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Pluralismo jurídico e interpretação plural na jurisdição constitucional boliviana

Legal pluralismo and plural interpretation in the constitutional jurisdiction in Bolivia

Resumo

Na Bolívia do início do século XXI são deflagradas importantes transições no campo do direito. É o caso da constitucionalização da jurisdição indígena originário campesina, que vem exigindo práticas inovadoras no exercício da jurisdição constitucional. Isto pode ser observado na adoção de novos métodos hermenêuticos, como a “interpretação plural”, que busca efetivar o pluralismo jurídico no país.

Palavras-Chave:
pluralismo jurídico; jurisdição indígena; interpretação plural

Abstract

In Bolivia of the twentieth century are triggered significant transitions in the field of law. This is the case of indigenous originating jurisdiction legalization and that has required innovative practices in the exercise of constitutional jurisdiction. This can be seen in adoption of new hermeneutical methods, like the “plural interpretation”, which seeks to give effect to the legal pluralism in the country.

Keywords:
legal pluralism; indigenous jurisdiction; plural interpretation

Introdução

Na segunda metade do século XX novos e difusos discursos no campo do Direito vão apontando a emergência de modelos teóricos inovadores autodenominados “críticos”, dentre os quais, os chamados descoloniais. Na América Latina experiências e saberes, até então invisibilizados academicamente, mas, presentes nos movimentos populares, ganham espaço, sobretudo a partir da década de 80, surgindo então a discussão em torno de temas como pós-colonialismo e descolonização, dos quais decorrem categorias que se referem, em um primeiro momento, a uma atitude intelectual de reconhecimento do múltiplo e plural que constituem o conjunto da unidade histórica e política (semelhanças, experiências, frustrações e destino) da América Latina. Somando-se a estes novos estudos, na primeira década do século XXI, com governos progressistas, há um avanço em alguns países latino-americanos no campo da democratização, das políticas sociais e da integração regional, o que veio a exigir novas respostas epistemológicas, sobretudo, no campo do direito.

Neste marco, no início do século XXI particularmente na Bolívia ocorre um franco empoderamento de setores populares do país, em especial, movimentos indígenas. Disto decorreram importantes transições políticas e jurídicas, dentre as quais se destacam a nova Constituição Política do Estado, de 2009, a concretização do pluralismo jurídico e a horizontalização entre as distintas jurisdições do país, inclusive a jurisdição indígena originário campesina, que alcança status constitucional. Tais transições têm exigido do país práticas inovadoras no campo da hermenêutica jurídica, para que os mandamentos constitucionais e, acima de tudo, as aspirações democráticas do país, não sejam frustrados. A coexistência de sistemas jurídicos com matizes tão diversos, como é o caso da jurisdição ordinária, de inspiração positivista eurocêntrica, e das jurisdições ancestrais, tem sido administrada pelo Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) mediante a aplicação de novos métodos, como a “ponderação intercultural” e a “interpretação plural”, as quais serão analisadas sob o marco das teorias hermenêuticas críticas, genuinamente comprometidas com a emancipação popular e a libertação dos oprimidos. Buscando compreender este importante momento no continente latino-americano, será procedida uma breve revisão bibliográfica sobre o perfil da justiça indígena na Bolívia e sobre seu último processo constituinte, deflagrado em 2007 e concluído em 2008/2009, com a promulgação da nova Constituição, para, a partir destes elementos, identificar características e tendências da cultura jurídica no país e traços de sua nova hermenêutica. Objetiva-se em suma, analisar novos elementos orientadores da jurisdição constitucional no país e sua harmonia com os novos princípios inseridos em sua ordem jurídico-política.

Para desenvolver tal análise, adotou-se a abordagem dedutiva, partindo das recentes teorias críticas que vêm se desenvolvendo paralelamente às práticas sociais insurgentes no continente, o que permite, num primeiro momento do estudo, identificar conceitos basilares no debate sobre os novos parâmetros da jurisdição boliviana – conceitos como descolonização, interculturalidade e pluralismo jurídico em especial. Ainda na primeira parte deste estudo, apresenta-se uma sucinta análise acerca do processo constituinte que precedeu a promulgação da Constituição Política do Estado, visto que as controvérsias e tensões verificadas neste processo não ficaram nele contidas, irradiando-se por todo o desenvolvimento legislativo e institucional posterior à Constituição. Esta constatação se confirma na análise apresentada no início da segunda parte, onde se procede à análise da Lei de Deslinde – crucial para o desenvolvimento do pluralismo jurídico e ao mesmo tempo, extremamente desafiadora dos princípios constitucionais.

Tomando estes dois marcos normativos: o dos princípios constitucionais e da norma infraconstitucional, a parte final do estudo debruça-se sobre alguns processos julgados pelo Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP). Tais processos foram selecionados mediante os seguintes critérios metodológicos: a primeira etapa de seleção consistiu num levantamento de jurisprudências abrangendo a temática deste estudo, portanto, alimentou-se o sistema de buscas do TCP com o parâmetro “pluralismo jurídico” e dos resultados retornados, foram analisadas as decisões posteriores à promulgação da Constituição e que envolveram a jurisdição indígena, sendo que para integrar este estudo, na segunda etapa, foram selecionadas duas decisões que, com matérias semelhantes e aplicando métodos interpretativos semelhantes, culminaram em conclusões antagônicas. É certo que poderiam ser contempladas não duas, mas inúmeras decisões com conclusões distintas entre si, todavia, para o propósito deste estudo – compreender novos elementos interpretativos – os casos analisados parecem cumprir satisfatoriamente seu papel, sendo ambos paradigmáticos na hermenêutica constitucional boliviana e recorrentemente citados como fundamentos decisórios em jurisprudências posteriores. Outro aspecto rico para análise e que pode ser contemplado nas sentenças selecionadas, tem relação com as oscilações jurídico-políticas verificadas (também) na jurisprudência do Tribunal Constitucional, demonstrando o impacto do desenvolvimento normativo infraconstitucional na jurisdição plural e estas controvérsias revestem de importância os estudos acerca da nova juridicidade boliviana.

1 A Justiça Indígena no marco do Pluralismo Jurídico boliviano

O processo de conquista e colonização das terras e povos ancestrais da América Latina implicou na imposição de um novo horizonte de sentido para as sociedades ocidentais. Se por um lado, modificou a visão de mundo do próprio colonizador, por outro, redefiniu através da violência, encobrimento e negação, as racionalidades autóctones desse continente. No que se refere ao colonizador, muda a sua visão de mundo com a autodeclarada “missão civilizadora” frente ao restante do mundo, declarado “selvagem” pelo homem europeu. No que se refere aos povos originários, estes passam a ser os bárbaros, que precisam ser civilizados, cujas práticas e saberes são rudimentares e precisam evoluir. As racionalidades que este novo paradigma de civilização não consegue dominar – para civilizar – passam a ser menosprezadas, marginalizadas, ou pior: criminalizadas. O referencial de civilização fica situado num “centro”, que inicialmente identifica-se com a região geográfica da Europa, para depois ser partilhado com a América do Norte, especificamente, os Estados Unidos da América.

Este fenômeno moderno é denominado por Enrique Dussel (1993)DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade, conferências de Frankfurt. Petrópolis: Vozes, 1993. como “eurocentrismo” e o peruano Aníbal Quijano (2010QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: 2010. pp. 84-130., p. 113-114) o caracteriza, adotando o conceito de “colonialidade”, como um padrão de dominação global que se forma e consolida na modernidade, tendo como eixos a dominação de uma raça sobre as demais (a do homem branco sobre os não-brancos), dominação de gênero (patriarcalismo) e dominação pelo trabalho (sendo este, o único dos três eixos que tem a dominação como uma constante).

Este fenômeno (eurocentrismo) consolidado por meio do padrão de poder denominado “colonialidade” vai impor um novo horizonte interpretativo ao ser humano moderno, um horizonte que será identificado com a supremacia autodeclarada de um padrão de humanidade e racionalidade1 1 As porções do Globo que não aceitaram este novo paradigma de racionalidade foram agrupadas no Oriente, correspondendo-lhe tudo o que é atrasado e negativo. Uma ideologia que se mantém até os tempos atuais. . A evolução deste paradigma, no campo do direito, culminou com a revolução burguesa ocorrida na França no século XVIII, nos postulados jurídico políticos que consolidaram uma teoria de um Estado Soberano, detentor exclusivo do poder de criação do direito e da força coercitiva para efetivação de tal direito.

O impacto deste novo paradigma, na América foi mais violento, visto que neste continente, as formações do Estado Nação e o monismo jurídico contrastavam mais com a diversidade social pré-existente. Além disto, estas propostas atendiam às aspirações da classe revolucionária que as engendrou – a burguesia das metrópoles – e não exatamente às aspirações das elites locais (elites criollas) as quais mantinham em relação às elites centrais a mesma relação de subserviência a que submetiam as classes populares do continente. Isto quer dizer que o sistema monista de direitos, atendia muito bem às necessidades do indivíduo liberal, burguês-capitalista do centro, e, em certa medida, às elites locais, mas afrontava desde a essência a visão de mundo e as aspirações das comunidades latino-americanas, as quais mantiveram sua perspectiva coletivista/comunitarista, sua visão própria de liberdade e suas formas próprias de produção e reprodução da vida, em nada contempladas pela lógica capitalista de produção.

