recentemente publicada sob o título “Os despossuídos” (2017). Todavia, seu método possibilita averiguar a relação entre a forma jurídica e o modo de produção capitalista.

Embora Marx não tenha discorrido diretamente sobre o seu método, é possível retirar os seus fundamentos a partir da leitura do conjunto de suas obras, principalmente de o livro “O Capital” (2013). Nele, Marx elenca a categoria mais simples e abstrata das relações de produção capitalistas - a mercadoria, a fim de analisar as relações sociais que estão incutidas nela e que se reproduzem a partir de sua existência.

O método materialista histórico dialético busca conhecer, portanto, o objeto não pela sua essência, mas pela compreensão das relações sociais nas quais ele está inserido. Dessa forma, o objeto é analisado a partir de uma perspectiva de totalidade, que não se confunde com a simples soma das partes, mas que significa o conjunto de partes que, ao formarem um sistema, absorve a individualidade de cada um e os modifica.

No presente trabalho, o emprego deste método permite que a relação entre o primado da Constituição e as relações de produção capitalistas não seja traçada somente a partir da análise das características da Constituição, isto é, pela sua essência. Não se trata de apontar como alguns atributos do modelo constitucional vigente são pertinentes à sociabilidade burguesa, mas de demonstrar que a afirmação destes atributos em um documento jurídico considerado como a Lei Fundamental de um Estado está intrinsicamente relacionada com o advento e desenvolvimento das relações de produção capitalistas.

O método materialista histórico dialético também é relevante para esta pesquisa, na medida em que ele rompe com uma análise histórica de frente para trás. Nessa perspectiva, não se busca germes ideais do modelo constitucional vigente no passado, como se houvesse uma evolução progressiva na concepção e estrutura da Constituição. Pelo contrário, volta-se aos processos históricos com o intuito de demonstrar a especificidade que o conceito de Constituição assume no modo de produção capitalista.

Como método de abordagem, portanto, dispõe-se do método dialético. Através desse método, procede-se a escolha da Constituição como objeto de estudo, com o intuito de averiguar em que ela consiste. Esse procedimento é realizado pela tentativa de demonstrar a contradição fundamental que esse objeto guarda e as suas próprias especificidades. Dessa forma, aponta-se aquilo que precede ao desenvolvimento do conceito moderno de Constituição, depois se assinala como esse conceito se apresenta atualmente para, por fim, constatar como ele sistematiza as circunstâncias que o precedem, ao mesmo tempo em que se diferencia delas e as supera.

Já como método de procedimento, utiliza-se o método de procedimento histórico. Afinal, somente com uma investigação sobre as variações no conceito de Constituição, torna-se possível ressalvar as peculiaridades que esse conceito assume com o advento do modo de produção capitalista. Por fim, como técnica de pesquisa, aplica-se a técnica de pesquisa bibliográfica.

O artigo estrutura-se em duas partes: na primeira, verifica-se como a doutrina constitucional clássica compreende a Constituição e quais os seus fundamentos. Em seguida, promove-se uma ruptura com essa abordagem, ao relacionar essa concepção com a produção da vida material e as relações sociais que a constituem.

O método dialético se manifesta na estrutura do artigo, na medida em que, em um primeiro momento, procede-se à identificação do objeto a partir de um movimento de exterioridade. Nessa abordagem, o conceito de Constituição é dado a partir de uma análise de como a organização do Poder ocorreu historicamente em determinadas sociedades ocidentais. Já, na segunda parte do artigo, realiza-se uma busca do exterior ao interior, ou seja, debruça-se sobre as categorias estruturantes da Lei Fundamental de um Estado, a fim de se construir uma análise sobre as suas especificidades e contradições. E, ao sistematizar o desenvolvimento das circunstâncias que presidem o objeto com a sua individualidade no todo social estruturado, chega-se a um conceito fundado na totalidade concreta.

Cumpre ressaltar que, para Marx, o conhecimento é comprovado através da práxis (MARX, 1982). Em razão disso, o presente artigo realiza breves considerações acerca da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a fim de demonstrar como a concepção do primado da Constituição se relaciona com e contribui para o desenvolvimento das relações de produção capitalistas neste país. Contudo, em razão da complexidade do assunto, não é possível realizar uma abordagem mais aprofundada acerca das aplicações práticas do conhecimento construído no presente artigo, pois tal aplicação demandaria uma pesquisa mais extensa.

O objetivo do presente artigo é, a partir do referencial teórico de matriz marxista, realizar uma incursão teórica acerca da relação entre o primado da Constituição e as relações de produção capitalistas, bem como averiguar a contribuição dessa concepção para a reprodução destas relações. Apontando-se os fatores primordiais que interligam esses fenômenos, a abordagem aqui realizada pode proporcionar uma nova leitura sobre o papel de uma Constituição em uma sociedade capitalista e orientar estudos específicos acerca do ordenamento jurídico de cada Estado.

1 A Constituição como lei fundamental de um Estado de Direito

A compreensão da Constituição como o ordenamento supremo de um Estado de Direito é uma noção incutida na sociedade atual. Essa percepção é amparada pela doutrina constitucional clássica. Nessa senda, a Constituição é considerada como o conjunto de normas jurídicas, escritas ou costumeiras1 1 Enquanto as Constituições escritas são aprovadas por um órgão competente, as normas das Constituições costumeiras são oriundas da prática ou do costume sancionado ou imposto (BONAVIDES, 2004). , que estabelecem a forma de governo, o modo de aquisição e exercício do poder, que limitam as ações estatais e, além disso, afirmam os direitos fundamentais e as garantias da pessoa humana (SILVA, 2005).

Esse conceito pode ser situado sob duas formas: do ponto de vista político e através de um viés jurídico. No primeiro caso, esse instrumento está relacionado à organização da sociedade, uma vez que ele discorre sobre os órgãos de poder e regula as suas relações entre si e com os indivíduos. Nesse sentido, há o emprego do termo “constituição” em sentido lato sensu, significando a capacidade de estruturar algo (COUTO PINTO, 2013COUTO PINTO, Kleber. Curso de teoria geral do Estado: fundamento do direito constitucional positivo. São Paulo: Atlas, 2013.).

Já na segunda situação, trata-se da “Constituição2 2 Para diferenciar a noção de constituição como a capacidade de estruturar uma comunidade política da concepção de Constituição como lei fundamental de um Estado, redige-se esta palavra, em seu segundo significado, com a primeira letra em capitular. ” em sentido stricto sensu, isto é, como instrumento dotado de caráter essencialmente jurídico. Nessa perspectiva, ela consiste na lei fundamental de um Estado e revela um conjunto de preceitos sociais, jurídicos e políticos com supremacia em relação às demais normas (COUTO PINTO, 2013COUTO PINTO, Kleber. Curso de teoria geral do Estado: fundamento do direito constitucional positivo. São Paulo: Atlas, 2013.).

O panorama político motiva diversos constitucionalistas a afirmarem que toda comunidade politicamente organizada é dotada de uma constituição, por mais rudimentar que seja (BONAVIDES, 2004BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.). Para Luís Roberto Barroso (2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.), nesse caso, há uma “constituição histórica3 3 O autor emprega “Constituição” nessa expressão. Contudo, para melhor compreensão do texto, emprega-se, aqui, “constituição histórica” ou “constituição institucional” com letra minúscula, uma vez que o seu significado é lato sensu. ” ou “institucional”, pois está ligada à institucionalização do poder, sendo antes mais um dado da realidade do que uma criação racional. Esse autor também explica que, do ponto de vista jurídico, a Constituição somente adquire sentido, forma e conteúdo específicos com as revoluções liberais a partir do século XVIII.

Para melhor compreender essas diferenças, é de suma importância analisar o trajeto histórico de organização política das sociedades, pois, dessa forma pode-se apontar como o termo “constituição” varia de significado, no tempo e no espaço, e assume uma concepção peculiar na sua designação enquanto lei fundamental de um Estado de Direito.

1.1 A concepção da constituição como uma variável no tempo e no espaço

É possível encontrar estruturas de limitação e organização do poder desde a Idade Antiga. Em Atenas, existia uma divisão das funções estatais em órgãos diversos, também havia um poder secular separado da religião, assim como um sistema judicial baseado na supremacia da lei (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.).

Nesse período, Roma também se destacou por suas estruturas jurídicas e instituições políticas. Essa cidade-estado era provida das Assembleias, sendo que a Assembleia Centurial figurava como a mais importante devido à sua competência na aprovação de leis; também havia os Cônsules, que tinham o poder de propor tais leis e, o Senado, cuja responsabilidade residia na administração da cidade (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.). Ressalta-se ainda que a palavra constituto já era utilizada nesse período (SOARES, 1986).

