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Corpos, identidades e violência: o gênero e os direitos humanos

Bodies, identities and violence: the gender and the human rights

Resumo

No trabalho, objetiva-se apresentar uma compreensão teórica da violência de gênero, a partir dos debates dos casos de violência decorrentes da discriminação baseada na orientação sexual ou na mudança da identidade de gênero. A ideia se justifica pelas alarmantes notícias de violência cometidas contra pessoas gays, lésbicas, travestis e transexuais. Ao se identificar situações ocorridas na nossa sociedade que tem fundamento na desigual valoração que se dá às pessoas por causa do gênero, percebe-se como a discussão da igualdade necessita ser operacionalizada em ações concretas que busquem interferir nas realidades violadoras de direitos. Pretende-se analisar a violência de gênero como violação dos Direitos Humanos, notadamente contra aqueles que são considerados desiguais, a “multidão queer”.

Palavras-chave:
identidade sexual e de gênero; violência de gênero; direitos humanos

Abstract

At work, the objective is to provide a theoretical understanding of gender violence, from the discussions of cases of violence stemming from discrimination based on sexual orientation or the change of gender identity. The idea is justified by the alarming reports of violence committed against gay, lesbian, and transgender. By identifying situations that have occurred in our society that is founded on unequal valuation that gives people because of gender, you can see how the discussion of equality needs to be operationalized into concrete actions that seek to interfere with the realities violate rights. We intend to analyze gender-based violence as a violation of Human Rights, especially against those who are considered unequal, the “queer crowd.”

Keywords:
sexual and gender identity; gender violence; human rights

1. Introdução

As alarmantes notícias de violência cometidas no Brasil contra pessoas gays, lésbicas, travestis e transexuais em virtude da discriminação em face do sexo e do gênero, pode caracterizar a ausência do Estado no seu dever de promover e proteger o fundamento dos Direitos Humanos que é a dignidade da pessoa sem nenhuma forma de distinção; mas, também revela a não concretização dos mesmos direitos nas relações entre particulares.

Ao se perceber a sexualidade como parte essencial e fundamental da humanidade, depreende-se que as pessoas precisam estar fortalecidas para performarem a sua identidade sexual e de gênero.

Para analisar de forma igualitária demandas ligadas às identidades sexuais e de gênero, há que se considerar o “direito de atitude interior”, a igualdade subjetiva, onde os seres humanos possam ser vistos por sua personalidade, sua realidade, pelo mundo a sua volta, para que se entendam suas histórias e suas demandas (NAHUM, 2000NAHUM, Marco Antonio R. (2000). Inexigibilidade de conduta diversa. Dissertação de Mestrado em Direito pela PUC/SP.).

Esse direito é mais uma das facetas da igualdade ou não desigualdade que busca tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na medida de suas desigualdades. A tentativa de simetria entre as duas dimensões – igualdade e desigualdade – dá ensejo à necessidade de justificação acentuada à segunda.

Identificando-se situações ocorridas em nossa sociedade que tem fundamento na desigual valoração que se dá às pessoas por causa do sexo e do gênero, percebe-se como a discussão da igualdade necessita ser operacionalizada em ações concretas que busquem interferir nas realidades violadoras de direitos.

Quando se analisa questões relativas à convivência em sociedade de pessoas gays, lésbicas, travestis e transexuais (ou o que a filósofa espanhola Beatriz Preciado (2011)PRECIADO, Beatriz (2011). Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. In Revista Estudos Feministas. V 19. N 1. Florianópolis jan/abr. pp. 11/20. designa “multidão queer”), uma gama variada de impedimentos baseados no gênero é detectada: a impossibilidade de manifestar a subjetividade; as agressões verbais, físicas e sexuais; a dificuldade em ter respeitado o nome social.

Tais circunstâncias podem ser justificadas pela discriminação praticada contra essas pessoas por conta de suas identidades sexuais e de gênero. Sobre esta maneira de repudiar outras opções de vida, há muito afirmou o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1976LÉVI-STRAUSS, Claude (1976). Raça e História. In LÉVI-STRAUSS, Claude Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., p. 334), que “(...) recusamos admitir o próprio fato da diversidade (...); preferimos lançar fora (...) tudo o que não se conforma à norma sob a qual se vive.” E nisso começou uma história maldita de excepicionalismos em que se vê cada vez mais a exclusão das pessoas que são consideradas “diferentes demais”.

