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Os ciclos de revisionismo histórico nos estudos sobre a Revolução Russa

The cycles of historical revisionism in the studies of the Russian Revolution

Resumo

Um século de revolução socialista e um século de historiografia, de controvérsias, discussões apaixonadas, mas também um grande volume de pesquisa. O objetivo deste artigo é o de discutir algumas das principais controvérsias historiográficas, lançando mão do conceito de revisionismo histórico para iluminar os principais ciclos de produção intelectual sobre Outubro de 1917.

Palavras-chave:
Revolução russa; Historiografia; Revisionism

Abstract

A century of socialist revolution and a century of historiography, of controversies, passionate discussions, but also a great deal of research. The aim of this article is to discuss some of the main historiographical controversies, using the concept of historical revisionism to illuminate the main cycles of intellectual production on October 1917.

Keywords:
Russian revolution; Historiography; Revisionismo

Ao entrar em qualquer livraria brasileira neste centenário da Revolução Soviética nos deparamos com uma série de obras que poderiam facilmente ser catalogadas como parte de uma demonologia do comunismo. Em primeiro lugar, as biografias disponíveis de personagens chave daquele processo são em geral assinadas por anticomunistas ferrenhos. Em termos de lançamentos, podemos mencionar uma edição atualizada da biografia de Leon Trotski escrita por Robert Service, que faz uma caricatura daquele como um “stalinista moderado” (SERVICE, 2017________. Trotski: uma biografia. São Paulo: Record, 2017.). E também duas não menos problemáticas biografias de Stálin, uma escrita por Robert Gellately, que atribui à suposta “leitura ortodoxa” do marxismo por parte do líder soviético a responsabilidade sobre os expurgos e massacres da década de 1930 (GELLATELY, 2017___________. A maldição de Stálin. São Paulo: Record, 2017.), e outra por Stephen Kotkin, para quem 1917 não foi uma revolução social proletária, mas uma mera revolta de soldados e marinheiros (KOTKIN, 2017KOTKIN, S. Stalin. Paradoxos do Poder 1878-1928. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.).

Já em termos de títulos lançados ao longo da última década, é fácil encontrarmos obras como a pretensiosa biografia de Lenin do mencionado Service (2006)SERVICE, R. Lenin: a biografia definitiva. Difel, 2006., ou uma grande caricatura do movimento comunista no século XX também escrita por ele (Camaradas, 2015). Do citado Gellately, há ainda Lenin, Stalin e Hitler (GELLATELY, 2010GELLATELY, R. Lenin, Stalin e Hitler: a era da catástrofe social. São Paulo: Record, 2010.), cuja tese central é a de que tais personalidades poderiam ser homogeneamente compreendidas como responsáveis por catástrofes decorrentes da “busca desmedida por ideais utópicos”. Neste mesmo livro, Gellately defende que o regime soviético montado a partir de 1917 teria sido muito mais repressivo que a autocracia czarista, opinião que não por acaso faz muito sucesso nos círculos conservadores.

Trata-se de uma série de revisionismos históricos – por vezes justificados pelo recurso a novas fontes de pesquisa – que reiteram a velha propaganda anticomunista das décadas de 1940-50, produzida por historiadores cujos adversários adequadamente os apelidaram de cold warriors (“soldados da Guerra Fria”). E, não obstante a predominância desse tipo de obras nas prateleiras, felizmente já não é tão provável que se encontre à venda hoje em dia algo como o Livro negro do comunismo, de Stéphane Courtois (COURTOIS et al, 1999COURTOIS, S. et al. O livro negro do comunismo. Crimes, terror e repressão. Rio de Janeiro: Bertrand, 1999. [1997]) – um marco desse tipo de produção – publicado há vinte anos, e hoje disponível para download na internet.

Todavia, além dessa demonologia revisionista é possível encontrar em livrarias brasileiras títulos de outro teor, como a profunda pesquisa de Wendy Goldman sobre a condição feminina na URSS, desde o período da Revolução até a ascensão da burocracia stalinista (GOLDMAN, 2014GOLDMAN, W. Mulher, Estado e Revolução. Política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936. São Paulo: Boitempo / Iskra, 2014.); antologias, como a organizada por Graziela Schneider, contendo materiais sobre a atuação das mulheres (SCHNEIDER, 2017SCHNEIDER, G. (org.). A revolução das mulheres. Emancipação feminina na Rússia soviética: artigos, atas, panfletos, ensaios. São Paulo: Boitempo, 2017.); ou a contribuição à crítica do revisionismo historiográfico de Outubro de 1917 (e tudo o mais que lhe é afeito) do filósofo italiano Domenico Losurdo (LOSURDO, 2017_________. Guerra e Revolução: o mundo um século após Outubro de 1917. São Paulo: Boitempo, 2017.). Além, é claro, de reedições de obras importantes, como o clássico Os dez dias que abalaram o mundo de John Reed (REED, 2017REED, John. Os dez dias que abalaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.). Se tiver muita sorte, encontrará uma edição da História da Revolução Russa de Leon Trotski, uma das narrativas mais bem informadas sobre o episódio escrita por um de seus protagonistas.1 1 A primeira edição do livro no Brasil é da década de 1960, pela editora Saga (1967), tendo sido posteriormente editado pela Paz e Terra em 1978, e recebido uma nova edição há dez. Cf. Trotsky (2007).

Contudo, boa parte da produção crítica sobre o processo ainda está longe do alcance público brasileiro, como bem apontou o jornalista Marcelo Godoy em artigo publicado em O Estado de S. Paulo (GODOY, 18/03/2017GODOY, M. Revolução Russa completa centenário sem historiografia traduzida. O Estado de S. Paulo, 18/03/2017. Disponível em http://bit.ly/2nnYBHg. Acessado em 20/03/2017.
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). A lacuna naturalmente é bem maior que aquela arrolada no artigo de Godoy, até pelas dimensões disponíveis no jornal. Por exemplo, a biografia de Trotski escrita por Service provocou importante controvérsia no exterior, mas inutilmente o leitor brasileiro procuraria uma tradução de In Defense of Leon Trotsky, de David North, parte fundamental do debate. Inutilmente procuraria também biografias do mesmo personagem escrita pelos historiadores franceses Pierre Broué (BROUÉ, 1988______. Trotsky. Paris: Fayard, 1988.) e Jean-Jacques Marie (MARIE, 2006MARIE, Jean-Jacques. Trotsky: Révolutionnaire sans frontières. Paris: Payot, 2006.), embora há muitos anos tenha sido publicada no Brasil a famosa trilogia sobre o revolucionário russo escrita pelo historiador polonês Isaac Deutscher.2 2 O primeiro volume, O profeta armada – Trotski 1879-1921, foi publicado em 1968, pela editora Civilização Brasileira. A trilogia ganhou nova edição a partir de 2005, pela mesma editora.

Em termos de supressão, há também o caso daquelas obras cujo clima intelectual impediu que alcançassem maior repercussão no debate internacional, de certo modo justificando a sua não publicação no Brasil, como o Livro negro do capitalismo (PERRAULT, 1998PERRAULT, G. (org.). Le Livre noir du capitalisme. Paris: Le Temps des cerises, 1998.), organizado por Gilles Perrault e publicado na França em 1998 como resposta ao mencionado Livro negro do comunismo. Mesmo no mundo anglófono, a editora da Universidade de Harvard, que em 1997 havia publicado o livro de Courtois, se negou no ano seguinte a publicar o de Perrault. Um evento explosivo como a Revolução de 1917 sem dúvida desperta paixões, e a primeira a ser sacrificada é a retórica da liberdade acadêmica.

O passado como campo de batalha

O comunismo como proposta societária, tal como definido nas páginas célebres escritas por Marx e Engels no Manifesto de 1848, a partir da Revolução Soviética de 1917 deixou de ser simplesmente uma hipótese política de alas significativas (e em algumas latitudes minoritárias) do emergente movimento operário para se tornar um objetivo concreto de um Estado. Por sua vez, tal Estado teve a existência justificada pelo compromisso de abolir a propriedade privada dos meios de produção, a existência das classes sociais assentadas sobre ela e que constituem o modo de produção capitalista e, assim, o próprio Estado. É claro que, nesses termos marxianos, o comunismo não se estabeleceu em parte alguma do planeta, já que, dialeticamente, este pressupunha a abolição do capitalismo em escala mundial e, também, da estrutura política encarregada de lhe preservar política e militarmente, o sistema internacional de Estados. De qualquer modo, a fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas esteve alicerçada nesse projeto de subversão global, centro irradiador da revolução socialista mundial.

“Essa revolução fez um apelo ainda maior ao presente e ao futuro, mantendo a expectativa de ir além de um sistema capitalista que não conseguira resolver tantos problemas humanos e que também levou o mundo à guerra global” (HAYNES & WOLFREYS, 2007HAYNES, M. & WOLFREYS, J. Introduction. In. History and revolution: refuting revisionism. Londres: Verso, 2007.: 3), escreveram os historiadores Mike Haynes e Jim Wolfreys, nas primeiras páginas da introdução que escreveram há dez anos para um livro dedicado à refutação do revisionismo das revoluções modernas. Neste centenário, a memória de 1917 continua no centro das batalhas pelo passado que se travam no presente, batalhas essas que, como ensina Fontana, são também vinculadas aos projetos de futuro (FONTANA, 1998FONTANA, J. História dos homens. Bauru (SP): EDUSC, 1998.).