É a partir da denúncia desta realidade que, nas últimas décadas, começa a se articular um movimento teórico insurgente, que questiona desde a essência os fundamentos da modernidade e da sua “missão civilizadora”; um movimento que articula pensamentos críticos, tanto os situados geograficamente na periferia, como os já mencionados Enrique Dussel e Aníbal Quijano, como pensamentos críticos geograficamente situados no “centro”, como o do português Boaventura de Sousa Santos. O elemento comum entre tais teóricos é a posição firme de questionamento à racionalidade eurocêntrica e ao mesmo tempo propositiva de novas epistemologias, constituindo um movimento que Ramón Grosfoguel (2010)GROSFOGUEL, Ramon. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: 2010. pp. 455-491. denomina como de pensadores críticos do “Sul Global”, transcendendo o limite geográfico para alcançar dimensões ontológicas e epistemológicas.

Tais teorias críticas acabam coincidindo, em certa medida, com práticas populares da periferia, em especial as práticas das comunidades originárias, os indígenas, especialmente de descendência incaica, que desde 1492 vinham resistindo, na defesa de suas tradições milenares. Novamente, situando no campo do direito e no recorte geográfico da Bolívia, esta resistência implicou numa relação entre sistemas de justiça que, nos últimos séculos, se caracterizou pela sobreposição assimétrica, onde a justiça ordinária se impôs sobre a justiça indígena, negando-a, estigmatizando-a, e, até mesmo, criminalizando as práticas de justiça não emanadas do Estado (BAZURCO OSORIO; EXENI RODRÍGUEZ, 2013BAZURCO OSORIO, Martín; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis. Bolivia: justicia indígena en tiempos de plurinacionalidad. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 49-144., p. 121). Mesmo com relativos avanços no sentido de determinação de formas de cooperação e coordenação entre tais justiças, a efetivação deste tipo de relação sempre foi um desafio, visto que a superação do horizonte interpretativo moderno é mais complexa do que se imagina ao se proporem fórmulas jurídicas para tanto: implica em superar o fetichismo do Estado, em aceitar outras dimensões de existência para além do individualismo e outros valores não contemplados na modernidade colonizadora, que vão além da identificação entre liberdade e propriedade, em especial, a propriedade privada individual.

Neste sentido e com estas bandeiras de luta, as comunidades indígenas bolivianas passaram a se articular em movimentos políticos, na busca por participação e protagonismo no poder político de seu país. O cume jurídico-político deste movimento foi a criação do Pacto de Unidade, formado por organizações indígenas originário campesinas que desenvolveram uma plataforma de propostas e reivindicações, as quais foram apresentadas à Assembleia Constituinte e serviram de base para os trabalhos da maioria das Comissões integrantes desta Assembleia (BASCOPÉ SANJINÉS, 2013BASCOPÉ SANJINES, Iván. Consulta previa: un reto de democracia comunitaria. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp.381-406., p. 381).

Uma das pautas mais importantes apresentadas pelas comunidades indígenas dizia respeito à plurinacionalidade, ou seja, a ruptura com o moderno Estado Nação, uma ruptura que se desdobraria em diversos princípios e prerrogativas inovadoras, como a consolidação da autodeterminação e autonomia dos povos, a possibilidade de instituir seus sistemas próprios de democracia, direito educação entre outros. Sobre esta pauta popular, Rosane Freire Lacerda (2014LACERDA, Rosane Freire. “Volveré, y seré millones”: contribuições Descoloniais dos Movimentos Indígenas Latino Americanos para a Superação do Mito do Estado-Nação. 2014. Tese 570 f. (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2014., p. 133 e ss.) destaca que as comunidades indígenas em nenhum momento reivindicaram a separação do Estado, mas desde o princípio a coexistência das diversas nações sob a forma de um “Estado Plurinacional”. Na forma proposta pelas organizações que compuseram o Pacto, o pluralismo jurídico deveria ser um dos princípios fundamentais deste novo Estado, garantindo a autodeterminação e formas próprias de administração de justiça, mediante a previsão da coexistência entre a jurisdição indígena e o sistema jurídico ocidental (jurisdição estatal), com igualdade hierárquica, respeito e coordenação. O Pacto ainda reconhecia o que se poderia chamar de “mínimo jurídico”, nos Direitos Humanos Fundamentais e instrumentos internacionais, como tratados e convenções (PACTO DE UNIDAD, 2010PACTO DE UNIDAD. Sistematizador: Fernando Garcés. El Pacto de Unidad y el Proceso de Construcción de una Propuesta de Constitución Política del Estado: Sistematización de la experiencia. La Paz, Bolívia, 2010. Disponível em: < http://www.museo.umss.edu.bo/wp-content/uploads/2012/03/PACTO-UNIDAD-low_res.pdf >. Acesso em: 26 nov. 2016.
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). Diante de tais atributos, Prada Alcoreza (2013PRADA ALCOREZA, Raúl. Estado plurinacional comunitario autonómico y pluralismo jurídico. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 407-444., p. 407; 413) caracteriza o Estado Plurinacional como uma instituição de transição pós-capitalista, que transcende a proposta marxista da ditadura do proletariado, a qual não conseguia superar o horizonte da modernidade, e o Estado plurinacional, enquanto transição pluralista, supera as fronteiras desta época: do capitalismo e da modernidade, até o plurinacional e a descolonização.

O processo constituinte boliviano que precedeu a promulgação da Carta atual é ponto crucial para a compreensão da nova institucionalidade no país. Segundo relato das organizações indígenas, o impulso inicial que culminou neste processo se deu muitos anos antes da própria instauração da assembleia constituinte e tem suas bases na Guerra da Água, deflagrada em 2000, passando pela Marcha das Terras Baixas, em 2002 e pela Guerra do Gás, em 2003. Em ambas as “guerras” verificou-se a oposição de imensos setores populares às elites que, aliadas às transnacionais, exploravam os recursos naturais. É que na Bolívia, assim como os demais países do continente, a exploração e aproveitamento dos recursos naturais foram monopolizados por pequenas elites em detrimento da maioria da população e a política neoliberal só fez agravar ainda mais as desigualdades (PACTO DE UNIDADE, 2010, p. 17-23). A privatização da água no país intensificou de tal modo o sofrimento popular que a resposta veio na forma de “profundas convulsões sociais” 2 2 A expressão é de Darcy Ribeiro (2010, p. 26) que defendia, em ensaio escrito nos anos setenta, que países como a Bolívia seriam palco de “profundas convulsões sociais”, onde a população indígena – que se contava aos milhões, se reconstruiria em povos autônomos, e redefiniria os quadros nacionais. , que acabaram por expulsar do país as transnacionais que haviam adquirido as concessões estatais e derrubar diversos presidentes, até concluir que era necessário eleger um presidente que assumisse a tarefa de convocar uma assembleia constituinte.

Franchini (2007FRANCHINI, Matías. Asamblea Constituyente en Bolivia: Génesis, evolución y conflicto en el cambio. Documentos. Centro para la Apertura y el Desarrollo de América Latina (CADAL). Ano V, nº 74, 5 jun. 2007. Disponível em: < http://www.cadal.org/documentos/nota.asp?id_nota=1960 >. Acesso em: 26 nov. 2016.
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, p. 3-4) sustenta que a Assembleia constituinte boliviana contou com dois momentos: o primeiro onde foi tema marginal no debate público (final dos anos oitenta e logrou, através de acordos, a reforma constitucional de 1995) e o segundo, iniciado nos anos 2000 com a Guerra da Água, se impôs como exigência de grandes e diversos setores sociais, representando um mecanismo de mudança radical.