Na antropologia levistraussiana, o verdadeiro humanismo seria aquele no qual estendemos a toda a esfera do vivente um valor intrínseco. Não quer dizer que são todos iguais. São todos diferentes. Porém, restituir o valor significa restituir a capacidade de diferir, de ser diferente, sem ser desigual. Não é por acaso que todas as minorias exigem respeito. A liberdade cresce no solo fértil da troca com o outro reconhecido como um igual e não através do aumento desigual do poder de uns sobre os outros. Se há poder por toda a parte, como gostava de lembrar o filósofo Michel Foucault (1988)FOUCAULT, Michel (1988). História da Sexualidade I - a vontade de saber. 18 ed. Rio de Janeiro: Graal., há também o desejo de viver além dele. Livres dele, ou praticantes de um poder cuja fonte e destino sejam o reconhecimento do outro no diálogo que lhe permita o direito de escolher. Nessa perspectiva, pretendemos desenvolver uma compreensão teórica da violência baseada em gênero como violação dos Direitos Humanos, praticada tanto pelas instituições quanto pelas pessoas em suas relações privadas, notadamente contra aqueles que consideram desigual, a já citada “multidão queer”.

2. Corpos e identidades, a “multidão queer”

Este se poderia dizer, é o novo contexto que baliza a emergência de diferentes maneiras de ser e de viver de homens e de mulheres. Neste terreno, é possível constatar uma “modernidade liquida”, para tomar emprestada a expressão cunhada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001)BAUMAN, Zygmunt (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar.. Para este autor, a fixidez das identidades coletivas e individuais cede lugar a uma fluidez que se aloja dentro dos indivíduos e se espalha pela sociedade.

Para chegarmos ao estado atual, já se passaram alguns anos desde a chamada “revolução sexual” ocorrida no Ocidente na década de 60 do século passado, quando as ideias de diversidade e individualidade ganham literalmente os corpos e passam a guiar novas visões e práticas em relação ao que percebemos, avaliamos e julgamos como sendo masculino e feminino ou neutro em termos de sexualidade e gênero.

Comportamentos antes tidos como sólidos ou, em outras palavras, rigidamente designados como comportamentos esperados de homens e mulheres, vão pouco a pouco se desfazendo, borrando, esgarçando, abrindo rachaduras na divisão sexual da produção e reprodução das estruturas sociais. Neste sentido, dá-se a assunção daquilo que tem sido rubricado entre nós como “multidão queer” (PRECIADO, 2011PRECIADO, Beatriz (2011). Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. In Revista Estudos Feministas. V 19. N 1. Florianópolis jan/abr. pp. 11/20.).

No que concerne à diversidade sexual, o emergente movimento gay é herdeiro direto das lutas feministas que, ao propugnarem a igualdade de direitos entre os sexos, buscaram desconstruir as desigualdades entre homens e mulheres supostamente baseadas em diferenças físicas, isto é, biológicas. Surge assim o conceito de gênero como sendo um conjunto de maneiras de perceber, designar e classificar as distinções sexuais, atribuindo-lhes um lugar e um status social.1 1 Derivado do latim genus, o termo “gênero” é habitualmente utilizado para designar uma categoria qualquer – classe, grupo ou família – apresentando os mesmo sinais de pertencimento. Em numerosos trabalhos acadêmicos contemporâneos, designa-se por “sexo” o que deriva do corpo sexuado (masculino ou feminino) e por “gênero” o que se reporta à significação sexual do corpo na sociedade (masculinidade ou feminilidade). Dentre outros textos, vale conferir: Cf. SCOTT, Joan Wallace. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In Revista Educação e Realidade. V 20. N 2. Porto Alegre, jul/dez 1995. A situação injusta que opõe homens e mulheres no mundo inteiro não é obra da natureza, mas o resultado de séculos de história humana.

Há, portanto, diversas formas de abordar relações de dominação, de igualdade ou de desigualdade entre os homens e as mulheres. Se nos situarmos no ponto de vista do corpo, o homem e a mulher são seres biológicos, e de sua diferença anatômica, depende sua posição social. O gênero, ou a identificação social de gênero, como sugerem alguns teóricos, seria então determinado em função desta diferença.