Isolada no território do antigo império russo ao longo dos anos 1920-30, a Revolução Socialista espalhou-se de forma vitoriosa – ainda que com graves distorções –em importantes regiões do planeta após o fim da Segunda Guerra Mundial, particularmente no mundo sob o domínio do imperialismo, como foram os casos da China em 1949 e da Indochina durante as décadas de 1950 até 1970, região onde Partidos Comunistas constituídos sob inspiração do modelo soviético foram os protagonistas dos processos de descolonização. A presença de comunistas no processo de descolonização, aliás, é um fato histórico que, em geral, é negligenciado nas narrativas historiográficas revisionistas, bastante interessadas em traçar um paralelo, através da categoria do totalitarismo, com o fascismo histórico, como bem apontou Domenico Losurdo (LOSURDO, 2017_________. Guerra e Revolução: o mundo um século após Outubro de 1917. São Paulo: Boitempo, 2017.: 91-134). Conforme ressaltou esse autor, enquanto a revolução bolchevique lançou “o apelo aos escravizados das colônias para que arrebentem suas correntes, isto é, para que conduzam guerras de libertação nacional contra o domínio imperial das grandes potencias”, o “modelo de Hitler se [baseava] no império colonial da Inglaterra” (Idem: 120).

A Revolução de 1917 é indiscutivelmente o processo mais decisivo de toda uma época histórica, como bem demonstrou Eric Hobsbawm em sua consagrada obra A era dos extremos (HOBSBAWM, 1995HOBSBAWM, E. A era dos extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.). Se é verdade que, segundo ele, a experiência catastrófica da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) define o início do século, foi a Revolução Soviética que determinou o seu teor político. No plano imediato, o próprio fim da carnificina industrial no continente europeu em 1918 resultou da Revolução, que liquidou três séculos da dinastia Romanov.3 3 Ao lado da entrada dos Estados Unidos no conflito, naquele mesmo ano, o triunfo da Revolução Soviética determinou o fim da Guerra. A capacidade de traduzir esse sentido, desdobrado na conclusão de que o fim do Estado soviético fundado naquela revolução determinou o fim do século XX, é o que explicou o sucesso do livro de Hobsbawm, como bem assinalou o historiador italiano Enzo Traverso (TRAVERSO, 2012__________. La historia como campo de batalla. Interpretar las violencias del siglo XX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2012.: 11).

Traverso, aliás, lembra também como o mais bem sucedido livro de Hobsbawm foi boicotado na França, tendo sido rejeitado por Pierre Nora para figurar em sua prestigiosa coleção editada pela Gallimard, sob a justificativa de que se tratava de uma “obra anacrônica e inspirada em uma ideologia de outra época” e, portanto, “não seria rentável”. Só cinco anos depois da edição inglesa (de 1995) ele foi publicado em francês, por iniciativa de um editor belga (Idem, 36)! E, embora sempre se possa alegar que os círculos cultos de língua francesa não tenham esperado cinco anos para ler o livro de Hobsbawm, cabe lembrar que, no mesmo ano de sua edição inglesa, François Furet – baluarte do revisionismo sobre a Revolução Soviética – publicou o que pode ser denominado como seu contraponto liberal, O passado de uma ilusão.

Nesse último livro, Furet deu consequência ao seu projeto historiográfico revisionista iniciado em sua obra sobre a Revolução Francesa, que consistiu em anatemizar o próprio conceito de revolução (Cf. WOLFREYS, 2007; LOFF, 2014LOFF, M. Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução. In MELO, D. B. de (org.). A miséria da historiografia. Rio de Janeiro: Consequencia, 2014.). Para Furet em O passado de uma ilusão a Revolução de Outubro foi simplesmente “um putsch bem-sucedido no país mais atrasado da Europa, realizado por uma seita comunista, dirigida por um chefe audacioso” (FURET, 1995FURET, F. O passado de uma ilusão. Ensaio sobre a idéia comunista no século XX. São Paulo: Siciliano, 1995.: 35). Nesse livro ele reabilita a teoria do totalitarismo, propondo um paralelo entre o comunismo e o fascismo, tratando-os como “irmãos gêmeos”.

Depois de trajetória juvenil no Partido Comunista entre 1949 e 1956, Furet se tornou um quadro intelectual da direita francesa, sendo o principal promotor do revisionismo historiográfico liberal da Revolução Francesa. Retomando seletivamente aspectos encontrados na obra de pensadores políticos como o whig escocês Edmund Burke, de liberais antidemocráticos como Benjamin Constant e Alexis de Tocqueville, e até reacionários conspiracionistas como Augustin Cochin, Furet acabaria por ser canonizado no panteão da tradição liberal, celebrado especialmente por aqueles que sempre odiaram a memória de 1789 e principalmente de 1793-1794. O objetivo que perseguiu com esse revisionismo foi o de desconstruir a leitura de historiadores socialistas como Jean Jaurès, Georges Lefebvre, Albert Mathiez e Albert Soboul, que estiveram à frente da cátedra dedicada ao estudo da Revolução na Sorbonne, e cuja contribuição à pesquisa em fontes primárias e de debates conceituais é incomparável a de Furet. Este, todavia, na década do bicentenário da Revolução, seria apresentado pela mídia como seu “maior especialista”. 4 4 Sobre a coincidência entre o bicentenário da Revolução, a queda do Muro de Berlim e a publicação do artigo de Francis Fukuyama sobre o “fim da história”, Cf. Fontana (1998, 413-438).

O revisionismo de Furet sobre 1789 tem como alvo a desconstrução de duas noções chave da interpretação canônica: a de que se tratou de uma ruptura com o Antigo Regime nos planos políticos e sociais e de um processo com uma marca de classe – isto é, uma revolução burguesa. Para Furet, essa revolução teria tão somente acelerado processos de democratização que supostamente já estariam sendo gestados pela própria monarquia, tendo sido nada mais do que uma “derrapagem” desnecessária na estrada rumo ao liberalismo. A única descontinuidade que se poderia atribuir à revolução residiria no plano das “mentalidades”, no qual se poderia detectar o surgimento do que ele chamou de “ideologia democrática”.

A tese da revolução burguesa foi primeiro contestada pelo britânico Alfred Cobban, que a chamou de “interpretação social da revolução”. Usando como argumento a composição da Assembleia francesa do período da Revolução, quis provar com isso que não eram propriamente capitalistas os que se faziam representar ali (COBBAN, 1988COBBAN, A. A interpretação social da Revolução Francesa. Lisboa: Gradiva, 1988 [1964]. [1964]). Ora, como bem ensina o grande jurista soviético Pachukanis, o que caracteriza o Estado capitalista é justamente o fato de que “o domínio de classe não se apresenta como é, ou seja, a sujeição de uma parte da população à outra, mas assume a forma de um aparelho político impessoal” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017: 143), e nesse sentido é a estrutura jurídica do Estado capitalista que resulta do processo da revolução burguesa, não interessando propriamente se são os próprios burgueses que tomam conta diretamente da administração estatal. Desconsiderando isso, Cobban e Furet visam, na verdade, desacreditar a noção de revolução proletária, sendo evidente que seu alvo verdadeiro é Outubro de 1917.

Desconstruindo um evento paradigmático das mudanças históricas como a Revolução Francesa, processo cuja importância ultrapassa e muito a construção da identidade nacional francesa, Furet tinha com alvo a forma da revolução no século XX, a revolução socialista. Para isso foi necessário remover do horizonte historiográfico e político a noção de que rupturas revolucionárias podem ser uma via para alcançar mudanças sociais progressistas. Nesse sentido O passado de uma ilusão não é um ponto fora da curva em sua trajetória. É, aliás, curioso que Furet tenha atribuído à historiografia de esquerda o propósito de ler 1789 à luz de 1917, coisa que, ao se ler o conjunto da obra furetiana, percebe-se ser justamente seu enfoque. Conforme caracterizou Hobsbawm, a obra de Furet sobre a Revolução Francesa era “inteiramente dirigida, via 1789, para 1917” (HOBSBAWM, 1996__________. Ecos da Marselhesa [1990]. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.: 110).5 5 “Se a historiografia jacobino-leninista da Revolução Francesa esteve prisioneira – desde Albert Mathiez – de uma leitura teleológica que interpreta 1789 à luz de 1917, vendo os jacobinos como antecessores dos bolcheviques, Furet tampouco está longe dessa visão. Se limita a inverter os códigos, trocando a epopéia revolucionária por um relato totalitário no qual a ‘vulgata leninista’ cede lugar à ‘vulgata liberal’.” (TRAVERSO, 2012: 83).

Poucos anos depois de lançar O passado de uma ilusão, Furet morreu em Toulouse, em 11 de julho de 1997. Em sua memória foi publicado o já lembrado O livro negro do comunismo, organizado pelo ex-maoísta Stéphane Courtois, que buscou enquadrar o comunismo (no poder e fora dele!) como o responsável pelos maiores crimes contra a humanidade no século XX. O propósito de constituir um “Nuremberg do Comunismo”, como gosta de falar o líder neofascista francês Jean-Marie Le Pen, não surtiu efeito. Embora tenha tido boas vendas, de certo modo traduzindo o consenso antissocialista e neoliberal da década de 1990, nada comparável a um “tribunal de crimes contra a humanidade praticados pelo comunismo” foi instalado como resultado das denúncias contidas em O livro negro do comunismo – muitas das quais foram provadas serem falsas ou, ao menos, graves distorções dos fatos (TRAVERSO, 2007__________. The New Anti-Communism: Rereading the Twentieth Century. In. HAYNES, M.; WOLFREYS, J. (org.). History and revolution: refuting revisionism. Londres: Verso, 2007.:151). De qualquer modo, no plano historiográfico, o que se reforçou no contexto pós-URSS foi a velha teoria do totalitarismo, conjurada explicitamente por Furet, mas que já havia sido submetida a profunda crítica historiográfica na década de 1960, em razão de suas fragilidades e conotações ideológicas.

