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Teoria da Reprodução Social: apontamentos para uma perspectiva unitária das relações sociais capitalistas

Social Reproduction Theory: notes for a Unitary Theory of capitalist social relations

Resumo

O presente artigo visa discutir os traços distintivos da Teoria da Reprodução Social (TRS). Argumento que, ao resgatar a noção marxiana de totalidade social, a TRS avança em relação à formulações anteriores da perspectiva unitária no sentido de desenvolver uma compreensão da dinâmica que envolve a produção capitalista e a reprodução da vida cotidiana da classe trabalhadora, i.e., as relações de opressão, exploração, expropriação e alienação nas sociedades contemporâneas. Trata-se de importante e distinta chave de análise das interações entre classe, raça, gênero e sexualidade no capitalismo.

Palavras-chave:
Teoria da Reprodução Social; Gênero; Raça; Totalidade Social

Abstract

This paper aims to discuss the distinctive aspects of Social Reproduction Theory (SRT). I argue that by recovering Marx’s notion of social totality, SRT moves forward from previous formulations from the unitary perspective in order to develop a understanding of the dynamics surrounding capitalist production and the reproduction of the daily life of the working class, i.e., the relations of oppression, exploitation, expropriation and alienation in contemporary societies. This could be an important interpretative key for the comprehension of class, race, gender and sexuality interactions in capitalism.

Keywords:
Social Reproduction Theory; Gender; Race; Social Totality

Introdução

A Teoria da Reprodução Social (TRS) é fruto de um acúmulo histórico de debates que, tão antigos quanto o próprio capitalismo, foram retomados no interior de movimentos feministas-socialistas1 1 Diante das dificuldades em desenhar uma linha divisória clara entre o feminismo-socialista e o feminismo-marxista, neste trabalho, sigo a proposta de Ferguson e McNally (2017 [2013], p. 27), e me refiro ao feminismo-marxista para designar a tradição que se identifica, do ponto de vista teórico, explicitamente com o materialismo histórico dialético e com a crítica da economia política. O feminismo-socialista designa, portanto, um campo mais amplo e diverso. Neste sentido, ver também Vogel (2013 [1983], p. 183). e antirracistas após as lutas por emancipação e reconhecimento das décadas de 1950 e 1960 nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa ocidental. Em um primeiro momento2 2 Este primeiro momento pode ser identificado ainda no final do século XIX, através do ativismo e teorização de mulheres socialistas. O debate central levantado por elas sobre o trabalho doméstico e o caráter da opressão feminina - foi retomado, décadas mais tarde no bojo do Debate sobre o Trabalho Doméstico, iniciado em 1969 com a publicação do artigo The Political Economy of Women’s Liberation [A economia política da libertação das mulheres] de Margaret Benston nos EUA. Este debate tomou a forma de uma série de artigos divulgados e discutidos por intelectuais feministas-socialistas, em um esforço internacional que, embora concentrado no Norte Global, procurou levar as experiências das mulheres - até então epistemologicamente marginalizadas - ao coração da teoria marxista sobre o capitalismo (MORTON, 1970; DALLA COSTA; JAMES, 1971, SECCOMBE, 1974). Inconcluso, este debate se ocupou de duas questões centrais: 1. se o trabalho doméstico produzia valor ou mais-valia (e, portanto, se era produtivo ou improdutivo); e 2. se trabalho doméstico constituía um modo de produção em si mesmo, distinto ou análogo ao modo de produção capitalista. Vogel (2013 [1983]) considera a primeira questão já superada pelas feministas-marxistas que a precederam, tais como Benston (1969) e Young (1981): o trabalho doméstico produz apenas valor de uso, não valor de troca e, portanto, não produz diretamente mais-valia. Essa é a principal diferença entre a perspectiva da reprodução social tal como defendida pela TRS e a de Silvia Federici. No que tange à segunda questão, grande parte das autoras envolvidas no debate concluíram que “possivelmente”, o trabalho doméstico seria um modo de produção próprio, que opera de acordo com uma lógica distinta, pré- ou não-capitalista (VOGEL, 2013 [1983], p. 28-29). Para Vogel, entretanto, esta conclusão indica que nenhuma autora do debate sobre o trabalho doméstico foi capaz de superar completamente a perspectiva dualista, deixando o caráter dessa relação inexplicado (VOGEL, 2013 [1983], p. 134-135). , a nascente perspectiva da reprodução social buscou desenvolver um problema antigo colocado diante da teoria marxista do valor-trabalho: incluir uma compreensão sobre as formas não-remuneradas de trabalho e responder qual seria a base material da opressão das mulheres no capitalismo (VOGEL, 2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983]). Entretanto, tal perspectiva se diferenciava de outras elaborações teóricas que, contemporâneas a ela, buscaram explicar a opressão de gênero no capitalismo. Isto porque ao invés de partir de uma concepção dualista sobre a realidade social (i.e., considerar a persistência de um sistema patriarcal pré-capitalista independente e transhistórico que em uma determinada fase de seu desenvolvimento se combinaria com o sistema capitalista), suas raízes podem ser encontradas na busca por uma explicação unitária e sistêmica para este fenômeno (YOUNG, 1981YOUNG, Iris. “Beyond the Unhappy Marriage: A Critique of the Dual Systems Theory”. In SARGENT, Lygia (org). Women and Revolution: A Discussion of the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism. Montreal: Black Rose Books, 1981. p. 43-70.; VOGEL, 2013 [1983]).

A perspectiva dualista, também conhecida como “teoria dos sistemas duplos”, até hoje predominante nos estudos feministas e marxistas, rapidamente se mostrou problemática para as autoras que defendiam uma concepção unitária. De acordo com sua lógica implícita, dois motores impulsionariam o desenvolvimento da história: a luta de classes, a ser revelada a partir da análise do capitalismo, e a luta entre os sexos, a ser revelada através de uma investigação sobre o patriarcado (VOGEL, 2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983]), p. 135). Do ponto de vista lógico e histórico, tal perspectiva, que também pode ser encontrada na formulação de Engels (2012ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012 [1884]. [1884]) sobre a Questão da Mulher, era incapaz de fornecer uma explicação consistente das dinâmicas existentes entre a exploração capitalista e a opressão de gênero, reproduzindo, ironicamente, a posição que tentava evitar: a ideia de que o modo de produção capitalista - a “lógica do valor” - poderia se reproduzir independentemente das relações de opressão e vice-versa. Ou seja, recorrentemente, reforçava uma concepção teórica que separava a esfera da economia das esferas cultural, política e social: o capitalismo corresponderia à primeira, enquanto o patriarcado às últimas. Sua principal consequência prática foi levar o feminismo e o marxismo a uma disputa que incluía a hierarquização entre as relações de classe e de gênero, de exploração e de opressão. Esta ideia ora se manifestava entre aquelas autoras que viam a classe acima do gênero, ora entre aquelas que viam o gênero acima da classe, ou ainda, o gênero como classe (ARRUZZA, 2019ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019. [2010]; RUAS, 2019RUAS, Rhaysa. Unidade, diversidade, totalidade: a Teoria da Reprodução Social e seus contrastes. 2019. 225 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direito) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019., p.30-35; 49-52).

Por outro lado, uma perspectiva unitária se lança à compreensão do sistema capitalista como complexo de relações sociais de exploração, opressão, dominação e alienação, que se relacionam de forma integrativa, ontológica. Subordinadas à “lógica do valor”, tais relações constituem este sistema na mesma medida em que constituem esta própria “lógica”. Uma teoria feminista-marxista unitária pressupõe, portanto, desde sua gênese, a tentativa de aproximação da totalidade social no sentido marxiano. Ela clama por uma perspectiva que supere as dicotomias entre produção e reprodução social, natureza e cultura, e em última instância, base econômica e superestrutura política.

A viabilidade de construção de uma teoria unitária das relações sociais sob o capitalismo foi intensamente debatida por intelectuais marxistas antirracistas, anticolonialistas e feministas no século XX. Os movimentos culturais no Norte Global, a luta anti-imperialista na América Latina e os processos de descolonização da África e da Ásia evidenciaram a importância de uma elaboração teórica unitária: uma vez que a forma como um problema é enquadrado, colocado e pensado determina sua solução, uma teoria unitária seria fundamental para estabelecer uma alternativa viável à totalidade das relações sociais de desigualdade que compõem o mundo em que vivemos. Entretanto, historicamente, este projeto foi mais bem postulado do que de fato realizado. Em diversas elaborações feministas-marxistas, atingia-se apenas uma visão parcial da realidade e recorrentemente a análise das relações raciais ficava de fora, sintoma decorrente da universalização da categoria “mulher” à luz da experiência das mulheres brancas nos Estados de Bem-Estar Social europeus e norte-americanos. Estes projetos negligenciavam a totalidade das relações de gênero, sexualidade, raça e classe, ora hierarquizando-as, ora invisibilizando algumas dessas dimensões, recaindo nas mesmas análises dualistas que eram objeto de sua crítica.

A construção de uma teoria unitária das relações sociais no capitalismo, portanto, continua em aberto. Forjada por formulações contemporâneas que buscaram superar as limitações históricas da construção desta perspectiva, a TRS se reaproximou da noção marxiana de totalidade social, recuperando-a explicitamente em contribuições mais recentes como, por exemplo, as obras de Bhattacharya (2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017.b) e McNally (2017). Este artigo busca apresentar os principais traços distintivos da TRS, que surge como reação prático-teórica às três décadas de acumulação neoliberal e traduz uma importante possibilidade de renovação da teoria marxista no século XXI. Para tanto, no primeiro item faço uma reconstrução da noção marxiana de totalidade social, que deve servir de chave para a compreensão da proposta unitária tal como apreendida hoje pela TRS. Em seguida, passo à uma breve exposição da obra de Vogel (2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983]), primeira sistematização da teoria unitária a reconceitualizar a crítica marxiana do capital a partir da perspectiva da reprodução social e ponto de partida da TRS. Meu argumento central é que embora Vogel esboce preocupação com a noção de totalidade ao localizar a dinâmica político-econômica da relação entre produção de mercadorias e reprodução da vida, e nesse sentido, avance em relação às perspectivas que lhe eram contemporâneas, sua interpretação reflete os desafios de se elaborar uma teoria unitária, o que se evidencia, dentre outras coisas, por sua teorização cega à raça. No terceiro item, reconstruo brevemente o cenário de crise do marxismo que dominou o debate acadêmico na década de 1980, coincidindo com a publicação de Vogel e contribuindo para que esta permanecesse no ostracismo, para, em seguida, contextualizar o surgimento da TRS. Por fim, demonstro de que formas a TRS tem resgatado a noção marxiana de totalidade social para recentralizar classe nos debates sobre as relações de opressão que constituem o mundo em que vivemos. Faço isso através da apresentação do que considero suas principais contribuições para este debate hoje.

Resgatando o pensamento de Marx enquanto teoria da totalidade social

Nos Grundrisse, Marx (2011MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011 [1857-1858]. [1857-1858]) define de forma explícita a categoria de totalidade social e articula as noções de aparência (identidade) e essência (diferença)3 3 Aqui, enquanto o termo “identidade” refere-se à equivalência formal entre trabalhadores e capitalistas no momento da troca de mercadorias, o termo “diferença” refere-se estritamente à desigualdade material resultante do processo contínuo de separação dos produtores dos meios de produção e subsistência (meios de existência). ao enfrentar a questão de qual seria a relação do modo de produção capitalista com o movimento histórico geral. A categoria de totalidade social aponta a complexidade da realidade material e dos processos de apreensão desta realidade através do conhecimento científico.

Uma das afirmações mais famosas de Marx acerca da totalidade social é: “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade” (MARX, 2011MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011 [1857-1858]. [1857-1858], p.54). Esta afirmação sintetiza um dos aspectos centrais de sua filosofia e resume o sentido do materialismo histórico dialético que pretendo aqui resgatar: a unidade da diversidade; uma compreensão segundo a qual o real é entendido como síntese de múltiplas determinações concretas que são específicas, singulares, particulares e distintas - apenas na mesma medida em que formam um todo contraditório, um universal. Neste complexo de relações sociais concretas, cada categoria ganha sentido sistemático apenas por meio de seu posicionamento com respeito às outras categorias e ao todo. Assim, a noção marxiana de totalidade social nos permite afirmar a distinção de cada relação social específica que constitui o capitalismo sem suprimir a sua unidade e determinação, e nem subordinar, homogeneizar ou diluir o particular no universal.

Ao analisar a produção material, i.e., a produção socialmente determinada dos indivíduos, Marx (2011MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011 [1857-1858]. [1857-1858], p. 39-40) evidencia que a concepção dos economistas e liberais clássicos - de que haveria um impulso natural que condicionasse o comportamento dos indivíduos isolados em uma espécie de “contrato social” garantidor da igualdade e da liberdade e viabilizador da troca de equivalentes entre proprietários dos meios de produção e de força de trabalho - é apenas uma visão parcial e idealizada da realidade, uma aparência da sociedade burguesa. Tal relação social aparece, para estes autores, como ponto de partida natural da história. A partir do ponto de vista daqueles que são constantemente expropriados e explorados pelo capital, Marx propõe uma investigação histórico-dialética que é capaz de demonstrar como o indivíduo produtor, em verdade, é membro de um todo social maior, que o coloca em uma relação desigual com aquele que compra sua força de trabalho. Assim, Marx se contrapõe à perspectiva sustentada pelos liberais, e afirma que por trás dessa igualdade aparente há também desigualdade, diferença, não-identidade. Do ponto de vista dos expropriados, essa sociedade é, na verdade, o seu oposto. A troca de equivalentes é também uma relação extremamente desigual e violenta: a acumulação de capital é um processo histórico de pilhagem, de roubo, e colonização.