No entanto, se previlegiarmos o gênero em detrimento da diferença biológica, relativizaremos esta última e valorizaremos uma outra diferença dita cultural ou identitária, determinada pelo lugar que ocupam na sociedade. No primeiro caso, divide-se a humanidade em dois pólos sexuados – os homens de um lado, as mulheres de outro – e, no segundo, multiplicam-se ao infinito as diferenças sociais e identitárias, sustentando que os homens e as mulheres entram, do ponto de vista biológico, na categoria de um gênero sexuado, uma vez que, se ambos têm um sexo, a diferença sexual contaria menos, para a sociedade, que outras diferenças, como a cor da pele, o pertencimento de classe, os costumes, a idade, a origem dita “étnica” ou ainda o papel escolhido para representar junto a seus semelhantes.

Segundo o historiador Thomas Laqueur (2001)LAQUEUR, Thomas (2001). Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará., para quem o sexo biológico é um dado do comportamento humano tão “construído” quanto o gênero, como mencionado antes, as noções de sexo e gênero nunca se recobriram completamente, nem tão pouco se sucederam segundo uma história linear. Entretanto, o modelo da unidade foi predominante até o século XVIII. Homens e mulheres eram então classificados segundo seu grau de perfeição metafísica, a posição soberana sendo sempre ocupada por um modelo masculino assimilado a uma ordem simbólica neutra, unissexuada e de origem divina. O gênero parecia então imutável, à imagem da hierarquia do cosmo.

Ainda para este autor, em seguida e em contrapartida, o modelo da diferença sexual foi valorizado, com suas diversas representações, à medida que se sucediam as descobertas da biologia. A posição ocupada pelo gênero e o sexo tornou-se então motivo de um conflito incessante, não apenas entre os homens e as mulheres, mas entre os pesquisadores que tentavam explicar suas relações.

Do ponto de vista antropológico, seria possível classificar as sociedades humanas em duas categorias em função da maneira como pensam as relações entre o sexo social (gênero) e o sexo biológico (sexo). A cada categoria corresponde uma representação, conforme um e outro se emaranhem e se superponham, ou o gênero prevaleça sobre o sexo. 2 2 Um exemplo do que estamos comentando pode ser observado entre os Nuer, do Sudão, onde a esterilidade feminina de uma mulher casada soluciona-se com o seu retorno a família de origem, considerando-a desta feita como “homem”, podendo obter uma esposa da qual se torna o marido, sendo a reprodução biológica assegurada por um criado, mas todas as crianças segundo o que determina a lei social da filiação serão do marido. Cf. EVANS-PRINTCARD Edward. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978. )

As hierarquias baseadas em distinções sexuais naturalizantes, vêm sendo contestadas, fazendo tropeçar as convicções daqueles que acreditam que a identidade dos seres humanos – como membros de uma espécie que se reproduz sexualmente – seja decorrência inevitável do corpo físico com o qual se vêm ao mundo. Tal concepção é abalada quando se constata que não é a presença do pênis ou da vagina, determinada pelos pares de cromossomos xx e xy, que faz com que uma pessoa seja homem ou mulher. A identidade de gênero, portanto, está muito mais ligada a um sentir-se homem e/ou mulher (ou nem um nem outro, como travestis, transexuais e homossexuais) do que ao fato biológico supostamente natural que advém da sequência genética herdada do pai e da mãe. A identidade de gênero não é um dado, mas sim o resultado de uma construção que, embora realizada pelo indivíduo, lança mão dos “tijolos”, ou seja, dos elementos culturalmente disponíveis para tal.

É uma via de mão dupla, que tem um “dentro” e um “fora”. Na interioridade estão modos de perceber, de sentir, de pensar, de julgar e de decidir, ao passo que, no âmbito da exterioridade, estão condutas que operam como meios de expressão que vão além das palavras e que, em decorrência, abrangem também gestos e postura corporal, vestuário e adereços, enfim, uma exterioridade que se apreende e se compreende à medida que se manifesta para os outros.