Outra leitura historiograficamente conservadora importante de se mencionar é aquela de Ernst Nolte – revisionista que durante um bom tempo se manteve afastado do paradigma totalitarista. Sua leitura endossa um traço comum ao discurso das direitas após a Segunda Guerra Mundial: o de tentar representar o fascismo como uma “cópia” do bolchevismo.6 6 Cf. Nolte (1994). Nolte concebe o fascismo como um fenômeno metapolítico (ou transpolítico), caracterizado por uma resistência contra a modernidade, combinada à resistência ao que chama de “transcendência prática”, o comunismo/marxismo. Cf. Nolte (1974). Segundo Nolte, o extermínio de judeus praticado pelos nazistas seria uma “cópia” da “violência asiática” dos comunistas russos (NOLTE, 1989______. O passado que não quer passar. Novos Estudos CEBRAP, n. 25, p. 10-15, 1989.), de forma que ele inscreve no horizonte a reabilitação do nazismo, ou sua normalização, como criticou Habermas na década de 1980 (HABERMAS, 1989HABERMAS, J. Tendências apologéticas. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 25, p. 16-27, 1989.), abrindo uma importante controvérsia pública conhecida como Historikerstreit (“A querela dos historiadores”) (Cf. ELEY, 1988ELEY, G. Nazism, Politics and the Image of the Past: Thoughts on the West German Historikerstreit 1986-1987. Past and Present, n. 121, p. 171-208, nov. 1988.; MADSEN, 2000MADSEN, J. W. The Vividness of the Past: A Retrospect on the West German Historikerstreit in the mid-1980s. University of Sussex Journal of Contemporary History, n. 1, p. 1-9, 2000.).

Nolte parte do pressuposto de que se poderia colocar em pé de igualdade uma ideologia que prega o extermínio de um povo (“raça”), especialmente dos judeus, com a que prega o fim do capitalismo e das classes sociais. Sua leitura se baseia numa falácia histórica, pois a transposição da tese nolteana para o século XIX levaria a que o movimento pela abolição da escravatura, por exemplo, fosse tomado como “exterminacionista”, já que visava a liquidação de uma classe social – os proprietários de escravos e seu corolário, a escravização de seres humanos. Comparar a proposta de abolição do capital (e da escravidão assalariada que é seu corolário) com o extermínio de judeus é descabido.

Estas operações de revisionismo histórico, cujos principais protagonistas foram Furet e Nolte, devem ser entendidas como parte de um mesmo movimento, de uma mesma corrente cultural e política que representa “uma guinada historiográfica e cultural de grande relevância” (LOSURDO, 2017_________. Guerra e Revolução: o mundo um século após Outubro de 1917. São Paulo: Boitempo, 2017.: 16). Não obstante as diferenças existentes entre esses dois autores,7 7 Foge ao escopo desse texto tecer maiores considerações a esse respeito, mas é preciso lembrar que Nolte e Furet protagonizaram uma amigável troca de correspondência sobre suas diferenças em 1996, decorrentes de uma longa nota existente em O passado de uma ilusão onde Furet busca distanciar-se da tese nolteana (FURET, 1995: 199-201). Publicado na revista Commentaire (números 79 e 80, outono de 1997 e inverno de 1997-1998), o epistolário seria publicado em forma de livro (Cf. FURET & NOLTE, 1998). suas leituras confluem essencialmente no processo de anatemização da revolução social. Nesse sentido, Enzo Traverso fala de uma “frente única”, cujo ponto de unidade seria o “anticomunismo elevado ao status de um paradigma histórico” (TRAVERSO, 2007__________. The New Anti-Communism: Rereading the Twentieth Century. In. HAYNES, M.; WOLFREYS, J. (org.). History and revolution: refuting revisionism. Londres: Verso, 2007.: 139) – entendendo “comunismo” aqui de forma abrangente, como todo e qualquer projeto anticapitalista. Qualquer ruptura com o liberalismo-burguês seria necessariamente desastrosa (algo “historicamente comprovado”) e, portanto, faríamos bem em aceitar as coisas tal qual elas são – por piores que sejam.

A sovietologia anticomunista

Como dito anteriormente, esse revisionismo contra a Revolução Soviética reproduz teses e, de forma mais geral, o ethos anticomunista, da produção historiográfica ocidental dos anos 1940-50. Desde cedo, o regime soviético estimulou a produção historiográfica acerca do seu surgimento, na forma de revistas e instituições especializadas – naquilo que um especialista brasileiro apropriadamente nomeou de uma “História do Tempo Presente avant la lettre” (SEGRILLO, 2010SEGRILLO, Â. A historiografia da revolução russa: antigas e novas abordagens. Projeto História, v. 41, dezembro de 2010.: 66). Todavia, foi apenas nos anos 1930-40 que o ocidente – ou, mais precisamente, o Atlântico Norte – passou a desenvolver estudos sistemáticos sobre tais temas dentro das suas principais universidades – em parte sob o impulso da depressão econômica no mundo capitalista frente ao espetacular crescimento da economia soviética sob o stalinismo, em parte sob a necessidade dos governos das grandes potências em ter insumos para compreender seu principal inimigo externo de então e para fazer propaganda interna contra ele. Dessa forma, a produção “ocidental” dessa época foi pesadamente marcada, até meados da década de 1960, pelo contexto da Guerra Fria e pela histeria macarthista que a sustentava (Idem, 72).

A teoria do totalitarismo era a base de sustentação dessa produção. Tanto na lavra mais sofisticada de Hannah Arendt, em seu livro The Origins of Totalitarianism (1949),8 8 Losurdo assinala que, em The Origins of Totalitarianism, a autora ainda busca diferenciar a ditadura revolucionária de Lenin do terror totalitário de Stalin, uma posição que irá desaparecer na obra posterior da filósofa, particularmente com Sobre a Revolução, de 1963. Cf. Losurdo (2017: 21-26). quanto na vulgarização proposta pelos politólogos Carl J. Freiderich e Zbigniew Brzezinski, em Totalitarian Dictatorship and Autocracy (1956), sua proposição desloca a comparação entre os regimes fascista da Itália e do Terceiro Reich para comparar este com a URSS stalinizada.9 9 Para uma reconstituição crítica do conceito, cf. Traverso (2001) e Losurdo (2006). Para uma detalhada crítica de sua aplicação no caso dos estudos do fascismo/nazismo, ver Paxton (2007: 345-350). A função ideológica dessa teoria para os interesses geopolíticos dos EUA durante a Guerra Fria não é difícil de notar: unir num mesmo conceito os inimigos de ontem (a Alemanha nazista) com os inimigos de então (a URSS), esquecendo-se do papel decisivo da URSS na derrota das potências do Eixo. No que toca ao tema da revolução, a teoria do totalitarismo apaga qualquer distinção entre revolução e contrarrevolução. Como bem assinalou Arno Mayer: “Em seu plano monocromático, os revolucionários e contra-revolucionários tornaram-se totalitários empenhados em submeter primeiramente o seu próprio país, e em seguida o mundo, a um sistema de permanente opressão, exploração e desumanização.” (MAYER, 1977MAYER, A. A dinâmica da contra-revolução na Europa (1870-1956). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 [1970]. [1970]: 30). O historiador Manuel Loff resumiu os significados conceitual e social dessa teoria da seguinte forma:

[...] a teoria do totalitarismo propunha uma explicação da mudança social radical e da mobilização social das massas nas sociedades contemporâneas como fenômenos necessariamente explicáveis pela manipulação deliberada, calculada, arquitetada por grupos políticos que se autodescrevem como vanguardas.

Esta creio ter sido a maior vitória intelectual dos neoliberais dos anos ’50, herdada pelos seus correligionários do último quarto do século XX: ler os processos de mudança sociopolítica impulsionados pela participação das massas como jogos de manipulação de verdadeiros profissionais da subversão política, lançando, assim, a suspeita sobre a espontaneidade, a representatividade real de toda a mobilização sociopolítica. Lida a realidade desta forma, as únicas formas de mudança social não artificiais, designemo-las assim, seriam produto de longos processos de mudança, suficientemente longos para resultarem de complicados processos de negociação entre sectores das elites políticas e sociais, uns mais conservadores, outros mais reformistas, cujos produtos finais seriam, portanto, sempre consensuados com os grupos dominantes no momento em que tais processos teriam o seu início. (LOFF, 2014LOFF, M. Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução. In MELO, D. B. de (org.). A miséria da historiografia. Rio de Janeiro: Consequencia, 2014.: 62-63)

Assim, mais do que um mero paradigma problemático do ponto de vista metodológico e teórico, a compreensão da realidade social centrada no conceito de totalitarismo estava diretamente vinculada a uma visão apologética da política, que erguia a limitada democracia liberal-burguesa ao patamar mais elevado e correto de se fazer política, contrapondo-se a projetos de transformação centrados na autonomia e agência das grandes massas populares.

Através da perseguição mais ou menos direta a acadêmicos que não demonstravam hostilidade à URSS e ao comunismo em seus estudos (indo do isolamento institucional, à demissão e mesmo à prisão), somada ao financiamento pesado (privado e estatal) daqueles cuja produção rezava a cartilha macarthista, foi forjado um verdadeiro consenso sobre a experiência soviética. Consenso esse que girava em torno de uma narrativa padrão, segundo a qual a URSS era um regime “totalitário”, que havia sido minunciosamente planejado desde o surgimento da fração bolchevique da social-democracia russa, ainda nos primeiros anos do século XX, e posto em prática graças a um golpe de Estado executado, em outubro de 1917, por uma audaz minoria de fanáticos armados e sedentos por poder.