Marx (ibidem, p. 41) demonstra esse duplo caráter da sociedade capitalista através da análise da produção e da relação geral existente entre esta e as esferas da distribuição, circulação e consumo nessas sociedades. Ele destaca que, embora toda a produção seja específica de um determinado momento social, todas as épocas históricas da produção têm certas características em comum, determinações em comum, que decorrem do fato de que o sujeito e o objeto da investigação são os mesmos: a humanidade e a natureza. A produção em geral, então, seria uma abstração razoável, na medida em que destaca e fixa este elemento comum, um universal. Este universal, por sua vez, quando isolado por comparação histórica, “é ele próprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes determinações” (ibidem, p. 41). Ele contém também uma diferença, e é precisamente esta diferença o que constitui seu desenvolvimento e não pode ser esquecida.

Isto porque o foco nas determinações comuns e o esquecimento da diferença implicariam, necessariamente, em uma perspectiva deturpada da realidade social. Como exemplo, o autor demonstra que nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção, e que este instrumento é ele mesmo trabalho passado, acumulado (ainda que o instrumento seja a mão de quem produz, o trabalho passado seria a habilidade concentrada nesta mão para produzir). A produção, portanto, é sempre um ramo particular da produção geral, isto é, um momento da totalidade. Enquanto momento, ela é em si também uma totalidade na medida em que ela “é sempre um certo corpo social, um sujeito social em atividade em uma totalidade maior ou menor de ramos de produção” (ibidem, p. 41). Toda a produção é a apropriação da natureza pelos indivíduos no interior de e mediada por uma determinada forma de sociedade (ibidem, p.43).

Ao analisar a relação geral existente entre produção, distribuição, troca e consumo, Marx avança no sentido de ressaltar que uma compreensão segundo a qual a produção é a universalidade, a distribuição e a troca são a particularidade e o consumo a singularidade na qual o todo se unifica é apenas uma compreensão superficial desta relação (ibidem, p. 44). Na realidade, cada uma destas particularidades (ou diferenças, como destacado acima) é imediatamente a outra: a produção é imediatamente, em todos os seus momentos, um ato de consumo, uma vez que o indivíduo que desenvolve suas capacidades de produzir, ao fazê-lo, se desgasta, consome sua própria energia, meios de produção, matérias-primas, etc. Cada momento, cada particularidade, possui em sua forma imediata o seu contrário. Marx chama atenção aqui, entretanto, para esta identidade entre produção e consumo: ela é também aparente - uma é imediatamente a outra somente na mesma medida em que uma é imediatamente o oposto da outra. O autor demonstra que assim como estes dois momentos (produção e consumo) produzem-se mutuamente, tal produção é também mediada por ambos, e neste movimento uma produz a finalidade da outra (ibidem, p. 46-47).4 4 Marx exemplifica essa questão de forma bastante didática: “A produção medeia o consumo, cujo material cria, consumo sem o qual faltaria-lhe o objeto. Mas o consumo também medeia a produção ao criar para os produtos o sujeito para o qual são produtos. Somente no consumo o produto recebe o seu último acabamento. Uma estrada de ferro não trafegada, que, portanto, não é usada, consumida, é uma estrada de ferro apenas potencialmente, não efetivamente. Sem produção, nenhum consumo; mas, também, sem consumo, nenhuma produção, pois nesse caso a produção seria inútil. (...) O consumo cria o estímulo da produção; cria também o objeto que funciona na produção como determinante da finalidade. Se é claro que a produção oferece exteriormente o objeto do consumo, é igualmente claro que o consumo põe idealmente o objeto da produção como imagem interior, como necessidade, como impulso e como finalidade. (ibidem, p. 46-47; grifos meus; itálico do autor) Entretanto, nem por isso esses momentos tornam-se a mesma coisa. Pelo contrário, eles conservam suas particularidades. São, neste movimento, - ainda enquanto unidade - opostos. Há uma não-identidade (FAUSTO, 1987_____ . Marx - Lógica e Política. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987., p. 293) entre eles que se conserva, mesmo que ambos se constituam mutuamente.

Isso significa que o entendimento do sentido da totalidade social depende não só da articulação entre diferenças que compõem uma unidade complexa e dinâmica. Em Marx essa totalidade é acima de tudo contraditória: o capitalismo tem a especial particularidade de compor um tecido social que é e não é ao mesmo tempo (FAUSTO, 1987_____ . Marx - Lógica e Política. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987., p. 86-87; 128; 298). A igualdade e liberdade estão postas, mas coexistem com a desigualdade, o arbítrio e a opressão. Por isso mesmo - e isso é fundamental - o capitalismo necessita desenvolver suas contradições, algo que Marx capta com a noção de formas sociais necessárias à reprodução social do capital. Consequentemente, é a figura da mediação social a responsável por amalgamar as diferenças sociais, criando com isso uma unidade social indispensável à construção da (instável) ordem social moderna.

Ora, se Marx está bastante consciente de que aquilo que é também traz em si sua negação, é necessária uma forma particular de compreender essa realidade. Mais importante ainda, é indispensável uma ferramenta que permita expor as contradições constituintes do capitalismo. Mas como apresentar um objeto contraditório? Como demonstrar aquilo que o ser é, mas também aquilo que ele não é?

A resposta às questões acima passa necessariamente pela compreensão do método dialético, exposto por Marx nos Grundrisse, enquanto método de investigação. Ele é fundamental para compreender o método de exposição nos livros que compõem O Capital. Se o primeiro livro de O Capital aparece como “o processo de produção do capital”, o segundo como “o processo de circulação do capital” e o terceiro como “as formações do processo como um todo”, isso não deveria levar à interpretação de que há uma separação analítica entre produção, circulação e distribuição. Não se pode perder de vista que aquilo que amalgama esses componentes - e isso é fundamental em um trabalho atento à exposição dialética categorial do sistema conceitual marxiano - é o movimento contraditório do capital. É ele que é produzido, circulado e distribuído e que, por isso mesmo, está presente em todos os livros em um movimento dialético5 5 É neste sentido que se constitui o itinerário de investigação de O Capital: Marx recompõe o capital, a partir de seu movimento real, como totalidade, isto é, como a unidade complexa (livro III) entre seu processo de produção (livro I) e de sua circulação (livro II). O método de exposição de cada momento se inicia nas suas formas mais abstratas e gerais e se dirige em direção à suas determinações mais concretas e aparentes. Por exemplo, no livro I, o autor parte da mercadoria enquanto forma aparente mais geral e abstrata (mais facilmente apreensível na realidade imediata) para chegar à realidade mais profunda - e, portanto, não-aparente - da relação social que a compõe: a expropriação dos trabalhadores (separação de seus meios de produção da vida) e sua exploração no processo de produção capitalista (GONÇALVES, 2018, p. 101-104). Marx demonstra, assim, que a mercadoria não é apenas o produto que se vê e que satisfaz uma necessidade humana imediata; ela contém em si esta relação social de exploração e expropriação, trabalho humano vivo passado, cristalizado. Ao mesmo tempo, se observarmos o livro I em relação ao livro III, no primeiro, o capital aparece em sua forma abstrata, genérica, enquanto no segundo, ele aparece como a relação contraditória entre os diversos capitais individuais, ou seja, em sua forma mais complexa. Entretanto, não podemos perder de vista que o conceito de capital - que só se põe de forma completa no Livro III, quando o “capital em geral” é situado na “pluralidade dos capitais” - está essencialmente formulado já no Livro I. Neste último, embora não esteja posto, o capital está pressuposto; a sua gênese já está compreendida: a valorização do valor mediante a extração da mais-valia (exploração), o que pressupõe a expropriação contínua das massas. .

Por isso mesmo, a categoria da totalidade social - em sua representação conceitual tal qual elaborada por Marx - é fruto de um movimento dialético. Se o objeto analisado é contraditório, então é indispensável apresentar sua contraditoriedade. Por isso o significado das categorias iniciais possui o que Fausto denomina “zonas de sombra” (FAUSTO, 1983FAUSTO, Ruy. Marx - Lógica e Política. Tomo I. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983., p. 35). Ou seja, não é possível obter um esclarecimento conceitual total logo no início de uma exposição dialética categorial. Se se compreende a obscuridade inicial como “intenções não preenchidas”, então a tentativa de preenchê-las “não ilumina as significações, mas as destrói” (FAUSTO, 1987, p. 149). Dessa perspectiva, é possível afirmar que cada categoria ganha sentido sistemático apenas por meio de seu posicionamento com respeito às outras categorias e ao todo.

Consequentemente, a chave do argumento marxiano está em considerar o avanço das categorias como um impulso derivado de suas próprias insuficiências para reconstruir a totalidade social. A crítica da economia política é uma exposição dialética das categorias que desconstroem não só a escola clássica, mas a ciência que a embasava. Essas categorias possuem uma estruturação lógica interna que se desdobra para reconstruir a totalidade de objeto contraditório e, simultaneamente, desvelar gradativamente sua aparência mistificadora, o reino da liberdade e igualdade da sociedade burguesa. Daí a fundamental ideia de que a crítica de Marx se constitui enquanto crítica social imanente. O arsenal teórico de Marx não avança pela sequência de modelos cada vez mais complexos, mas por uma reconstrução progressiva - a exposição dialética categorial - das formas do mesmo objeto contraditório cuja exposição denuncia a exploração essencial que subjaz à sua aparência (FAUSTO, 1987_____ . Marx - Lógica e Política. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987., p. 293-294).

Essa reconstrução progressiva das formas está relacionada à particularidade que reveste a totalidade social capitalista, em que capital e trabalho se encontram em uma situação assimétrica. Ou seja, na contradição entre capital e trabalho, o trabalho está subordinado ao capital, que, como um vampiro, “vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga” (MARX, 2013MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 [1867]., p. 307). Na sociedade capitalista, os meios de produção (capital constante, i.e., trabalho morto/trabalho vivo passado cristalizado) são a encarnação do capital que, assim, permitem que ele se apresente ao mesmo tempo como parte e totalidade de seu processo de valorização.

Isso significa que embora o trabalho esteja subordinado ao capital, inserido em seu processo de valorização, ao mesmo tempo o capital não consegue por ele mesmo se pôr enquanto totalidade, já que sua substância não provém dele. Daí ser possível dizer que “essa assimetria na relação entre capital e trabalho assalariado é a forma assumida pela contradição na dialética materialista” (GRESPAN, 2002GRESPAN, Jorge. “A dialética do avesso”. In: Crítica Marxista, nº 14, p. 26-47, 2002., p. 41). Por isso mesmo, na crítica marxiana à economia política é impossível compreender o processo de acumulação do capital como algo equilibrado. O capital tem sempre um “impulso cego e desmedido” (MARX, 2013MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 [1867]., p. 337), pois sempre será inadequado à “substância”, já que ela consiste não nele mesmo, mas em “seu outro” (GRESPAN, 2002, p. 43). Consequentemente, a contradição tal como posicionada por Marx jamais pode se resolver num fundamento positivo, precisamente porque a “inadequação crônica” entre forma (capital) e conteúdo (trabalho) repousa na “inversão da posição lógica da identidade e da diferença” (GRESPAN, 2002, p. 44).

Por isso mesmo, em Marx a totalidade social jamais pode ser vista como um resultado da soma das suas diferentes partes. Ela necessariamente é um processo de apreensão dialética da realidade aparente sensível como concreto no pensamento, isto é, um processo de entendimento e questionamento da dimensão de sentido que aparece para nós. Deste modo, a abordagem teórica marxiana é um movimento que, na tentativa de uma maior apreensão da totalidade, parte das determinações mais simples, gerais, abstratas para recompor, no pensamento, o real como materialidade complexa, concreta, “não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações” (MARX, 2011MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011 [1857-1858]. [1857-1858], p.54). Assim sendo, a totalidade não é o real-imediato, mas a sua unidade como concreto concebido pelo pensamento e, por isso, vivo e determinado. Não é apenas o que está exposto, mas também o que está pressuposto nas relações sociais (FAUSTO, 1987_____ . Marx - Lógica e Política. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.).

Por todo o exposto, Marx demonstra que agir sobre o nosso mundo com base em um conhecimento empírico ou factual da realidade, ou seja, apenas com base em nossa percepção imediata, envolve necessariamente um erro. Entretanto, como vimos, a realidade não fica à disposição, esperando ser descoberta. Sua revelação depende de investigação científica. No mesmo sentido, não é todo o tipo de investigação científica que nos leva à sua revelação; ao contrário, é necessário uma investigação dialética cujo ponto de vista específico para que esta possa ser revelada é o ponto de vista do proletariado6 6 Aqui, não considero o proletariado no sentido vulgarmente apropriado por parte da tradição marxista, segundo o qual este se restringiria à uma classe trabalhadora urbana e assalariada. Ao contrário, para uma concepção expandida desta categoria, considero os escritos tardios de Marx e as contribuições contemporâneas da teoria da reprodução social (BHATTACHARYA, 2017), como será exposto mais adiante. , o sujeito histórico capaz de dirimir, através de sua organização política, a contradição existente entre capital e trabalho.