Já na Idade Média, é possível encontrar precedentes do conceito moderno de Constituição. Nessa época, havia uma ordem fundamental material voltada para a resolução dos problemas relevantes à comunidade e que assegurava o equilíbrio entre os diversos extratos sociais, ao mesmo tempo em que justificava as suas existências e estabelecia pretensões relativas e obrigações mútuas (SOARES, 1986).

Ademais, cumpre ressaltar que, durante a Idade Média, se constituiu o modo de produção feudal. Na Inglaterra, por exemplo, esse fato ocasionou a imposição de um documento político ao rei João Sem-Terra pelos senhores feudais em 1215. Esse documento destinava-se à proteção dos direitos relativos à propriedade, tributação e liberdade daqueles senhores, e foi intitulado de Magna Cartha (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.).

Além da Magna Cartha, Paulo Bonavides (2004BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.) ressalta a importância do Instrument of Government, promulgado por Oliver Cromwell em 16 de dezembro de 1663, na Inglaterra, formado por 32 artigos com caráter nacional e limitativo ao poder. Para o constitucionalista, essa teria sido a primeira Constituição escrita no mundo, servindo como protótipo para a Constituição dos Estados Unidos da América.

A influência inglesa sobre os Estados Unidos decorre do fato de que a América do Norte, principalmente a sua costa leste, foi colonizada pelos ingleses no início do século XVII. Até meados do século XVIII, as colônias gozavam de razoável autonomia. Contudo, imposições tributárias e restrições às atividades econômicas, principalmente ao comércio, abalaram essa relação. Consequentemente, em 1774, ocorreu o Primeiro Congresso Continental como marco da reação contra a coroa britânica. De 1775 a 1778, transcorreu o Segundo Congresso, que resultou na Declaração de Independência em 04 de julho de 1776, tornando as treze colônias estadunidenses em Estados distintos (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.).

Somente após a elaboração do Articles of Confederation em 1778, surgiu uma Confederação entre as treze colônias. Contudo, o arranjo confederativo demonstrou-se frágil. Em razão disso, em 1787, uma convenção é convocada na Filadélfia para discutir esse problema. Como resultado, elabora-se a Constituição dos Estados Unidos da América de 1787 (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.), sendo um marco do predomínio das Constituições escritas sobre as costumeiras (BONAVIDES, 2004BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.).

Em que pese a importância dos constitucionalismos inglês e estadunidense para a consolidação do conceito moderno de Constituição, a Revolução Francesa de 1789 é o símbolo das transformações estruturais ocorridas nos campos político, econômico e filosófico da sociedade no fim da Idade Média e, dessa forma, assinala o início da Idade Moderna. A partir de então, o Estado perde seu caráter absolutista e se converte em liberal, assim como a sociedade deixa de ser feudal e aristocrática para se tornar burguesa (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.).

Sob a constância da monarquia absolutista, a França enfrentava uma grave crise financeira. Em razão disso, a população demandava a redução dos privilégios fiscais da nobreza e do clero, os quais não admitiam essas alterações. Frente a esses fatos, o rei Luís XVI convocou os Estados Gerais para resolver esse impasse em 1788 (SIÈYES, 2001).

Os Estados Gerais eram uma espécie de conselho consultivo do rei formado pela nobreza, clero e pelo terceiro estado. Este grupo, por sua vez, era composto pelos camponeses (pequenos proprietários, arrendatários, assalariados rurais), a burguesia (banqueiros, comerciantes, profissionais liberais e proprietários) e trabalhadores urbanos (pequenos lojistas, artesãos e assalariados em gerais) conhecidos como sans-cullotes (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.).

Nessa perspectiva, os Estados Gerais foram convocados para uma assembleia, cuja atribuição era realizar uma reforma nas leis francesas. O problema é que o sistema de votação adotado era a contagem por estado no lugar do número de membros. Assim, o clero e a nobreza formaram uma aliança, impedindo que as reivindicações do terceiro estado fossem atendidas (SIÈYES, 2001).

Diante dessa situação, o terceiro estado se rebelou e se proclamou como Assembleia Geral Nacional. Na sequência desse ato, foi formada uma Assembleia Nacional Constituinte, cujo compromisso era a elaboração de uma Constituição francesa, que revogaria o poder absoluto do monarca (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.). Cumpre ressaltar que esse processo é corolário não somente da revolta dos camponeses contra o sistema feudal, mas também do desejo da burguesia em alcançar o poder, tanto que Karl Marx (2011) afirma que a assembleia nacional que se formou para a elaboração da Constituição iria reduzir os resultados da revolução ao parâmetro burguês.

A formação da burguesia remete aos séculos XII e XIII, quando foram construídos centros comerciais e financeiros na Europa chamados de “burgos”. As atividades desenvolvidas nesses locais possibilitaram o surgimento de uma classe cujo poder econômico residia na posse de dinheiro em vez da propriedade de terras. Esse fato fez com que, na França, na segunda metade do século XVIII, a burguesia se tornasse a classe mais rica e instruída do regime. Contudo, o absolutismo representava um obstáculo à sua ascensão (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.).

Nessa perspectiva, Barroso (2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.) elucida que a Revolução Francesa não foi contra a monarquia em si, tanto que essa forma de governo permaneceu em um período inicial pós-revolucionário, mas que, na verdade, era uma revolta contra o regime absolutista, em oposição aos privilégios da nobreza e do clero e em detrimento das relações feudais no campo. Como primeiros efeitos dessa Revolução, houve a abolição do sistema feudal, a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789 e a elaboração da primeira Constituição francesa escrita, concluída em 1791.

Dessa forma, observa-se que a supremacia formal, material e axiológica da Constituição é fruto de movimentos constitucionais, que podem ser reunidos em três modelos teóricos, conforme José Gomes Canotilho (2003CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional & Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.).

Primeiramente, cita-se o modelo historicista fundamentado na experiência britânica. Nesse caso, operou-se uma revelação do direito constitucional, pelo reconhecimento dos privilégios e das liberdades presentes no corpus costumeiro de normas e nos esparsos documentos escritos. Dessa forma, o constitucionalismo inglês não rompe com a ordem jurídica estamental4 4 Canotilho (2003) elucida que a ordem jurídica estamental consiste em um tipo específico de ordem comunitária, típica da Idade Média, em que os direitos e deveres são atribuídos aos sujeitos conforme a sua integração em um determinado momento. , pelo contrário, ele a ratifica e tenta estabelecer um equilíbrio entre os poderes, de modo a garantir os direitos e as liberdades de todos e assegurar um governo moderado, no qual gravitassem os pesos e contrapesos das diversas forças políticas e sociais. Nesse sentido, esse modelo contribui para a concepção moderna de Constituição, na medida em que fundamenta a limitação do poder político.

Por outro lado, o modelo estadualista, respaldado na experiência estadunidense, tem como ideia central o direito de o povo fundar uma lei básica que limite o poder político a fim de proteger os seus direitos naturais. Nessa perspectiva, observa-se que a Constituição dos Estados Unidos de 1787 consistiu menos em um contrato entre governantes e governados do que em um acordo celebrado pelo povo e em seu seio para criar e constituir um governo vinculado à lei fundamental. Assim, ganha relevo o “We the people”, expressão que inicia esse documento e demonstra o seu caráter de manifestação-decisão do povo.

Nessa perspectiva, observa-se que o constitucionalismo estadunidense contribuiu para a noção da Constituição como higher law, isto é, uma lei superior em um dado ordenamento jurídico que torna nula qualquer lei de nível inferior que infrinja seus preceitos.

Por fim, o modelo individualista possui inspiração francesa. Diferentemente do modelo historicista, ele almeja uma nova organização social, em que a posição do indivíduo como membro integrador de uma estrutura estamental é irrelevante frente a sua posição subjetiva enquanto indivíduo. Além disso, esse modelo funda o poder em outra ordem política, determinada pelas vontades individuais, como um contrato social.

Nessa senda, o modelo individualista apresenta dois momentos cruciais: primeiramente ele afirma os direitos naturais individuais. A partir disso, tem-se um rol de direitos que devem ser respeitados em face de tudo e de todos. Em segundo lugar, ele explica a ordem política através do contrato social, repudiando o poder absoluto e divino do monarca.