Ao mencionado livro de Freiderich e Brzezinski, pode se juntar como exemplares dessa literatura de cold warriors livros de autores como dos historiadores Robert Conquest e Richard Pipes (esse último, analista da CIA na década de 1960). Um elemento central da obra destes sovietólogos, como ficaram conhecidos os especialistas em URSS, era o que o historiador Stephen Cohen nomeou criticamente de tese da continuidade: a noção de que havia uma linha reta entre a publicação de O Que Fazer? por Lenin, em 1902, e os gulags stalinistas; entre os primeiros anos da experiência revolucionária soviética e o regime altamente antidemocrático consolidado nos anos 1930 – em suma, entre bolchevismo e stalinismo. Os sovietólogos podem ser caracterizados como uma escola totalitarianista, dada centralidade da categoria de totalitarismo para as suas análises. Através dela, encaravam que a sociedade produzida pela Revolução Soviética era, desde seus primeiros momentos, um “monólito”, mantido de pé exclusivamente através de sistemática propaganda e da repressão na forma do “terror”, sem haver o mínimo espaço para dissidências e disputas políticas.10 10 Para um balanço detalhado dessa produção, ver Cohen (1985).

Analisando em detalhes essa tese da continuidade, Cohen acusou os sovietólogos de serem orientados por um “determinismo monocausal”, uma vez que reduziam os eventos da história soviética a consequências diretas das ações e desejos das lideranças do Partido Bolchevique/Comunista, imputando, assim, um caráter de inevitabilidade à História (COHEN, 1985COHEN, S. Rethinking the soviet experience – Politics and History since 1917 [1968]. Oxford: Oxford University Press, 1985.: 43-44). Por detrás desse determinismo, residia um método analítico que avaliava “o passado nos termos do presente, os antecedentes nos termos dos resultados” (Idem, 52), possuindo assim caráter verdadeiramente teleológico.

Tais características marcaram as análises sovietólogas com uma perspectiva consideravelmente ahistórica, a partir da qual seus adeptos se tornaram incapazes de integrar a elas as diversas mudanças que marcaram o Partido Bolchevique e o regime soviético ao longo das primeiras décadas da nova formação social inaugurada pela revolução (Idem, 23). Em síntese, para mais uma vez recorrermos às palavras de Cohen, “preconceitos cegos, rótulos, imagens, metáforas e teleologia assumiram o lugar de explicações reais” (Idem, 6).

A história social da Revolução Soviética: revisionismo em chave positiva

Apesar da força obtida pela escola totalitarianista, ao longo dos anos 1960-70, foram desenvolvidos uma série de novos estudos que contestaram o cânone sovietólogo e demonstram a existência de profundas descontinuidades entre os primeiros anos da experiência soviética e o regime stalinista dos anos 1930, bem como desconstruíram teses como a de que os bolcheviques “planejaram” tal regime, de que a Revolução de Outubro foi um mero “golpe”, no qual as massas se mobilizaram apenas graças à hábil manipulação etc.

Nascida em um contexto internacional de massivas mobilizações populares que contestavam tanto o capitalismo, quanto o stalinismo no interior do bloco soviético, tal produção, centrada na concepção da “história vista por baixo”, introduziu as massas na história e constituiu uma escola de história social da Revolução Soviética e da história da URSS. Tratou-se, portanto, de uma revisão historiográfica que fez avançar o saber histórico acumulado, aprofundando sobremaneira, ao se confrontar com as teses da escola totalitarianista. Nesse sentido, pode-se falar dessa produção como um “revisionismo em chave positiva” e, de fato, esses pesquisadores reivindicavam-se “revisionistas” (COHEN, 1985COHEN, S. Rethinking the soviet experience – Politics and History since 1917 [1968]. Oxford: Oxford University Press, 1985.), confirmando o caráter “camaleônico” que especialistas atribuem ao termo (Cf. TRAVERSO, 2017__________. Revisão e revisionismo. In. SENA JÚNIOR, C. Z.; MELO, D. B. de; CALIL, G. G. (org.). Contribuição à crítica da historiografia revisionista. Rio de Janeiro: Consequencia, 2017.: 18), no sentido de que pode tanto ser reivindicado no sentido de uma produção que busca repensar e inovar em determinada área de estudos, quanto ser utilizado no sentido de uma acusação pejorativa a determinada produção (portanto, em chave negativa).

Suas pesquisas demolem a tese de que a Revolução foi um “golpe” perpetrado por uma “minoria”, ao demonstrarem que a instauração do regime soviético se baseou em ampla mobilização das massas operárias e camponesas, conforme sustentam os estudos do historiador Alexander Rabinowitch (Cf. RABINOWITCH, 1991RABINOWITH, A. Prelude to Revolution – The Petrograd Bolsheviks and the July 1917 Uprising [1968]. Bloomington: Indiana University Press, 1991. [1968]; Id. 2007____________. The Bolsheviks Come to Power. The Revolution of 1917 in Petrograd[2004]. Bloomington: Indiana University Press, 2007. [2004]). Massas essas que não foram “manipuladas” pela oratória “oportunista” dos bolcheviques, nem que viam a política como algo “exterior” a sua própria ação, mas que possuíam um alto grau de clareza política, pois se encontravam organizadas em organismos autogestão baseados em um modelo de democracia direta, nos quais o debate e disputa entre forças adversárias era constante (organismos entre os quais constavam não apenas os soviets, mas também comitês de fábricas, comitês de bairros etc.).

Pode-se mencionar também pesquisas que demonstraram a conquista, pela revolução, de diversos direitos e melhorias sociais para diferentes setores da sociedade oprimida pelos grilhões do czarismo, e a sua posterior reversão por parte do regime stalinista, especialmente em esferas como a da emancipação das mulheres, abordada por Wendy Goldman (GOLDMAN, 2014GOLDMAN, W. Mulher, Estado e Revolução. Política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936. São Paulo: Boitempo / Iskra, 2014.); dos homossexuais, abordada por Dan Healey (HEALEY, 2002HEALY, D. Homosexual Desire in Revolutionary Russia: The Regulation of Sexual and Gender Dissent. Chicago: University of Chicago Press, 2002.); e dos trabalhadores fabris, aborda por Kevin Murphy (MURPHY, 2005MURPHY, K. Revolution and Counterrevolution: Class Struggle in a Moscow Metal Factory. Leiden: Berhahn, 2005.). Diante de tais estudos, a tese da continuidade não pode se sustentar.

Naquilo que tange o próprio bolchevismo, pode-se mencionar uma miríade de pesquisas de nomes como Israel Getzler, Monty Johnstone, o já mencionado Stephen Cohen, John Marot, dentre outros, que demonstraram a existência de profundas mudanças entre os primeiros anos pós revolução e o regime stalinista da década de 1930 em diante, sendo insustentável a ideia de uma “continuidade” ou mesmo “consequência lógica” entre ambos. Mudanças que se expressam, por exemplo, no regime político pós revolução, originalmente governado por um gabinete multipartidário e cuja censura/repressão se limitava aos elementos efetivamente contrarrevolucionários; bem como à forma de funcionamento do Partido Bolchevique/Comunista, que mudou do centralismo democrático ao centralismo burocrático; e nas próprias ideias defendidos pelo partido, que mudaram da revolução mundial ao “socialismo em um só país” (Cf. GETZLER, 1985GETZLER, I. Outubro de 1917: O debate marxista sobre a revolução na Rússia. In: HOBSBAWM, E. (org.). História do Marxismo. v. 5. São Paulo: Paz e Terra, 1985.: 37; JOHNSTONE, 1985JOHNSTONE, M. Lênin e a revolução. In: HOBSBAWM, E. (org.). História do Marxismo. v. 5. São Paulo: Paz e Terra, 1985.: 113-142; MAROT, 2012MAROT, J. E. The October Revolution in prospect and retrospect: interventions in Russian and Soviet history. Leiden: Brill, 2012.).

E tais mudanças não ocorreram sem resistências vinda das próprias fileiras bolcheviques, nas quais supostamente predominava um “monolitismo” e uma “sede pelo poder total”, e que supostamente almejavam o regime stalinista desde ao menos 1902. Resistências essas que foram mapeadas por diferentes trabalhos, entre os quais vale destacar aqueles do historiador Pierre Broué (BROUÉ, 1973BROUÉ, P. El Partido Bolcehvique. Madrid: Ayuso, 1973[1962].[1962]; Id., 2008______. Comunistas contra Stalin. Massacre de una generación. Málaga: Sepha, 2008 [2003].[2003]). Nelas, inclusive, é necessário contabilizar o próprio Lenin, supostamente o artífice “maquiavélico” do stalinismo, que, na realidade, foi um dos primeiros a se levantarem contra a degeneração burocrática da revolução, e contra o próprio Stalin, conforme demonstrou o historiador Moshe Lewin (LEWIN, 2008LEWIN, M. Lenin’s Last Struggle. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2008 [1967]. [1967]).

A manutenção do cânone sovietólogo: revisionismo totalitarianista

Não obstante a relevância dessa produção, quando do colapso do bloco soviético e do ascenso internacional do projeto neoliberal, alguns dos principais representantes da sovietologia dos anos 1930-40 retornaram ao mercado editorial, com obras nas quais reivindicavam a validade de suas antigas teses. Entre estes encontravam-se os mencionados Pipes e Conquest, que, desde os EUA e a Inglaterra (respectivamente), haviam recebido rios de dinheiro de agências estratégicas dos governos de seus países e de grandes fundações empresariais (como Ford e Rockfeller) no auge da Guerra Fria, para que produzissem uma narrativa histórica fundamentalmente hostil à experiência soviética.

Ainda agarrando-se ao paradigma totalitarianista que embasou a sovietologia, em suas velhas-novas obras dos anos 1990 tais autores alegaram – e seguem alegando, no caso de Pipes – que foi a (parcial) abertura democrática sob Gorbatchev que destruiu o bloco soviético, dada a suposta incompatibilidade intrínseca entre democracia e o “totalitário” projeto “comunista” vigente no Leste Europeu.