O desenvolvimento do processo constituinte foi marcado pelas tensões entre elites e setores populares. Foi precedido pelo referendo autonômico, que deveria consultar também a população sobre as autonomias indígenas, mas somente formulou quesito sobre as autonomias departamentais, que eram justamente pauta das elites para manter seu monopólio sobre as riquezas naturais, em especial as elites da chamada Meia Lua (Pando, Benji, Tarija e Santa Cruz), região que concentra as maiores reservas. Quando finalmente a assembleia foi instaurada, não havia acordo possível, fosse sobre questões materiais, fosse sobre procedimentos formais da constituinte. Sobre o poder de revisão, entendiam as organizações indígenas que a Assembleia era poder soberano, enquanto que os setores mais conservadores, considerados “de direita”, consideravam-na poder derivado, portanto, limitado. Os movimentos indígenas reivindicavam a refundação do Estado, por meio de dois fatores que se destacaram e acabaram se irradiando por toda a nova ordem constitucional: o reconhecimento dos povos indígenas como sujeitos coletivos de direitos e o reconhecimento de sua existência pré-colonial. O desacordo era tanto que o debate sobre a forma de votação da nova constituição, por si só, tomou oito meses de trabalho (PAZ PATIÑO, 2007PAZ PATIÑO, Sarela. Una mirada retrospectiva sobre la asamblea constituyente en Bolivia. RIPS (Revista de Investigaciones Políticas y Sociológicas), vol. 6, nº 2, 2007. pp. 161-176. Disponível em: < www.redalyc.org/articulo.oa?id=38060210 >. Acesso em: 26 nov. 2016., p. 163-166). As divergências procedimentais diversas foram tamanhas que ameaçaram inclusive a conclusão do processo, de modo que, o processo constituinte que durou ao todo dezesseis meses, se viu paralisado por onze!3 3 Para Errejón Galván (2009, p. 120) comente sobre dispositivo incluído na lei convocatória da Assembleia Constituinte que visava conferir às minorias opositoras, que mal ultrapassavam um terço da composição, um poder de veto efetivo, e com este poder, as elites faziam “chantagens” buscando a todo custo converter o processo constituinte em uma mera reforma. e paralelamente a isto, a cobertura da mídia comercial, que, num claro intento desestabilizador, enfocava conflitos e pressões, desviando o foco ou silenciando os debates internos da Assembleia (NOGUERA FERNÁNDEZ, 2008NOGUERA FERNÁNDEZ, Albert. Constitución, Plurinacionalidad y pluralismo jurídico en Bolívia. La Paz: Oxfam Gran Bretaña, 2008., p. 133-138). Vencidos os desafios iniciais, foram estabelecidas vinte e uma comissões de trabalho, das quais, as de cidadania, visão de país, nacionalidade(s), nova estrutura de Estado, autonomias e descentralização territorial e judicial foram as politicamente mais tensas, mais até do que as que tratavam da economia, ou dos recursos naturais (PAZ PATIÑO, 2007PAZ PATIÑO, Sarela. Una mirada retrospectiva sobre la asamblea constituyente en Bolivia. RIPS (Revista de Investigaciones Políticas y Sociológicas), vol. 6, nº 2, 2007. pp. 161-176. Disponível em: < www.redalyc.org/articulo.oa?id=38060210 >. Acesso em: 26 nov. 2016., p. 169-171).

O texto finalmente aprovado pelos bolivianos e bolivianas sofreu, entretanto, inúmeras alterações. Estas devem ser consideradas como o preço que o Governo e as organizações populares que o sustentam pagaram à oligarquia e à direita regionalizada no oriente para evitar um enfrentamento civil como o que se anunciava em setembro de 2008. A oposição conseguia assim tirar a discussão política do “espaço selvagem” – na brilhante metáfora de Luis Tapia – do poder constituinte, para situá-la no “espaço domesticado” da negociação bilateral, onde seu peso excedia em muito a sua representatividade (ERREJÓN GALVÁN, 2009ERREJÓN GALVÁN, Íñigo. La Constitución boliviana y la refundación del Estado. Un análisis político. Papeles, nº 107, 2009. pp. 117-127. Disponível em: < http://www.revistapapeles.es/archivo.aspx >. Acesso em: 26 nov. 2016.
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, p. 121. Tradução livre das autoras4 4 El texto finalmente aprobado por los y las bolivianas sufrió, sin embargo, numerosas modificaciones. Éstas deben ser consideradas como el precio que el Gobierno y las organizaciones populares que lo sustentan pagaron a la oligarquía y la derecha regionalizadas en el oriente para evitar un enfrentamiento civil como el que se anunciaba en septiembre de 2008. La oposición conseguía así sacar la discusión política del “espacio salvaje” –en la brillante metáfora de Luis Tapia–9 del poder constituyente para situarlo en el “espacio domesticado” de la negociación bilateral, donde su peso excedía con mucho el de su representatividad ).

Mesmo com tantas turbulências no processo constituinte e retrocessos no texto afinal aprovado (com um total de 411 artigos, mais disposições transitórias), a proposta original apresentada pelo Pacto de Unidade consolidou conquistas notáveis5 5 A título de exemplificação, para demonstrar as transformações institucionais bolivianas – muitas inéditas, como o princípio da descolonização – além das já destacadas e das que ainda serão abordadas, que foram consignadas no texto constitucional, constam o reconhecimento dos diversos idiomas e valores ancestrais (artigo 5 e 8 respectivamente); a democracia comunitária (artigo 11, 26, 210 e 288 a 296, que dispõem sobre as autonomias indígena originário campesinas), que foi um dos temas mais controversos do processo constituinte em razão de seu potencial emancipador; direitos dos povos e nações indígena originário campesinos (capítulo quarto) que abrangem a titulação coletiva de seu território e o desenvolvimento de sistemas próprios inclusive da medicina tradicional (artigo 30, II e seus itens) a eleição direta para juízes e juízas do país (título III) inclusive os magistrados do mais alto Tribunal, o TCP (artigo 198) e criação do quarto poder, o poder eleitoral (título IV). , deixando claro que a nova Constituição boliviana já não traduzia um mero ajuste de interesses elitistas sem participação democrática e tal se deu em razão do protagonismo popular que não se abrandou em momento algum. Gladstone Leonel Junior (2014LEONEL JÚNIOR, Gladstone. A Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia como um instrumento de hemonia de um projeto popular na América Latina. 2014. 345 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2014., p. 284-287) sustenta que luta democrática na Bolívia traduz a luta por um novo modo de produção e pela descolonização do Estado e que estes processos são contemplados na nova Constituição, viabilizando o que o autor chama de “democracia intercultural”.

As conquistas inseridas no texto constitucional boliviano ensejam práticas criativas nas diversas esferas e poderes do Estado; todos transformados por uma nova cultura jurídica que começa a se expressar formalmente. Dentre tais conquistas reputadas à mobilização popular, destacam-se princípios como a plurinacionalidade, interculturalidade e pluralismo jurídico (artigo 1) e a descolonização (artigo 9). O artigo 2 da Carta, afirma que “dada a existência pré-colonial6 6 Segundo o advogado argentino Leonardo Tamburini (2013, p. 254), tal existência não é objeto de “reconhecimento” e isto marca uma posição importante do Pacto, segundo o qual, o termo “reconhecimento” não deveria figurar na Constituição, uma vez que se referia a uma realidade histórica inquestionável. das nações e povos indígena originário campesinos e seu domínio ancestral sobre seus territórios, garante-se sua livre determinação [...]” e tal declaração apesar de juridicamente tratada como irrelevante, fundamenta o domínio ancestral sobre os territórios, a livre determinação e autonomia, autogoverno, cultura, reconhecimento de instituições próprias, entre outras prerrogativas. Segundo Prada Alcoreza (2010_________. Umbrales y horizontes de la descolonización. In: LINERA, Álvaro García; PRADA ALCOREZA, Raúl; TAPIA, Luis; CAMACHO, Oscar Vega. El Estado: campo de lucha. La Paz: CLACSO, 2010. pp. 43-94., p. 78-79) tais conquistas derivam de práticas libertadoras, que deixam para trás uma história de colonização e dominação, típicas da geopolítica e de um sistema-mundo capitalista, onde centro e periferia definiam uma dinâmica de exploração racista do trabalho. Segundo Chivi Vargas (2009CHIVI VARGAS, Idón Moisés. Os caminhos da descolonização na América Latina: os Povos Indígenas e o igualitarismo jurisdicional na Bolívia. In: VERDUM, Ricardo (org.) Constituição e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: INESC, 2009. pp. 151-166., p. 159 e ss.), um dos cenários onde se constitucionaliza a realidade boliviana é justamente o comunitário, com o reconhecimento dos valores do Viver Bem7 7 Agora o “Vivir Bien” constitui princípio jurídico, consagrado na nova Constituição da Bolívia já em seu preâmbulo, em seu artigo 8, I e II, ao tratar, respectivamente, dos princípios e valores do Estado Plurinacional Boliviano, artigo 80, ao tratar dos objetivos da educação e artigos 306, I e III, 313, ao tratar do modelo e organização econômica do Estado. , os quais são inclusive, antagônicos à dinâmica capitalista de produção e exploração do trabalho e desta forma, o constitucionalismo enquanto máscara do colonialismo vai se subvertendo.

É neste sentido que a constitucionalização do pluralismo jurídico é importante. O monismo foi, nos últimos séculos, uma forma eficaz de manter a lógica colonial nas relações internacionais. A unificação do sistema jurídico-político num mesmo órgão assumiu, na formação das repúblicas latino-americanas um sentido diferente daquele dado pela burguesia revolucionária nas metrópoles. A nova teoria política, estranhas às peculiaridades das colônias, nestas se concretizou sobre “consensos débeis”, fundamentados tão somente sobre o voto (MÉDICI, 2012MÉDICI, Alejandro. La constitución horizontal: teoría constitucional y giro decolonial. Aguascalientes/San Luis Potosí/San Cristóbal de Las Casas: Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Mispat, A.C., Faculdad de Derecho de la Universidad Autónoma de San Luis Potosí, Educación para las Ciencias en Chiapas, A.C., 2012. 188 p.) e processos políticos controversos, os quais evidenciavam a crise do modelo monista, o modelo do Estado Nação, uma crise que foi contida, nos casos mais extremos, pelas diversas ditaduras que ocorreram no continente, as quais, ao invés de redefinir os parâmetros democráticos a partir da realidade do continente, rechaçaram o pouco de democracia que se conhecia. Os fracassos foram “colocados na conta” da incapacidade das sociedades latino-americanas em reproduzir os bem-sucedidos modelos das metrópoles, onde funcionavam perfeitamente em razão do “elevado nível de civilidade daqueles povos”. Ou seja: trata-se de uma conformação ideológica operada desde a racionalidade eurocêntrica e que constituiu um óbice à efetivação de formas próprias de fazer política e organizar direitos nas nações periféricas.