Tais maneiras de ser não estão prontas e acabadas no ser humano, não são dadas nem muito menos inatas: são construídas. São adquiridas, lenta e gradualmente, por meio da observação e da interação com o meio social. O ato de ver-se e portar-se como homem ou mulher – em sua gama de possibilidades – é parte crucial dessa construção, remetendo à formação de identidades e à modelagem de comportamentos. O que alguém é ou o que acredita ser na dimensão de gênero e, dentro dela, na esfera da sexualidade, depende sempre de um movimento dialético: a percepção de si e a interação com outros e outras. Pode-se dizer, assim, que esta dimensão da vida não está nem dentro nem fora dos seres humanos. Está no meio, na relação.

Privilegiando a noção de que a própria sexualidade seria uma expressão de um poder inconsciente de tipo identitário, surge nos anos 90 do último século a queer theory,3 3 Queer significa bizarro. O termo foi inicialmente utilizado como injuria contra os homossexuais, antes de ser recuperado pelos pesquisadores nominando uma teoria. ou seja, uma concepção da sexualidade que rejeita ao mesmo tempo o sexo biológico e o sexo social, onde cada indivíduo pode adotar a qualquer momento a posição de um ou do outro sexo, suas roupas, seus comportamentos, suas fantasias e seus delírios.

Destacam-se nesta discussão, os trabalhos da filósofa norte-americana Judith Butler (2003)BUTLER, Judith (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., para quem a noção de gênero deve ser compreendida como um ato, um “ato performativo”. Ou seja, uma ação pública que encena significações já estabelecidas socialmente e desse modo funda e consolida o sujeito. São palavras ou gestos que, ao serem expressos criam uma realidade. Produzem uma ilusão de que existem seres homens e seres mulheres. Esta ilusão, justifica a autora, prende-se ao fato de não existir um “ser”, um “fazedor”, um “agente” por trás do ato. Para ela, performamos variados atos cotidianamente e, ao repeti-los, ajudamos a manter a divisão binária dos gêneros. Fazemos, então, coisas que são ditas como sendo “coisas de homem” ou “coisas de mulher”.

Uma das consequências de o gênero ser performativamente estabelecido é o fato de que homens e mulheres heterossexuais serem tão construídos quanto as categoriais ditas suas “cópias”. Para esta autora, não haveria gêneros originais, portanto, não haveria homens e mulheres mais “verdadeiros” do que suas supostas “cópias” – travestis, gays, lésbicas e transexuais. Neste sentido, a aparente “cópia” já não se sustenta com referência numa origem, no “verdadeiro”. A origem perde o sentido porque “homens e mulheres de verdade” têm de assumir o gênero da mesma forma: por intermédio da repetição de atos, todos os dias.

Desta forma, aquilo que acreditamos ser “homens e mulheres de verdade” encontra uma explicação na repetição e sedimentação de normas de gênero que, ao longo do tempo, terminaram por criar a ilusão de uma substância “homem” e de uma substância “mulher”, numa aparente a-historicidade. Roupas, gestos, olhares e falas definiram um conjunto de estilos corporais que aparecem como formação natural dos corpos. E, por imposição das normas de gênero, se dividem em dois sexos relacionados um ao outro.

Mas, se são apenas normas e imposições, de onde viria a suposição de um binarismo de gênero? Da existência de dois órgãos genitais distintos?

Nossa autora recusa a ideia de que o corpo expressa uma verdade fundamental sobre a sexualidade; asseverando que a sexualidade tem tanto a ver com nossas crenças, ideologias e imaginações quanto com nosso corpo físico. Portanto, os corpos não têm nenhum sentido intrínseco. Ou seja, o “corpo-homem” e o “corpo-mulher” (sem desconsiderar que há casos de intersexo) nada revelariam de verdade absoluta. Mais ainda, a não ser que consideremos a questão da reprodução, que necessita de um corpo-macho e de um corpo-fêmea para acontecer, não existe nenhuma exigência de limitar o número de gênero a dois.

Nesse sentido, é possível supor que a estas distintas morfias se poderia aplicar a terminologia “gêneros”, o que permitiria dizer que existem mais gêneros que sexos. Indo mais além, até mesmo a reprodução, tal como a conhecemos hoje, talvez em breve seja posta à prova com os avanços tecnológicos. O que, de certa forma, já o é.

O olhar de Judith Butler se desloca para estas manifestações, não como práticas de seres abjetos, não como doenças e anomalias, mas como identidades de gênero como outras quaisquer, com possibilidade legítima de existência. Reformulando o conceito de gênero para refletir sobre o que é masculino e o que é feminino, toma como paradigma justamente os seres considerados pela sociedade como abjetos: transexuais, intersexos e transgêneros de modo geral.