Por ignorarem a rica produção surgida a partir dos anos 1960, pode-se caracterizar a reafirmação das já refutadas teses sovietólogas por figuras como Pipes e o falecido Conquest como parte da operação revisionista discutida na primeira parte desse texto, e à qual se somam os mencionados Servive, Gellately, dentre outros. Um revisionismo, portanto, com um sinal muito diferente daquele da escola de história social que emergiu em meados da década de 1960.11 11 Para uma apreciação sobre as diferentes operações revisionistas na historigorafia, cf. Traverso (2017).

Pode-se falar, assim, em uma escola totalitarianista de revisionismo acerca da Revolução Soviética e da história da URSS. Mas esta não é a única. Há outras narrativas diversas que se chocam com o saber histórico acumulado, com o intuito mais ou menos explícito de condenar a experiência soviética como forma de afirmar a validade eterna do capitalismo contra todo e qualquer tipo de projeto antissistêmico. Entre essas outras narrativas, vale destacar e analisar de forma mais detida uma em particular, que se encontra mais sintonizada com o atual mainstream acadêmico naquilo que concerne suas bases teóricas, ainda que também se estruture em torno da tese da continuidade entre bolchevismo e stalinismo – ou, mais precisamente, em uma versão renovada dela.

O revisionismo culturalista sobre a Revolução Soviética e a sua relação com Furet

Conforme apontado, as análises da escola totalitarianista de revisionismo não só são estruturadas em torno de uma apologia da ordem liberal burguesa, como são inteiramente perpassadas por problemas conceituais e empíricos. Ignorando – e, na verdade, se chocando contra – as contribuições da escola de história social, esses autores revisionistas focam seus esforços para apresentar a experiência soviética e o ideal comunista como atrocidades que jamais devem ser repetidas. No campo acadêmico, no entanto, seus trabalhos são vistos com desconfiança. Não à toa, apesar do sucesso editorial de O passado de uma ilusão e do Livro negro do comunismo, bem como das obras pós Muro de Berlim de autores como Pipes e Conquest – e da visibilidade que eles mantêm até hoje –, referências a essas obras são escassas em periódicos especializados na história da Revolução Soviética e da URSS.

Mesmo na França de Furet tais obras são muito rejeitadas entre especialistas, conforme explicitado por Bernard Pudal, um dos organizadores de uma volumosa coletânea sobre as diferentes facetas do comunismo ao longo do século XX (O século dos comunismos, 2002), publicada no início do século XXI. Em uma entrevista, este afirmou que Furet e Courtois “repudiavam todas as aquisições da história social” e adotavam uma abordagem essencialista e redutora da história do comunismo – em suas palavras, “as representações qualificadas como ilusórias no trabalho de Furet e a criminalidade, em Courtois”. Nesse sentido, Pudal apresentou sua coletânea como uma tentativa de fornecer ao público leitor francês um material superior ao de ambos (PUDAL, 2009PUDAL, B. Da militância ao estudo do militantismo: a trajetória de um politólogo [2008]. Entrevista concedida a K. Tomizaki. Pro-Posições, v. 20, n. 2 (59), maio/agosto 2009.).

Não obstante os problemas que perpassam as análises de Furet, Courtois, Pipes, Conquest, Service e Cia., a necessidade política de uma hostilidade ao projeto comunista permanece, especialmente pelo fato das primeiras décadas do século XXI estarem sendo marcadas em boa parte do globo por poderosas ondas de lutas, que questionaram e seguem questionando – principalmente depois da crise econômica internacional de 2008 – o consenso neoliberal, que havia predominado nas décadas de 1980-90.

Assim, certos historiadores tem se dedicado a realizar uma “atualização” das leituras hostis à experiência soviética, através de narrativas melhor sintonizadas com os atuais paradigmas predominantes no meio acadêmico, substituindo o hoje já bastante questionado paradigma totalitarianista por um culturalista. Nessa empreitada revisionista, aqueles se apegam à produção de Furet acerca da Revolução Francesa como um tipo de modelo interpretativo, ainda que rejeitando a sua produção posterior que trata diretamente do comunismo e da URSS (até como uma forma de tomar distância da rejeição de O passado de uma ilusão no meio acadêmico especializado) – como se fosse possível estabelecer um corte epistemológico na obra do historiador francês.

Sintoma do crescimento dessa empreitada revisionista, até mesmo na mencionada coletânea crítica ao legado “furetiano”, organizada por Pudal, é possível encontrar teses evidentemente “furetianas” acerca da Revolução Soviética, ainda que estas não sejam uma mera reprodução das ideias presentes no último livro de Furet. A defesa destas teses, conforme feita pelos revisionistas presentes em tal coletânea, bem como por alguns outros autores, é feita com base na rejeição d'O passado de uma ilusão (bem como do Livro negro...) e na proposição de um retorno ao “Furet original” de Pensar a Revolução Francesa. É, de certa forma, uma tentativa de ser “mais furetiano que Furet”, no sentido de tentar aplicar “melhor” do que o próprio as suas teses liberais ao caso soviético. Constituiu, portanto, o que podemos chamar com precisão de uma escola furetiana, ou escola culturalista (por conta de sua sustentação teórica), de revisionismo da Revolução Soviética.

Conforme a crítica de um desses historiadores revisionistas, Claudio Sergio Ingerflom (responsável pelo capítulo sobre a Revolução Russa na mencionada coletânea), o Furet de O Passado de uma ilusão, bem como seus simpatizantes, teria incorrido em uma “contradição” ao encarar a Revolução de Outubro como o “marco zero” de uma nova sociedade (INGERFLOM, 2004INGERFLOM, C. Introdução. In DREYFUS, M. et al. O Século dos Comunismos. Depois da Ideologia e da Propaganda, uma Visão Serena e Rigorosa. Lisboa: Editorial Notícias, 2004 [2000].: 133). Essa “má aplicação” das teses furetianas pelo próprio Furet e por seus seguidores, Ingerflom e outros revisionistas buscam “corrigir” através da negação de que a revolução e a experiência soviética subsequente representaram uma ruptura política e social significativa em relação ao regime czarista. Assim, tentam deslegitimar a experiência e o projeto revolucionário internacional nela fundamentado, realizando uma apologia implícita (e às vezes até mesmo explícita) do liberalismo burguês.

Para traçarem supostas continuidades fundamentais entre o antes e o depois da Revolução Soviética, esses revisionistas resgatam a suposta primazia das “mentalidades” e da esfera cultural presente em Pensar a Revolução Francesa, aproximando-o do mainstream culturalista atual. Em relação a esse aspecto, destaca-se o uso sistemático por parte de tais historiadores do difuso conceito de “cultura política”, como forma de indicar que a esfera cultural é determinante sobre o comportamento humano e dotada de autonomia em relação às demais esferas.12 12 Sobre a imprecisão do conceito de cultura política, ver Formisano (2001). Sobre seu sentido de determinismo cultural, ver Cardoso (2012: 52) e Mattos (2014: 70 e 84-86). Tal abordagem pressupõe negar ou simplesmente ignorar a esfera social, particularmente no que tange as relações de produção e de propriedade, onde profundas descontinuidades/rupturas podem ser observadas a partir da Revolução Soviética.

Ademais, como não poderia deixar de ser, esses historiadores precisam resgatar a já amplamente refutada tese sovietóloga, segundo a qual o stalinismo era, senão exatamente a mesma coisa que o bolchevismo, uma “consequência lógica” dele, ignorando as também profundas descontinuidades/rupturas existentes ao longo dos primeiros anos pós revolução e o regime stalinista da década de 1930. Por fim, para elaborarem essa tese de uma continuidade entre a Rússia czarista e a Rússia soviética, retomam a ideia de Furet, da ruptura histórica enquanto um mero “mito” autolegitimador criado pelas lideranças do processo revolucionário – nesse caso, o Partido Bolchevique/Comunista.

Ao proporem tais teses, a proximidade desses historiadores com Furet fica evidente não apenas pela sua tentativa de transpor à Revolução Soviética as teses daquele sobre a Revolução Francesa. Pois, ao fazê-lo, eles incorrem no mesmo tipo de operação historiográfica que Furet havia realizado, isto é, uma revisão do saber histórico que é politicamente orientada e que, na tentativa de produzir insumos historiográficos para salvaguardar o capitalismo, realiza graves distorções ou mesmo falsificações, se chocando com o saber histórico já acumulado e aperfeiçoado a partir de rigorosas pesquisas.

Nessa construção revisionista de uma tese da continuidade entre czarismo, bolchevismo e stalinismo pela via cultural, o mencionado Ingerflom “explica” a capacidade do Partido Bolchevique/Comunista de ter liderado a Revolução de Outubro e se alçado ao governo através de um suposto atraso de “mentalidade” das massas russas, que estariam de alguma forma familiarizadas com uma “exteriorização” da política. Exteriorização essa que operava pela submissão da política à religião sob o czarismo e pela “ideologia científica” do marxismo entre os bolcheviques, que teriam, assim, dado continuidade a uma suposta ausência de “autonomia” de atuação dessas massas (Cf. INGERFLOM, 2004INGERFLOM, C. Introdução. In DREYFUS, M. et al. O Século dos Comunismos. Depois da Ideologia e da Propaganda, uma Visão Serena e Rigorosa. Lisboa: Editorial Notícias, 2004 [2000].: 137).