A subversão do modelo ocidental de Estado e Direito se deu na Bolívia sobre as bases do pluralismo jurídico, o qual pode ser identificado na distinção proposta por Antonio Carlos Wolkmer (2015)WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. 8 8 Na última edição de sua emblemática obra Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito, publicada após quase quinze anos depois da edição anterior, Wolkmer (2015, p. 243-245) inclui uma reflexão sobre o pluralismo jurídico e o constitucionalismo andino, que conforme destaca o autor, significa a ruptura com a matriz eurocêntrica, fortalecendo a proposta de um constitucionalismo de novo tipo. O que se nota é a profícua interlocução entre a proposta teórica de Wolkmer, formulada no início dos anos noventa, e os recentes debates engendrados a partir da constitucionalização do pluralismo jurídico em especial nas constituições do Equador e da Bolívia, já que o pluralismo jurídico nestas Cartas consignados, é do mesmo tipo daquele defendido por Wolkmer. que, discutindo a crise do modelo liberal capitalista propõe um sistema de direitos fundado nos sujeitos coletivos e nas suas necessidades humanas fundamentais, bem como na democratização radical do poder político, ética concreta da alteridade e construção de processos que permitam o desenvolvimento de uma racionalidade emancipatória, o que, na Bolívia, traduz muito bem a realidade do país e inclusive as reivindicações apresentadas por seus atores políticos coletivos – as comunidades indígenas em especial. Trata-se do pluralismo jurídico comunitário participativo, cuja distinção fundamental com outras formas de pluralismo também reconhecidas contemporaneamente (como as negociatas de transnacionais ou as redes de narcotráfico) está no fato de se tratar de uma forma de pluralismo que se engendra legitimamente desde as bases da sociedade, permitindo muitas vezes a superação de relações opressivas, ao contrário das formas conservadoras, verticalmente impostas e que reproduzem relações de dominação social. Neste sentido, as organizações do Pacto de Unidade destacam sua percepção acerca do conceito: “Por pluralismo jurídico entendemos a coexistência, dentro do Estado Plurinacional, dos sistemas jurídicos indígenas originários e campesinos com o sistema jurídico ocidental, em plano de igualdade, respeito e coordenação” (PACTO DE UNIDAD, 2010PACTO DE UNIDAD. Sistematizador: Fernando Garcés. El Pacto de Unidad y el Proceso de Construcción de una Propuesta de Constitución Política del Estado: Sistematización de la experiencia. La Paz, Bolívia, 2010. Disponível em: < http://www.museo.umss.edu.bo/wp-content/uploads/2012/03/PACTO-UNIDAD-low_res.pdf >. Acesso em: 26 nov. 2016.
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, p. 71. Tradução livre das autoras9 9 Por pluralismo jurídico entendemos la coexistencia, dentro del Estado Plurinacional, de los sistemas jurídicos indígenas originarios y campesinos con el sistema jurídico occidental, en un plano de igualdad, respeto y coordinación. ).

Duas notas importantes a consignar nesta definição: a primeira é que como se vê, as organizações indígenas não aspiravam a eliminação da jurisdição ordinária – da mesma forma que não aspiravam a separação de suas nações do Estado – e a segunda diz respeito à reivindicação por coexistência em plano de igualdade, o que indubitavelmente, desafia a lógica monista e impondo a adoção de formas criativas de concretizar a nova ordem. O pluralismo jurídico na Bolívia deve, portanto, para concretizar-se, partir da realidade da jurisdição indígena e não da lógica jurista monista colonizadora.

Assim, o primeiro destaque diz respeito à grande diversidade existente entre os sistemas jurídicos indígenas, o que, segundo Martín Bazurco Osorio e José Luis Exeni Rodríguez (2013, p. 128) determina a importância de denominá-las no plural, como “justiças indígenas”. Apesar desta diversidade, é possível identificar alguns elementos comuns entre as práticas originárias, tais como o caráter coletivo dos procedimentos, que incluem toda a comunidade no seu desenvolvimento, ou a busca pela restruturação da harmonia e equilíbrio comunitários, procedimentos caracterizados especialmente pela oralidade, celeridade, reconciliação, lógica restaurativa (BAZURCO OSORIO; EXENI RODRÍGUEZ, 2013BAZURCO OSORIO, Martín; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis. Bolivia: justicia indígena en tiempos de plurinacionalidad. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 49-144., p. 129-131). Esta última distingue-se da logica ocidental, bastante visível em matéria penal, que é retributiva-punitiva. Além disto, em geral os sistemas indígenas colocam a comunidade (assembleia) como instância decisória superior na resolução de conflitos entre seus membros, o que denota alto nível de democratização destes sistemas. A esta característica, Xavier Albó (2013ALBÓ, Xavier. Justicia indígena en la Bolivia plurinacional. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 201-248., p. 207-214) acrescenta a visão global ou integral do sistema – distinguindo-se das dimensões especializadas e compartimentalizadas da jurisdição estatal, a flexibilidade do sistema, transmissão oral dos conhecimentos e tradições, entre outros.

A constitucionalização da coexistência de jurisdições, em especial a indígena originário campesina, com igualdade hierárquica e dever de coordenação e cooperação das jurisdições ordinária e agroambiental perante aquela (artigos 190 a 192), atende aos princípios da descolonização e interculturalidade. Em razão desta previsão de igualdade hierárquica, não se admite que as demais jurisdições revisem as decisões proferidas no âmbito da jurisdição indígena originário campesina, de modo que seus conflitos e matérias, bem como suas consultas eventualmente formuladas, somente podem ser apreciadas no âmbito da jurisdição constitucional – exercida pelo TCP, especificamente imbuído de tal competência no artigo 202, 8 e 11.

A enunciação constitucional foi muito positiva desde uma perspectiva do pluralismo jurídico, mas a regulamentação que ficou a cargo de lei posterior10 10 Nos termos da Constituição, artigo 192, III: “[...] a lei de deslinde jurisdicional determinará os mecanismos de coordenação e cooperação ente a jurisdição indígena originário campesina com a jurisdição ordinária e a jurisdição agroambiental e todas as jurisdições constitucionalmente reconhecidas” ainda é objeto de controvérsias e fonte de contradições. No âmbito constitucional, artigo 191, II, ficaram enunciados âmbitos de vigência da jurisdição indígena, sendo eles: pessoal (membros das comunidades, na qualidade de demandados, denunciantes, denunciados ou imputados, recorrentes ou recorridos), material (assuntos indígena originário campesinos conforme estabelecido na lei de deslinde) e territorial (relações e fatos realizados ou com efeitos produzidos dentro da jurisdição indígena). Fica definido ainda o dever de toda autoridade pública acatar as decisões da jurisdição indígena, inclusive na prestação de apoio, quando solicitado. Finalmente, a Constituição determina, em seu art. 410, uma hierarquia jurídica, com a própria Constituição no nível mais elevado, seguida pelos tratados internacionais e após, pelas leis nacionais, estatutos autonômicos (dos Territórios Indígena Originário Campesino regularmente constituídos), leis infranacionais e jurisdição indígena, todas estas fontes normativas no mesmo nível.

Esta enunciação gera polêmica na discussão acerca da consolidação de um pluralismo jurídico no país, e talvez indique mesmo uma insegurança na marcha descolonizadora, mas o importante é que como demonstram os registros do Pacto de Unidade, de modo semelhante ao processo equatoriano (GRIJALVA, 2009GRIJALVA, Augustín. O Estado Plurinacional e intercultural na Constituição Equatoriana de 2008. In: VERDUM, Ricardo (org.) Constituição e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: INESC, 2009. pp. 115-133., p. 130), as comunidades indígenas não apresentam resistência ou oposição à fixação de mínimos jurídicos, tais como respeito às mulheres, crianças e idosos, de modo que a determinação de respeito aos direitos fundamentais, interculturalmente interpretados, mantém acordo com as reivindicações das comunidades autóctones. Não emanam da Constituição, portanto, as controvérsias no desenvolvimento judicial da gestão de conflitos no novo sistema plural de direitos, mas sim da elaboração e aplicação da Lei de Deslinde Jurisdicional.

2 Deslinde Jurisdicional e os novos horizontes hermenêuticos

Como observado, o protagonismo das classes populares, ou do povo propriamente dito, impôs, desde a Constituição Política do Estado, um novo horizonte hermenêutico à Bolívia. Ao menos nos assuntos tangentes à jurisdição indígena originário campesina, a qual não pode mais ser tratada nos marcos do direito positivo. Afinal, conforme leciona o jurista argentino Alejandro Médici (2012MÉDICI, Alejandro. La constitución horizontal: teoría constitucional y giro decolonial. Aguascalientes/San Luis Potosí/San Cristóbal de Las Casas: Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Mispat, A.C., Faculdad de Derecho de la Universidad Autónoma de San Luis Potosí, Educación para las Ciencias en Chiapas, A.C., 2012. 188 p., p. 139),

Trata-se de uma concepção da vida distanciada dos parâmetros da modernidade: individualismo, lucro, racionalidade custo-benefício como axiomática social, a instrumentalização e objetivação da natureza, a relação estratégica entre os seres humanos, a mercantilização total das esferas da vida humana (MÉDICI, 2012MÉDICI, Alejandro. La constitución horizontal: teoría constitucional y giro decolonial. Aguascalientes/San Luis Potosí/San Cristóbal de Las Casas: Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Mispat, A.C., Faculdad de Derecho de la Universidad Autónoma de San Luis Potosí, Educación para las Ciencias en Chiapas, A.C., 2012. 188 p., p. 139. Tradução livre das autoras11 11 Se trata de una concepción de la vida alejada de los parámetros de la modernidad: individualismo, lucro, racionalidad costo-beneficio como axiomática social, la instrumentalización y objetivación de la naturaleza, la relación estratégica entre los seres humanos, la mercantilización total de las esferas de la vida humana. ).