Suas ideias trazem à cena novos instrumentos para compreendermos a sociedade hodierna com outros/novos olhos. Os gêneros, já nossos conhecidos e aqueles que chamamos de transgêneros, ou ainda, aqueles que são menos compreensíveis porque não possuem uma coerência esperada entre sexo anatômico, identidade de gênero, desejo e prática sexual, todos se encontrariam no mesmo patamar, graças à noção de gênero como “ato performativo”, portanto.

A autora desfaz, assim, a classificação dessas identidades segundo graus de normalidade e de patologia. Considerando o “masculino” e o “feminino” não mais como substâncias originais, nem mais como essências universais; e percebendo os atributos de gênero como sendo regulados por diretrizes culturais que estabelecem uma suposta coerência entre eles, desloca o transexualismo (considerado como patologia), por exemplo, para a transexualidade,4 4 Militantes de grupos gays acreditam que vocábulos terminados como o sufixo “ismo” como transexualismo e homossexualismo, tragam consigo um ranço cultural pejorativo, associando esses vocábulos à patologias. Dessa feita, pensados como identidades de gênero e não como anomalias, foram gradativamente sendo adotados os vocábulos transexualidade e homossexualidade. ou seja, uma identidade de gênero como outra qualquer, com uma possibilidade legítima de existência.

A cultura ocidental pode-se dizer, tende a encarar a constituição do gênero e, dentro dele, a vivência e expressão da sexualidade, pelo prisma das particularidades individuais. Fazendo com isso, conforme leciona o sociólogo Norbert Elias (1994)ELIAS, Norbert (1994). A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar., emergir um velho problema sociológico: a crença na existência de um abismo instransponível separando o individual do coletivo, como se fossem duas coisas completamente distintas.

Para este autor, essa visão é fruto de nossa dificuldade em reconstruir no pensamento o que vivenciamos no cotidiano. Recorrendo à imagem proposta por Aristóteles, muitos séculos atrás, em sua tentativa de entender esta ligação: “as pedras e a casa”. Ou seja, uma casa não pode ser explicada pelo mero acúmulo ou junção das pedras que a compõem. Ela possui uma estrutura que não pode ser apreendida pela observação isolada de cada pedra. O todo é qualitativamente diferente do somatório de suas partes. Para decifrar a casa, é preciso investigar as relações das pedras entre si e delas com a totalidade. O mesmo raciocínio ou método se aplica, segundo este autor, às pessoas e às coletividades humanas.

Localizando o problema, embora não resolvendo, este autor oferece uma solução para esse impasse, permitindo-nos fugir da tentação de, alternativamente, atribuir realidade ao indivíduo num momento e, mais tarde, tomar como concreto à sociedade. Para ele, é preciso refazer nossa própria autoimagem deixando de insistir em entender a vida social pelo exame detalhado de seus membros. É preciso, ao contrário, romper com tal antinomia, desarticulando o que sociólogos chamam de “antítese cristalizada”. Pois, se não existe sociedade sem indivíduos, também é verdade que não é possível entender os seres humanos sem levar em conta os vínculos que os ligam ao social.

Considerando especificamente as masculinidades e feminilidades, urge enxergá-las como parte de um conjunto mais complexo, ou seja, as relações de gênero. O estudo destas implica buscar a lógica coletiva que, transcendendo os indivíduos, os caracteriza e os aloca como membros de um sexo, isto é, como homens e mulheres, sem nenhum – ou quase nenhum – espaço para a ambivalência.

Não raro vermos casais homossexuais performarem certo estilo de homossexualidade, que de certa forma, borra esta ambivalência, principalmente entre o grupo social de convivência próxima.