Diante dessas circunstâncias5 5 Convém observar que a teoria constitucional possui uma base epistemológica eurocêntrica, ou seja, a concepção clássica acerca da Constituição deriva das experiências dos centros hegemônicos, as quais são tomadas como experiências universais. Conforme explica Edgardo Lander (2005), o fato de que as experiências históricas europeias assumam um caráter universal faz com que as formas desenvolvidas para a compreensão dessas sociedades, como o conceito de Estado, de sociedade civil e, nesse sentido, pode-se acrescentar inclusive o conceito de Constituição, se convertam nas únicas formas válidas, objetivas e universais para se compreender qualquer outra realidade. , insta a necessidade de um plano escrito, de uma Constituição propriamente dita, que seja capaz de garantir os direitos e conformar o poder político (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.). A partir de então, a Constituição torna-se indispensável e surge o problema de definir o responsável pela sua elaboração. Nessa perspectiva, a experiência francesa foi de suma importância para o surgimento de uma das categorias mais importantes do constitucionalismo: o poder constituinte (FERREIRA FILHO, 2014FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. São Paulo: Saraiva, 2014.).

1.2 O vínculo entre Constituição e estado de direito na teoria do poder constituinte

Como mencionado anteriormente, a França, no Século XVIII, sofria uma grave crise financeira, acentuada pelos privilégios fiscais da nobreza e do clero. Em contrapartida, o terceiro estado, segmento produtivo da monarquia, sustentava economicamente essa estrutura através do pagamento de impostos. Nesse contexto, o abade Joseph Sieyès redigiu um manifesto intitulado "Qu’est-ce le tiers État?6 6 No Brasil, essa obra foi intitulada como “A Constituinte Burguesa” pela Editora Lumen Júris. em defesa do terceiro estado.

Para Sieyès (2001), o terceiro estado representava tudo, pois ele abrangia os trabalhadores do campo, responsáveis pelo fornecimento da água e cuidado com a terra; os trabalhadores da indústria, que modificavam a matéria-prima, convertendo-a em bens úteis; os comerciantes, encarregados pela circulação desses bens e, ainda, os profissionais liberais, que prestavam serviços necessários.

Apesar de que o sustento da sociedade recaísse no terceiro estado, no plano político, a sua contribuição não era reconhecida. Logo, o terceiro estado fazia tudo, mas era tratado como um nada. E, em razão disso, ele reivindicava ser alguma coisa (SIEYÈS, 2001).

Com a convocação dos Estados Gerais pelo rei Luís XVI em 1789, a população reivindicava três pautas para alterar a situação política do terceiro estado, conforme Sieyès (2001). Primeiramente, seus representantes deveriam ser escolhidos entre os cidadãos que realmente pertencessem a essa camada. Além disso, cada estado deveria dispor do mesmo número de membros. E, por fim, os votos deveriam ser contados por cabeça.

Contudo, o abade afirma que essas mudanças não eram suficientes para atender às demandas do terceiro estado. Afinal, os membros que o representassem na Assembleia poderiam ser corrompidos pela nobreza e pelo clero. Ademais, mesmo se houvesse uma reforma em prol do pagamento equitativo dos impostos, essa mudança não seria nada mais do que o mero respeito à lei comum. Essas alterações, portanto, não eram capazes de reconhecer a verdadeira força política do terceiro estado. Para tanto, Sieyès (2001) propõe que esse segmento se reúna em uma Assembleia Nacional Constituinte a fim de redigir uma Constituição. Mas, sob quais fundamentos, esse processo ocorreria?

Nessa perspectiva, Sieyès (2001) argumenta que os indivíduos desfrutam de direitos naturais, inerentes à sua própria condição. Contudo, o exercício desses direitos por cada um poderia interferir no exercício desses direitos no todo. Assim, eles realizam um acordo para que esses direitos sejam exercidos conjuntamente, como uma vontade comum, sendo que todos ficariam sujeitos a uma ordem comum, formando uma nação7 7 Cumpre ressaltar que, para Sieyès, nação não se confunde com povo. Enquanto o povo é o conjunto dos indivíduos sujeitos ao poder em determinado período e espaço; a nação é a comunidade que trava relações em prol de interesses constantes que se propaguem no tempo e no espaço (FERREIRA FILHO, 2014). .

Contudo, os associados são numerosos e estão dispersos em um território extenso. Assim, é preciso que eles deleguem o direito de exercício da vontade nacional e do poder, na parte necessária para garantir a boa ordem, a alguns de seus membros. Esses, por sua vez, não podem alterar os limites do poder a que foram confiados. Nessa perspectiva, a vontade comum torna-se representativa, e há a formação de um governo por procuração (SIEYÈS, 2001).

Assim que esse corpo representativo é criado, insta a necessidade de constituí-lo, isto é, de estruturá-lo através de uma Constituição. Contudo, o único legitimado para criar um documento que organizasse o poder e submetesse todos ao seu cumprimento seria a nação, uma vez que não há nenhum direito anterior e acima dela, a não ser os direitos naturais (SIEYÈS, 2001). A nação, portanto, é a titular de um poder constituinte originário.

Como o poder constituinte originário advém da nação, ele é ilimitado e incondicionado. Ilimitado, uma vez que ele não está adstrito às normas anteriores. E incondicionado, na medida em que a nação não precisa seguir um procedimento específico nem esperar por um determinado momento para invocá-lo (FERREIRA FILHO, 2014FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. São Paulo: Saraiva, 2014.).

Ademais, na doutrina de Sieyès, o conceito de nação está intimamente ligado ao de soberania, isto é, à autonomia interna e à independência externa de uma comunidade política. Enquanto no Estado absolutista, a soberania tem seu centro de gravidade no monarca, com a Revolução Inglesa, ela se transfere para o Parlamento. Já com as Revoluções francesa e estadunidense, o poder soberano passaria nominalmente para a nação (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.).

Assim, para Sieyès, nenhum indivíduo é dotado de soberania, pois essa pertence a todos, à comunidade, à nação, tornando-se indivisível. Trata-se de uma soberania nacional em vez de popular. Logo, a participação de todos não é fundamental, sendo que a nação pode atribuir a quem ela quiser o poder de falar por ela (FERREIRA FILHO, 2014FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. São Paulo: Saraiva, 2014.).

Dessa forma, embora a nação seja a titular legítima e soberana do poder constituinte originário, ela pode imputar essa prerrogativa a representantes extraordinários através de uma procuração especial. Dessa forma, ela torna-se um titular passivo, enquanto o grupo formado temporariamente para redigir a Constituição é o seu titular ativo (FERREIRA FILHO, 2014FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. São Paulo: Saraiva, 2014.).

Em suma, a proposta de Sieyès de que o Terceiro Estado se reúna em Assembleia Nacional Constituinte para elaborar uma Constituição é fundamentada nas seguintes assertivas: 1) o terceiro estado é a nação, pois seus membros não usufruem de privilégios e se submetem a uma ordem comum; 2) a nação é soberana e titular do poder constituinte originário, podendo invocá-lo a qualquer tempo; 3) para exercê-lo, ela constitui representantes extraordinários, os quais seriam a Assembleia Nacional Constituinte e 4) essa assembleia é responsável por redigir a Constituição em nome da vontade nacional.

Esse, portanto, é o contexto do surgimento da teoria do poder constituinte. Como essa teoria foi concebida em oposição à teoria do direito divino dos reis, o poder constituinte foi inicialmente apresentado como ilimitado (MIRANDA, 2011). Contudo, atualmente admite-se restrições a esse poder, que podem decorrer tanto do respeito aos direitos naturais, aos valores éticos predominantes e à consciência jurídica coletiva, assim como da necessidade de harmonia com os princípios do direito internacional (CANOTILHO, 2003CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional & Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.).

O fato de que o próprio poder constituinte está sob a influência de aspectos circunstancias enseja a necessidade de um mecanismo de adaptação do texto constitucional. Nessa perspectiva, há o poder constituinte derivado, também chamado de poder constituído. A existência desse poder evita que, a todo e qualquer momento, a nação se insurja contra a ordem constitucional estabelecida. Ademais, ressalva-se que a Constituição estabelece sua forma de exercício, de modo que ele fica adstrito ao ordenamento posto, o que proporciona uma segurança jurídica (BONAVIDES, 2004BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.).

Conforme explica Antonio Negri (2002), a doutrina tradicional compreende que o poder constituinte originário é transcendente ao poder constituinte derivado, de modo que aquele se impõe como algo externo a esse. Assim, o primeiro está na ordem do “dever-ser”, enquanto o segundo consiste no “ser”. Contudo, isso implica na redução da atividade do poder constituinte à elaboração de normas constitucionais e contém a sua potência nas malhas do direito instituído (GUIMARAENS, 2016GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte segundo Antonio Negri: um conceito marxista e spinozista. Revista Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 4, p. 135-168, 2016.).