Ao contrário, as dimensões da existência das comunidades originárias, desde sua ancestralidade, estão vinculadas ao coletivismo – à comunidade – ao equilíbrio cósmico entre todos os elementos e componentes da natureza – cosmovisão – entre outros aspectos não contemplados no horizonte ocidental moderno. Portanto, um dos princípios orientadores da nova ordem, a interculturalidade, assumida como lecionada por Raúl Fornet-Betancourt (1994FORNET-BETANCOURT, Raúl. Questões de método para uma filosofia intercultural a partir da Ibero-América. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1994., p. 29-31), converte-se em núcleo formal metodológico imprescindível para transformação já não somente da filosofia, como quer o autor, mas também do saber e do fazer jurídico, por meio da interdisciplinaridade (reconhecendo a limitação do conhecimento disciplinar nos temas fronteiriços presentes na realidade) e da interculturalidade propriamente dita, enquanto meio de superação da uniformidade monocultural hegemônica no Ocidente. No mesmo sentido de resistência descolonial, consta o aporte teórico de Catherine Walsh (2012WALSH, Catherine. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global. Joaçaba, v. 15, n. 1-2, jan./dez. 2012. pp. 61-74. Disponível em: < http://editora.unoesc.edu.br/index.php/visaoglobal/article/view/3412 >. Acesso em: 26 nov. 2016.
http://editora.unoesc.edu.br/index.php/v...
, p. 61 e ss.) na defesa de um conceito de “interculturalidade crítica”, que enfrenta o problema estrutural-colonial-racial colocando-o no devido lugar frente ao sistema capitalista e, portanto, questionando as bases da exclusão inerente a tal sistema e por meio deste questionamento, abre possibilidades para um projeto emancipatório.

A interculturalidade impõe-se assim, desde o projeto do Pacto de Unidade, como um dos princípios orientadores reconhecidos na Constituição junto à celebração [genuína] da diversidade cultural, como se observa no documento:

A diversidade cultural constitui a base essencial do Estado Plurinacional Comunitário. A interculturalidade é o instrumento para a coesão e a convivência harmônica e equilibrada entre todos os povos e nações. A interculturalidade terá lugar no respeito às diferenças e na igualdade de condições (PACTO DE UNIDAD. Tradução livre das autoras12 12 La diversidad cultural constituye la base esencial del Estado Plurinacional Comunitario. La interculturalidad es el instrumento para la cohesión y la convivencia armónica y equilibrada entre todos los pueblos y naciones. La interculturalidad tendrá lugar con respeto a las diferencias y en igualdad de condiciones. ).

Com isto, no campo jurídico fica rechaçado o monopólio do saber e do fazer, para impor-se a realidade de que as cosmovisões ancestrais também contam com seus próprios sistemas e horizontes interpretativos, os quais não precisam circunscrever-se nos rigorosos métodos eurocêntricos – o que é inclusive ilógico, considerando que mesmo os roteiros metodológicos ocidentais mantêm enclausurado o locus privilegiado de enunciação do saber e do fazer no centro euro-norte-americano. Subvertendo este modelo, as formas diversas de expressão das cosmovisões ancestrais, como Mendoza Crespo (2010MENDOZA CRESPO, Marco Antonio. Experiencias de justicia indígena en el departamento de Oruro – Bolívia. In: CÓNDOR CHUQUIRUMA, Eddie (coord.). Normas, procedimientos y sanciones de la justicia indígena en Bolivia y Perú. Lima: Comissión Andina de Juristas, 2010. pp. 11-67. Disponível em: < http://www.cajpe.org.pe/gep/index.php?option=com_docman&task=doc_details&gid=246&Itemid=130 >. Acesso em: 26 nov. 2016.
http://www.cajpe.org.pe/gep/index.php?op...
, p. 27-28) exemplifica nas práticas ritualísticas, assumem grande relevância enquanto elementos constitutivos desta racionalidade.

Assim vai se aproximando o projeto intercultural do projeto descolonizador, que implica na libertação dos rígidos limites coloniais presentes na cultura jurídico-política do continente. A Constituição Política do Estado boliviano, documento democraticamente construído por diversos setores sociais do país, é um dos principais instrumentos deste projeto, impondo também à administração de justiça uma postura descolonial. No âmbito da jurisdição constitucional, exercida pelo Tribunal Constitucional Plurinacional13 13 Em razão da igualdade jurisdicional estabelecida pela Constituição, onde a jurisdição indígena originário campesina submete-se somente à Constituição Política do Estado, os conflitos envolvendo tal jurisdição não podem ser resolvidos em outros âmbitos jurisdicionais, mas tão somente, no âmbito da jurisdição constitucional. , ao qual é constitucionalmente designada a “justiça constitucional”, seus parâmetros jurídicos e políticos estão traçados na Constituição e na Lei 027 de 6 de julho de 2010, contemplando aspectos como integração de magistrados eleitos dentre integrantes das nações indígenas, no número mínimo de duas vagas, e reafirmação dos princípios constitucionais, como pluralismo jurídico, plurinacionalidade, interculturalidade entre outros.

2.1 Desafios e limites na efetivação de um sistema de justiça plural

O notável avanço verificado no processo constituinte boliviano, marcado pelo fortalecimento democrático de setores populares não foi uma constante na ordem jurídica do país. O próprio texto elaborado pelas organizações indígenas, não obstante tenha sido o documento mais importante e influente sobre o texto constitucional final, sofreu muitas modificações dentro da Assembleia, ao ser negociado com representantes da elite nacional, proveniente da região da “meia lua”, que integra os departamentos com maior concentração e exploração de recursos naturais no país. Os impasses deflagrados no âmbito da Assembleia constituinte paralisaram por meses os trabalhos das comissões. Entretanto, provavelmente o mais duro golpe contra o pluralismo jurídico tenha sido investido no processo legislativo da Lei de Deslinde, designada constitucionalmente, como norma regulamentadora da nova ordem jurídica pluralista e baseada na igualdade entre as jurisdições ordinária e indígena originário campesinas.

O resultado final de tal processo foi a edição da Lei 073 de 29 de dezembro de 2010, Lei de Deslinde Jurisdicional. No contexto em que a norma foi produzida, verificavam-se intensos conflitos e disputas políticas, onde as representações de corte mais conservador no país contavam com o apoio da mídia comercial, que, de modo tendencioso, noticiava frequentemente o tema da jurisdição indígena. O objetivo era deslegitimar o pluralismo, colocando em questão a confiabilidade de tal jurisdição, legitimando, por outro lado, os retrocessos que afinal foram verificados no texto final da lei de deslinde: o pluralismo jurídico restou mitigado, diante da justificativa de “blindar” a justiça no país, protegendo-a dos excessos da jurisdição indígena.14 14 A designação comum no país era “justiça comunitária”, mas esta justiça, diante dos ataques contundentes da mídia comercial, associada aos parlamentares de oposição ao governo, acabou sendo fortemente associada a práticas de linchamento e penas cruéis, equiparáveis à tortura (GRIJALVA JIMENEZ; EXENI RODRÍGUEZ, 2013, p. 723-724). Ao final da campanha midiática, o conceito “justiça comunitária” restou irremediavelmente desacreditado, revestido de um imaginário pejorativo e mesmo antijurídico, o que acabou por exigir sua substituição pelo conceito “jurisdição indígena”.

Desta forma, a lei de deslinde incluiu no ordenamento jurídico boliviano diversos limites ao exercício da justiça originária indígena. Limites não previstos na Constituição, e, em alguns casos, até contrários ao texto constitucional. Entretanto, também se verificam limites coerentes com o “mínimo jurídico” fixado pela Constituição, como se observa na proteção a mulheres e crianças, bem como, vedação de práticas como linchamento, violação de direitos humanos ou de direitos e garantias constitucionais, um mínimo jurídico comum a todas as jurisdições. Outros destaques positivos são a determinação estabelecida na lei, o caráter vinculante das decisões emanadas da jurisdição originária indígena e o dever inescusável de cooperação, sempre que requisitado, pelas distintas jurisdições.15 15 Esta disposição é importante, especialmente do ponto de vista da eficácia, pois nem sempre a jurisdição indígena originário campesina conta com os instrumentos da jurisdição ordinária (perícias, por exemplo) para solucionar seus conflitos e, eventualmente, tais instrumentos poderiam ser úteis e não somente facilitar o exercício jurisdicional, como conferir-lhe maior celeridade, eficácia e segurança. Inclusive, segundo avaliação de Grijalva Jimenez e Exeni Rodriguez (2013GRIJALVA, Augustín. EXENI RODRÍGUEZ, José Luis. Coordinación entre justicias, ese desafio. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 699-732., p. 729), o dever de cooperação é a contribuição mais positiva da norma.