A perspectiva da Reprodução Social segundo Lise Vogel: uma teoria unitária

Embora não tenha sido a primeira tentativa feminista-marxista de elaborar uma teoria unitária sobre a opressão das mulheres no capitalismo, o livro Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory7 7 Marxismo e a Opressão das Mulheres: Por uma Teoria Unitária, ainda não traduzido no Brasil. , de Lise Vogel, publicado em 1983 nos EUA, foi o primeiro a tentar fazê-lo no mesmo nível de abstração de O Capital e se propondo a reconsiderar suas principais categorias lógicas. Ao partir de uma perspectiva que privilegiava a análise das dinâmicas sócio-históricas da produção da força de trabalho, esta seria uma fonte central para a elaboração da Teoria da Reprodução Social cerca de trinta anos mais tarde.

No início da década de 1980 - mesmo após a ebulição de lutas sociais protagonizadas pelos povos subalternizados no Sul Global e do exaustivo debate feminista-socialista que compusera os movimentos de libertação das mulheres até ali - o campo marxista permanecia, em sua maior parte, hostil à ideia de revisão teórica. Até uma teoria como a da dependência, que vivenciou seu auge nos anos 1960/70 e buscava uma ampliação da definição ortodoxa de trabalho e capitalismo, pouco influenciava o núcleo duro dos debates marxistas sobre o valor.

Ao contrário, a dinâmica da acumulação capitalista era frequentemente reduzida à exploração do trabalho assalariado, o que restringia a noção marxiana de totalidade social. As relações “de classe” eram compreendidas como aquelas que se desenvolviam no espaço exclusivo da produção, i.e., no local de trabalho. Da categoria “classe” eram abstraídos os componentes de raça, gênero e sexualidade, de modo que prevalecia a indiferença de parte considerável do campo marxista quanto às especificidades locais e configurações sociais no interior da classe trabalhadora. A categoria proletariado, portadora da subjetividade revolucionária, era ligada, de forma idealista, ao típico trabalhador formal do Estado de Bem-Estar Social europeu: homem, branco e provedor. Prevalecia, ainda, uma concepção funcionalista e determinista, que tendia a ver as relações sociais como uma superestrutura determinada pela base econômica, em uma relação de causa e consequência na qual cada uma teria seu papel específico para o funcionamento do modo de produção capitalista.8 8 A metáfora da “base” (ou infraestrutura) e “superestrutura”, popularizada pelo Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, aparece raras vezes na obra de Marx. Ela guarda a ideia de que a realidade social é composta por diferentes “esferas”: uma base, a economia, e uma superestrutura, que reuniria política, direito, cultura, ideologia, etc. Estas duas esferas manteriam uma relação externa entre si e a esfera econômica determinaria a superestrutura. Como aponta Wood (2011 [1995], p. 51-72), nesta concepção, a esfera econômica seria praticamente sinônimo de “forças técnicas de produção”, i.e., compreenderia o processo e as relações de produção e estaria separada da política e da cultura. Esta noção se tornou hegemônica durante décadas no marxismo ocidental, sobretudo através da obra de Louis Althusser. Porém, diversos autores como E.P. Thompson (1987) se dedicaram a demonstrar que esta constituía uma metáfora equivocada da realidade social.

Neste contexto, na busca pela base material da condição de opressão das mulheres sob o capitalismo, Vogel (2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983]) desafiou a tradição marxista hegemônica ao propor o retorno à teoria marxiana sobre as relações de produção em O Capital. A autora estabeleceu como premissa de sua investigação a produção diária e geracional da força de trabalho, categoria essencial para a teoria do valor. Vogel (2013 [1983]) questionou como essa mercadoria especial - responsável pela produção de mais-valia e de todas as outras mercadorias - seria produzida e reproduzida em uma sociedade capitalista. A pergunta conduziu a autora à uma análise mais profunda da relação lógica e sistêmica existente entre produção capitalista e os processos cotidianos de produção da vida, realizados, em sua maioria, através de trabalho feminino - remunerado ou não - no âmbito doméstico e na esfera do cuidado (trabalho reprodutivo). A esta análise, caberia explicar a permanência do caráter desvalorizado deste trabalho, que engloba as estratégias de sobrevivência individuais e coletivas da classe trabalhadora, bem como uma série de tarefas socialmente naturalizadas, geralmente privatizadas no lar e não-remuneradas, como a gestação, parto, lactação, cuidado das crianças, adultos, doentes e idosos, limpeza e nutrição.

Uma das conclusões de Vogel é que o trabalho reprodutivo se constitui historicamente como condição necessária para o funcionamento do modo de produção capitalista (VOGEL, 2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983], passim). Ao desenvolver sua argumentação, a autora localiza, no interior da categoria marxiana “trabalho necessário”9 9 Embora em um primeiro momento localize o trabalho doméstico no interior da categoria “trabalho necessário", posteriormente Vogel (2013 [2000], p. 192-193) admite que talvez essa não seja a melhor forma de conceituar a questão, deixando claro, por outro lado, que isto não altera o cerne de sua argumentação. Para ela, o trabalho doméstico não produz valor, embora desempenhe um papel fundamental no processo de apropriação de mais-valor. O trabalho doméstico é, assim, socialmente necessário para o capital. Ela afirma que “aprisionados na realização do trabalho necessário, o trabalho social e seu novo companheiro, o trabalho doméstico, formam um casal estranho nunca antes encontrado na teoria marxista” (VOGEL, ibid., p. 193). Esta passagem é considerada por alguns autores (FERGUSON; MCNALLY, 2017 [2013], p. 46-47) como uma importante autocrítica de Vogel, embora a autora nunca tenha apresentado outra formulação conceitual da questão. , uma dupla dimensão, específica das sociedades capitalistas: sua divisão em dois componentes, o social e o doméstico. O componente social do trabalho necessário estaria, como Marx conceituou, indissoluvelmente ligado ao trabalho excedente no processo de produção capitalista (um define o outro); já o componente doméstico do trabalho necessário - ou trabalho doméstico10 10 Aqui, assim como Vogel, não diferencio o trabalho doméstico-assalariado do não-assalariado; para a autora, neste nível de abstração, ambas as formas correspondem ao componente do trabalho necessário com o qual Marx não contou: a porção de trabalho performada “fora” da esfera da produção capitalista da qual depende a reprodução da força de trabalho. A autora define “trabalho doméstico” da seguinte forma: “O trabalho doméstico é a porção do trabalho necessário que é realizado fora da esfera da produção capitalista. Para a reprodução da força de trabalho acontecer, tanto o componente doméstico como o componente social do trabalho necessário são exigidos. Ou seja, os salários podem permitir que um trabalhador compre mercadorias, mas um trabalho adicional - o trabalho doméstico - deve ser geralmente realizado antes que elas sejam consumidas. Além disso, muitos dos processos de trabalho associados à substituição geracional da força de trabalho são realizados como parte do trabalho doméstico”. (VOGEL, 2013 [1983], p. 159, tradução minha). - seria a porção que é realizada fora da esfera da produção capitalista, ignorada por Marx em O Capital. Ambos os componentes seriam indispensáveis para a produção diária tanto da força de trabalho, quanto das mercadorias (VOGEL, 2013 [1983], p. 157). Se, por um lado, a relação de apropriação do trabalho excedente (componente social do trabalho necessário) seria ocultada pelo pagamento de salários no processo de trabalho capitalista, por outro lado, o componente doméstico do trabalho necessário seria realizado na esfera privada e apareceria como dissociado do trabalho assalariado performado na esfera pública (ibid., p. 159).

A partir dessa relação, a autora destaca que há uma contradição entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, que se aprofunda à medida que a acumulação capitalista avança:

o impulso do capitalismo para aumentar a mais-valia através do aumento da produtividade (...) força uma separação espacial, temporal e institucional severa entre o trabalho doméstico e o processo de produção capitalista. Os capitalistas devem organizar a produção de modo que cada vez mais ela esteja sob seu controle direto em oficinas e fábricas, onde o trabalho assalariado é executado por períodos de tempo específicos. O trabalho assalariado chega a ter um caráter que é totalmente distinto da vida do trabalhador fora do trabalho, incluindo o envolvimento dele no componente doméstico do trabalho necessário. Ao mesmo tempo, o salário medeia tanto os processos de manutenção diária quanto os de substituição geracional, suplementados ou às vezes substituídos por contribuições do Estado. Ou seja, o componente social do trabalho necessário do trabalhador facilita a reprodução da força de trabalho indiretamente, fornecendo dinheiro que deve então ser trocado para adquirir mercadorias. Estas duas características - a separação de trabalho assalariado do trabalho doméstico e o pagamento de salários - são materializados no desenvolvimento de locais e unidades sociais especializados para o desempenho de trabalho doméstico. As famílias da classe trabalhadora que vivem em lares particulares representam a forma dominante na maioria das sociedades capitalistas, mas o trabalho doméstico também toma lugar em campos de trabalho, quartéis, orfanatos, hospitais, prisões, e outras instituições. (VOGEL, 2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983], p. 159, tradução e itálico meus)

Dessa forma, há uma relação de contradição e necessidade entre o trabalho para a produção de valor e o trabalho para a produção da força de trabalho no capitalismo. A necessidade do capital em aumentar a produção de mais-valia também implica uma contradição estrutural entre o trabalho doméstico (do qual depende a reprodução da força de trabalho) e o trabalho na produção capitalista. Enquanto um componente do trabalho necessário, a redução da mão-de-obra doméstica criaria potencialmente mais-valia11 11 Segundo Vogel (2013 [1983], p. 161-162, tradução minha): “Como um componente do trabalho necessário, o trabalho doméstico potencialmente é extraído do compromisso que os trabalhadores possuem para a realização do trabalho excedente através da participação no trabalho assalariado. Objetivamente, então, ele compete com o impulso do capital pela acumulação. Se uma pessoa tende a cultivar a própria horta, cortar a sua própria lenha, cozinhar suas próprias refeições, e caminhar seis milhas para trabalhar, a quantidade de tempo e energia disponível para o trabalho assalariado é menor do que se ela comprar comida em um supermercado, viver em um prédio de apartamentos com aquecimento central, comer em restaurantes e utilizar o transporte público para ir para o trabalho”. . Portanto, do ponto de vista do capital, o trabalho doméstico seria simultaneamente indispensável e um obstáculo à acumulação. A longo prazo, a classe capitalista procuraria estabilizar a reprodução da força de trabalho a um baixo custo e com um mínimo de trabalho doméstico12 12 Vogel demonstra que este fenômeno pode incluir uma série de medidas que inclusive ultrapassam as relações familiares. Ela pode se dar tanto através da automação (introdução de máquinas de lavar roupa, por exemplo), quanto através da socialização das tarefas domésticas (quando o Estado as assume, através da educação e da rede de saúde pública, por exemplo) e/ou transferência destas para o setor de serviços (por exemplo, lavanderias, lojas de roupas prontas e redes de fast-food). A autora destaca ainda que o trabalho reprodutivo total de uma sociedade também pode ser reduzido empregando-se populações institucionalizadas (trabalho prisional, trabalho militar) e atraindo trabalhadores migrantes de outros países. (VOGEL, 2013 [1983], p. 162). , degradando-o sempre que possível. Ao mesmo tempo, a classe trabalhadora, seja como uma força unida ou fragmentada em setores concorrentes resistiria, esforçando-se para conquistar as melhores condições possíveis para sua própria renovação, o que poderia incluir um determinado nível e tipo de trabalho doméstico. Vogel destacou que, da mesma forma, o valor do salário de um trabalhador - correspondente a sua cesta básica, valor total das mercadorias necessárias para sua manutenção e substituição - dependeria das condições historicamente estabelecidas (ou seja, da luta de classes) e demandaria análise empírica específica (ibid., p. 164).

É assim que, historicamente, na maioria das sociedades capitalistas, se construiu uma relação na qual o fardo do trabalho reprodutivo repousa desproporcionalmente sobre as mulheres, enquanto o fornecimento de mercadorias tende a ser desproporcionalmente a responsabilidade dos homens, cumprida através de sua participação no trabalho assalariado. Esse posicionamento diferenciado de mulheres e homens em relação aos dois componentes do trabalho necessário geralmente é acompanhado por um sistema de supremacia masculina, e origina-se como um legado histórico das divisões do trabalho das sociedades de classes anteriores (VOGEL, 2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983], p. 159-160). Vogel destaca que tais divisões são então fortalecidas pela separação particular entre o trabalho doméstico e o trabalho assalariado gerado pelo modo de produção capitalista, na qual o primeiro passa a estar isolado no espaço e no tempo em relação ao segundo.