Canotilho (2003CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional & Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.) ainda destaca que, nos esquemas políticos oitocentistas, a constituição era associada à comunidade política, tanto que a expressão “Constituição da República” remete à ideia de que ela pertence à sociedade como res publica. Entretanto, a partir do século XIX, a Constituição passa a ter como referente o Estado no lugar da sociedade. Para explicar esse processo, o constitucionalista aponta três justificativas e ressalta que elas não se tratam de um processo linear nem de uma história singular.

Essa associação pode ser explicada por um viés histórico-genético, com base na experiência estadunidense e francesa, onde a Constituição dá ensejo ao surgimento do “Estados Unidos da América” e do “Estado-nação”, respectivamente. Ela também pode ser justificada por uma razão político-sociológica, isto é, pela separação do Estado da sociedade, de modo que a Constituição torna-se necessária para organizar os poderes estatais. E, ainda há o fundamento filosófico-político, em que o Estado ordena a comunidade política e a Constituição torna-se sua lei e do seu poder.

Esse vínculo entre Constituição e Estado é também corroborado pela teoria do poder constituinte. Afinal, a doutrina clássica parte da noção de que a Constituição é criada para organizar o exercício do poder político pelo Estado, que adquire tal função em razão do contrato social firmado entre os indivíduos em prol dos seus direitos naturais.

A partir de então, o Estado se apresenta sob a forma de Estado de Direito8 8 José Afonso da Silva (1988) diferencia Estado de Direito de Estado Legal. O primeiro decorreria das Constituições liberais burguesas, caracterizadas pelo princípio da legalidade, a elaboração das leis pelo Poder Legislativo, a divisão de poderes e pela enunciação de direitos e garantias individuais. Já o Estado Legal consistiria no conjunto de normas estabelecidas pelo legislativo, sendo o seu conteúdo desprovido de importância e sem vínculo com a realidade material. Aqui, emprega-se Estado de Direito no sentido de Estado Legal. , isto é, uma estrutura pautada na existência de uma ordem legal cujos preceitos materiais e procedimentais devem ser observados tanto pelas autoridades políticas quanto pelos particulares (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.). Cumpre ressaltar que esse conceito pode ser aplicado tanto a Estados autocráticos como democráticos.

Conforme Canotilho (2003CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional & Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.), a teoria do poder constituinte é um conceito-chave para a Teoria do Estado, pois ela assinala a ocasião culminante em que o poder político é atribuído a uma instituição, que não se confunde com uma pessoa jurídica, uma divindade, uma pessoa sobrenatural, um indivíduo, uma pessoa física. Assim, o conceito de poder constituinte completa o processo de institucionalização e despersonalização do poder, assim como de laicização da política. É sob essa perspectiva, que a Constituição é, notoriamente, concebida como a lei fundamental de um Estado de Direito.

Assim, nessa seção, abordou-se os aspectos que instigam a concepção do primado da Constituição pela doutrina clássica. Essa realiza uma pressuposição analítica, ou seja, ela reduz o conceito de Constituição a palavras-chaves como “supremacia”, “organização” e “poder” e procura esses itens em outros sistemas de organização política na história da humanidade. Todavia, esses elementos adquirem sentidos próprios em cada sistema. Portanto, o fato de eles se repetirem na ordem política das comunidades não significa que eles são dotados do mesmo significado.

Essa leitura ocasiona uma perspectiva teleológica, isto é, como se esses elementos tivessem evoluído até se desembocarem na Lei Fundamental de um Estado. Ademais, há uma análise linear, como se o desenvolvimento do direito fosse consequência de uma crescente diferenciação da sociedade no curso de seu desenvolvimento histórico. Embora esta noção não esteja errada, ela não explica nada sobre as condições sociais e econômicas concretas que levaram a esse processo (HIRSCH, 2010).

Por fim, ela vincula a supremacia constitucional como o resultado de vontades individuais, isto é, a necessidade de os indivíduos se organizarem politicamente impulsionara a criação de um conjunto de normas superiores de estruturação do poder em um dado ordenamento jurídico. Dessa forma, a concepção do primado da Constituição decorreria de uma vontade consciente do ser humano. Contudo, as vontades individuais servem como representantes da realidade, não podendo ser tomadas como ponto de partida para compreendê-la (ALTHUSSER, 1979ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.). Para tanto, é necessário atentar para as bases estruturais que influenciam a formação dessas vontades e que são determinantes para o seu desenvolvimento.

2 A refração operada no conceito de Constituição com a incidência das relações de produção capitalistas

Em contrapartida à doutrina constitucional clássica, outras teorias tentaram situar o conceito de Constituição sob um prisma material e relacionado com os fenômenos socioeconômicos. Foi o caso de Carl Schmitt, jurista alemão que distinguiu a Constituição das leis constitucionais. Enquanto a primeira seria uma decisão política sobre o modo e a forma de unidade de um povo, as leis consistiriam apenas em meios de regulamentação social (SCHMITT, 2007). O problema dessa teoria, conforme Paulo Bonavides (2004BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.), é que, ao desmembrar a Constituição das leis constitucionais, ela tornou indiferente o conteúdo das normas.

Ferdinand Lassale, por sua vez, também apresentou uma teoria fundamentada em preocupações políticas e socioeconômicas. O jurista polonês buscou definir o que é uma Constituição e identificar a sua essência. Nesse sentido, ele concluiu que a Constituição é um papel que traduz os fatores reais de poder, isto é, “uma força ativa que faz, por uma exigência da necessidade, que todas as outras leis e instituições jurídicas vigentes no país sejam o que realmente são” (LASSALE, 2013, p. 10, grifos do autor).

A sua análise, portanto se detém em definir a “essência” da Constituição. Contudo, essa problemática recai em uma herança metafísica, que busca conhecer o objeto real pelo o que ele é, como se existisse uma realidade dispersa, seccionada em coisas, seres, entidades, cada qual com a sua individualidade e identidade própria e exclusiva (PRADO JUNIOR, 1973). Essa abordagem também o repele de explicar o porquê a supremacia constitucional é uma “exigência da necessidade”. Logo, há um limite em sua teoria, pois ele estuda a Constituição conforme a sua manifestação enquanto principal conjunto de normas de uma sociedade, e não se ocupa de o porquê de ela assim o ser.

Nessa senda, para se conhecer um objeto é necessário investigar as relações em que ele está inserido. Afinal, a relação suscita uma nova individualidade, que é fundada no todo e somente existe nesse todo (PRADO JUNIOR, 1973).

Para tanto, o método materialista histórico dialético legado por Karl Marx é oportuno, na medida em que ele considera os fatos não em si, mas em função uns dos outros, indagando como eles se entrosam no tempo (sucessão), como no espaço (simultaneidade). Assim, emprega-se tal método para entender o primado da Constituição a partir do todo social estruturado em que essa concepção se consolida.

2.1 O desenvolvimento das relações de produção capitalistas e suas respectivas formas sociais

Para a matriz teórica marxista, o problema da filosofia é que ela tenta explicar a história da humanidade a partir da autoconsciência e das vontades individuais. Todavia, os seres humanos precisam estar em condições de viver para fazer história (MARX; ENGELS, 2007). Assim, essa problemática deve ser abordada a partir da produção da vida material.

Ademais, esse não é um processo resultante de vontades individuais. Pelo contrário, a produção da vida material suscita a divisão das atividades laborativas. A partir de então, os indivíduos constituem classes sociais eivadas de contradições, de modo que a luta de classes se torna o motor da história, e não o indivíduo em si (ALTHUSSER, 1979ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.).

Nessa perspectiva, a história é marcada pela interação contínua entre o ser humano e a natureza para a produção de meios de subsistência (PALAR; SILVA; CARDOSO, 2017). Para Marx (2013, p. 120) esse ato consiste no trabalho e resulta na criação de valores de uso, isto é, em bens que satisfazem as necessidades humanas. Logo, todo valor de uso é portador de trabalho humano.

Contudo, o trabalho adquire diferentes propósitos conforme o contexto histórico. Nas sociedades primitivas, a produção era voltada para o valor de uso. No feudalismo, apesar das relações comerciais incipientes, esse objetivo se mantém (FOLADORI, 1997FOLADORI, Guillermo. A questão ambiental em Marx. Crítica Marxista, São Paulo, v.1, n.4, p.140-161, 1997.). No entanto, esse propósito é transformado com o advento das relações de produção capitalistas (FOLADORI, 1997).

