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O pluralismo jurídico de Brian Tamanaha

TAMANAHA, Brian. . Legal pluralism explained: history, theory, consequencesNova YorkOxford University Press2021

Há três décadas o pluralismo jurídico tem sido alvo das reflexões de Brian Tamanaha, teórico de origem havaiana e professor de direito da Washington University em St. Louis. Por lhe ser um tema tão caro, era de se esperar que em algum momento o autor produzisse sua própria narrativa sobre as origens sociohistóricas do pluralismo jurídico e, ao mesmo tempo, fixasse sua posição dentro das disputas teóricas existentes em relação ao termo. Legal Pluralism Explained atende de forma contundente estas duas expectativas.

Conforme narra no prefácio do livro, o primeiro contato de Tamanaha com o tema remete à sua insólita experiência profissional como um jovem assistente jurídico em Yap, na distante Micronésia. Até então sem ter ouvido falar do pluralismo jurídico enquanto termo acadêmico, Tamanaha encontrou-o como a realidade inescapável de seu cotidiano profissional nesse arquipélago onde um efetivo sistema de direito baseado no costume confrontava um direito oficial transplantado, ocidentalizado e pouco identificado com os valores seguidos pelos habitantes do lugar.

Nos anos subsequentes, ao entrar em contato com a bibliografia pluralista, Tamanaha pode vislumbrar que a coexistência de diferentes direitos em um mesmo espaço social não estava restrita a lugares distantes ou a épocas determinadas, mas representava uma tendência geral de manifestação do fenômeno jurídico nas mais diferentes sociedades ao longo da história. A despeito de suas variantes, o principal legado do pluralismo jurídico é certamente o de demonstrar que a imagem monista de um direito estatal hierarquicamente organizado e que exclui outras manifestações normativas pouco corresponde à realidade multifacetada do cotidiano jurídico.

Se a noção de pluralismo jurídico não aparece antes na história, é porque ela refletia uma condição habitual das sociedades. É apenas com a consolidação do direito estatal, por volta do século XVIII, que emerge uma alternativa que motiva este estado de coisas a ser nomeado. “É como um peixe que não tem noção da água como meio até que sobe à superfície para encontrar o ar pela primeira vez”, ilustra Tamanaha (p. 19).

O livro se divide em duas partes principais, cada uma delas correspondendo a uma das expectativas que mencionamos: a primeira, que engloba os capítulos 1, 2 e 3 e parte do 4, é dedicada a reconstituir diversas situações de pluralismo jurídico do passado e do presente; na segunda, que cobre o final do capítulo 4 e o 5, Tamanaha se engaja nos debates teóricos sobre a noção e propõe sua própria visão sobre como o pluralismo jurídico deve ser compreendido.

A primeira parte, essencialmente descritiva, não carrega a pretensão de trazer grandes novidades ao estudo do tema, mas nem por isso é menos interessante. Traz um rico repertório de situações que ilustram variadas manifestações jurídicas com origens sociais, políticas, religiosas e econômicas distintas - dos impérios Romano e Otomano à administração da Companhia Britânica das Índias Orientais, do cotidiano dos habitantes das cidades europeias medievais ao de seguidores do judaísmo e do Islã nas metrópoles contemporâneas.

Entre os muitos destaques possíveis desta seção, podemos mencionar a contradição em que se metiam alguns juristas europeus no período colonial, defendendo uma concepção monista do direito estatal na metrópole enquanto seus países se beneficiavam de uma abordagem pluralista como forma de manter um controle social efetivo nas colônias. Mais do que hipocrisia, comenta Tamanaha (p. 53), esta atitude revelava o comprometimento da visão monista com a justificação de um projeto de dominação cultural e política sobre territórios tidos como res nullius, isto é, habitados por sociedades consideradas como “sem direito”, sobretudo o de autodeterminação.