Cabe destacar que diferentemente das feministas-socialistas de sua época, a autora demonstra que em uma sociedade capitalista, o trabalho reprodutivo pode se organizar de diversas formas como em creches, orfanatos, escolas, internatos e restaurantes (privados ou públicos), e sua reposição geracional pode ser feita também através da escravidão ou da migração (ibid., p.159-160). Portanto, não seria a necessidade do trabalho doméstico em si, a divisão sexual deste trabalho ou a forma da família nuclear13 13 Vogel (ibid., p. 177) percebe que a dupla e específica dinâmica da opressão das mulheres no capitalismo também imprime uma característica específica sobre o caráter da família neste modo de produção. Uma vez que o trabalho doméstico tem sido historicamente realizado principalmente por mulheres em um contexto de supremacia masculina, a família da classe trabalhadora poderia se tornar um repositório altamente institucionalizado da opressão das mulheres. Mas, assim como o trabalho reprodutivo, a família poderia assumir diversas formas, não necessariamente opressoras. que constituiria a base material para a opressão das mulheres. Esta base, para Vogel, estaria situada na relação contraditória-porém-necessária entre a reprodução da força de trabalho e a acumulação capitalista - o que historicamente traduziu uma relação entre a condição biológica do corpo sexuado feminino e as relações sociais de produção dominantes. Cabe ressaltar aqui que, precisamente, “não é biologia per se que dita a opressão às mulheres, mas, em vez disso, a dependência do capital dos processos biológicos específicos das mulheres - gravidez, parto, lactação - para garantir a reprodução da classe trabalhadora.” (FERGUSON; MCNALLY, 2017MCNALLY, David. “Intersections and Dialectics: Critical Reconstructions in Social Reproduction Theory”. In BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017. [2013], p. 40). Assim, para Vogel, mesmo que homens assumam grande parte do trabalho reprodutivo ou que este não seja realizado no interior da unidade familiar, o fato de que esta é uma tarefa predominantemente privada, e sobretudo realizada de acordo com o fato biofísico de que a procriação e a amamentação requerem corpos sexuados-femininos, explica as pressões sociais que fazem com que a forma família se mantenha e que nela haja uma conformidade com a desigualdade de gênero (FERGUSON; MCNALLY, 2017[2013], p. 35)

Após identificar a base material da posição social diferenciada das mulheres enquanto um fenômeno econômico, Vogel (ibid., p. 168) teoriza sobre a esfera da superestrutura. A relação contraditória-porém-necessária entre trabalho produtivo e reprodutivo formaria a base para a diferenciação entre homens e mulheres na esfera ideológica: sobre ela criar-se-ia toda a superestrutura que permitiria a sua perpetuação (ibid., p. 160). A autora destaca que do ponto de vista da experiência de homens e mulheres, o isolamento das unidades domésticas apareceria como uma separação natural entre ambos. A vida, sob o capitalismo, apareceria então dividida em uma série de dicotomias: homem/mulher, público/privado, trabalho/família, produção/reprodução, etc. Esta ideologia de esferas separadas, cuja base é o próprio funcionamento do modo de produção capitalista, rapidamente se institucionalizaria (VOGEL, 2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983], p. 160-161).

Então, a autora passa a analisar de que maneira esta realidade se articula com outro desdobramento político e ideológico fundamental ao funcionamento do modo de produção capitalista: a tendência à igualdade entre todos os seres humanos. Vogel (ibid., p. 169) argumentou que essa forma particular da sociedade capitalista derivaria, em última instância, do caráter duplo das mercadorias e do processo de abstração do trabalho, indispensáveis para a existência da forma do valor. As relações sociais assumiriam então a forma de uma troca de equivalentes, responsável por ocultar uma realidade de desigualdade (ibid., p. 170-171). Assim, pela própria lógica contraditória deste sistema, o fenômeno da igualdade e da liberdade individual acompanhariam a exploração: ao expandir-se os primeiros, expande-se também a última, o que acentua e pode revelar o caráter desigual e opressor do capitalismo (ibid., p. 172).

Vogel (ibid., p. 173) distinguiu também o sentido da desigualdade de direitos civis entre homens e mulheres. A posição das mulheres nas sociedades capitalistas seria definida por dois aspectos: homens e mulheres possuírem posições sociais diferentes no que tange à relação entre produção e reprodução social; e mulheres de todas as classes sociais possuírem seus direitos democráticos negados14 14 Neste momento, Vogel retoma o argumento de que a localização diferencial de mulheres e homens em relação à reprodução social varia de acordo com a classe, e ressalta outra contradição: enquanto apenas algumas mulheres realizam trabalho doméstico na sociedade capitalista - ou seja, mulheres da classe trabalhadora, cujos esforços mantêm e renovam a força de trabalho explorável -, todas as mulheres sofrem com a falta de igualdade no capitalismo (ibid., p. 174). Em consequência, as mulheres de todas as classes passam então a lutar juntas contra a desigualdade de gênero. (ibid., p. 173). Para Vogel, este último aspecto teria o potencial de revelar, de forma mais contundente, que sob o capitalismo, não só a aparência de igualdade oculta uma essência de desigualdade social; a aparente desigualdade seria capaz também de ocultar uma essência também desigual (apesar de todas estarem em uma posição de desigualdade em relação aos direitos civis, apenas mulheres da classe trabalhadora exercem trabalho reprodutivo). Em alguns países de capitalismo avançado de sua época, a expansão das camadas médias, o reconhecimento das desigualdades de gênero e o desenvolvimento de um estilo de vida consumista, por vezes fazia parecer que as diferenças entre homens e mulheres superavam as diferenças de classe, impulsionando a união de mulheres de diferentes classes e setores em sua luta por igualdade de direitos e produzindo hierarquias e dicotomias entre as relações de classe e gênero. Este aspecto, bem como o caráter transversal da luta feminista por igualdade de direitos e a realidade de violência de gênero, contribuiriam para que se originassem relações ideológicas antagônicas entre os sexos. Vogel alerta que a opressão das mulheres passaria a aparecer apenas “como uma opressão desencadeada pelos homens, enraizada em uma divisão sexual do trabalho transhistoricamente antagonista e corporificada na família” (ibid., p.177, tradução minha).

Assim, a conclusão de Vogel (ibid., p.177) é que as mulheres seriam oprimidas na sociedade capitalista por uma multiplicidade de fatores que derivariam da relação estrutural contraditória entre a reprodução da vida humana e a reprodução do capital. É esta relação, construída historicamente, que impulsionaria o capital e o Estado a regular a capacidade biológica das mulheres e a restringir e degradar os meios de produção da vida dos trabalhadores, de modo que a força de trabalho esteja sempre disponível para a exploração e para uma maior extração de mais-valia.

Limites da construção da teoria unitária no século XX e a crise do Marxismo clássico

Tanto as conclusões quanto o método utilizado por Vogel foram alvo de críticas e de desenvolvimentos posteriores, e hoje configuram o ponto de partida da TRS. Dentre as críticas sofridas por Vogel, uma é especialmente importante para o estudo das opressões. Apesar da dimensão unitária proposta pela autora e de sua aproximação com a noção marxiana de totalidade social no que tange a dinâmica que envolve a unidade contraditória entre produção e reprodução e entre a aparência e a essência dos fenômenos sociais, a autora reproduzia uma concepção metodológica hiper abstrata, de matriz althusseriana, que mantinha uma separação entre base e superestrutura (BRENNER, 1984BRENNER, Johanna. “Review: Marxist Theory and the Woman Question”. Contemporary Sociology, v. 13, n. 6, p. 698-700, 1984.). A pior consequência desta concepção era que ela não rompia nem com a hierarquia entre “o econômico” e “o cultural”, nem com a universalização da categoria “mulher”, quando da formulação teórica. A abstração de suas determinações concretas no que tange à raça, e sexualidade/identidade de gênero, e, por vezes, à própria classe, ironicamente a aproximava da concepção marxista ortodoxa que ela própria propunha combater (RUAS, 2019RUAS, Rhaysa. Unidade, diversidade, totalidade: a Teoria da Reprodução Social e seus contrastes. 2019. 225 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direito) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.). A maior parte da tradição feminista-marxista de sua época continuava a incorrer no mesmo problema, o que contribuiu para o isolamento de teorizações do tipo ao longo das décadas de 1980 e 1990 (BANNERJI, 1995BANNERJI, Himani. “But Who Speaks for Us?” In BANNERJI, Himani, Thinking Through: Essays on Feminism, Marxism and Anti-Racism. Toronto: Women’s Press, 1995.; DAVIS, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016 [1981]. [1981]).

Em contraste, desde fins da década de 1940, feministas-socialistas negras como Jones (2017JONES, Claudia. “Um fim à negligência em relação aos problemas da mulher negra!” (1949). In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 25(3): 530, setembro-dezembro/2017. [1949]), Beale (2005BEALE, Francis. “Double Jeopardy: To Be Black and Female” [1969]. In BAMBARA, Toni; TRAYLOR, Eleanor. The Black Woman: An Anthology. New York: Washington Square Press, 2005. [1969]), as ativistas do Combahee River Colective (1977) e Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016 [1981]. [1981]) buscavam abordar a totalidade social e suas relações particulares de classe, raça, e gênero como inseparáveis. Elas compunham uma tradição que remontava às lutas abolicionistas do século XIX e que posteriormente ficou conhecida como Feminismo Negro. Pelas limitações de espaço e escopo deste trabalho, não será possível desenvolver aqui a proposta do Feminismo Negro, bem como seus pontos de convergência e diferença em relação à perspectiva da reprodução social, tópico que deixo para futuros trabalhos. Entretanto, cabe destacar que as mulheres negras socialistas foram pioneiras em denunciar a relação contraditória-porém-necessária existente entre os processos de produção de valor e os processos de produção da vida (o que implica a desvalorização da vida e processos múltiplos de controle e desumanização). Para estas autoras, se as múltiplas relações de opressão e exploração eram imbricadas na realidade, deveriam ser inseparáveis também analiticamente. Porém, apesar de convergir e apontar importantes soluções aos limites a perspectiva da reprodução social, esta perspectiva não encontrou espaço no interior do feminismo-marxista, que, por sua vez, era cego em relação à raça. Também permaneceu minoritária em relação ao marxismo, hegemonizado por uma perspectiva masculina e branca. Esta falta de abertura, traduz um importante elemento do racismo nas sociedades capitalistas afrodiaspóricas: o isolamento e exclusão dos espaços de produção e validação do conhecimento. Este elemento impediu que estas mulheres, embora pioneiras, pudessem desenvolver uma teorização sistemática da crítica da economia política marxista e que fosse assim considerada. A construção de uma teoria unitária, assim como os debates feministas-marxistas sobre o trabalho doméstico da década de 1970, permaneceu em aberto.

A publicação do livro de Vogel (2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983]) se deu em um momento de crise do campo marxista (THERBORN, 2012THERBORN, Gören. Do marxismo ao pós-marxismo? São Paulo: Boitempo Editorial, 2012). Diante da ascensão e estabilização da ordem neoliberal, o quadro hegemônico de intervenção teórica passou a ser ocupado pelas teorias pós-modernas, impulsionadas pela virada linguística. Estas teorias repudiavam as chamadas “grandes narrativas” e dispensavam por completo a crítica à economia política como modelo explicativo válido para compreender suficientemente as relações sociais de exploração, dominação e poder em sua complexidade (FERGUSON; MCNALLY, 2017MCNALLY, David. “Intersections and Dialectics: Critical Reconstructions in Social Reproduction Theory”. In BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017. [2013], p. 25). Recorrentemente, neste período, a filosofia marxiana - e a noção de totalidade - foi questionada enquanto teoria da sociedade, reforçando um movimento de desqualificação já deflagrado pela crise do socialismo soviético. Neste período, mesmo as análises marxistas que buscavam articular gênero, raça e/ou pós-colonialidade com a noção de classe, totalidade ou estrutura social, passaram a configurar campos de investigação minoritários diante do giro antiprodutivista que atingiu a teoria social crítica (GONÇALVES, 2014GONÇALVES, Guilherme Leite. Marx está de volta! Um chamado pela virada materialista no campo do direito. In Revista Direito e Práxis, vol. 5, n. 9, p. 301-341, 2014.).

Durante as décadas de 1980 e 1990, a adoção parcial e fragmentada da teoria de Marx - ora pelas organizações socialistas que permaneciam na defesa de uma noção limitada de classe, ora pelas organizações feministas ou antirracistas que buscavam construir teorias próprias para explicar as relações de opressão a que estavam submetidas - estabeleceu uma maior confusão quanto à compreensão dialética da totalidade. Relações entre essência-aparência, teoria-prática e natureza-cultura embaralhavam-se, e refletiam aquilo que Vogel caracterizou como indistinção entre nível de abstração teórico e empírico (VOGEL, 2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983], p. 184-195). Políticas identitárias (HEIDER, 2018HEIDER, Asad. Race and Class in the Age of Trump. London; Brooklyn, NY: Verso, 2018., p. 23), emergidas da luta radical no interior de movimentos de emancipação em oposição à uma noção restrita do proletariado e ao dogmatismo de alguns setores da teoria marxista, foram progressivamente cooptadas pela ideologia neoliberal e institucionalizadas sem quaisquer alterações na política econômica global. Elas passaram a constituir, com frequência, um campo teórico-prático individualista, baseadas na demanda individual ou setorizada por reconhecimento e restritas às fronteiras nacionais (ibid., p. 23-24). Se, por um lado, estas políticas foram responsáveis por um período de plena expansão do que se convencionou chamar “direitos das minorias” em todo o mundo, abrindo importantes condições de possibilidade para uma transformação mais profunda da realidade, por outro foram incapazes de reduzir, através de sua política institucional, os níveis estruturais de desigualdade social e de reprodução das hierarquias sociais existentes, que, por sua vez, se aprofundam progressivamente.