Outra característica de continuidade levantada por Ingerflom é sua afirmação de que o “terror”, entendido enquanto o sistemático emprego em larga escala da violência como forma de atuação política, seria não só “inerente” ao projeto bolchevique, como também ao conjunto da “cultura política russa” (Idem, 135). E seu colega Peter Holquist defende essa tese de forma ainda mais enfática, afirmando que os bolcheviques possuíam uma “natureza intrinsecamente maniqueísta e agressiva”, a qual seria fruto de um longo período de crise (de 1914 a 1921), no qual a violência havia se tornado uma marca fundamental da política russa como um todo. Daí, defende que pensar a Revolução Soviética enquanto uma ruptura significa remover o bolchevismo de seu suposto “contexto histórico” e, portanto, não compreender as origens dessa sua violência “intrínseca” (HOLQUIST, 2004HOLQUIST, P. A questão da violência. In: DREYFUS, M. et al. O Século dos Comunismos. Depois da Ideologia e da Propaganda, uma Visão Serena e Rigorosa. Lisboa: Editorial Notícias, 2004 [2000].: 167-169).

Focando nessa questão da violência e do terror, sem diferenciar entre seu uso enquanto parte de um regime autocrático (o czarismo), sua presença em um momento de guerra civil (os primeiros anos do regime soviético) e seu uso enquanto parte de um outro regime não democrático, mas assentado sob bases sociais radicalmente distintas (o stalinismo), Holquist conclui que a única mudança significativa da revolução teria sido a “modernização das formas de intervenção do Estado” – isto é, do emprego da violência. Indo mais além nessa tentativa de estabelecer elementos de continuidades sem levar em conta os contextos sócio-políticos extremamente distintos em que se deram, tal historiador afirma ainda a existência de uma “cultura tecnocrática e coletivista” ao longo desse período de 1914-21, a qual se expressaria, por exemplo, no uso de políticas de aprovisionamento de grãos ou da produção industrial por parte do czarismo, do Exército Branco contrarrevolucionário, do regime soviético dos tempos da guerra civil (o “comunismo de guerra”) e do regime stalinista (Idem, 143-44, 157, 160 e 166).

Nesse sentido, Holquist explicita a sua defesa de uma nova tese da continuidade, que abarcaria o czarismo e o stalinismo, ao reproduzir a afirmação do historiador William Rosenberg de que o bolchevismo seria “essencialmente a continuação do passado sob uma forma radicalizada, e não uma ruptura revolucionária com esse mesmo passado” – um eco direto das leituras de Furet sobre a Revolução Francesa (Ibid, 160).

Colocando igual ênfase na esfera cultural e das “mentalidades”, Gábor Rittersporn afirma que a “violência implacável” dos bolcheviques era em parte fruto de supostas “práticas sociais inerentes ao quotidiano soviético” e que o caráter “centralizado” do regime stalinista teria sido fruto do “desejo [por parte dos bolcheviques] de afirmar a hegemonia do regime em todos os domínios da vida social e política”. Evidentemente, Rittersporn não diferencia o regime stalinista daquele dos primeiros anos da experiência soviética (RITTERSPORN, 2004RITTERSPORN, G. O Partido. In: DREYFUS, M. et al. O Século dos Comunismos. Depois da Ideologia e da Propaganda, uma Visão Serena e Rigorosa. Lisboa: Editorial Notícias, 2004 [2000].: 172, 177 e 188).

Outro historiador que reproduz essa tese da continuidade culturalista compartilhada por Ingerflom, Holquist e Rittersporn é Bruno Groppo. Este sequer é um especialista no tema, mas ainda assim possui certa visibilidade, por seus estudos acerca dos Partidos Comunistas francês e italiano e memórias traumáticas da Europa no século XX, possuindo importante influência entre historiadores latinoamericanos. Groppo igualmente enxerga o bolchevismo (sempre indiferenciado do stalinismo) enquanto representante de um projeto político autoritário, cujas origens seriam explicadas por uma “cultura política” e por uma “tradição de despotismo” que supostamente seriam próprias da Rússia (GROPPO, 2008GROPPO, B. O Comunismo na História do Século XX [2007]. Lua Nova, n. 75, 2008.: 120).

Mesmo reconhecendo que ocorreram mudanças importantes entre os primeiros anos do regime soviético e a forma que esse assumiu sob Stalin, tal historiador não se detém em explicar o porquê, dando a entender que a mudança foi intencional, como se uma forma dos bolcheviques se imporem sobre as massas. Ademais, Groppo revive a velha afirmação sovietóloga de que a Revolução de Outubro teria sido “essencialmente um golpe de Estado executado por uma audaz minoria armada, decidida a tomar o poder à força” e “explica” a falta de democracia do regime stalinista pela ideia de que os bolcheviques estariam “absoluta e fanaticamente convencidos de ser [sic] os únicos detentores da verdade” (Idem, 116-18 e 120-21). Mas Groppo vai mais além na transposição das teses do “Furet original” para a análise da Revolução Soviética. Pois ele afirma que tal revolução teria possuído um caráter “ilusório”, de um “mito” forjado pelos vencedores – tal qual, para Furet, os jacobinos teriam feito ao difundirem a noção da Revolução Francesa enquanto uma ruptura histórica –, como forma de embasar uma “religião política” de alcance internacional, o comunismo (Idem, 125). 13 13 Cabe ressaltar que essa sua ideia do caráter “mitológico/religioso” do comunismo havia sido proposta de forma quase idêntica pelo historiador brasileiro Jorge Ferreira de Sá, que a aprofunda a partir do uso da antropologia religiosa e de comparações entre a forma de militância comunista e as seitas cristãs (FERREIRA, 1998). Uma crítica detalhada das análises de Ferreira podem ser encontradas em Sena Júnior (2014: 112-118).

Vê-se, através dos exemplos acima, que a junção feita por esses historiadores, das teses de Furet acerca da Revolução Francesa com as velhas teses sovietólogas acerca da Revolução Soviética e do bolchevismo, resulta em uma atualização culturalista dessas últimas, incorrendo em um abandono do saber acumulado por anos de minuciosas pesquisas, especialmente aquelas desenvolvidas pela escola de história social. São, assim, uma tentativa mais sofisticada de revisionismo do que a representada pelas obras de Gellately e Service mencionadas no início desse texto (a escola totalitarianista), não obstante toda a propaganda em torno ao uso de novas fontes de pesquisa por parte destes autores. Cabe ressaltar que Kotkin, também mencionado no começo do texto, apesar de não se enquadrar exatamente na escola culturalista/furetiana, segue caminho parecido, no sentido de produzir uma narrativa anticomunista, sem necessariamente reproduzir as teses dos cold warriors/totalitarianistas.

A influência desse revisionismo também é notada de forma difusa, em obras cujo apelo supostamente “renovador” sensibiliza especialistas. Considerado inovador por historiadores respeitáveis como Hobsbawm (1998__________. Podemos escrever a história da Revolução Russa? In. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.: 264)14 14 Esse é um dos pontos da crítica de Murphy à Hobsbawm (Cf. MURPHY, 2008). e Segrillo (2010SEGRILLO, Â. A historiografia da revolução russa: antigas e novas abordagens. Projeto História, v. 41, dezembro de 2010.: 83), Orlando Figes é outro a endossar a tese da continuidade em chave culturalista. Em seu influente livro A tragédia de um povo (FIGES, 1999FIGES, O. A tragédia de um povo. A Revolução Russa, 1891-1924. Rio de Janeiro: Record, 1999 [1996].) dedicado à história da Rússia entre 1890 e 1924, resultado de um trabalho de pesquisa monumental com ampla documentação, tanto de fontes estatais como daquelas produzidas por organizações sociais, Figes afirma em sua conclusão que o bolchevismo era basicamente uma força liberticida: “Consequência de séculos de servidão e governo autocrático, que mantiveram a gente comum impotente e passiva, foi a fraqueza da cultura democrática russa que permitiu ao bolchevismo prosperar.” (FIGES, 1999FIGES, O. A tragédia de um povo. A Revolução Russa, 1891-1924. Rio de Janeiro: Record, 1999 [1996].: 989). Outubro de 1917 aparece, mais uma vez, como um ponto de continuidade na “tragédia” do povo russo, essencialmente acostumado ao despotismo, segundo essa suposição: “Pode-se traçar uma linha direta entre a cultura que acorrentava o servo e o despotismo bolchevique” (Idem, 990), conclui Figes. Dificil é não concordar com Haynes e Wolfreys, para quem A tragédia de um povo ajuda a constituir um ambiente cultural onde trabalhos como o de Richard Pipes podem prosperar (HAYNES & WOLFREYS, 2007HAYNES, M. & WOLFREYS, J. Introduction. In. History and revolution: refuting revisionism. Londres: Verso, 2007.: 15).

Revolução ou golpe?

O mesmo pode ser dito sobre a produção do historiador brasileiro Daniel Aarão Reis, que aborda a temática da Revolução Soviética através de um revisionismo mais nuançado. Apesar de não ser um tema de pesquisa de Reis, cuja especialidade é a trajetória da esquerda brasileira, ele costuma ser a principal figura convidada para falar da Revolução e da história da URSS em eventos acadêmicos, o que torna necessário um olhar crítico sobre o que tem escrito.