Outra descrição relevante (e que para muita gente soará surpreendente) é a do atual sistema jurídico estadunidense como um amontoado de 50 jurisdições estatais e uma federal, cada uma delas com boa dose de pluralismo interno em suas instituições, e que pouco corresponde à definição clássica de “sistema” como um todo coerente, ordenado e hierárquico. Como evidência nesse sentido, Tamanaha (p. 130-139) mostra, por exemplo, como a prática de forum shopping (ou seja, de livre escolha da jurisdição para qual propor uma ação) pode ser vista como um aspecto central do funcionamento do mercado jurídico norte-americano.

Mas inegavelmente são os dois últimos capítulos que contém o cerne da argumentação de Tamanaha e que demandam uma leitura mais crítica e cuidadosa para as questões suscitadas. Grande parte das reflexões aqui trazidas não soará como novidade para quem acompanha seu trabalho - muitas delas recuperam e dão nova forma a escritos anteriores, como o influente artigo Understanding Legal Pluralism: Past to Present, Local to Global (2008) e o livro mais recente dedicado à sua visão sobre a teoria do direito, A Realistic Theory of Law (2017). Mas considerando a importância delas para a estruturação do livro e para uma apreciação da própria posição teórica de Tamanaha, é válido o esforço de retomá-las, ainda que brevemente.

Há anos Tamanaha vem propondo uma abordagem convencionalista (não essencialista) de identificação do direito, o que o coloca em uma posição um tanto peculiar na academia - é passível de críticas tanto de estudos de matriz analítica como de quem trabalha sob a própria ótica do pluralismo jurídico. A maioria das críticas direcionadas pelo primeiro grupo são respondidas pela própria formulação do pluralismo jurídico clássico: as manifestações do direito na sociedade são muito mais amplas do que as intuições analíticas conseguem apreender. Assim como já fizera em A Realistic Theory of Law, Tamanaha esmiuça as falhas das abordagens teóricas que consistem na identificação de uma série de elementos supostamente universais ao direito, que em seguida são refinados a partir de análises conceituais com vistas a extrair características que lhe seriam essenciais. Segundo o autor, esse processo é na verdade circular, na medida em que “a pessoa teórica precisa pressupor o que o direito é para começar a análise, que então determina a teoria do direito produzida ao se completá-la” (p. 175).

Mas Tamanaha mostra que esta é uma atitude que também acomete boa parte da teoria pluralista do direito. É nesse ponto em que talvez resida sua maior e mais original contribuição para a bibliografia sobre pluralismo jurídico, e que nesse livro é articulada pela primeira vez de uma forma devidamente organizada como uma distinção entre os pluralismos jurídicos “abstratos”, que se apoiam em alguma concepção científica sobre o direito, e seu pluralismo jurídico “folk”, que sustenta que o direito é, em última instância, aquilo que os grupos sociais envolvidos em cada contexto consideram como sendo “direito” (law, recht, diritto etc.). Essa afirmação, aparentemente simples e autoevidente, carrega no entanto um forte posicionamento, moldado pelo histórico de disputas entre diferentes versões pluralistas sobre o que, afinal, caracteriza o pluralismo como verdadeiramente jurídico.

Uma definição precisa sobre o direito sempre foi o calcanhar de Aquiles do pluralismo jurídico. Tamanaha recupera aqui a questão proposta por Sally Engle Merry (1988MERRY, Sally Engle. Legal pluralism. Law & Society Review, Amherst, v. 22, n. 5, p. 869-896, 1988., p. 878), ainda nos anos oitenta, e que é a síntese precisa da aflição pluralista: “Quando paramos de falar em direito e nos encontramos simplesmente descrevendo a vida social?”. O pluralismo jurídico “abstrato” de que fala Tamanaha é a sucessão de tentativas (mal sucedidas, segundo ele) de resolver esse problema apelando a entendimentos científicos sobre o direito, agrupáveis em duas grandes categorias: o direito é visto como (1) a ordenação interna de associações ou grupos ou como (2) sistema de regras institucionalizadas (p. 176).

Tamanaha mostra como ambas as definições acabam redundando invariavelmente em over e/ou under-inclusiveness: ao mesmo tempo em que deixam indevidamente de fora manifestações normativas largamente reconhecidas como jurídicas, agrupam sob o termo direito diversos sistemas de regras que não são vistos pelos próprios agentes envolvidos como tal. Esse tipo de problema não revela uma imperfeição das teorias, mas afeta toda tentativa de se definir o direito de uma forma científica, na medida em que o direito é, como Tamanaha (2008) já defende há mais de uma década, um folk concept, isto é, um conceito cultural.