Na segunda década do século XXI, este processo culminou em uma conjuntura global de crise: intensificação das desigualdades sociais, extrema fragmentação político-teórica da classe trabalhadora e ascensão de um ciclo conservador e autoritário em todo o mundo. É neste cenário que, na última década, a perspectiva feminista-marxista da reprodução social volta a ganhar força. Após um longo período de ostracismo, a proposta de criação de uma teoria unitária toma forma enquanto campo teórico-prático contemporâneo, sob o nome de Teoria da Reprodução Social (TRS), e se insere em um contexto de ebulição de múltiplas experiências de luta e mobilizações espontâneas de massas que traduzem as contradições do período em que vivemos. Recorrentemente, o conflito social tem sido traduzido por pautas que relacionam produção e reprodução social, exploração e opressão. Saúde, moradia, terra, água e alimentação, mudanças climáticas, a defesa do direito à vida, lutas por direitos sexuais e reprodutivos, reações a leis discriminatórias, ao racismo e à violência policial, reivindicações por salários e contra a precarização das condições de trabalho e de vida são alguns exemplos de reivindicações que dominaram a indignação e os protestos, progressivamente, a partir da segunda metade da década de 1990, e, sobretudo, após a crise 2008 em todo o mundo15 15 Como exemplo recente de algumas dessas manifestações, podemos citar o movimento Black Lives Matter e destacar as mobilizações feministas como a Marcha das Mulheres em 21 de janeiro de 2017 nos EUA, cuja pauta incluía uma oposição ao controle de direitos sexuais e reprodutivos e as leis anti-imigração de Donald Trump. Estas prepararam o terreno para a Greve Internacional de Mulheres em 8 de março de 2017, mobilização massiva de mulheres em mais de 50 países, seguida da publicação do manifesto que ficou conhecido como Manifesto Feminismo para os 99% , liderado por feministas-marxistas da reprodução social. Em 2018, na Argentina, o movimento Ni Una a Menos levou milhões de pessoas às ruas na luta pela legalização do aborto, em pautas que problematizavam a desigualdade do acesso ao procedimento - bem como à educação e à saúde de qualidade - entre as diferentes classes sociais. No Brasil, é possível perceber um movimento similar. O ressurgimento do movimento de mulheres no contexto de resistência ao neoliberalismo têm tido forte protagonismo de mulheres negras que, com intensa produção teórica, e mantendo diálogo direto com ativistas de diversos países da diáspora africana, em 2015 marcharam por todo o país ocupando a capital, Brasília, em um movimento que reuniu mais de 50 mil mulheres pelo fim do genocídio da população negra e por melhores condições de vida, na Primeira Marcha Nacional De Mulheres Negras: Contra o Racismo, a Violência e o Bem-Viver. Parte das mulheres que marcharam em 2015 se somaram também nas mobilizações da Greve Internacional de Mulheres de 2017. .

Ao mesmo tempo que tais movimentos têm sido alvo de intensa repressão por parte do Estado, ainda é recorrente que sejam caracterizados por intelectuais marxistas como ações que não ameaçam a dinâmica do sistema capitalista em razão de seu alegado caráter “econômico-utilitário” e “reformista”, que seria avesso ao projeto revolucionário/anticapitalista (HARVEY, 2015aHARVEY, David. Seventeen Contradictions and the End of Capitalism. London: ProfileBooks LTD, 2015a [2014].; 2015b). Opondo-se a esta perspectiva, feministas-socialistas e autores marxistas engajados na tentativa de desenvolver uma teoria unitária têm debatido o potencial revolucionário e o caráter classista destas mobilizações (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017.; ROEDIGER, 2017ROEDIGER, David. Class, Race and Marxism. New York: Verso, 2017.).

Essa nova onda de ebulição política internacional levou a um ressurgimento do interesse na obra de Vogel, reeditada em 2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983].. Tal ressurgimento é também impulsionado pelos crescentes esforços de recuperar e desenvolver a teoria da sociedade de Marx. Estes esforços visam a superação das representações reducionistas ou deterministas do marxismo ao expor a totalidade orgânica do capitalismo enquanto sistema dinâmico e contraditório, em constante movimento (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 14). Assim, o primeiro passo para a compreensão da TRS, é captar o seu reestabelecimento do pensamento de Marx enquanto uma teoria da totalidade social.

A Teoria da Reprodução Social: totalidade e o nexo gênero-raça-classe

A TRS nasce, no século XXI, a partir de um movimento de convergência16 16 Esse movimento de convergência pode ser percebido no volume editado por Bhattacharya (2017) e que marca o estabelecimento desta teoria no século XXI. O volume recebe a contribuição de dez autores com trajetórias intelectuais distintas e que se engajam nesse sentido ao analisar diversos temas à luz dessa possibilidade teórica que se convencionou chamar de Teoria da Reprodução Social. Cabe ressaltar que entre 1983 e 2017, diversas teóricas feministas-marxista, sobretudo ligadas à tradição da Economia Política Feminista Canadense, desenvolveram e atualizaram a perspectiva da reprodução social. Essa produção é uma referência fundamental para as autoras que hoje defendem a construção da TRS, constituindo “o parente teórico mais próximo” desse projeto (BHATTACHARYA, 2017). Para mais sobre essa perspectiva da reprodução social, conferir BEZANSON; LUXTON, 2006. entre diversas intelectuais feministas-marxistas que desde o final do século XX vinham se engajando no desenvolvimento da perspectiva unitária no sentido de uma maior aproximação com a realidade concreta. Estas intelectuais incorporavam em sua teorização, estudos empíricos e ativismo muitos dos questionamentos, demandas e horizontes dos movimentos feministas, antirracistas, pós-coloniais e Queer. Este diálogo possibilitou que estas intelectuais suprissem as lacunas da obra de Vogel, propondo um reposicionamento do campo marxista em relação aos debates sobre classe, opressões, identidades e a questão ambiental. Isto traduz um esforço de recuperar e desenvolver a teoria de Marx na direção específica de compreender a conexão entre as relações sociais econômicas e extraeconômicas, destacando como as categorias de opressão são produzidas de forma simultânea e imbrincada à produção de mais-valia e, assim, não podem ser hierarquizadas.

A noção marxiana de totalidade social apresentada no primeiro item deste artigo é especialmente importante para a TRS, que busca captar quais são as determinações e contradições constitutivas e essenciais ao funcionamento do modo de produção capitalista para desenvolver uma teoria integrada das relações sociais (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p.7-14). Bhattacharya (2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 14), exemplifica a importância prático-teórica do retorno à noção de totalidade ao posicionar

no centro da TRS a ideia marxiana de que agir sobre o nosso mundo com base em um conhecimento empírico imediato ou factual da realidade, ignorando as mediações que estão pressupostas nesta percepção, envolve necessariamente um erro com consequências práticas. A autora destaca que a realidade tal como a enxergamos (aparência), nos diz, recorrentemente, que como os trabalhadores brancos normalmente ganham salários maiores do que os trabalhadores negros, jamais haveria pautas comuns de luta unindo-os. A diferença real, empiricamente documentada, entre eles sempre iria alimentar o racismo branco. Segundo a autora, o mesmo poderia ser dito sobre as diferenças materiais entre homens e mulheres: tentar desafiar estas questões dentro do contexto estabelecido pelo capitalismo resultaria ou no fracasso (por exemplo, como nas numerosas experiências históricas em que o sexismo e/ou racismo sufocaram o movimento dos trabalhadores) ou culminando em uma estratégia política fraca, que procuraria superar tais diferenças de raça e gênero entre trabalhadores por meio de apelos morais, pedindo que estes “fizessem a coisa certa” e fossem feministas e antirracistas, sem que eles enxergassem um motivo concreto para fazê-lo (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 14-15).

Neste caso, quando temos a noção de que a desvinculação entre a posição social do homem em relação a da mulher, do branco em relação ao negro é na verdade apenas uma visão parcial da realidade, e olhamos sob o prisma da totalidade, podemos ver que há um interesse material para que trabalhadores brancos se unam aos negros na luta antirracista e os homens às mulheres, na luta feminista (essência). No capitalismo, apesar das vantagens sociais (status e privilégios)17 17 Para uma maior compreensão destas “vantagens sociais”, inclusive das origens do que se convencionou chamar amplamente hoje de “privilégios” da branquitude, cf. Roediger, 2007 [1991]. que tais relações conferem aos homens brancos da classe trabalhadora, sua própria condição social de exploração e degradação de seus meios de reprodução da vida, está diretamente ligada à condição social de subordinação e desumanização dos trabalhadores negros e das mulheres. Compreender esta questão depende de um processo de tomada de consciência coletiva e, no plano concreto, uma luta em comum dependeria do compromisso por parte desses trabalhadores brancos em abrir mão destas vantagens e reconhecer pessoas negras como seres humanos e sujeitos políticos - mas simplesmente enxergar o problema desta forma já nos abre outras possibilidades de análise teórica e de traçar estratégias para a luta política. A mesma lógica poderia ser aplicada no que tange às diferenças entre homens e mulheres.

O exemplo dado por Bhattacharya ressoa uma concepção de fragmentação das pautas políticas que se tornou cada vez mais comum no seio dos movimentos feministas e antirracistas na virada do século XX para o século XXI. Tal concepção reflete uma elaboração teórica que negligencia a dimensão da totalidade social e exemplifica em que medida a forma como conceituamos as relações sociais impacta diretamente o desenvolvimento de estratégias políticas efetivas. Uma das consequências de se recuperar a noção marxiana de totalidade social é, portanto, resgatar a compreensão de que a multidimensionalidade da vida social não pode ser compreendida pressupondo-se que suas partes - as relações de classe, raça, gênero, sexualidade - sejam ontologicamente autônomas. Neste sentido, McNally (2017, p. 105-106, tradução e grifos meus), um dos autores da TRS, localiza as relações de raça e gênero no interior da totalidade social capitalista:

O racismo tem características específicas que nos permitem distinguir, em primeira instância, do sexismo. Mas essas distinções não fornecem definições exaustivas. Eles fornecem um ponto de partida do qual o pensamento desdobra as relações internas de partes com outras partes e com o sistema orgânico como um todo. O racismo, em outras palavras, pode ser entendido como uma totalidade parcial com características únicas que devem, em última análise, ser apreendidas em relação às outras totalidades parciais que compõem o todo social em seu processo de transformação. Cada totalidade parcial, cada sistema parcial dentro do todo, possui características únicas (e uma certa “autonomia relativa” ou, melhor dizendo, autonomia relacional). O "sistema coração-pulmão", por exemplo, constitui uma totalidade parcial dentro do organismo humano como um todo. Mas nenhuma parte (ou totalidade parcial) é ontologicamente autônoma em si. Cada parte é (parcialmente) autônoma e dependente, (parcialmente) separada e ontologicamente interconectada. Consequentemente, ninguém pode ser adequadamente compreendido como uma unidade autossuficiente fora de sua condição de membro de um todo vivo. Naturalmente, o todo orgânico é constituído em e através de suas partes - são estas partes que lhe dão determinação e concretude - mas ele não é redutível a suas partes. É algo maior e mais sistemático que uma mera soma aditiva. (…) Uma totalidade concreta alcança a concretude (“determinação”) através das diferenças que a compõem. Ao mesmo tempo, cada uma dessas diferentes partes carrega o todo dentro dela; como elementos da vida, sua reprodução é impossível fora do todo vivo.

Ao conceituar relações como o racismo (ou o sexismo) como uma totalidade parcial com características únicas, pertencente a um todo social orgânico, McNally (2017) eleva a compreensão das conexões entre as relações de opressão e o modo de produção capitalista a uma concepção muito mais próxima da complexa realidade social. Assim, no lugar de cruzamentos, ou combinações entre sistemas/relações de opressão ou de dominação externas umas às outras - como supõe a teoria da interseccionalidade18 18 A teoria da interseccionalidade (CRENSHAW, 1989) considera a incidência de múltiplos sistemas de opressão/dominação sobre um determinado indivíduo ou grupo social. A própria ontologia do conceito - interseccionar - não só permite a compreensão de que cada forma de opressão constitui um sistema distinto, como deixa em aberto a compreensão da existência de um sistema único. A visão de totalidade apresentada aqui, assim como a defendida por Davis (2016 [1981]), é diferente neste sentido. -, há um processo no qual as partes contêm o todo e o todo contém as partes. Ao mesmo tempo que constituídas e mediadas mutuamente - ou seja, unidas em um único processo vital - as relações de opressão guardam características específicas, particulares, ontologicamente interligadas. Daí o entendimento marxiano de que o capital, no seu processo de se impor enquanto totalidade, unifica as relações sociais sem suprimir as totalidades parciais que o constituem. Isso não implica afirmar que as partes são redutíveis ou funcionais ao todo; implica apenas dizer que há uma unidade, uma lógica subjacente que determina - no sentido de exercer pressões e colocar limites reais sobre - todas as relações parciais que constituem essa totalidade histórica aonde o todo não é externo à suas partes. Segundo Ferguson (2017FERGUSON, Susan; MCNALLY, David. “Capital, força de trabalho e relações de gênero”. In Revista Outubro, n. 29, p. 23-59, novembro de 2017. [2016], p. 22-23),

esse é um todo (capitalista) unificado, mas um que é também diferenciado e contraditório. As distintas opressões não são redutíveis umas às outras, mas suas diferenças estão expressas no interior e através de (e algumas vezes excedendo) uma lógica compartilhada. Compreendida dialeticamente, portanto, uma narrativa totalizante não exclui reconhecer, entender e explicar a diferença entre suas partes constitutivas, e a co-constituição no interior de um processo total. Ela assume essas partes como integrais à reprodução social do todo, um todo que somente se constitui no interior, e através, da história concreta e real. “Capitalismo” como uma simples abstração não existe “realmente”. Há apenas o capitalismo racializado, patriarcal, no qual a classe é concebida como uma unidade de relações diversas que produzem não apenas lucro ou capital, mas o capitalismo. Apesar de podermos (e precisarmos) pensar sobre relações discretas para entender a diferença, elas são distintas apenas abstratamente, no pensamento. Uma teoria integrativa é incompleta a menos que ela se mova dessa abstração para nomear a lógica social que informa a unidade existente, concreta, dessas relações.