Para além destes aspectos, verificam-se os óbices à concretização do pluralismo jurídico incluídos na pauta da administração de justiça na Bolívia. Um deles, diz respeito à exigência de simultaneidade entre os três âmbitos de vigência da jurisdição indígena quais sejam, o material, o pessoal e o territorial. A própria Constituição, não requer tal simultaneidade, sendo esta, resultado de uma interpretação restritiva das garantias estabelecidas no texto constitucional, o que fere, inclusive, os cânones ocidentais da interpretação jurídica, mais especificamente, da hermenêutica constitucional. Outro ponto diz respeito à vigência pessoal, a qual só alcança os membros da nação ou povo indígena onde se pretenda exercer a jurisdição originária. A redação do texto legislativo pode ensejar igualmente interpretação restritiva, onde se espere que todas as partes envolvidas no conflito pertençam à mesma nação ou povo. A enunciação constitucional é mais clara, pois indica que basta que uma das partes integrar a nação ou povo indígena, para habilitar sua vigência jurisdicional, conforme o artigo 191, II, 1: “Estão sujeitos a esta jurisdição os membros da nação ou povo indígena originário campesino, seja que atuem como autores ou demandados, denunciantes ou querelantes, denunciados ou imputados, recorrentes ou recorridos”.

Observa-se também a configuração problemática da vigência material na norma infraconstitucional, segundo a qual, a jurisdição indígena será competente em matérias, assuntos ou conflitos que historicamente conhece sob suas normas, além da exclusão explícita de diversas matérias, o que acabou por reservar à jurisdição indígena competências residuais, inclusive frente às demais jurisdições do país (ordinária e agroambiental), o que contraria a determinação constitucional de igualdade entre os sistemas de justiça, garantida no artigo 179, II. Sobre a determinação de que a jurisdição indígena é competente para se pronunciar a respeito dos assuntos que tradicionalmente conhece, com tal dispositivo, a jurisdição originária fica enclausurada, impedida de se desenvolver. Esta limitação é grave, considerando que a realidade social é, para as comunidades indígenas, mais importante que a formalidade das normas, de modo que a justiça indígena tem caráter mais dinâmico que a ordinária: a justiça indígena, com exercício privilegiado e soberano nas assembleias comunitárias, está sempre em transformação, buscando uma legitimação democrática ao atualizar-se sempre em harmonia com a realidade comunitária onde se insere e a previsão normativa viola este caráter dinâmico inerente às práticas ancestrais.

Com este rol de limitações, suscintamente apresentados, a aplicação da lei de deslinde jurisdicional no país vem se apresentando como um poderoso instrumento de limitação das garantias constitucionais conferidas aos povos e nações indígenas, como se percebe claramente nas soluções de controvérsias e nas opções interpretativas adotadas especialmente pelo Tribunal Constitucional Plurinacional. É um processo de “recolonização” da justiça no país, que implica diretamente na mitigação do pluralismo jurídico, democrática e constitucionalmente conquistado. Diante de tal realidade, a jurisprudência do Tribunal da justiça constitucional tem, alternadamente, apresentado posturas francamente progressistas e inovadoras, bem como, tem se posicionado de modo conservador, não consolidando as garantias constitucionais.

O que é de suma importância destacar é que, não obstante se verifiquem avanços e retrocessos, o Tribunal Constitucional Plurinacional, no exercício da jurisdição constitucional tem apresentado novos horizontes hermenêuticos, que vêm transcendendo os limites da tradicional hermenêutica ocidental e seus métodos e referenciais liberais, burgueses e individualistas. Um exemplo paradigmático deste tipo de inovação se verifica na Sentença Constitucional Plurinacional 1422/2012, onde se verifica a opção pela “interpretação plural” na solução de conflitos deflagrados no âmbito da jurisdição indígena. No caso mencionado, ocorreu conflito no âmbito de uma comunidade indígena em razão de um furto com posterior restauração do dano. Ainda assim, a comunidade, em assembleia, deliberou pela expulsão do membro autor do furto, junto de toda a sua família, do território indígena. De tal decisão, decorreu ação da família, sob alegação de violação de diversos direitos, inclusive integridade física e devido processo legal. O Tribunal Constitucional Plurinacional, no julgamento do caso, apoiou-se em laudo técnico produzido por um importante órgão de apoio, a “Unidade de Descolonização”16 16 Vinculada diretamente à presidência, consta na estrutura organizacional do TCP a Secretaria Técnica e de Descolonização, que abrange a “Unidade de Descolonização” e a Unidade de Justiça Indígena Originária Campesina. Ambas as unidades contam com o apoio interdisciplinar de antropólogos, sociólogo, linguista, cientista político, historiador e advogado constitucionalista. Mais detalhes, cf. em: < http://www.tcpbolivia.bo/tcp/content/estructura-org%C3%A1nica >. Acesso em 25 nov. 2016. , que é composta por uma equipe interdisciplinar e que visita as comunidades indígenas envolvidas em conflitos submetidos à jurisdição constitucional, a fim de verificar aspectos como a ancestralidade ou caráter originário do povo ou nação, seus costumes e práticas diversas.

Deste modo, a Unidade de Descolonização, analisando a comunidade onde se deflagrou o conflito, apresentou informações baseadas especialmente em aspectos antropológicos, onde ficou clara a existência pré-colonial da comunidade, com ascendência Quechua. Também foram constatadas práticas ancestrais, transmitidas ao longo das gerações, as quais incluíam inclusive, meios próprios de solução de conflitos, ou seja, um sistema jurídico pré-colonial, distinto do sistema jurídico colonizador. Dentre tais práticas, a “expulsão” constitui de fato uma espécie de sanção, sendo, todavia, reservada a casos extremos ou de reincidência, uma vez que as práticas tradicionais priorizam a restauração da harmonia comunitária, a qual não se alcança com a expulsão de seus membros, mas sim, com processos educativos e de reinserção dos envolvidos em conflitos, práticas que envolvem todos os membros da comunidade.

Assim, orientando-se pelos novos valores constitucionais, tanto de ordem política quanto cultural, visando garantir o legítimo exercício da jurisdição indígena, sobre as bases do pluralismo jurídico, descolonização, interculturalidade e outros princípios agora vigentes no país, tal sentença deu um importante passo na superação do Estado monista, pois entre seus fundamentos jurídicos e conclusões, consagrou a enunciação de que a jurisdição indígena originário campesina, constitui na Bolívia, fonte direta e primária de direitos, da mesma forma que o é, a Constituição Política do Estado boliviano.

[...] o pluralismo jurídico, gera como efeito no modelo de Estado, a consagração de um pluralismo de fontes jurídicas, aspecto que implica na superação do Estado Monista; portanto, em reconhecimento a este aspecto, tem-se que a ordem jurídica imperante no Estado Plurinacional da Bolívia está conformada por dois elementos essenciais: 1) A Constituição como fonte primeira e direta de direito; 2) as normas e procedimentos das nações e povos indígenas originário campesinos, também como fonte direta de direito (TRIBUNAL CONSTITUCIONAL PLURINACIONAL, 2012. Sem grifo no original. Tradução livre das autoras17 17 el pluralismo jurídico, genera como efecto en el modelo de Estado, la consagración de un pluralismo de fuentes jurídicas, aspecto que implica la superación del Estado Monista; en este orden, en mérito a este aspecto, se tiene que el orden jurídico imperante en el Estado Plurinacional de Bolivia está conformado por dos elementos esenciales: 1) La Constitución como primera fuente directa de derecho; y, 2) las normas y procedimientos de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, también como fuente directa de derecho. ).

Uma das consequências desta enunciação é o dever de interpretar os conflitos da jurisdição originária mediante novas técnicas, que respeitem a racionalidade própria das comunidades, que, em diversos aspectos se distingue da racionalidade colonizadora. Neste sentido, a inviolabilidade dos direitos fundamentais, constitucionalmente previstos, deve ser julgada sobre as bases da interculturalidade. Ou seja: os direitos fundamentais devem ser respeitados, mas devem também ser interpretados em contextos inter e intraculturais. Tal método de interpretação, o Tribunal Constitucional Plurinacional denominou “ponderação intercultural”, tendo adotado também a designação “controle plural de constitucionalidade”. A ponderação intercultural, especificamente empregada neste conflito, consiste em interpretar os direitos fundamentais considerando os parâmetros culturais próprios da comunidade (identificados através de perícia técnica interdisciplinar com apoio de seus técnicos) e os valores do “viver bem”.