Colocando-se a frequente pergunta se Outubro de 1917 teria sido uma revolução ou um golpe, Reis – ignorando a produção da escola de história social que lida diretamente com o assunto, como as obras do mencionado Rabinowitch – defende a hipótese de que se tratou das duas coisas. A elaboração dessa hipótese teve uma evolução peculiar. Em seu livro A revolução perdida, de 1997, publicado no contexto dos 80 anos da revolução, pela fundação do Partido dos Trabalhadores, ele a apresentou do seguinte modo:

a insurreição de outubro foi um golpe vitorioso, mas não vitorioso porque golpista, mas porque se combinou com o atendimento a reivindicações das amplas maiorias. Neste sentido, em larga medida, realizava-se a democracia, enquanto prevalência da vontade da maioria. (REIS FILHO, 1997REIS FILHO, D. A. Uma revolução perdida: a história do socialismo soviético. São Paulo: Perseu Abramo, 1997.: 80)

Em suma, embora apareça a palavra golpe, o historiador toma o episódio em chave positiva, vinculando-o à democracia. Alguns anos depois, no livro As revoluções russas e o socialismo soviético, de 2003, publicado como parte de uma coleção de bolso da editora da UNESP, retomou a questão da seguinte forma:

Golpe ou revolução? A análise das circunstâncias sugere a hipótese de uma síntese: golpe e revolução. Golpe na urdidura, decisão e realização da insurreição, um funesto precedente. A política dos fatos consumados, empreendida por uma vanguarda que se arroga o direito de agir em nome das maiorias. Revolução nos decretos, aprovados pelos sovietes, reconhecendo e consagrando juridicamente as aspirações dos movimentos sociais, que passaram imediatamente a ver no novo governo – o Conselho dos Comissários do Povo, dirigido por Lenin – o intérprete e a garantia das reivindicações populares. (REIS FILHO, 2003__________. As revoluções russas e o socialismo soviético. São Paulo: Edunesp, 2003: 67)

Assim, o antológico episódio do assalto ao Palácio de Inverno é reduzido a um “funesto precedente”, exemplar da “política dos fatos consumados”, resultante da ação “elitista” de “uma vanguarda que se arroga o direito de agir em nome das maiorias”. Portanto, a revolução Soviética – que na obra de 1997 já era tratada em chave pessimista, como algo que teria sido melhor não ter ocorrido, dado seus caminhos posteriores – aparece mais recentemente com uma origem mais negativa do que anteriormente apresentada, aproximando, assim, o bolchevismo do stalinismo, ainda que de maneira sutil.

Essa evolução de Reis rumo a uma condenação mais veemente da revolução pode ser ainda percebida pela forma como ele dialoga, nas duas obras, com a historiografia liberal. Em Uma Revolução Perdida, ele fez uma dura crítica a tal historiografia, apresentando sua fixação na caracterização da revolução como golpe como fruto de uma nostalgia da “alternativa capitalista” derrotada em Outubro de 1917, e condenando-a por nunca ter sido capaz de “analisar em profundidade os fundamentos da falência das sucessivas políticas, sempre pelo alto, que pretenderam modernizar o Império sem alterar, ou alterando de forma lenta e segura, quase imperceptível, as estruturas sociais e políticas dominantes” (REIS FILHO, 1997REIS FILHO, D. A. Uma revolução perdida: a história do socialismo soviético. São Paulo: Perseu Abramo, 1997.: 72). Já no livro de 2003, limitou-se a sintetizar as teses dessa historiografia, sem esboçar críticas a ela, nem abordar suas motivações políticas (REIS FILHO, 2003__________. As revoluções russas e o socialismo soviético. São Paulo: Edunesp, 2003: 66).

Uma questão central: quem de fato defendeu a democracia em 1917?

Tendo em mente as mencionadas contribuições da história social, fica evidente que a única justificativa para o resgate, realizado pelos diferentes revisionismos, da identificação entre bolchevismo e stalinismo e, mais ainda, entre ambos e o czarismo, bem como de teses sobre o suposto caráter “golpista” da revolução, é uma apologia liberal-burguesa ao capitalismo, via condenação do projeto revolucionário comunista. A forma como os revisionistas furetianos/culturalistas abordam o Governo Provisório, situado entre a derrubada do czarismo (fevereiro) e a estruturação de um novo Estado a partir dos soviets (outubro), é bastante demonstrativa disto. Pois este, especialmente o gabinete Kerenski, é tido por tais revisionistas, implícita ou explicitamente, enquanto uma experiência democrática prematuramente abortada, como se esse efêmero governo da burguesia nativa russa de fato tivesse se colocado a serviço da maior parte daquela sociedade, isto é, das massas proletárias e especialmente do campesinato.

Dos autores aqui abordados, Peter Holquist é aquele que faz uma apologia de tal governo de forma mais explícita, deixando claro que considera o liberalismo burguês a forma ideal de regime social e político, donde sua condenação da experiência soviética. Para ele, o Governo Provisório teria sido “verdadeiramente revolucionário”, por ter se apresentado “explicitamente como a antítese do ‘Antigo Regime’ deposto” – ao passo que o regime soviético, como visto, teria constituído uma mera continuação “radicalizada” das práticas czaristas (HOLQUIST , 2004HOLQUIST, P. A questão da violência. In: DREYFUS, M. et al. O Século dos Comunismos. Depois da Ideologia e da Propaganda, uma Visão Serena e Rigorosa. Lisboa: Editorial Notícias, 2004 [2000].: 158-159). Ademais, Holquist afirma que, enquanto aquele teria “apostado na força da persuasão e da liberdade”, este teria apostado na “força da coação”, elevando-a a “níveis sem precedentes”. E tenta ainda atribuir ao Governo Provisório algumas medidas legais que, impostas pela força revolucionária das massas organizadas nos soviets, não obstante só se concretizaram legalmente após Outubro. Nesse sentido, ele dá especial atenção ao monopólio estatal sobre o comércio dos cereais, como se tivesse consistido em uma grande solução do problema agrário. Já a distribuição de terras, energicamente defendida pelos bolcheviques e socialistas revolucionários de esquerda, e que se tornou a primeira medida legal do regime soviético, sequer é mencionada (Idem, 158-161).

A ideia de que o Governo Provisório teria consistido em uma experiência capitalista democrática “abortada” pelo suposto totalitarismo e/ou terror bolchevique é inteiramente contrafactual. Pois a burguesia russa à época da revolução de fevereiro se tornara cada vez mais incapaz de se apresentar enquanto defensora dos princípios liberais e de atender às demandas das massas populares. Seu partido (Kadet), sob a liderança de Pavel Miliukov, buscou a conciliação com os escombros do czarismo, primeiro através da proposta de uma monarquia constitucional, encabeçada pelo irmão do czar (que rejeitou assumir o trono, temendo por sua vida), e depois erguendo um primeiro governo provisório – formado a partir de acordos no interior da Duma – encabeçado pelo príncipe Lvov.

Tanto esse primeiro governo, quanto aquele encabeçado pelo “socialista” Kerenski, que assumiu em julho – ambos integrados e sustentados pelos kadets – se esforçaram para manter o país na guerra, a despeito da crescente oposição por parte dos soldados e trabalhadores. Também não adotaram nenhuma medida em prol da autodeterminação das várias nacionalidades oprimidas pelo czarismo e seu chauvinismo grão-russo – ao contrário, Kerenski suprimiu e ameaçou militarmente a Finlândia, após seu parlamento ter aprovado uma lei garantindo a soberania do país. Em determinado ponto, conforme crescia a revolta das massas diante da falta de melhorias nas suas condições de vida – que, na realidade, seguiam piorando, em decorrência do esforço de guerra –, os kadets passaram a apostar em uma invasão alemã como forma de “pacificar” tais massas, que foram momentaneamente detidas pela sangrenta supressão das “jornadas de julho”. Como forma de garantir que tal supressão fosse duradoura, os kadets apoiaram a tentativa de golpe do general Kornilov, em agosto, que visava extinguir pela força o poder dos soviets. Ademais, a burguesia e seus representantes adiaram ao máximo a convocação de uma Assembleia Constituinte, só tomando para si essa demanda após a insurreição soviética ter derrubado o Governo Provisório. A partir de outubro, tal burguesia deu início à guerra civil e cooperou com mais de uma dezena de nações estrangeiras para massacrar a revolução, incluindo aí o governo estadunidense, que tinha planos de instaurar uma ditadura militar favorável a seus interesses econômicos (Cf. TROTSKY, 2009, cap. 9 e 10; FOGLESONG, 1995FOGLESONG, D. America’s Secret War Against Bolshevism, 1917–1920. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1995.).

Foi precisamente a incapacidade da burguesia liberal de atender aos anseios democráticos e econômicos das massas populares que fez com que ela não conseguisse se apresentar enquanto alternativa política, abrindo espaço para o poder proletário dos soviets. Nesse sentido, até mesmo o insuspeito historiador conservador Richard Pipes “cobrou” dos liberais russos certa responsabilidade pelo ascenso das ideias comunistas em 1917 (MENDONÇA, 2014MENDONÇA, C. E. R. Trotsky e a revolução permanente: a história de um conceito chave. Rio de Janeiro: Garamond, 2014.: 95-96). Sobre dita incapacidade, vale lembrar que Leon Trotski, em seu balanço da revolução derrotada de 1905, fora capaz de delinear qual seria a dinâmica central de uma revolução anti-czarista na Rússia. Segundo sua análise, que se mostrou precisa diante dos acontecimentos de 1917, seriam as massas proletárias e camponesas que assumiriam a realização das tarefas nacional-democráticas (fim da autocracia, reforma agrária, autodeterminação das nacionalidades oprimidas etc.), dado o atrelamento da burguesia nativa à autocracia fundiária e aos capitais imperialistas, que fazia do seu liberalismo uma ficção. Porém, tomando para si o poder, tais massas não poderiam deter a revolução no patamar liberal-burguês, e teriam que adentrar a via socialista – nem que fosse para se preservar da inevitável contrarrevolução burguesa (TROTSKY, 2011_________. “Balanço e perspectivas”. In _____. A teoria da revolução permanente [compilação]. São Paulo: Editora Sundermann, 2011 [1905], p. 25-130. [1905]).