Neste mesmo sentido, McNally (2017, p. 106) destaca ainda que as totalidades ou universais não são abstrações da diversidade concreta e da multiplicidade de coisas para Hegel e Marx. Pelo contrário, as totalidades são constituídas na e pela diversidade e dinamismo dos processos da vida real. Uma relação social só pode ser apreendida em relação às outras relações sociais que compõem o todo social em seu processo contínuo de transformação.

Portanto, por mais que as origens do patriarcado, da supremacia branca, da família, possam remontar à períodos históricos nos quais o capitalismo não estivesse ainda mundialmente consolidado, fato é que o capitalismo, em sua gênese e universalização, reestrutura hierarquias sociais anteriores e se beneficia delas na mesma medida em que elas o constituem enquanto sistema19 19 Assim, para a TRS, o capitalismo é um sistema que nasce de antigas hierarquias sociais, rompe com algumas delas, reestrutura e preserva outras, unificando diferentes relações sociais em uma totalidade complexa, e nesse processo, modificando todas. Isso é simplesmente dizer que algumas formas sociais que preexistiam ao capitalismo foram preservadas porque foram defendidas pelas pessoas - por pessoas que pertenciam tanto às classes subalternizadas quanto às classes dominantes e que por razões diferentes, muitas vezes contraditórias, as preservaram - ao mesmo tempo em que elas também foram reforçadas e modificadas por políticas intencionais por parte dos Estados capitalistas. Dessa forma, “através de processos históricos complexos e às vezes contraditórios”, formas sociais “compatíveis com a reprodução privatizada da força de trabalho foram tanto preservadas quanto adaptadas, a uma ordem de gênero burguesa moderna”, branca e heterocispatriarcal (FERGUSON; MCNALLY, 2017 [2013], p. 36). Esta ressalva, que considera, inclusive, o papel da própria classe trabalhadora como instrumento de manutenção das opressões, explica ao mesmo tempo a permanência e reestruturação de algumas formas e hierarquias sociais, e sobretudo o caráter específico dessas relações no capitalismo. . Autores como Almeida (2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.) têm lido esse fenômeno sob a chave das relações estruturais, como o racismo estrutural: uma relação social que estrutura a sociedade ao mesmo tempo em que é estruturada por ela, mas que foge aos indivíduos. Essa é uma compreensão fundamental, mas que se encarada apartada de uma perspectiva dialética que considere a noção de totalidade recai facilmente em explicações dualistas e não-dialéticas sobre as relações de opressão e o capitalismo. Neste sentido, como destaca Ferguson (2017FERGUSON, Susan; MCNALLY, David. “Capital, força de trabalho e relações de gênero”. In Revista Outubro, n. 29, p. 23-59, novembro de 2017. [2016], p. 15), a TRS se distingue das demais teorias porque ao retornar ao quadro conceitual marxiano, retoma a “compreensão ampla e complexa do trabalho como uma ‘unidade concreta’, uma categoria ontológica que captura - e uma experiência vivida que medeia e produz - uma totalidade contraditória, histórica e ricamente diferenciada”. É essa multidimensionalidade da atividade humana, onde o trabalho enquanto atividade humana prática é a premissa ontológica de uma unidade integrada e, ao mesmo tempo, diversa, que convida a uma compreensão dialética - não essencialista, não estática e realmente integrada - das relações sociais. Desse modo, a

TRS permite uma concepção diversa-mas-unificada das relações sociais (FERGUSON, 2017FERGUSON, Susan; MCNALLY, David. “Capital, força de trabalho e relações de gênero”. In Revista Outubro, n. 29, p. 23-59, novembro de 2017. [2016]), apresentando forte e diferenciado potencial explicativo para as formas sobrepostas/cruzadas através das quais essas relações se apresentam para nós.

Seis contribuições teórico-práticas da TRS à luz da noção de totalidade social

Como vimos até aqui, a renovação da perspectiva unitária da reprodução social no século XXI ressurge como uma reação prático-teórica de intelectuais críticos, marxistas e ativistas de esquerda às três décadas de reestruturação neoliberal, que, com o aprofundamento de sua crise estrutural desencadeada a partir de 2007-2008, avança através da intensificação das formas de expropriação e exploração, e do despertar do autoritarismo em escala global (GONÇALVES; MACHADO, 2018_____ . Valor, expropriação e direito: sobre a forma e a violência jurídica na acumulação do capital. In: Boschetti, I (Org.). Expropriação e direitos no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2018, p. 101-130.). A precarização das relações de trabalho e o rebaixamento das condições de vida dos trabalhadores, conduzidas através da comodificação, financeirização e militarização das relações sociais, marcam a presente conjuntura. Diante deste cenário, uma reconfiguração contemporânea da teoria unitária exige a reconstrução de pontes transnacionais de solidariedade que possibilitem à classe trabalhadora uma compreensão universal da condição humana e ofereçam alternativas concretas de emancipação.

Tal reconstrução depende diretamente tanto da consideração das múltiplas relações de opressão que constituem o capitalismo quanto da capacidade de recentrar nossa compreensão das relações de classe, reelaborando a conceitualização sobre quem é a classe trabalhadora, e, portanto, quais seriam os “sujeitos revolucionários” em cada conjuntura e realidade social específica. Esta conceitualização passa por uma reflexão sobre sob quais mediações sociais as frações desta classe estão enredadas e quais seriam os mecanismos materiais que possibilitariam a sua união. A TRS traz reflexões fundamentais neste sentido. Dentre suas muitas contribuições, destaco seis que, diretamente ligadas à perspectiva marxiana da totalidade social, considero as mais relevantes para recentralizar o debate sobre classe e assim fazer avançar alguns embates práticos e teóricos que enfrentamos hoje também no Brasil.

Uma primeira contribuição é que, ao resgatar a elaboração inicial de Vogel (exposta acima), esta teoria recupera a noção de que a força motora do capitalismo é o trabalho humano e não as mercadorias. Ao fazer isso, ela desmistifica “a esfera da economia” e restaura ao processo econômico o seu componente fundamental: as relações racializadas e generificadas nas quais os seres humanos estão imbricados e a sua agência (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 19). Ao fazer isso, a TRS nos oferece, também, uma visão expandida da produção capitalista e do trabalho, e revela um pressuposto universal humano: as pessoas precisam ser produzidas (ou produzir-se), e tarefas como dar à luz, cuidar e manter seres humanos demanda grandes quantidades de tempo, recursos e trabalho (ARRUZZA, et al., 2019ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 105-106).

A TRS destaca que, historicamente, nas sociedades capitalistas, este trabalho é feito pelas mulheres, naturalizado, invisibilizado (na maioria das vezes lido socialmente como “atos de amor”), e desvalorizado. Isso tem consequências desastrosas para a vida de muitas mulheres, que têm triplas jornadas de trabalho. Esta teoria então se refere à centralidade desse trabalho reprodutivo como pressuposto da produção capitalista, e assim novamente politiza o domínio mais específico da renovação e da manutenção da vida que abrange três elementos fundamentais: a) a reprodução biológica da espécie (correspondente à maior parte da reprodução geracional da força de trabalho); b) a reprodução cotidiana da força de trabalho; e c) a reprodução das necessidades de provisão e cuidado dos potenciais portadores da força de trabalho ou dos que se tornaram inaptos para ele. De um modo geral, esta dimensão foi ignorada pela tradição marxista e negligenciada nas interpretações mais famosas da teorização de Marx.

Aqui é importante observar que, por sua vez, para que o trabalho reprodutivo ocorra, há uma dependência direta da provisão de recursos básicos de infraestrutura que permitem o acesso aos meios de subsistência. Por exemplo, ainda que comprados pelo salário, a água e os alimentos não chegam aos lares dos trabalhadores sem canos, estradas, portos, etc. Essa provisão é regulada pelo Estado e controlada pelo capital, e as regras sobre sua disponibilidade se organizam através das linhas de gênero, raça, classe e status de cidadania. A organização dessas regras depende do desenvolvimento histórico específico de cada país diante do sistema global.

Esta perspectiva expandida da produção capitalista, central à TRS, nos leva a uma segunda contribuição importante: ela permite uma mudança na forma em que vemos o trabalho, propondo uma noção ampliada da categoria “classe trabalhadora”, que destaca a relação oculta entre trabalho reprodutivo e produtivo. A TRS revela que a dicotomia entre produção e reprodução social, sendo a primeira ligada à esfera pública, econômica, ao local de trabalho, e a segunda ligada à esfera privada, social, identificada com o lar, é uma forma histórica de aparência específica do capitalismo, na qual o capital se põe enquanto processo. Para a TRS, o trabalho realizado nas duas esferas deve ser teorizado de maneira integrada: a relação contraditória-porém-necessária entre ambas revela que o trabalho não-remunerado realizado pelas mulheres é o pressuposto da produção capitalista e, portanto, está na base desse sistema. Romper com as dicotomias que surgem da reificação dualista das duas esferas nos permite: a) enxergar que esta relação sustenta a permanência da opressão das mulheres sob o capitalismo (FERGUSON, 2017FERGUSON, Susan; MCNALLY, David. “Capital, força de trabalho e relações de gênero”. In Revista Outubro, n. 29, p. 23-59, novembro de 2017. [2016], p. 25); b) e reinterpretar as relações existentes entre outras formas de produção e de propriedade dos meios de existência, reconsiderando as realidades de resistência anticolonial (HALL, 2016HALL, Rebecca. “Reproduction and Resistance: An Anti-colonial Contribution to Social-Reproduction Feminism.” Historical Materialism 24.2: 87-110. 2016., passim).

A terceira contribuição trazida pela TRS é a noção de que embora as atividades de reprodução ocorram de uma forma ou de outra em todas as sociedades, nas sociedades capitalistas elas estão, especificamente, subordinadas ao capital. Há um impulso que subordina a vida à produção do lucro, ao mesmo tempo que exige que o trabalho reprodutivo produza e substitua o seu oposto, a “força de trabalho”. Essa relação é um desdobramento da contradição fundamental entre capital e trabalho. O trabalho reprodutivo é então determinado e constrangido pela própria produção capitalista: enquanto, de um lado, a reprodução social é a condição da acumulação sustentada de capital; por outro lado, a compressão dela é um meio de aumentar a mais-valia extraída. Assim, para produzir cada vez mais valor, o capital tende a precarizar as condições de reprodução da vida, restringindo, progressivamente o acesso dos trabalhadores aos meios necessários à sua subsistência (FRASER, 2017FRASER, Nancy. “Crisis of Care? On the Social-Reproductive Contradictions of Contemporary Capitalism”. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. Londres: Pluto Press, 2017., p. 22). Há uma tendência ao empobrecimento da classe trabalhadora e à crise do cuidado, a partir de uma pressão constante para que a esfera da reprodução social seja cada vez mais reduzida pelos proprietários do capital e através do Estado. Assim, o capitalismo gera um cenário no qual duas relações opostas são contraditoriamente unificadas (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p.11). Há uma permanente crise reprodutiva-social (FRASER, 2017).

A percepção desta dinâmica nos leva à quarta contribuição da TRS: o ponto da reprodução social é um local privilegiado do conflito de classe. Ao abordar a contradição entre produção e reprodução, Bhattacharya (2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017.b, p.73, et seq.) destaca que o padrão das necessidades de existência dos trabalhadores é determinado, contingencialmente, pela luta de classes e, portanto, pelo desenvolvimento histórico de cada sociedade. Como vimos anteriormente, este padrão é composto pela “cesta básica” dos trabalhadores, que determina o valor da força de trabalho através das tendências contraditórias descritas acima.

Cabe destacar que, ao comandar o processo de produção, a classe capitalista tende a limitar as necessidades de consumo da classe trabalhadora. No entanto, para assegurar a constante realização da mais-valia, o capital também precisa ampliar e criar novas necessidades. Neste sentido, a posição da classe trabalhadora sob o capitalismo é relativa: se o padrão de consumo das classes dominantes aumenta, aumentam também as necessidades da classe trabalhadora, que aspirará atingir um padrão igual ou similar (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017.b, p.79). A elevação no padrão das condições de reprodução da vida se torna uma aspiração, um “objetivo ideal” da classe trabalhadora, que, entretanto, jamais consegue se realizar no interior deste modo de produção (que, como vimos, é voltado para a valorização do valor e não para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores). Assim, “os trabalhadores, devido à própria natureza do processo, são sempre reproduzidos como carentes do que necessitam”20 20 Aqui, o argumento de Bhattacharya se aproxima da realidade denunciada pelas feministas negras estadunidenses na década de 1960, como a alegação de Francis Beale (2005 [1969]) de que a maioria dos trabalhadores negros nos EUA permaneciam em condições sub-humanas de trabalho, sem se revoltar, com a perspectiva de atingir um padrão de vida (e portanto, também de consumo) da classe média branca, inalcançável às comunidades negras. Pelas limitações de espaço e escopo, a relação entre o feminismo negro e a TRS, será aprofundada em outro trabalho. (ibid., p. 82), o que pode gerar grande insatisfação social.