Com a formação dos burgos e a derrocada do feudalismo no século XVIII9 9 Para uma melhor compreensão desse processo, retomar à seção 1, subseção 1.1 desse artigo. , a circulação mercantil ganha significativa importância para a esfera econômica. Ademais, a grande massa de trabalhadores que se dirigem às cidades impulsiona a criação de corporações, isto é, associações em que se reuniam indivíduos para exercer o mesmo ofício sob o comando de um mestre. Esses acontecimentos intensificam as trocas mercantis e, consequentemente, torna-se necessário estabelecer um modo eficaz de definir a equivalência entre os bens a serem trocados (MARX, 2013, p. 144).

Nesse sentido, observa-se que todos os valores de uso são dotados de uma única característica em comum: o trabalho humano. Assim, para medir o seu valor de troca, considera-se a quantidade de trabalho humano dispendida na sua produção. Quando não se atenta para as condições especificas e as particularidades desse trabalho, tem-se apenas o seu valor. Portanto, o valor é uma forma que representa o tempo médio de trabalho abstrato e indiferenciado socialmente necessário para a produção de uma mercadoria (MARX, 2013).

Assim, os oficiais das corporações produziam valores de uso que eram trocados na esfera da circulação mercantil. Em compensação por essa atividade, eles recebiam um salário correspondente às suas necessidades. O problema é que eles trabalhavam mais tempo do que o exigido para a obtenção dos seus provimentos. Assim, eles proporcionavam mais valor para o mestre. Para Marx (2013), essa forma de exploração pelo prolongamento da jornada caracteriza a subsunção formal do trabalho pela extração de mais-valia absoluta e marca o advento do modo de produção capitalista.

Nessa perspectiva, os mestres de corporações consistiam em uma nascente burguesia no processo de acumulação primitiva de capital. Por isso, Márcio Bilharinho Naves (2014) salienta que as relações de produção capitalistas são anteriores às suas forças produtivas.

O surgimento de meios de produção novos, especialmente as máquinas, divide o trabalho em intelectual e manual, consolidando a expropriação do trabalhador das condições objetivas e subjetivas do trabalho (NAVES, 2014). Esse processo possibilita que, em um mesmo período, os trabalhadores produzam uma maior quantia de mercadorias, embora não recebam pelo produto excedente. Dessa forma, produz-se mais valor sem prolongar a jornada (MARX, 2013, p. 578). Para Marx (2013), essa circunstância trata-se da subsunção real do trabalho pela extração de mais-valia relativa e assinala a consolidação do modo de produção capitalista.

Nessa perspectiva, a contradição fundamental do capitalismo é a separação do trabalhador dos meios de produção, revelando um processo sistemático brutal de espoliação do trabalhador (CUNHA, 2014CUNHA, José Ricardo. Direito e marxismo: é possível uma emancipação pelo direito? Revista Direito & Práxis, v. 5, n. 9, p. 442-461, 2014.). Na medida em que este se encontra desprovido das condições materiais para a sua sobrevivência, ele necessariamente se submete à exploração daquele que detém esses meios. A questão é que essa submissão não se dá pela coerção e essa exploração não se manifesta de modo evidente (KASHIURA JUNIIOR, 2014).

O modo de produção capitalista suscita relações sociais que são necessárias para a sua existência e que, ao mesmo tempo, dependem dele para se reproduzirem. Assim, essas relações são determinadas em última instância pela estrutura produtiva, contudo elas possuem uma autonomia relativa, que possibilita que elas atuem sobre essa estrutura, configurando-a (MASCARO, 2013).

Essas relações sociais, todavia, se apresentam como independentes dos indivíduos ao se manifestarem como formas sociais. Logo, essas configurações fetichizadas impedem que eles enxerguem de modo transparente a realidade material e concreta. Assim, as formas sociais tornam passíveis de aceitação os antagonismos sociais do capitalismo. E, ao fazer isso, elas proporcionam coesão à sociedade, mantendo e reproduzindo as relações de produção capitalistas através das suas contradições (HIRSCH, 2007a).

Elucidando esse ponto, tem-se que o modo de produção capitalista se caracteriza pela expropriação de mais-valia do trabalhador no processo de produção. Contudo, para que a mais-valia seja realizada é necessário que o invólucro que a contém seja trocado na esfera da circulação. Por isso, Marx (2013, p. 240) afirma que “[...] o capital não pode ter origem na circulação, tampouco pode não ter origem na circulação”.

Contudo, as mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocarem umas as outras. Elas precisam de guardiões que as relacionem entre si e que, consequentemente, também se relacionem um com o outro (MARX, 2013, p. 159). Ao proceder de tal forma, os guardiões estabelecem uma relação abstrata e impessoal, da mesma forma que são as mercadorias (PACHUKANIS, 2017, p. 124-128).

Assim, os possuidores de mercadorias só se relacionam entre si na medida em que, assim, o desejam fazê-lo. Portanto, a relação é baseada na livre vontade e na autonomia de cada um. Ademais, ambos se relacionam enquanto proprietários que trocam equivalentes, portanto há igualdade entre as mercadorias e entre os guardiões (EDELMAN, 1976EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelho, 1976.).

Dessa forma, os atributos da liberdade, igualdade e autonomia da vontade tornam o proprietário um “sujeito de direito”. Conforme Evguiéni Pachukanis (2017), o sujeito é o átomo da teoria jurídica, consistindo em seu elemento mais simples e indivisível. Assim, através dessa categoria, a relação de troca mercantil é sustentada por uma forma jurídica.

Todavia, a universalização da personalidade jurídica do ser humano ocorre em razão e apesar da universalização da coisificação do indivíduo (KASHIURA JUNIOR, 2014). Afinal, o próprio sujeito é portador de uma mercadoria: a força de trabalho. Ao vendê-la, ele atua como proprietário e, enquanto tal, ele age livremente. Assim, a sua sujeição às relações de produção capitalista, dispondo de si mesmo como objeto, apresenta-se como a realização plena da sua liberdade (KASHIURA JUNIOR, 2014).

Logo, no capitalismo, a igualdade e a liberdade são advindas da troca de mercadorias e são voltadas para esse processo (KASHIURA JUNIOR, 2014). A complexidade da circulação de mercadorias reside, portanto, nas relações contratuais recíprocas e nas exigências de regras universalmente válidas (ENGELS; KAUTSKY, 2012ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012.).

Cumpre ainda ressaltar que a forma jurídica não sofre uma determinação simples pela circulação mercantil. Afinal, o processo de valor de troca está estruturado nas relações de produção, de modo que as condições da circulação dependem da constituição de um processo de produção determinado10 10 Vinicius Casalino (2016) aponta que, no modo de produção capitalista, predomina a forma de circulação de capital sobre a forma da circulação simples. A circulação simples é baseada na conversão de mercadoria em dinheiro e conversão de dinheiro em mercadoria (M-D-M), ou seja, vender para trocar. Já a circulação de capital é fundada na conversão de dinheiro em mercadoria e a reconversão de mercadoria em dinheiro (D-M-D), ou seja, comprar para vender. Contudo, o circuito D-M-D só adquire sentido se, ao final, alcança-se uma magnitude de valor maior do que aquela que fora inicialmente lançada, isto é, se for alcançado D’. Nesse sentido, Casalino aponta um problema na análise da forma jurídica a partir esfera da circulação de capital, pois o circuito D-M-D’ pressupõe um acréscimo de valor ao final, de modo que não haveria uma relação de equivalência nesta relação e, logo, o modo de produção capitalista seria antijurídico. Para contornar essa problemática, Casalino explica que o acréscimo do valor ao final é gerado na esfera da produção através do trabalho abstrato. O aumento da magnitude do valor ocorreria fora da esfera da circulação, de modo que, nesta esfera, não se violariam as leis de equivalência. . Portanto, a determinação entre a forma jurídica e a forma mercadoria trata-se, na verdade, de uma sobredeterminação (NAVES, 2008).

Nessa perspectiva, a forma jurídica consiste na expressão subjetiva da subsunção do trabalho ao capital (KASHIURA JUNIOR, 2014). A forma jurídica é específica do modo de produção capitalista, tanto que Marx e Engels (2007) afirmam que o direito não tem uma história própria. Embora nas sociedades anteriores, existiram elementos similares a ele, com estes não se confunde.

Na Idade Antiga, por exemplo, o direito era vinculado à noção de justiça e virtude, não se pautando pelas normas. Na Idade Média, aquilo que é chamado por direto, trata-se, no mais das vezes, em regras religiosas e morais travestidas por jurídicas. Já na Idade Moderna, o direito e o justo advêm do direito natural, de caráter invariável e eterno, uma vez que são produtos da razão universal. Por outro lado, na Idade Contemporânea, o direito é reduzido a uma manifestação técnico-normativa e separado da moral, da ética, da religião e dos costumes, em atenção à lógica fria da circulação mercantil (MASCARO, 2016).