O próprio histórico intelectual de um dos maiores proponentes de uma concepção abstrata do pluralismo jurídico, John Griffiths, parece corroborar com a afirmação de Tamanaha. Após duas décadas insistindo sem sucesso em uma definição sobre o que há de propriamente “jurídico” no pluralismo, Griffiths (2006, p. 63-64) sugeriu abandonar o termo em favor de expressões como “pluralismo normativo” ou “pluralismo no controle social”. Para quem não está inclinado a abandonar a velha expressão de guerra do “pluralismo jurídico”, a versão folk de Tamanaha abre uma nova possibilidade:

Essa abordagem não assume que o direito possui um conjunto único de características definidoras, mas aceita que manifestações convencionalmente reconhecidas de direito variam e se modificam ao longo do tempo em conexão com as circunstâncias sociais, culturais, econômicas, políticas, tecnológicas e ecológicas ao redor (p. 176).

A proposta de Tamanaha certamente abre uma série de questionamentos e desdobramentos possíveis. Como por vezes definir, no limiar de casos concretos, o que são “manifestações convencionalmente reconhecidas de direito”? Elas serão sempre tão manifestas e consensuais como o autor parece sugerir? E o que dizer então do potencial emancipatório em se denominar certas práticas comumente vistas como não jurídicas como “direito”, algo extremamente presente, por exemplo, no pensamento pluralista latino-americano? Esta é uma questão que Tamanaha até levanta em uma pequena seção intitulada “Pluralismo jurídico pós-moderno”, mas sobre a qual reconhece não ter muito a dizer - será certamente de grande valia confrontá-la considerando seu ponto de vista mais geral sobre o pluralismo.

Há também poucas observações sobre como o próprio direito pode ser utilizado para a criação de estruturas para a comunicação através da diferença, tema central para autores pluralistas como Paul Schiff Berman (2012BERMAN, Paul Schiff. Global legal pluralism: a jurisprudence of law beyond borders. Nova York: Cambridge University Press, 2012.; 2019). Tamanaha não poupa críticas a Berman e os proponentes de versões “globais” ou “transnacionais” do pluralismo jurídico por produzirem mapas teóricos alegadamente inúteis para quem pratica o direito transnacionalmente e por também nomearem como “direito” certas regulações sem que haja um ganho teórico real com essa atitude. Assim, conclui Tamanaha (p. 168), “[a]pós sugerirem um enfoque nos corpos regulatórios híbridos públicos e privados e suas interações, eles [os pluralistas jurídicos globais e transnacionais] tem pouco a dizer para além de que devemos prestar atenção à complexidade e à interação, ou então defender a flexibilidade, a negociação e outros conselhos genéricos pouco substantivos”.

Coerente com sua posição convencionalista, Tamanaha não oferece qualquer “mapa” para navegar o pluralismo existente, nem acredita que estruturas institucionais pluralistas sejam inerentemente boas ou más. Mas seria possível objetar, em favor de Berman, que esse diagnóstico é tão ou menos útil para a prática jurídica transnacional quanto a tentativa deste último de projetar regras, processos e instituições mais aptos a lidar com conflitos entre normatividades. Essa parece ser uma questão relevante demais para se abrir mão em prol de simplesmente se observar e descrever minuciosamente como a realidade do pluralismo é vista pelos agentes envolvidos em cada contexto.

Além disso, fica difícil compreender qual seria então a utilidade da classificação que Tamanaha faz entre direito comunitário (commmunity law), direito de regime (regime law) e direito transfronteiriço (cross-polity law). Não seria ela também uma forma de organizar o espaço normativo em sentido parecido com o que vem sendo proposto pelo pluralismo jurídico global e transnacional? O fato de se restringir o potencial interesse dessa classificação à teoria, negligenciando eventuais usos práticos, a torna de alguma forma mais útil do que os “mapas” que Tamanaha descarta fazer?