Neste sentido, um grande desafio à organização da classe trabalhadora é o fato de que uma luta que aborde o problema nesta extensão, ou seja, que confronte o capital “em geral”, o capital em sua totalidade, não possui marcos bem delineados de confronto. Diferentemente da luta contra o capital individual no local da produção, onde os atores estão bem definidos (de um lado o chefe ou dono da empresa, e do outro, os seus empregados e sindicatos), o poder do capital “fora” do local de trabalho é qualitativamente diferente (ibid., p. 84). Ainda assim, para a TRS lutas mais amplas, inclusive aquelas que emergem “fora” do local e das relações de trabalho, como as revoltas contra o Estado ou contra a ordem política vigente, devem ser consideradas como aspectos da luta de classes. Todo o “movimento social e político ‘tendendo’ na direção de ganhos para a classe trabalhadora como um todo, ou de desafiar o poder do capital como um todo, deve ser considerado um aspecto da luta de classes” (ibid., p. 85-86). Assim, lutas por melhores condições de vida, pelo bem-viver, por recursos naturais, por direitos humanos, por moradia, pelo meio-ambiente, contra as medidas de austeridade, carga tributária injusta/regressiva e contra a violência policial, por exemplo, devem ser consideradas aspectos da luta de classes. Esta pode assumir diversas formas (ibid., p. 86-88).

Tal compreensão nos leva à quinta contribuição fundamental da TRS: a reconstrução do significado da categoria “classe trabalhadora” ou “proletariado”. Para a TRS “é essencial reconhecer que os trabalhadores têm uma existência para além do local de trabalho. O desafio teórico reside, portanto, na compreensão da relação entre essa existência e a de suas vidas sob o domínio direto do capitalista” (ibid., p. 69), o que necessita uma investigação que leve em consideração as especificidades da concretude de cada realidade a ser analisada. Dessa forma, compreender a complexidade da vida sob o capitalismo depende da percepção e da consciência de que a classe trabalhadora é produzida através de processos diferenciados. É preciso considerar que, concretamente, as diversas frações da classe trabalhadora possuem diferentes níveis de acesso a aspectos básicos para produção e reprodução de sua força de trabalho, o que molda diferentes subjetividades e diferentes estratégias de resistência no interior dessa classe. Historicamente, o acesso à infraestrutura básica, aos meios de subsistência e ao trabalho foi diretamente regulado pelo Estado através das relações de raça, gênero, sexualidade e classe.

Aqui, vale destacar que o objetivo da TRS é providenciar respostas a questões concretas como “que tipos de processos permitem que os trabalhadores cheguem diariamente em seu local de trabalho, prontos para produzir a riqueza da sociedade?” (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 2). O esforço de responder a tal pergunta, nos leva a uma compreensão sobre quem compõe a classe trabalhadora global hoje em toda sua diversa subjetividade, e a uma abordagem mais holística da relação entre exploração, expropriação, dominação e opressão. Essa reflexão questiona não só que papel a educação, os espaços de lazer, a segurança, a rede de transportes públicos, a qualidade do café da manhã ou do sono possuem na reprodução cotidiana dos trabalhadores, mas também nas consequências das diferenças de acesso a estas condições.

Segundo Bhattacharya (2017BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017.b, p. 89), devemos adotar uma concepção ampliada de classe trabalhadora, para considerar como proletariado “todos os membros da classe produtora que tenham participado, durante algum momento de sua vida, da totalidade da reprodução da sociedade - independentemente de o trabalho ter sido pago ou não pelo capital”. Isso deve incluir todos aqueles despossuídos dos seus meios de produção e subsistência, que compõem a força de trabalho ativa (formal e informal, na cidade e no campo, remunerada ou não), e a superpopulação relativa, incluindo o exército industrial de reserva. Esta reconsideração restaura um sentido de totalidade social à noção de classe, e a partir daí reformula a percepção geral da classe trabalhadora sobre a arena da luta de classes e sobre possíveis laços de solidariedade.

A última contribuição da TRS que quero ressaltar aqui consiste na reconsideração teórica das relações de opressão exposta no item anterior. Ela oferece uma chave interpretativa única para analisarmos a interrelação entre as múltiplas relações sociais que constituem as sociedades capitalistas, na medida em que permite considerar as relações econômicas e sociais como ontologicamente inseparáveis e integradas, i.e., como diferentes momentos de uma mesma totalidade social. Assim, "a participação econômica, o valor do trabalho, a participação social e política e o direito, a marginalização ou a inclusão cultural, fazem todos parte desta formação social global" (BANNERJI, 2005_____ . “Building from Marx: Reflections on Class and Race”. In: Social Justice. 32, no. 4: p. 144-160. 2005., p. 149). Como modos de mediação (MARX, 2011MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011 [1857-1858]. [1857-1858], p. 177), as relações sociais de gênero ou raça ajudam a produzir a constante desvalorização e desumanização de certos grupos sociais e assim garantem a reprodução de formas entrelaçadas de exploração e expropriação/despossessão; organizam as relações de trabalho e propriedade; enquadram as formas concretas de competição e acumulação capitalista; e estabelecem um código cultural para a sociedade como um todo que compreende formas de consciência e de institucionalização (BANNERJI, 2005, p. 153). O capitalismo é, então, racializado e generificado, na mesma medida em que gênero e raça não são mais do que formas através das quais a classe é vivida (DAVIS, 1997_____ . “As mulheres negras na construção de uma nova utopia”. 1997. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/ >. Acesso em: 12/11/2018.
https://www.geledes.org.br/as-mulheres-n...
). O mesmo pode ser dito de todas as múltiplas relações de poder social. Estas relações, historicamente constituídas, formam um todo social complexo, no qual “cada um dos momentos individuais são essencialmente a totalidade do todo”21 21 Aqui, McNally parafraseia expressamente a frase de Hegel em A Ciência da Lógica (HEGEL, Science of Logic, p. 769 apud MCNALLY, 2017, p. 105): “in reproduction life is concrete and is vitality... Each of the individual moments is essentially the totality of all; their difference constitutes the ideal form determinateness, which is posited in reproduction as the concrete totality of the whole.” (MCNALLY, 2017MCNALLY, David. “Intersections and Dialectics: Critical Reconstructions in Social Reproduction Theory”. In BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 107). A raça não pode ser desarticulada da classe, do gênero ou da sexualidade, porque constituem, essencialmente, o mesmo fenômeno.

Considerações Finais

O presente artigo procurou apresentar as principais características e contribuições da Teoria da Reprodução Social para a reorganização da proposta prático-teórica do marxismo no século XXI. No item 1, reconstruí a noção de totalidade social em Marx, centro de força da proposta elaborada pela TRS. Em seguida, passei à exposição dos principais elementos da obra de Lise Vogel (2013VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013 [1983]. [1983]), pioneira em sistematizar uma proposta de teoria unitária cujo ponto de partida fosse a análise da produção e da reprodução da força de trabalho. Tal proposta, bem como as críticas que sofreu, constitui a base para a atual formulação da TRS. No item 3, contextualizei brevemente o período de crise do marxismo e do giro antiprodutivista que coincidiu com a publicação da elaboração de Vogel, relegando-a, junto ao feminismo-marxista, ao ostracismo por quase trinta anos. Tal conjuntura limitou as possibilidades de construção da teoria unitária. No item 4, apresentei brevemente a proposta teórica da TRS campo de convergência forjado em reação à conjuntura pós-crise de 2008. Ao final, indiquei seis contribuições interrelacionadas da TRS que considero fundamentais para recentralizar o debate sobre classe e sobre o funcionamento do modo de produção capitalista, considerando a totalidade que conforma as relações de exploração e opressão que constituem esse sistema.

Por fim, como evidencia a discussão exposta até aqui, ainda que em sua formulação inicial a perspectiva da reprodução social tenha teorizado apenas a opressão de gênero, a TRS surge, no século XXI, influenciada pelos feminismos negros, pós-coloniais e pela teoria Queer. Esta influência, bem como o retorno a Marx, reposiciona o debate sobre classe e capitalismo, reabrindo condições de possibilidade para a renovação teórica do marxismo. Isto inclui uma compreensão expandida da produção capitalista, a reformulação da noção de classe trabalhadora e dos mecanismos materiais que possibilitariam sua união - sem que suas especificidades de raça, gênero e sexualidade sejam subsumidas ou hierarquizadas, tanto na teoria quanto na prática. Neste sentido, acredito que a TRS pode contribuir centralmente para guiar futuras pesquisas empíricas que possam ampliar o horizonte de compreensão teórica acerca da complexidade da realidade social no século XXI. Este é um horizonte particularmente importante ao pensarmos a realidade brasileira hoje (da crise econômica à militarização e ascensão de Bolsonaro) e o acirramento da crise/contradição reprodutiva social com o avanço do autoritarismo em todo o mundo. Ela representa também uma importante possibilidade de reestabelecimento de um projeto político de solidariedade transversal no interior da classe trabalhadora, rumo a um horizonte anticapitalista global. Tal projeto fora recentemente apresentado por Bhattacharya, Arruzza e Fraser (2019ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.) no Manifesto internacionalista Feminismo para os 99% e tem mobilizado mulheres em todo o mundo. A construção da teoria unitária, bem como de um movimento internacional de trabalhadores, unificado e transversal, que consiga dar conta de respeitar as particularidades, compreendendo a importância destas para o universal a ser construído, é, necessariamente, uma tarefa inacabada. Mas a TRS torna, novamente, a construção desta tarefa - pensar e agir em termos universais -, uma alternativa viável.