Nessa perspectiva, a forma jurídica é a configuração fetichizada que impede que a relação de exploração do trabalhador pelo capitalista se manifeste de modo evidente. Nesse sentido, o indivíduo sofre uma interpelação ideológica, transformando-o em sujeito e impulsionando-o a conceber de modo imaginário a sua relação com as condições de existência (ALTHUSSER, 1985ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.).

Todavia, ao mesmo tempo em que os trabalhadores são considerados livres e iguais, eles estão inseridos em relações estruturais de desigualdade e de classe. Essa contradição, por sua vez, pode impulsionar mobilizações sociais (HIRSCH, 2010).

O problema é que para impedir uma revolta, o capitalista não pode fazer, teoricamente11 11 Convém anotar que não se olvida aqui que existam momentos em que as forças do capital se utilizaram (e ainda se utilizam) da força direta para subjugação de classe e garantia da reprodução do capital. Ora, Marx mesmo bem demonstrou, ao tratar da chamada acumulação primitiva no célebre Capítulo XXIV d’O Capital (2013, p. 785-833), o quão imprescindível foi à gênese do capitalismo um conjunto de mecanismos violentos de expropriação da propriedade dos meios de trabalho dos trabalhadores e de decomposição das relações propriedade e de produção feudais até a construção do moderno Estado de direito sob a ideia fetichista da liberdade e igualdade formais. Ademais, sabemos hoje que esses processos violentos de expropriação passam também a ser uma constante na história do capitalismo, como mecanismos de garantia de sua reprodução, especialmente em seus momentos de crise estrutural, como bem anota David Harvey ao definir a chamada acumulação via espoliação. Nesse sentido, Harvey, na esteira de Rosa Luxemburgo, bem anota que o capitalismo precisa constantemente de “algo fora de si” (os mecanismos violentos de expropriação da propriedade) como forma contratendencial de rebater suas sucessivas crises de sobreacumulação e se estabilizar, garantindo a manutenção da reprodução ampliada do capital. Há, portanto, uma “dialética interior-exterior” no capitalismo, que conforma uma relação orgânica entre a reprodução ampliada, típica do capitalismo, e os processos violentos de espoliação (HARVEY, 2014, p. 115-116). , uso direto da força, pois a partir do momento em que uma das partes possui a capacidade de subordinar a outra, não mais vigoraria a liberdade e a igualdade entre os possuidores de mercadorias. Assim, é necessário que a coerção seja exercida por uma pessoa abstrata e geral, que atue não em prol dos interesses dos indivíduos da qual provém, mas em nome de todos que estão inseridos nas relações jurídicas (PACHUKANIS, 2017). Esse terceiro impessoal é o Estado, que assume a função de estruturar a exploração jurídica do trabalho (MASCARO, 2016).

Nesse sentido, o Estado sustenta relações antagônicas e contraditórias da sociedade, fundadas nas estruturas da produção social. Consequentemente, ele pode atuar em oposição aos interesses de um capitalista individual e inclusive à própria burguesia no intuito de reproduzir as condições sociais de produção capitalista (HIRSCH, 2010). Portanto, no capitalismo, a exploração da força de trabalho não ocorre pela força direta. Ela depende do Estado por intermédio do direito (CALDAS, 2014CALDAS, Camilo Onoda. O Estado. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2014.).

Dessa forma, a representação jurídica do Estado é fundada na sua separação da sociedade civil. O Estado torna-se o local de representação dos interesses gerais, enquanto a sociedade civil é o local onde habitam os interesses particulares. O acesso ao Estado, portanto, só pode ser alcançado por indivíduos despojados de sua classe social, apenas enquanto cidadãos. Assim, ele anularia as classes, de modo em que seu seio não houvesse contradições, sendo pautado pelo bem comum (NAVES, 2008).

Nessa perspectiva, o caráter classista do Estado está vinculado à forma política. Não se trata de um mero instrumento de classe, cujo caráter se altera com quem detém o poder. Essa leitura simplista é sustentada inclusive por Engels (1974ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.), para quem o Estado é produto da sociedade em seu mais elevado grau de desenvolvimento. Uma vez que ele nasceria no seio dos antagonismos de classe, em regra, ele seria o Estado da classe dominante. No entanto, essa abordagem é equivocada.

O caráter burguês do Estado não está relacionado ao domínio direto do poder pela classe capitalista. Isso implica dizer que, em condições de “normalidade institucional” da democracia burguesa, o Estado não se apresenta como um burguês em específico nem está em sua função direta e imediata no exercício do poder político, mas se constitui como aquele “aparato terceiro” impessoal entre as classes sociais, que atua de forma a mediar suas relações de classe (MASCARO, 2013, p. 18). O caráter burguês do Estado, portanto, também está relacionado ao fato de ele representar uma autonomização do poder frente às classes sociais, consolidando a separação entre política e economia (HIRSCH, 2010).

Essa dita “autonomia” do Estado burguês é, entretanto, apenas relativa, pois, muito embora se apresente como um elemento terceiro na relação entre as classes sociais, ele promove em último grau a reprodução social nos moldes dos interesses gerais das classes dominantes (BUENO; SILVA, 2014BUENO, Igor Mendes; SILVA, Maria Beatriz da. Constituinte e lutas populares: o materialismo da constituição e as lutas pela constituinte exclusiva. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 1, n. 2, p. 243-266, 2014., p. 247; CARNOY, 2011CARNOY, Martin. Estado e teoria política. 17. ed. Campinas: Papirus, 2011., p. 138). Esses interesses são inscritos nas instituições do Estado e seu corpo de normas, que conformam os traços mais básicos da sociabilidade burguesa, desde mesmo a própria noção de subjetividade jurídica, que constitui o núcleo da forma jurídica capitalista. Dessa forma, o “caráter impessoal” do Estado não nega a separação da sociedade em classes, de modo que ele contribui para a reprodução das condições sociais da produção capitalista (CALDAS, 2015CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões, 2015.).

Se a função do Estado coincide com os interesses da classe dominante em dada formação social, isso ocorre por causa do sistema em si, isto é, consiste em um efeito do caráter classista, mas não a sua causa (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978). Portanto, o caráter classista do Estado deve-se ao fato de que ele é parte constitutiva estrutural da própria relação de produção capitalista, a qual constitui, por sua vez, as classes sociais (CALDAS, 2015CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões, 2015.).

No entanto, cumpre ressaltar que o Estado é uma mera expressão da forma política do modo de produção capitalista. Na medida em que a relação entre trabalhador e capitalista requer que nenhuma das partes seja capaz de sujeitar a outra, é preciso que as relações econômicas sejam desvinculadas das relações políticas. Assim, essas relações assumem uma configuração coisificada e fetichizada, que seria a forma política (MASCARO, 2013).

Por conseguinte, a forma política não se limita ao Estado (HIRSCH, 2007b). Esse é apenas uma materialização daquela relação objetificada, que atua em consonância com ela e, consequentemente, guarda as suas contradições. Nessa senda, o Estado está para a sociedade, assim como a personalidade jurídica está para o indivíduo, no sentido de que ambos se propõem garantir a liberdade e a igualdade dos indivíduos (MIAILLE, 2005), ou melhor, eles ancoram a circulação mercantil.

O Estado se manifesta como um poder organizado, separado da sociedade civil, que desassocia a política da economia e representa os interesses gerais. Já o direito firma o indivíduo enquanto sujeito de direito e, portanto, dota-o de liberdade, igualdade formal e autonomia de vontade.

Assim, observa-se que tanto os fundamentos do Estado quanto o núcleo jurídico do direito se encontram consagrados em um documento: a Constituição. Portanto, insta investigar como as formas política e jurídica estão contidas em seu texto e quais as consequências dessa inserção.

2.2 A conciliação da hierarquia constitucional com as formas sociais do capitalismo

Há um nexo íntimo entre forma política e forma jurídica, uma vez que elas remanescem da mesma fonte, apoiam-se mutuamente, conformando-se. Não são dois pilares estruturais que agem separadamente, eles se implicam. Nessa senda, a conjugação dessas duas configurações se consolida quando a forma política estatal assume o caráter jurídico, ou seja, no momento em que ela se institui enquanto Estado de Direito (MASCARO, 2013).

O Estado é uma materialização da forma política do capitalismo (HIRSCH, 2010), pois ele legitima a separação do domínio político do econômico e maquila o exercício do poder como neutro e impessoal. A Constituição contribui para esse entendimento na medida em que ela firma o Estado como representantes dos interesses gerais, estabelece os seus objetivos, a sua forma de governo, seu modo de organização, assim como impõe limites para sua atuação (BONAVIDES, 2004BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.).