E assim, os aspectos a serem verificados mediante a ponderação intercultural podem ser traduzidos no seguinte: coerência entre a decisão adotada e a cosmovisão ancestral da comunidade e proporcionalidade entre a decisão da comunidade e o fato que a ensejou (também considerada à luz das práticas comunitárias) e, finalmente, sendo grave a decisão, deve ser verificada a necessidade estrita da decisão18 18 Não se pode ignorar a forte influência da teoria de Robert Alexy na metodologia interpretativa adotada. . A conclusão neste caso, foi no sentido de revogar a decisão da comunidade pela expulsão do autor do furto e de sua família e tal decisão baseou-se na constatação de que a decisão afrontou o mínimo jurídico estabelecido na constituição, inclusive, interculturalmente interpretado. Isto porque, ao decidir expulsar toda a família do território indígena, a comunidade teria afrontado sua própria cosmovisão, pois não buscou restabelecer a harmonia, tampouco aplicar seus valores ancestrais e plurais supremos, como a igualdade, solidariedade, inclusão entre outros. Também foi reputada pelo Tribunal, desproporcionalidade da medida, especialmente em razão de os efeitos da decisão ultrapassarem o autor do fato e alcançarem os membros de sua família, vulnerando a “superproteção reforçada” garantida às mulheres e crianças, em qualquer jurisdição, indígena ou ordinária. Finalmente, a medida foi considerada grave, mas não foi considerada estritamente necessária.

O que foi inovador neste processo tão político quanto jurídico e cheio de significações, foi o esforço do órgão judiciário em compreender e empregar novos horizontes interpretativos. Embora não isenta de contradições, esta decisão judicial constitui um importante paradigma para que se continue avançando na concretização de um sistema de justiça descolonizado e fundado no pluralismo jurídico.

Ainda mais paradigmática que esta decisão, mostrou-se a Declaração Plurinacional 030/2014, cuja relatoria foi do magistrado Tata Gualberto Cusi Mamani, e que tratou de consulta prévia sobre aplicação de costumes ancestrais na destituição de autoridades e representantes municipais. A consulta foi ensejada por um caso concreto onde um representante político indicado por nação indígena não cumpriu com seu dever de representação. Nos termos da Constituição, tais representantes devem ser escolhidos mediante aplicação de costumes e procedimentos próprios da nação ou povo indígena e diante da negligência democrática de seu representante, a nação consulente no processo pleiteou aplicar também seus costumes próprios na destituição de representante, buscando substitui-lo por outro. O método hermenêutico adotado neste processo foi denominado “interpretação plural (interpretação intercultural)” e baseou-se igualmente em princípios constitucionais relacionados à descolonização do sistema de justiça, mas enfrentou um debate importante relacionado ao tema do pluralismo: a questão democrática no país.

Neste processo, também foi requisitada perícia técnica à Unidade de Descolonização e esta constatou a ancestralidade da comunidade enraizada na Nação Uru Chipaya, a mais antiga do continente latino-americano, com cerca de trinta e cinco mil anos, transmitindo ao longo das gerações idioma, arquitetura, agricultura, medicina e diversas outras técnicas e tradições. Assim, a cosmovisão da comunidade está relacionada à sua sabedoria milenar. Assumindo o compromisso descolonial, a decisão apoia-se no histórico das lutas indígenas na Bolívia, no princípio da plurinacionalidade – elevando ao máximo sua eficácia – e na resistência popular que tem transformado o Estado-nação, monista e colonizado. Daí, emerge um constitucionalismo pluralista e descolonizador, assim definido na decisão:

A configuração deste constitucionalismo “próprio” se reflete na transformação do Estado, que implica na passagem de um Estado Social de Direito, ancorado no Estado-nação monista, neoliberal e colonial a um Estado Plurinacional Comunitário, fundado na pluralidade e no pluralismo (TCP. Declaração Constitucional Plurinacional 030/2014. Tradução livre das autoras19 19 La configuración de este constitucionalismo “propio”, se refleja en la transformación del Estado, que involucra transitar de un Estado Social de Derecho anclado en el “Estado-Nación” monista, neoliberal y colonial hacia un Estado Plurinacional Comunitario, fundado en la pluralidad y el pluralismo. ).

A reflexão acerca de tais questões enriquece a decisão do Tribunal Constitucional Plurinacional, que não somente decide o conflito específico submetido à sua apreciação, mas também se pronuncia sobre questões fundamentais relacionadas à nova ordem jurídico-política boliviana, preenchendo-a com conteúdos progressistas e descoloniais, indicando uma transformação muito positiva na cultura jurídica.

Segundo entendimento adotado pelo Tribunal a partir de proposição da Unidade De Descolonização, a “interpretação plural” se concretiza pela interpretação “a partir das cosmovisões, práticas e conteúdos históricos, linguísticos e filosóficos emergentes de uma visão descolonizadora” (tradução livre das autoras20 20 a partir de la cosmovisión, prácticas y contenidos históricos, lingüísticos, filosóficos emergentes de una visión descolonizadora. ) e assim, impõe-se o compromisso de compreender as experiências ancestrais das quais decorrem princípios e valores das comunidades e não a aplicação retórica vazia de tais princípios. Mais que isto: impõe-se o dever de compreender a racionalidade indígena ancestral e tomá-la como horizonte interpretativo da própria constituição e de suas normas. Por isto,

A “interpretação plural” é uma ferramenta hermenêutica de caráter multidimensional que implica na abertura a novas formas de observação, que nascem fora dos marcos da “razão jurídica” colonial [...] A partir deste enfoque, a hermenêutica plural ou multidimensional (plural) não interpreta palavras e conceitos, mas sim, as vivências e experiências que nascem desde o geográfico, étnico-cultural e político. Ou seja, a fonte de interpretação é a “vivência”, a “experiência”, é o “multidimensional”. “Como se têm advertido, desde o horizonte dos povos indígena originário campesinos, os fundamentos ou os argumentos não nascem da ‘razão’, mas sim da materialidade vivente da realidade concreta; e não se baseiam em normas pré-estabelecidas, mas sim, nascem da vida, em um fato concreto, e se dinamizam continuamente (Tradução livre das autoras21 21 La “interpretación plural”, es una herramienta hermenéutica de carácter multidimensional que implica la apertura a nuevas formas de observación que nacen fuera de los marcos de la “razón jurídica” colonial […] Desde este enfoque, la hermenéutica plural o multidimensional (plural), no interpreta palabras y conceptos, sino, las vivencia y experiencias que nacen desde lo geográfico, étnico-cultural y político. Es decir, la fuente de interpretación es la “vivencia”, la “experiencia”, es lo “multidimensional”. “Como se habrá advertido, desde el horizonte de los pueblos indígena originario campesinos, los fundamentos o los argumentos, no nacen de la 'razón', sino desde la materialidad viviente de la realidad concreta; y no se basan a las normas preestablecidas, sino las normas nacen a la vida, en un hecho concreto, y se dinamizan continuamente”. ).

Da reflexão e teorização construída nesta decisão, a conclusão do Tribunal Constitucional Plurinacional se deu pela aplicabilidade de costumes originários na destituição do representante municipal: este, apesar de ter seu cargo revestido pelas formalidades da lei, conforme impõe o sistema ocidental, foi escolhido e indicado por decisão comunitária, sendo lógica aplicabilidade dos mesmos procedimentos para sua destituição.

Considerações finais

É fato que nem todos os conflitos submetidos à apreciação do Tribunal Constitucional Plurinacional são decididos mediante o mesmo compromisso democrático e popular. Assim, um estudo mais rigoroso pode dar conta de que há inúmeros desafios associados ao tema da efetivação do pluralismo jurídico. Inclusive – e muito comum –, a persistência de procedimentos formais ocidentais e sua aplicação aos temas da jurisdição indígena, inviabilizando completamente seu exercício (tais como exigência de advogados, de observância de normas processuais burocráticas e específicas do sistema ocidental entre outros). Entretanto, não pode ser desprezado o avanço que se tem verificado no exercício da justiça constitucional. Não somente na reafirmação de valores democráticos presentes na constituição, como também, no desenvolvimento progressista e descolonial de diversos instrumentos e conceitos jurídicos e políticos.

Um importante fator identificado na oscilação das sentenças está relacionado aos magistrados que exercem a jurisdição constitucional. Neste sentido, a inclusão de obrigatória de magistrados provenientes das nações indígena originário campesinas (artigo 197, I da Constituição boliviana), foi primordial para possibilitar reflexões críticas dentro do próprio sistema. Tal fato corrobora a ideia de que não bastam enunciações descoloniais para transformar a cultura jurídica, mas também é necessário, que os funcionários e atores que integram os serviços e espaços institucionais assumam convicções descoloniais, reconheçam a originalidade, valor e contribuições que a sabedoria pré-colonial pode dar à construção de uma sociedade democrática, justa e plural.

Mais que isto, o que se deve atentar, é que se houve resistência popular para garantir a nova ordem, houve também resistência das elites para não abrir mão de seus privilégios históricos. E estas tensões não se verificam somente no texto constitucional, mas se manifestam em diversos âmbitos de desenvolvimento da nova institucionalidade, inclusive no espaço estratégico da jurisdição constitucional, onde, como se viu, há avanços notáveis a se celebrar, mas também controvérsias que demonstram que a marcha descolonizadora está longe de acabar.