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  • 1
    Diante das dificuldades em desenhar uma linha divisória clara entre o feminismo-socialista e o feminismo-marxista, neste trabalho, sigo a proposta de Ferguson e McNally (2017 [2013], p. 27), e me refiro ao feminismo-marxista para designar a tradição que se identifica, do ponto de vista teórico, explicitamente com o materialismo histórico dialético e com a crítica da economia política. O feminismo-socialista designa, portanto, um campo mais amplo e diverso. Neste sentido, ver também Vogel (2013 [1983], p. 183).
  • 2
    Este primeiro momento pode ser identificado ainda no final do século XIX, através do ativismo e teorização de mulheres socialistas. O debate central levantado por elas sobre o trabalho doméstico e o caráter da opressão feminina - foi retomado, décadas mais tarde no bojo do Debate sobre o Trabalho Doméstico, iniciado em 1969 com a publicação do artigo The Political Economy of Women’s Liberation [A economia política da libertação das mulheres] de Margaret Benston nos EUA. Este debate tomou a forma de uma série de artigos divulgados e discutidos por intelectuais feministas-socialistas, em um esforço internacional que, embora concentrado no Norte Global, procurou levar as experiências das mulheres - até então epistemologicamente marginalizadas - ao coração da teoria marxista sobre o capitalismo (MORTON, 1970; DALLA COSTA; JAMES, 1971, SECCOMBE, 1974). Inconcluso, este debate se ocupou de duas questões centrais: 1. se o trabalho doméstico produzia valor ou mais-valia (e, portanto, se era produtivo ou improdutivo); e 2. se trabalho doméstico constituía um modo de produção em si mesmo, distinto ou análogo ao modo de produção capitalista. Vogel (2013 [1983]) considera a primeira questão já superada pelas feministas-marxistas que a precederam, tais como Benston (1969) e Young (1981): o trabalho doméstico produz apenas valor de uso, não valor de troca e, portanto, não produz diretamente mais-valia. Essa é a principal diferença entre a perspectiva da reprodução social tal como defendida pela TRS e a de Silvia Federici. No que tange à segunda questão, grande parte das autoras envolvidas no debate concluíram que “possivelmente”, o trabalho doméstico seria um modo de produção próprio, que opera de acordo com uma lógica distinta, pré- ou não-capitalista (VOGEL, 2013 [1983], p. 28-29). Para Vogel, entretanto, esta conclusão indica que nenhuma autora do debate sobre o trabalho doméstico foi capaz de superar completamente a perspectiva dualista, deixando o caráter dessa relação inexplicado (VOGEL, 2013 [1983], p. 134-135).
  • 3
    Aqui, enquanto o termo “identidade” refere-se à equivalência formal entre trabalhadores e capitalistas no momento da troca de mercadorias, o termo “diferença” refere-se estritamente à desigualdade material resultante do processo contínuo de separação dos produtores dos meios de produção e subsistência (meios de existência).
  • 4
    Marx exemplifica essa questão de forma bastante didática: “A produção medeia o consumo, cujo material cria, consumo sem o qual faltaria-lhe o objeto. Mas o consumo também medeia a produção ao criar para os produtos o sujeito para o qual são produtos. Somente no consumo o produto recebe o seu último acabamento. Uma estrada de ferro não trafegada, que, portanto, não é usada, consumida, é uma estrada de ferro apenas potencialmente, não efetivamente. Sem produção, nenhum consumo; mas, também, sem consumo, nenhuma produção, pois nesse caso a produção seria inútil. (...) O consumo cria o estímulo da produção; cria também o objeto que funciona na produção como determinante da finalidade. Se é claro que a produção oferece exteriormente o objeto do consumo, é igualmente claro que o consumo põe idealmente o objeto da produção como imagem interior, como necessidade, como impulso e como finalidade. (ibidem, p. 46-47; grifos meus; itálico do autor)
  • 5
    É neste sentido que se constitui o itinerário de investigação de O Capital: Marx recompõe o capital, a partir de seu movimento real, como totalidade, isto é, como a unidade complexa (livro III) entre seu processo de produção (livro I) e de sua circulação (livro II). O método de exposição de cada momento se inicia nas suas formas mais abstratas e gerais e se dirige em direção à suas determinações mais concretas e aparentes. Por exemplo, no livro I, o autor parte da mercadoria enquanto forma aparente mais geral e abstrata (mais facilmente apreensível na realidade imediata) para chegar à realidade mais profunda - e, portanto, não-aparente - da relação social que a compõe: a expropriação dos trabalhadores (separação de seus meios de produção da vida) e sua exploração no processo de produção capitalista (GONÇALVES, 2018, p. 101-104). Marx demonstra, assim, que a mercadoria não é apenas o produto que se vê e que satisfaz uma necessidade humana imediata; ela contém em si esta relação social de exploração e expropriação, trabalho humano vivo passado, cristalizado. Ao mesmo tempo, se observarmos o livro I em relação ao livro III, no primeiro, o capital aparece em sua forma abstrata, genérica, enquanto no segundo, ele aparece como a relação contraditória entre os diversos capitais individuais, ou seja, em sua forma mais complexa. Entretanto, não podemos perder de vista que o conceito de capital - que só se põe de forma completa no Livro III, quando o “capital em geral” é situado na “pluralidade dos capitais” - está essencialmente formulado já no Livro I. Neste último, embora não esteja posto, o capital está pressuposto; a sua gênese já está compreendida: a valorização do valor mediante a extração da mais-valia (exploração), o que pressupõe a expropriação contínua das massas.
  • 6
    Aqui, não considero o proletariado no sentido vulgarmente apropriado por parte da tradição marxista, segundo o qual este se restringiria à uma classe trabalhadora urbana e assalariada. Ao contrário, para uma concepção expandida desta categoria, considero os escritos tardios de Marx e as contribuições contemporâneas da teoria da reprodução social (BHATTACHARYA, 2017), como será exposto mais adiante.
  • 7
    Marxismo e a Opressão das Mulheres: Por uma Teoria Unitária, ainda não traduzido no Brasil.
  • 8
    A metáfora da “base” (ou infraestrutura) e “superestrutura”, popularizada pelo Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, aparece raras vezes na obra de Marx. Ela guarda a ideia de que a realidade social é composta por diferentes “esferas”: uma base, a economia, e uma superestrutura, que reuniria política, direito, cultura, ideologia, etc. Estas duas esferas manteriam uma relação externa entre si e a esfera econômica determinaria a superestrutura. Como aponta Wood (2011 [1995], p. 51-72), nesta concepção, a esfera econômica seria praticamente sinônimo de “forças técnicas de produção”, i.e., compreenderia o processo e as relações de produção e estaria separada da política e da cultura. Esta noção se tornou hegemônica durante décadas no marxismo ocidental, sobretudo através da obra de Louis Althusser. Porém, diversos autores como E.P. Thompson (1987) se dedicaram a demonstrar que esta constituía uma metáfora equivocada da realidade social.
  • 9
    Embora em um primeiro momento localize o trabalho doméstico no interior da categoria “trabalho necessário", posteriormente Vogel (2013 [2000], p. 192-193) admite que talvez essa não seja a melhor forma de conceituar a questão, deixando claro, por outro lado, que isto não altera o cerne de sua argumentação. Para ela, o trabalho doméstico não produz valor, embora desempenhe um papel fundamental no processo de apropriação de mais-valor. O trabalho doméstico é, assim, socialmente necessário para o capital. Ela afirma que “aprisionados na realização do trabalho necessário, o trabalho social e seu novo companheiro, o trabalho doméstico, formam um casal estranho nunca antes encontrado na teoria marxista” (VOGEL, ibid., p. 193). Esta passagem é considerada por alguns autores (FERGUSON; MCNALLY, 2017 [2013], p. 46-47) como uma importante autocrítica de Vogel, embora a autora nunca tenha apresentado outra formulação conceitual da questão.
  • 10
    Aqui, assim como Vogel, não diferencio o trabalho doméstico-assalariado do não-assalariado; para a autora, neste nível de abstração, ambas as formas correspondem ao componente do trabalho necessário com o qual Marx não contou: a porção de trabalho performada “fora” da esfera da produção capitalista da qual depende a reprodução da força de trabalho. A autora define “trabalho doméstico” da seguinte forma: “O trabalho doméstico é a porção do trabalho necessário que é realizado fora da esfera da produção capitalista. Para a reprodução da força de trabalho acontecer, tanto o componente doméstico como o componente social do trabalho necessário são exigidos. Ou seja, os salários podem permitir que um trabalhador compre mercadorias, mas um trabalho adicional - o trabalho doméstico - deve ser geralmente realizado antes que elas sejam consumidas. Além disso, muitos dos processos de trabalho associados à substituição geracional da força de trabalho são realizados como parte do trabalho doméstico”. (VOGEL, 2013 [1983], p. 159, tradução minha).
  • 11
    Segundo Vogel (2013 [1983], p. 161-162, tradução minha): “Como um componente do trabalho necessário, o trabalho doméstico potencialmente é extraído do compromisso que os trabalhadores possuem para a realização do trabalho excedente através da participação no trabalho assalariado. Objetivamente, então, ele compete com o impulso do capital pela acumulação. Se uma pessoa tende a cultivar a própria horta, cortar a sua própria lenha, cozinhar suas próprias refeições, e caminhar seis milhas para trabalhar, a quantidade de tempo e energia disponível para o trabalho assalariado é menor do que se ela comprar comida em um supermercado, viver em um prédio de apartamentos com aquecimento central, comer em restaurantes e utilizar o transporte público para ir para o trabalho”.
  • 12
    Vogel demonstra que este fenômeno pode incluir uma série de medidas que inclusive ultrapassam as relações familiares. Ela pode se dar tanto através da automação (introdução de máquinas de lavar roupa, por exemplo), quanto através da socialização das tarefas domésticas (quando o Estado as assume, através da educação e da rede de saúde pública, por exemplo) e/ou transferência destas para o setor de serviços (por exemplo, lavanderias, lojas de roupas prontas e redes de fast-food). A autora destaca ainda que o trabalho reprodutivo total de uma sociedade também pode ser reduzido empregando-se populações institucionalizadas (trabalho prisional, trabalho militar) e atraindo trabalhadores migrantes de outros países. (VOGEL, 2013 [1983], p. 162).
  • 13
    Vogel (ibid., p. 177) percebe que a dupla e específica dinâmica da opressão das mulheres no capitalismo também imprime uma característica específica sobre o caráter da família neste modo de produção. Uma vez que o trabalho doméstico tem sido historicamente realizado principalmente por mulheres em um contexto de supremacia masculina, a família da classe trabalhadora poderia se tornar um repositório altamente institucionalizado da opressão das mulheres. Mas, assim como o trabalho reprodutivo, a família poderia assumir diversas formas, não necessariamente opressoras.
  • 14
    Neste momento, Vogel retoma o argumento de que a localização diferencial de mulheres e homens em relação à reprodução social varia de acordo com a classe, e ressalta outra contradição: enquanto apenas algumas mulheres realizam trabalho doméstico na sociedade capitalista - ou seja, mulheres da classe trabalhadora, cujos esforços mantêm e renovam a força de trabalho explorável -, todas as mulheres sofrem com a falta de igualdade no capitalismo (ibid., p. 174). Em consequência, as mulheres de todas as classes passam então a lutar juntas contra a desigualdade de gênero.
  • 15
    Como exemplo recente de algumas dessas manifestações, podemos citar o movimento Black Lives Matter e destacar as mobilizações feministas como a Marcha das Mulheres em 21 de janeiro de 2017 nos EUA, cuja pauta incluía uma oposição ao controle de direitos sexuais e reprodutivos e as leis anti-imigração de Donald Trump. Estas prepararam o terreno para a Greve Internacional de Mulheres em 8 de março de 2017, mobilização massiva de mulheres em mais de 50 países, seguida da publicação do manifesto que ficou conhecido como Manifesto Feminismo para os 99% , liderado por feministas-marxistas da reprodução social. Em 2018, na Argentina, o movimento Ni Una a Menos levou milhões de pessoas às ruas na luta pela legalização do aborto, em pautas que problematizavam a desigualdade do acesso ao procedimento - bem como à educação e à saúde de qualidade - entre as diferentes classes sociais. No Brasil, é possível perceber um movimento similar. O ressurgimento do movimento de mulheres no contexto de resistência ao neoliberalismo têm tido forte protagonismo de mulheres negras que, com intensa produção teórica, e mantendo diálogo direto com ativistas de diversos países da diáspora africana, em 2015 marcharam por todo o país ocupando a capital, Brasília, em um movimento que reuniu mais de 50 mil mulheres pelo fim do genocídio da população negra e por melhores condições de vida, na Primeira Marcha Nacional De Mulheres Negras: Contra o Racismo, a Violência e o Bem-Viver. Parte das mulheres que marcharam em 2015 se somaram também nas mobilizações da Greve Internacional de Mulheres de 2017.
  • 16
    Esse movimento de convergência pode ser percebido no volume editado por Bhattacharya (2017) e que marca o estabelecimento desta teoria no século XXI. O volume recebe a contribuição de dez autores com trajetórias intelectuais distintas e que se engajam nesse sentido ao analisar diversos temas à luz dessa possibilidade teórica que se convencionou chamar de Teoria da Reprodução Social. Cabe ressaltar que entre 1983 e 2017, diversas teóricas feministas-marxista, sobretudo ligadas à tradição da Economia Política Feminista Canadense, desenvolveram e atualizaram a perspectiva da reprodução social. Essa produção é uma referência fundamental para as autoras que hoje defendem a construção da TRS, constituindo “o parente teórico mais próximo” desse projeto (BHATTACHARYA, 2017). Para mais sobre essa perspectiva da reprodução social, conferir BEZANSON; LUXTON, 2006.
  • 17
    Para uma maior compreensão destas “vantagens sociais”, inclusive das origens do que se convencionou chamar amplamente hoje de “privilégios” da branquitude, cf. Roediger, 2007 [1991].
  • 18
    A teoria da interseccionalidade (CRENSHAW, 1989) considera a incidência de múltiplos sistemas de opressão/dominação sobre um determinado indivíduo ou grupo social. A própria ontologia do conceito - interseccionar - não só permite a compreensão de que cada forma de opressão constitui um sistema distinto, como deixa em aberto a compreensão da existência de um sistema único. A visão de totalidade apresentada aqui, assim como a defendida por Davis (2016 [1981]), é diferente neste sentido.
  • 19
    Assim, para a TRS, o capitalismo é um sistema que nasce de antigas hierarquias sociais, rompe com algumas delas, reestrutura e preserva outras, unificando diferentes relações sociais em uma totalidade complexa, e nesse processo, modificando todas. Isso é simplesmente dizer que algumas formas sociais que preexistiam ao capitalismo foram preservadas porque foram defendidas pelas pessoas - por pessoas que pertenciam tanto às classes subalternizadas quanto às classes dominantes e que por razões diferentes, muitas vezes contraditórias, as preservaram - ao mesmo tempo em que elas também foram reforçadas e modificadas por políticas intencionais por parte dos Estados capitalistas. Dessa forma, “através de processos históricos complexos e às vezes contraditórios”, formas sociais “compatíveis com a reprodução privatizada da força de trabalho foram tanto preservadas quanto adaptadas, a uma ordem de gênero burguesa moderna”, branca e heterocispatriarcal (FERGUSON; MCNALLY, 2017 [2013], p. 36). Esta ressalva, que considera, inclusive, o papel da própria classe trabalhadora como instrumento de manutenção das opressões, explica ao mesmo tempo a permanência e reestruturação de algumas formas e hierarquias sociais, e sobretudo o caráter específico dessas relações no capitalismo.
  • 20
    Aqui, o argumento de Bhattacharya se aproxima da realidade denunciada pelas feministas negras estadunidenses na década de 1960, como a alegação de Francis Beale (2005 [1969]) de que a maioria dos trabalhadores negros nos EUA permaneciam em condições sub-humanas de trabalho, sem se revoltar, com a perspectiva de atingir um padrão de vida (e portanto, também de consumo) da classe média branca, inalcançável às comunidades negras. Pelas limitações de espaço e escopo, a relação entre o feminismo negro e a TRS, será aprofundada em outro trabalho.
  • 21
    Aqui, McNally parafraseia expressamente a frase de Hegel em A Ciência da Lógica (HEGEL, Science of Logic, p. 769 apud MCNALLY, 2017, p. 105): “in reproduction life is concrete and is vitality... Each of the individual moments is essentially the totality of all; their difference constitutes the ideal form determinateness, which is posited in reproduction as the concrete totality of the whole.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2019
  • Aceito
    09 Mar 2020
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