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é possível observar a materialização da forma política no Estado, quando se analisa, por exemplo, o parágrafo único do artigo 1º. Nesta norma, declara-se que o poder é exercido através de um sistema representativo ou através de instrumentos de democracia direta. Essa disposição normativa impede que o poder político seja atribuído a uma classe social específica ou a uma fração de classes. Em tese, o exercício do poder político está separado dos interesses de determinado grupo, ou seja, opera-se a separação entre política e economia através de um aparato neutro e imparcial.

O sistema representativo também possibilita que indivíduos de diferentes camadas sociais tenham suas reivindicações ouvidas e acolhidas em âmbito institucional. Este fator afasta a ideia de que o Estado é um instrumento de classe como, de fato, ele não o é, como anteriormente explicado. Todavia, a separação entre a política e a economia é apresentada, através desta norma, como uma mera consequência da existência do Estado. Esse elemento não é compreendido como um atributo fundamental para o desenvolvimento das relações de produção capitalistas.

Já o direito é uma manifestação da forma jurídica do capitalismo (PACHUKANIS, 2017), na medida em que ele alicerça a categoria sujeito de direito, protegendo a liberdade, a igualdade e a autonomia do indivíduo. A Constituição auxilia nesse suporte, tendo em vista que ela reconhece tais prerrogativas como direitos anteriores ao próprio ato constituinte, sendo que eles devem ser inclusive respeitados pelo poder constituinte originário e são limites à atuação do poder constituinte derivado (CANOTILHO, 2003CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional & Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.).

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por exemplo, a liberdade e a igualdade são consideradas fundamentos da dignidade da pessoa humana. Essa disposição legal faz com estes atributos não sejam reconhecidos, precipuamente, como condições fundamentais para a existência das relações de trocas mercantis. Pelo contrário, eles são apresentados como elementos intrínsecos aos seres humanos, em uma perspectiva a-histórica e desvinculada das relações sociais concretas.

O fato de que a liberdade, a igualdade e a propriedade sejam reconhecidos como direitos fundamentais também implica que toda atuação da Administração Pública, bem como qualquer prática realizada pelos particulares e o conjunto do ordenamento jurídico brasileiro, no que concerne à interpretação e aplicação de suas normas, devam atentar a estes preceitos. A Constituição Federal de 1988 valida, pois, os fundamentos da sociabilidade burguesa e os torna mandamentos jurídicos que, em caso de descumprimento, podem ser impostos pelo Estado.

Logo, o Estado opera em conjunto com as relações sociais permeadas pelo direito, sendo que a Constituição é o instrumento que firma a vinculação entre Estado e direito e informa o modo pelo qual ela se efetua. Nessa perspectiva, a Constituição comporta em seu corpo tanto a forma política e a forma jurídica das relações de produção capitalistas.

Embora o capital perpasse a Constituição, isso não implica que ele determine imediatamente todas as suas manifestações. Afinal, a existência do capital demanda a separação dos trabalhadores dos meios de produção, contradição fundamental que coloca os trabalhadores e a classe dominante em constantes processos de disputa. Nesse sentido, o conteúdo normativo da Constituição pode ser influenciado pela situação política da luta de classes (KASHIURA JUNIOR, 2014).

Dessa forma, a Constituição é também um espaço onde se desenvolvem e se inscrevem as lutas de classes. Nicos Poulantzas já muito propriamente definira o Estado como uma condensação material de uma correlação de forças (POULANTZAS, 1980, p. 141-187). A partir dessa concepção poulantziana, o Estado é compreendido como intrinsecamente ligado às lutas sociais - um “campo de disputas” atravessado de lado a lado pelas contradições de classe (BUENO; SILVA, 2014BUENO, Igor Mendes; SILVA, Maria Beatriz da. Constituinte e lutas populares: o materialismo da constituição e as lutas pela constituinte exclusiva. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 1, n. 2, p. 243-266, 2014., p. 248). Nesse sentido, a Constituição também pode ser compreendida justamente uma expressão dessa correlação de forças num dado momento histórico em uma determinada formação social concreta, que busca cristalizar e dar relativa segurança a esse dado período histórico específico (BUENO; SILVA, 2014, p. 249). Por isso, nos períodos de elaboração constitucional, há intensa mobilização social, tornando evidente as diferenças e os nós de conflitos entre diversas representações do político (MIAILLE, 2015).

Assim, a Constituição não é um documento jurídico pronto, mas um processo que se desenvolve no tempo e no espaço. As classes que predominam no processo de sua elaboração intentam registrar o presente e estabilizá-lo, em uma tentativa de fixação do futuro (LIMA, 2009). O período de sua vigência depende da sua capacidade em reproduzir as condições gerais exteriores da lógica da formação societária para qual foi concebida (CASTRO; MEZZAROBA, 2015CASTRO, Matheus Felipe de; MEZZAROBA, Orides. História ideológica e econômica das Constituições Brasileiras. Belo Horizonte: Arraes, 2015.).

Nessa perspectiva, as disputas políticas que a Constituição expressa influenciam na configuração do Estado e do Direito. Em razão disso, estes podem adquirir um conteúdo liberal, social, socioambiental, etc. Todavia, isso não altera o fato de que eles estão intrinsecamente relacionados às formas sociais do capitalismo. Em razão disso, eles não são capazes de transformar o modo de produção capitalista, pois esse dá base às suas existências (NAVES, 2008).

Diante dessas circunstâncias, observa-se que a Constituição autentica a forma jurídica e respalda a forma política do capitalismo. Assim, no momento em que ela é considerada o conjunto de normas jurídicas superiores de um Estado de Direito, vinculando tudo e todos ao seu texto, consequentemente, ela garante que os processos sociais ocorram em consonância com as engrenagens do capital.

Ademais, observa-se que com a incidência das relações de produção capitalistas, o conceito de Constituição é transformado. Dessa forma, a mudança do seu meio de propagação origina variações em sua concepção, como em um fenômeno físico de refração. Nesse contexto é que ela se torna a lei fundamental de um Estado de direito, desfrutando de supremacia hierárquica em um dado ordenamento jurídico (BARROSO, 2017BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2017.).

Assim, por fim, insta a necessidade de evidenciar a relação entre a concepção do primado da Constituição e o desenvolvimento das relações de produção capitalistas, e de que modo aquela noção contribui para a reprodução dessas relações. Afinal, Marx e Engels (2007, p. 94-95) já alertavam “a produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real”.

Considerações finais

A associação entre o primado da Constituição e o desenvolvimento das relações de produção capitalistas não é ocasional, uma vez que o surgimento desse entendimento no período de advento do capitalismo não é uma mera coincidência. Por outro lado, esse vínculo não é puramente causal, como se essa noção fosse um desdobramento lógico da economia.

Para compreender essa concepção, é preciso observar esse fenômeno social a partir das práticas materiais. Dessa forma, essa noção se estabeleceu com base em uma série de transformações ocorridas no século XIX, impulsionadas pelas Revoluções liberais do século anterior. Em razão de uma epistemologia eurocêntrica do conhecimento, essas experiências dos centros hegemônicos e as categorias utilizadas para explicá-las, como a noção de Estado e Constituição, são postas como universais e, consequentemente, empregadas na compreensão das mais diversas realidades.

Assim, considera-se que na política, há o fim do Estado absolutista e a sua conversão em Estado liberal. Na sociedade, ocorre a ascensão da burguesia em detrimento da aristocracia. No campo das ideias, os fundamentos religiosos são refutados pelo jusnaturalismo. Na economia, a fonte de riqueza torna-se a posse de dinheiro em vez da quantidade de terras. Na esfera trabalhista, tem-se a substituição do trabalho feudal pelo assalariado.

Todas essas transformações, por sua vez, ligam-se intimamente a um único fato, ao mesmo tempo em que o constituem: o advento das relações de produção capitalistas. Assim, a concepção da Constituição como o conjunto de normas jurídicas superiores de um Estado de Direito ocorre em um contexto de intensas transformações na formação social, de modo a instaurar-se enquanto suporte aos novos arranjos e, consequentemente, ratificando o processo de ascensão da burguesia e desenvolvimento das relações de produção capitalistas.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a concepção do primado da Constituição se relaciona com o desenvolvimento das relações de produção capitalistas tanto pela autenticação da forma jurídica quanto pelo respaldo à forma política.