Se é realmente verdade que “pessoas juízas e advogadas já seguem largamente o conselho jurídico pluralista de prestar atenção aos regimes regulatórios coexistentes em questão e a considerar suas implicações e interações” (p. 166) - uma generalização forte, sobretudo quando se nota o relativo desconhecimento da noção de pluralismo em diversos círculos profissionais1 1 Em trecho anterior, Tamanaha (p. 165) parece contradizer esta mesma generalização quando sugere que “a ideia de que pessoas juízas e advogadas irão requerer ou usar mapas teóricos de direito e pluralismo jurídico é questionável considerando-se a natureza concreta e prática de suas tarefas que elas levam a cabo diariamente na ausência de tais mapas.” Como então se pode afirmar que os conselhos pluralistas são largamente seguidos se, ao mesmo tempo, Tamanaha considera que as circunstâncias da prática jurídica não parecem oferecer tempo ou motivação para segui-los? - por que então uma parte relevante da teoria pluralista ainda insiste que esse conselho é relevante? O pluralismo jurídico é realmente tão triunfante na prática quanto parece ser na teoria (outra questão: na teoria de qual contexto)? E o que é mais importante: ele não deveria insistir em seu papel reflexivo na construção da agenda dos diversos órgãos decisórios que lidam com uma pluralidade de direitos, da mesma forma que o combate ao “centralismo jurídico” encabeçado pelo pluralismo dos anos oitenta foi importante para que uma compreensão pluralista do direito ganhasse espaço dentro da academia jurídica? Por mais imperfeitos que venham a ser, os mapas teóricos não ajudam a influenciar os círculos decisórios profissionais acerca da importância de se chegar a uma solução que melhor contemple as diferentes normatividades em jogo?

Seja como for, é possível dizer que estes e outros possíveis debates pluralistas dificilmente poderão contornar as proposições centrais de Tamanaha sem certo prejuízo, tamanha a riqueza e profundidade de suas observações. Legal Pluralism Explained o consolida ainda mais como um nome difícil de ser ignorado por quem se aventura neste campo teórico. Mesmo quem for avesso a seu pensamento saberá reconhecer este livro como um grande marco de uma prolífica carreira dedicada, entre outros temas, a mostrar que os habitantes da Micronésia não estão sozinhos no que se refere à multiplicidade de ordens jurídicas que eventualmente se entrelaçam em seu cotidiano. E que, mais do que nunca, deveríamos abandonar nossas tentativas de compreender o direito sob a forma singular de um conceito científico.

Referências bibliográficas

  • BERMAN, Paul Schiff. Can global legal pluralism be both “global” and “pluralist”? Duke Journal of Comparative & International Law, Durham, v. 29, n. 3, p. 381-404, 2019.
  • BERMAN, Paul Schiff. Global legal pluralism: a jurisprudence of law beyond borders. Nova York: Cambridge University Press, 2012.
  • GRIFFITHS, John. The idea of sociology of Law and its relation to law and to sociology. In: FREEMAN, Michael. Law and sociology: current legal issues, v. 8. Oxford: Oxford University Press, 2006.
  • MERRY, Sally Engle. Legal pluralism. Law & Society Review, Amherst, v. 22, n. 5, p. 869-896, 1988.
  • TAMANAHA, Brian. A realistic theory of law. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.
  • TAMANAHA, Brian. Understanding legal pluralism: past to present, local to global. Sydney Law Review, Sydney, v. 30, n. 2, p. 375-411, 2008.
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    Em trecho anterior, Tamanaha (p. 165) parece contradizer esta mesma generalização quando sugere que “a ideia de que pessoas juízas e advogadas irão requerer ou usar mapas teóricos de direito e pluralismo jurídico é questionável considerando-se a natureza concreta e prática de suas tarefas que elas levam a cabo diariamente na ausência de tais mapas.” Como então se pode afirmar que os conselhos pluralistas são largamente seguidos se, ao mesmo tempo, Tamanaha considera que as circunstâncias da prática jurídica não parecem oferecer tempo ou motivação para segui-los?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
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