Já o Outubro soviético deu origem a uma democracia pluripartidária, baseada no sistema piramidal de representantes amovíveis eleitos a partir dos soviets e do congresso desses órgãos de poder. E isso era parte integral do projeto bolchevique, partido que não apenas “aceitou” a democracia direta dos soviets, mas efetivamente lutou em sua defesa e a apresentou ao mundo como modelo, através da atuação da Internacional Comunista. De forma semelhante, o caráter multipartidário do regime também não foi algo aceito a contragosto pelos bolcheviques (Cf. MURPHY, 2008________. Podemos escrever a história da Revolução Russa? Uma resposta tardia a Eric Hobsbawm. Outubro, n. 17, 2008.: 55) – afinal, mesmo nas múltiplas variações de definições que o líder bolchevique Lenin atribuiu ao conceito de “ditadura do proletariado” ao longo dos anos que precederam a revolução de 1917, ele nunca havia definido o “monopartidarismo” como uma de suas características (JOHNSTON, 1985: 130).

Se mencheviques e parte dos socialistas revolucionários (de direita) não se fizeram presentes no primeiro gabinete soviético, foi porque eles próprios se retiraram do massivo II Congresso Pan-Russo dos Soviets, tendo se juntado à burguesia para formar um “Comitê de Salvação Pública” contrarrevolucionário e iniciado o terror branco (Cf. SERGE, 2007SERGE, V. O Ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2007 [1930]. [1930]: 97-104). A partir desse momento, conforme apontou com razão o sociólogo marxista Michael Löwy, a única “alternativa histórica” apresentada ao regime soviético foi “o regime de terror branco de Denikin” – o oficial czarista que comandou o Exército Branco até o começo de 1920, perpetrando execuções em massa, saques e pogroms nas províncias do sul (LÖWY, 2015LÖWY, M. A política do desenvolvimento desigual e combinado. A teoria da revolução permanente. São Paulo: Sundermann, 2015.: 164-165). Sendo que os Exércitos Brancos foram fruto direto de financiamento das potências da Tríplice Entente, interessadas em instalar um regime que mantivesse a Rússia engajada na guerra mundial e evitar que o exemplo revolucionário se espalhasse para o restante do globo (MURPHY, 2008________. Podemos escrever a história da Revolução Russa? Uma resposta tardia a Eric Hobsbawm. Outubro, n. 17, 2008.: 58).

Em outras palavras, diferentemente do que tentam apresentar os diferentes revisionismos acerca da Revolução Soviética de 1917, esta não foi a negação da democracia, mas a forma pela qual ela efetivamente pôde se materializar de maneira mais plena na situação concreta da Rússia. Que essa democracia só possa ter se materializado através do ataque à burguesia enquanto classe e ao capitalismo enquanto sistema de relações sociais, nos diz muito sobre os limites do liberalismo burguês, e mais ainda sobre aqueles que buscam falsificar a história para defendê-lo. No fundo, o compromisso destes não é com a democracia – e, consequentemente, com o interesse da ampla maioria –, mas com o capitalismo.

É verdade que aquela democracia conquistada pela Revolução de Outubro posteriormente sofreu sérios abalos, até ter sido completamente destruída sob o regime stalinista. Mas, para compreender adequadamente como isso ocorreu, teses teleológicas sobre o suposto caráter “intrinsecamente autoritário” dos bolcheviques e/ou do “povo russo” e da sua “cultura política” não apenas não servem, por serem por demais simplistas, como efetivamente não se sustentam ante as evidências disponíveis. Diante da ofensiva revisionista contra a Revolução Soviética se faz necessário um contramovimento historiográfico, não apenas para rebater suas inconsistências, mas também para resgatar a experiência emancipadora representada pelos primeiros anos daquela, em contraposição ao posterior regime stalinista – que deve ser entendido em sua especificidade histórica não como a “continuação” da revolução por outros meios, mas, conforme já o caracterizara Leon Trotski décadas atrás, como “a reação ainda constrangida a vestir as roupas da revolução” (TROTSKY, 2005_________. A revolução traída – o que é e para onde vai a URSS? São Paulo: Editora Sundermann, 2005 [1936]. [1936]: 62).

  • 1
    A primeira edição do livro no Brasil é da década de 1960, pela editora Saga (1967), tendo sido posteriormente editado pela Paz e Terra em 1978, e recebido uma nova edição há dez. Cf. Trotsky (2007)TROSTKY, L. História da Revolução Russa. São Paulo: Sundermann, 2007. 2 volumes..
  • 2
    O primeiro volume, O profeta armada – Trotski 1879-1921, foi publicado em 1968, pela editora Civilização Brasileira. A trilogia ganhou nova edição a partir de 2005, pela mesma editora.
  • 3
    Ao lado da entrada dos Estados Unidos no conflito, naquele mesmo ano, o triunfo da Revolução Soviética determinou o fim da Guerra.
  • 4
    Sobre a coincidência entre o bicentenário da Revolução, a queda do Muro de Berlim e a publicação do artigo de Francis Fukuyama sobre o “fim da história”, Cf. Fontana (1998FONTANA, J. História dos homens. Bauru (SP): EDUSC, 1998., 413-438).
  • 5
    “Se a historiografia jacobino-leninista da Revolução Francesa esteve prisioneira – desde Albert Mathiez – de uma leitura teleológica que interpreta 1789 à luz de 1917, vendo os jacobinos como antecessores dos bolcheviques, Furet tampouco está longe dessa visão. Se limita a inverter os códigos, trocando a epopéia revolucionária por um relato totalitário no qual a ‘vulgata leninista’ cede lugar à ‘vulgata liberal’.” (TRAVERSO, 2012__________. La historia como campo de batalla. Interpretar las violencias del siglo XX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2012.: 83).
  • 6
    Cf. Nolte (1994)______. La guerra civil europea (1917-1945). México: Fondo de Cultura Económica, 1994.. Nolte concebe o fascismo como um fenômeno metapolítico (ou transpolítico), caracterizado por uma resistência contra a modernidade, combinada à resistência ao que chama de “transcendência prática”, o comunismo/marxismo. Cf. Nolte (1974)NOLTE, E. “O fascismo enquanto fenômeno metapolítico.” In. RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins (org.). Fascismo. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974, p. 115-150..
  • 7
    Foge ao escopo desse texto tecer maiores considerações a esse respeito, mas é preciso lembrar que Nolte e Furet protagonizaram uma amigável troca de correspondência sobre suas diferenças em 1996, decorrentes de uma longa nota existente em O passado de uma ilusão onde Furet busca distanciar-se da tese nolteana (FURET, 1995FURET, F. O passado de uma ilusão. Ensaio sobre a idéia comunista no século XX. São Paulo: Siciliano, 1995.: 199-201). Publicado na revista Commentaire (números 79 e 80, outono de 1997 e inverno de 1997-1998), o epistolário seria publicado em forma de livro (Cf. FURET & NOLTE, 1998FURET, F. & NOLTE, E. Fascismo y comunismo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1998.).
  • 8
    Losurdo assinala que, em The Origins of Totalitarianism, a autora ainda busca diferenciar a ditadura revolucionária de Lenin do terror totalitário de Stalin, uma posição que irá desaparecer na obra posterior da filósofa, particularmente com Sobre a Revolução, de 1963. Cf. Losurdo (2017_________. Guerra e Revolução: o mundo um século após Outubro de 1917. São Paulo: Boitempo, 2017.: 21-26).
  • 9
    Para uma reconstituição crítica do conceito, cf. Traverso (2001)TRAVERSO, E. El totalitarismo. Buenos Aires: Eudeba, 2001. e Losurdo (2006)LOSURDO, D. Para uma crítica da categoria de totalitarismo. Crítica Marxista, n. 17, p. 51-79, 2006.. Para uma detalhada crítica de sua aplicação no caso dos estudos do fascismo/nazismo, ver Paxton (2007PAXTON, R. Anatomia do Fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.: 345-350).
  • 10
    Para um balanço detalhado dessa produção, ver Cohen (1985)COHEN, S. Rethinking the soviet experience – Politics and History since 1917 [1968]. Oxford: Oxford University Press, 1985..
  • 11
    Para uma apreciação sobre as diferentes operações revisionistas na historigorafia, cf. Traverso (2017)__________. The New Anti-Communism: Rereading the Twentieth Century. In. HAYNES, M.; WOLFREYS, J. (org.). History and revolution: refuting revisionism. Londres: Verso, 2007..
  • 12
    Sobre a imprecisão do conceito de cultura política, ver Formisano (2001)FORMISANO, R. The Concept of Political Culture. The Journal of Interdisciplinary History, v. 31, n. 3, inverno de 2001.. Sobre seu sentido de determinismo cultural, ver CardosoCARDOSO, C. F. História e poder: uma nova história política? In CARDOSO, C. F. & VAINFAS, R. (org.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. (2012: 52) e Mattos (2014MATTOS, M. B. As bases teóricas do revisionismo: o culturalismo e a historiografia brasileira contemporânea. In: MELO, D. B. de (org.). A miséria da historiografia. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.: 70 e 84-86).
  • 13
    Cabe ressaltar que essa sua ideia do caráter “mitológico/religioso” do comunismo havia sido proposta de forma quase idêntica pelo historiador brasileiro Jorge Ferreira de Sá, que a aprofunda a partir do uso da antropologia religiosa e de comparações entre a forma de militância comunista e as seitas cristãs (FERREIRA, 1998FERREIRA, J. URSS: Mito, utopia e história. Tempo, v. 4, n. 5, 1998.). Uma crítica detalhada das análises de Ferreira podem ser encontradas em Sena Júnior (2014SENA JÚNIOR, C. Z. de. Mito, Memória e História: a historiografia anticomunista no Brasil e no mundo. In: MELO, D. B. de (org.). A miséria da historiografia. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.: 112-118).
  • 14
    Esse é um dos pontos da crítica de Murphy à Hobsbawm (Cf. MURPHY, 2008________. Podemos escrever a história da Revolução Russa? Uma resposta tardia a Eric Hobsbawm. Outubro, n. 17, 2008.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2017

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2017
  • Aceito
    31 Ago 2017
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