Há a autenticação da forma jurídica na Constituição, no momento em que ela firma a igualdade, a liberdade e autonomia da vontade, como direitos fundamentais do indivíduo. Ao firmar estes valores, ela também estabelece e cristaliza o núcleo da subjetividade jurídica, que é elemento essencial das relações de produção capitalistas, baseadas na compra e venda da força de trabalho e sua consequente transformação em mercadoria, a ser livremente negociada no circuito de trocas. Ao individualizar e igualizar a todos os agentes produtivos neste circuito de livre compra e venda da força de trabalho, ela também contribui com o processo ideológico de escamoteamento dos mecanismos de exploração embutidos nessas relações. A autenticação ocorre porque ela atribui uma veracidade à noção de que as relações de troca de mercadorias decorrem da vontade de seus possuidores, quando, na verdade, elas consistem em uma relação de exploração. Como esse processo se desenvolve por meio da legalidade, pode-se afirmar que também ocorre a autenticação, no sentido de tornar essa relação legal.

Há o respaldo à forma política na Constituição, uma vez que ela sustenta a relativa separação entre política e economia. O respaldo ocorre na medida em que as suas normas garantem que o Estado não se confunda diretamente com a sociedade civil, seja com um indivíduo ou com alguma classe, fração, ou grupo social. Ela confere toda a estrutura necessária para a conformação da forma política capitalista, estabelecida como um elemento “terceiro” nas relações sociais, e especificamente as de produção. Além disso, as suas normas buscam que a atuação estatal não se limite aos interesses diretos de classe, conciliando interesses privados e gerais em prol de um proclamado “bem comum”.

Nessa perspectiva, ela autentica a forma jurídica e respalda a forma política, justamente quando, ao mesmo tempo, afirma os direitos fundamentais que conformam o núcleo da subjetividade jurídica capitalista e limita o poder político, apartando-o do domínio direto de uma determinada classe ou grupo social.

Ademais, a concepção do primado da Constituição contribui para o desenvolvimento das relações na produção capitalista, na medida em que retira o caráter histórico da forma jurídica, evita insurgências de grupos sociais e proporciona segurança à reprodução das relações de produção capitalistas.

Ao dispor da liberdade, igualdade e autonomia da vontade como direitos fundamentais do indivíduo, inerentes à condição humana, e ao ser considerada como um fator presente em toda e qualquer comunidade política que possuísse alguma forma de organização, a concepção moderna de Constituição faz com que a forma jurídica do capitalismo torna-se a-histórica. Assim, as relações de produção capitalistas e as suas contradições aparecem de forma naturalizada.

Ademais, a Constituição é capaz de compatibilizar os diferentes interesses das classes, uma vez que é possível incorporar ao seu texto determinados ganhos para as classes subordinadas a partir de pressões demarcadas pelas correlações de forças em dados momentos específicos (direitos e garantias sociais, expansão das liberdades políticas, etc.), desde que eles não ofendam o seu núcleo essencial. Essas alterações evitam que a classe se insurja contra a ordem posta ou demande novos processos constituintes originários, de modo a assegurar a permanência no tempo de todo o ordenamento jurídico por ela fundado e, consequentemente, das formas sociais por ela estabelecidas.

Por fim, a configuração da Constituição como o principal conjunto de normas de um dado ordenamento jurídico estabelece a sua supremacia e a torna um vetor para as normas infraconstitucionais, de modo a proporcionar segurança jurídica. Dessa forma, ela garante que nenhuma norma inferior a ela fuja de suas prescrições básicas (onde se encontram como primado os princípios básicos das formas jurídica e política capitalistas).

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  • 1
    Enquanto as Constituições escritas são aprovadas por um órgão competente, as normas das Constituições costumeiras são oriundas da prática ou do costume sancionado ou imposto (BONAVIDES, 2004).
  • 2
    Para diferenciar a noção de constituição como a capacidade de estruturar uma comunidade política da concepção de Constituição como lei fundamental de um Estado, redige-se esta palavra, em seu segundo significado, com a primeira letra em capitular.
  • 3
    O autor emprega “Constituição” nessa expressão. Contudo, para melhor compreensão do texto, emprega-se, aqui, “constituição histórica” ou “constituição institucional” com letra minúscula, uma vez que o seu significado é lato sensu.
  • 4
    Canotilho (2003) elucida que a ordem jurídica estamental consiste em um tipo específico de ordem comunitária, típica da Idade Média, em que os direitos e deveres são atribuídos aos sujeitos conforme a sua integração em um determinado momento.
  • 5
    Convém observar que a teoria constitucional possui uma base epistemológica eurocêntrica, ou seja, a concepção clássica acerca da Constituição deriva das experiências dos centros hegemônicos, as quais são tomadas como experiências universais. Conforme explica Edgardo Lander (2005), o fato de que as experiências históricas europeias assumam um caráter universal faz com que as formas desenvolvidas para a compreensão dessas sociedades, como o conceito de Estado, de sociedade civil e, nesse sentido, pode-se acrescentar inclusive o conceito de Constituição, se convertam nas únicas formas válidas, objetivas e universais para se compreender qualquer outra realidade.
  • 6
    No Brasil, essa obra foi intitulada como “A Constituinte Burguesa” pela Editora Lumen Júris.
  • 7
    Cumpre ressaltar que, para Sieyès, nação não se confunde com povo. Enquanto o povo é o conjunto dos indivíduos sujeitos ao poder em determinado período e espaço; a nação é a comunidade que trava relações em prol de interesses constantes que se propaguem no tempo e no espaço (FERREIRA FILHO, 2014).
  • 8
    José Afonso da Silva (1988) diferencia Estado de Direito de Estado Legal. O primeiro decorreria das Constituições liberais burguesas, caracterizadas pelo princípio da legalidade, a elaboração das leis pelo Poder Legislativo, a divisão de poderes e pela enunciação de direitos e garantias individuais. Já o Estado Legal consistiria no conjunto de normas estabelecidas pelo legislativo, sendo o seu conteúdo desprovido de importância e sem vínculo com a realidade material. Aqui, emprega-se Estado de Direito no sentido de Estado Legal.
  • 9
    Para uma melhor compreensão desse processo, retomar à seção 1, subseção 1.1 desse artigo.
  • 10
    Vinicius Casalino (2016) aponta que, no modo de produção capitalista, predomina a forma de circulação de capital sobre a forma da circulação simples. A circulação simples é baseada na conversão de mercadoria em dinheiro e conversão de dinheiro em mercadoria (M-D-M), ou seja, vender para trocar. Já a circulação de capital é fundada na conversão de dinheiro em mercadoria e a reconversão de mercadoria em dinheiro (D-M-D), ou seja, comprar para vender. Contudo, o circuito D-M-D só adquire sentido se, ao final, alcança-se uma magnitude de valor maior do que aquela que fora inicialmente lançada, isto é, se for alcançado D’. Nesse sentido, Casalino aponta um problema na análise da forma jurídica a partir esfera da circulação de capital, pois o circuito D-M-D’ pressupõe um acréscimo de valor ao final, de modo que não haveria uma relação de equivalência nesta relação e, logo, o modo de produção capitalista seria antijurídico. Para contornar essa problemática, Casalino explica que o acréscimo do valor ao final é gerado na esfera da produção através do trabalho abstrato. O aumento da magnitude do valor ocorreria fora da esfera da circulação, de modo que, nesta esfera, não se violariam as leis de equivalência.
  • 11
    Convém anotar que não se olvida aqui que existam momentos em que as forças do capital se utilizaram (e ainda se utilizam) da força direta para subjugação de classe e garantia da reprodução do capital. Ora, Marx mesmo bem demonstrou, ao tratar da chamada acumulação primitiva no célebre Capítulo XXIV d’O Capital (2013, p. 785-833), o quão imprescindível foi à gênese do capitalismo um conjunto de mecanismos violentos de expropriação da propriedade dos meios de trabalho dos trabalhadores e de decomposição das relações propriedade e de produção feudais até a construção do moderno Estado de direito sob a ideia fetichista da liberdade e igualdade formais. Ademais, sabemos hoje que esses processos violentos de expropriação passam também a ser uma constante na história do capitalismo, como mecanismos de garantia de sua reprodução, especialmente em seus momentos de crise estrutural, como bem anota David Harvey ao definir a chamada acumulação via espoliação. Nesse sentido, Harvey, na esteira de Rosa Luxemburgo, bem anota que o capitalismo precisa constantemente de “algo fora de si” (os mecanismos violentos de expropriação da propriedade) como forma contratendencial de rebater suas sucessivas crises de sobreacumulação e se estabilizar, garantindo a manutenção da reprodução ampliada do capital. Há, portanto, uma “dialética interior-exterior” no capitalismo, que conforma uma relação orgânica entre a reprodução ampliada, típica do capitalismo, e os processos violentos de espoliação (HARVEY, 2014, p. 115-116).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2019
  • Aceito
    25 Ago 2019
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