  • 1
    As porções do Globo que não aceitaram este novo paradigma de racionalidade foram agrupadas no Oriente, correspondendo-lhe tudo o que é atrasado e negativo. Uma ideologia que se mantém até os tempos atuais.
  • 2
    A expressão é de Darcy Ribeiro (2010RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe? Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília, DF: Editora UnB, 2010., p. 26) que defendia, em ensaio escrito nos anos setenta, que países como a Bolívia seriam palco de “profundas convulsões sociais”, onde a população indígena – que se contava aos milhões, se reconstruiria em povos autônomos, e redefiniria os quadros nacionais.
  • 3
    Para Errejón Galván (2009ERREJÓN GALVÁN, Íñigo. La Constitución boliviana y la refundación del Estado. Un análisis político. Papeles, nº 107, 2009. pp. 117-127. Disponível em: < http://www.revistapapeles.es/archivo.aspx >. Acesso em: 26 nov. 2016.
    http://www.revistapapeles.es/archivo.asp...
    , p. 120) comente sobre dispositivo incluído na lei convocatória da Assembleia Constituinte que visava conferir às minorias opositoras, que mal ultrapassavam um terço da composição, um poder de veto efetivo, e com este poder, as elites faziam “chantagens” buscando a todo custo converter o processo constituinte em uma mera reforma.
  • 4
    El texto finalmente aprobado por los y las bolivianas sufrió, sin embargo, numerosas modificaciones. Éstas deben ser consideradas como el precio que el Gobierno y las organizaciones populares que lo sustentan pagaron a la oligarquía y la derecha regionalizadas en el oriente para evitar un enfrentamiento civil como el que se anunciaba en septiembre de 2008. La oposición conseguía así sacar la discusión política del “espacio salvaje” –en la brillante metáfora de Luis Tapia–9 del poder constituyente para situarlo en el “espacio domesticado” de la negociación bilateral, donde su peso excedía con mucho el de su representatividad
  • 5
    A título de exemplificação, para demonstrar as transformações institucionais bolivianas – muitas inéditas, como o princípio da descolonização – além das já destacadas e das que ainda serão abordadas, que foram consignadas no texto constitucional, constam o reconhecimento dos diversos idiomas e valores ancestrais (artigo 5 e 8 respectivamente); a democracia comunitária (artigo 11, 26, 210 e 288 a 296, que dispõem sobre as autonomias indígena originário campesinas), que foi um dos temas mais controversos do processo constituinte em razão de seu potencial emancipador; direitos dos povos e nações indígena originário campesinos (capítulo quarto) que abrangem a titulação coletiva de seu território e o desenvolvimento de sistemas próprios inclusive da medicina tradicional (artigo 30, II e seus itens) a eleição direta para juízes e juízas do país (título III) inclusive os magistrados do mais alto Tribunal, o TCP (artigo 198) e criação do quarto poder, o poder eleitoral (título IV).
  • 6
    Segundo o advogado argentino Leonardo Tamburini (2013TAMBURINI, Leonardo. La jurisdicción indígena y las autonomías indígenas. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 249-274., p. 254), tal existência não é objeto de “reconhecimento” e isto marca uma posição importante do Pacto, segundo o qual, o termo “reconhecimento” não deveria figurar na Constituição, uma vez que se referia a uma realidade histórica inquestionável.
  • 7
    Agora o “Vivir Bien” constitui princípio jurídico, consagrado na nova Constituição da Bolívia já em seu preâmbulo, em seu artigo 8, I e II, ao tratar, respectivamente, dos princípios e valores do Estado Plurinacional Boliviano, artigo 80, ao tratar dos objetivos da educação e artigos 306, I e III, 313, ao tratar do modelo e organização econômica do Estado.
  • 8
    Na última edição de sua emblemática obra Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito, publicada após quase quinze anos depois da edição anterior, Wolkmer (2015WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015., p. 243-245) inclui uma reflexão sobre o pluralismo jurídico e o constitucionalismo andino, que conforme destaca o autor, significa a ruptura com a matriz eurocêntrica, fortalecendo a proposta de um constitucionalismo de novo tipo. O que se nota é a profícua interlocução entre a proposta teórica de Wolkmer, formulada no início dos anos noventa, e os recentes debates engendrados a partir da constitucionalização do pluralismo jurídico em especial nas constituições do Equador e da Bolívia, já que o pluralismo jurídico nestas Cartas consignados, é do mesmo tipo daquele defendido por Wolkmer.
  • 9
    Por pluralismo jurídico entendemos la coexistencia, dentro del Estado Plurinacional, de los sistemas jurídicos indígenas originarios y campesinos con el sistema jurídico occidental, en un plano de igualdad, respeto y coordinación.
  • 10
    Nos termos da Constituição, artigo 192, III: “[...] a lei de deslinde jurisdicional determinará os mecanismos de coordenação e cooperação ente a jurisdição indígena originário campesina com a jurisdição ordinária e a jurisdição agroambiental e todas as jurisdições constitucionalmente reconhecidas”
  • 11
    Se trata de una concepción de la vida alejada de los parámetros de la modernidad: individualismo, lucro, racionalidad costo-beneficio como axiomática social, la instrumentalización y objetivación de la naturaleza, la relación estratégica entre los seres humanos, la mercantilización total de las esferas de la vida humana.
  • 12
    La diversidad cultural constituye la base esencial del Estado Plurinacional Comunitario. La interculturalidad es el instrumento para la cohesión y la convivencia armónica y equilibrada entre todos los pueblos y naciones. La interculturalidad tendrá lugar con respeto a las diferencias y en igualdad de condiciones.
  • 13
    Em razão da igualdade jurisdicional estabelecida pela Constituição, onde a jurisdição indígena originário campesina submete-se somente à Constituição Política do Estado, os conflitos envolvendo tal jurisdição não podem ser resolvidos em outros âmbitos jurisdicionais, mas tão somente, no âmbito da jurisdição constitucional.
  • 14
    A designação comum no país era “justiça comunitária”, mas esta justiça, diante dos ataques contundentes da mídia comercial, associada aos parlamentares de oposição ao governo, acabou sendo fortemente associada a práticas de linchamento e penas cruéis, equiparáveis à tortura (GRIJALVA JIMENEZ; EXENI RODRÍGUEZ, 2013GRIJALVA, Augustín. EXENI RODRÍGUEZ, José Luis. Coordinación entre justicias, ese desafio. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 699-732., p. 723-724). Ao final da campanha midiática, o conceito “justiça comunitária” restou irremediavelmente desacreditado, revestido de um imaginário pejorativo e mesmo antijurídico, o que acabou por exigir sua substituição pelo conceito “jurisdição indígena”.
  • 15
    Esta disposição é importante, especialmente do ponto de vista da eficácia, pois nem sempre a jurisdição indígena originário campesina conta com os instrumentos da jurisdição ordinária (perícias, por exemplo) para solucionar seus conflitos e, eventualmente, tais instrumentos poderiam ser úteis e não somente facilitar o exercício jurisdicional, como conferir-lhe maior celeridade, eficácia e segurança.
  • 16
    Vinculada diretamente à presidência, consta na estrutura organizacional do TCP a Secretaria Técnica e de Descolonização, que abrange a “Unidade de Descolonização” e a Unidade de Justiça Indígena Originária Campesina. Ambas as unidades contam com o apoio interdisciplinar de antropólogos, sociólogo, linguista, cientista político, historiador e advogado constitucionalista. Mais detalhes, cf. em: < http://www.tcpbolivia.bo/tcp/content/estructura-org%C3%A1nica >. Acesso em 25 nov. 2016.
  • 17
    el pluralismo jurídico, genera como efecto en el modelo de Estado, la consagración de un pluralismo de fuentes jurídicas, aspecto que implica la superación del Estado Monista; en este orden, en mérito a este aspecto, se tiene que el orden jurídico imperante en el Estado Plurinacional de Bolivia está conformado por dos elementos esenciales: 1) La Constitución como primera fuente directa de derecho; y, 2) las normas y procedimientos de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, también como fuente directa de derecho.
  • 18
    Não se pode ignorar a forte influência da teoria de Robert Alexy na metodologia interpretativa adotada.
  • 19
    La configuración de este constitucionalismo “propio”, se refleja en la transformación del Estado, que involucra transitar de un Estado Social de Derecho anclado en el “Estado-Nación” monista, neoliberal y colonial hacia un Estado Plurinacional Comunitario, fundado en la pluralidad y el pluralismo.
  • 20
    a partir de la cosmovisión, prácticas y contenidos históricos, lingüísticos, filosóficos emergentes de una visión descolonizadora.
  • 21
    La “interpretación plural”, es una herramienta hermenéutica de carácter multidimensional que implica la apertura a nuevas formas de observación que nacen fuera de los marcos de la “razón jurídica” colonial […] Desde este enfoque, la hermenéutica plural o multidimensional (plural), no interpreta palabras y conceptos, sino, las vivencia y experiencias que nacen desde lo geográfico, étnico-cultural y político. Es decir, la fuente de interpretación es la “vivencia”, la “experiencia”, es lo “multidimensional”. “Como se habrá advertido, desde el horizonte de los pueblos indígena originario campesinos, los fundamentos o los argumentos, no nacen de la 'razón', sino desde la materialidad viviente de la realidad concreta; y no se basan a las normas preestablecidas, sino las normas nacen a la vida, en un hecho concreto, y se dinamizan continuamente”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2016
  • Aceito
    18 Nov 2016
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