Assim, no atual momento, pedras pontiagudas parecem desencaixar-se da edificação: as alteridades de gênero (que tendem a ser vistas como apenas sexuais). São incomodas e altamente reveladoras de tensões e contradições que permeiam a sociedade, marcadas fortemente pelo conflito e pelo rigor como são tratadas. São, por assim dizer, simultaneamente, indícios e reflexões de resistência em uma das dimensões fundamentais a estruturar a vida social, funcionando segundo uma lógica própria e relativamente autônoma: a do gênero e, dentro dele, a sexualidade. Nesta esfera, ora em consonância com ela ora desafiando-a, os indivíduos parecem não ter como escapar de se localizarem e serem localizados pela rígida demarcação que separa e opõe o masculino e o feminino como terrenos estanques, eternos e imutáveis. Faz parte desse processo, com sua lógica inexorável, buscar apagar seus vestígios espaciais e temporais. Ocorre que nos tempos atuais, por serem plurais, fragmentados e dispersos os lugares e os momentos em que se desenrolam as relações sociais, sendo estas também múltiplas e intrincadas, torna-se extremamente complexa a inserção individual de seus membros. Nesta construção social, o gênero é um dos pilares.

De acordo com as teorias feministas, as relações de gênero sofreram ao longo da história um processo contínuo de significação e ressignificação que as naturalizou e, consequentemente, as cristalizou. Entretanto, a sociedade não é um todo monolítico e imutável. O gênero constitui uma “camada” do social, é parte de uma totalidade que é sempre incompleta e que, permanecendo aberta no tempo e no espaço, está sujeita a transformações. Dessa maneira, podemos ver as definições do que é ser homem ou mulher como um fluxo e não como algo imóvel.

Embora mudanças e transformações sejam inerentes à condição humana, nem sempre as aprovamos ou as adotamos, muitas vezes preferimos nos manter em um espaço sem ameaças e menos expostos a aspectos imponderáveis. Visto que, arriscar possibilidades exige uma disposição que, além de certas condições intrapsíquicas, requer boa dose de iniciativa para fazer escolhas e se responsabilizar pelas consequências. Em contrapartida à possível vulnerabilidade, a recriação de si permite posturas mais flexíveis e a abertura necessária à compreensão do que é diferente e possível.

No que concerne as diferentes formas que homens e mulheres buscam para vivenciar suas masculinidades e feminilidades, o desafio é ampliar e intensificar debates como forma de destituir ou romper o silêncio que nega e dissimula situações vigentes. É necessário um enfrentamento criterioso e denso das teorias que precisam de vastas e profundas revisões para que se possa olhar além das frestas da resistência e do preconceito e, assim, dar conta das grandes transformações que vêm sendo processadas.

3. Um olhar sobre a violência baseada no gênero: notícias e dados

Os estudos sobre os sistemas brasileiros de gênero são, desde 1970, inspirados pelo referencial antropólogo inglês Peter Fry. De lá para cá, pesquisas têm relativizado a questão dos papéis sexuais e das performances de gênero tanto entre homens e mulheres, quanto entre pessoas de mesmo sexo.

No entanto, como herança das práticas sexuais do patriarcado, percebe-se que estigmas e por consequência atos de violência baseados no gênero (das mais variadas formas), tornaram-se constitutivos de nossa sociedade e das relações sexuais e de gênero estabelecidas entre nós. Isso porque, ainda temos dificuldade para reconhecer e entender algumas performances que contrariam o modelo hegemônico, embaralhando os códigos e discursos produzidos nas zonas de conhecimento e, também de reconhecimento das identidades construídas a partir do gênero. São forças de/em germinação de novos usos possíveis da sexualidade. Para se aproximar e reconhecer essas identidades é necessário certo desnudamento que permita entrever os fluxos que essas performances baseadas no gênero arrastam consigo.

Um pioneiro trabalho que nos chama atenção para o fato de que até a linguagem cotidiana, através de suas expressões linguísticas, pode expressar e reproduzir lógicas de dominação, submissão e, portanto, de violência baseada no gênero, é o do sociólogo Michel Misse (2005)MISSE, Michel (2005). O estigma do passivo sexual: um símbolo de estigma no discurso cotidiano. NECVU/IFCS-UFERJ, Le Metro, Book Link..

Segundo ele, na língua portuguesa, através da gíria, a palavra “homem” só expressa ideias de dominação e poder (o termo pode significar, no uso cotidiano, a polícia ou o policial: “os homens estão chegando”). De outra maneira, a palavra “mulher” é comumente utilizada de forma pejorativa (um menino fraco que não quer ou não consegue fazer o que os outros meninos fazem, é chamado de “mulherzinha”) remetendo a uma ideia de fraqueza. Nesse sentido, percebe-se que o efeito substantivo do gênero “(...) é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência de gênero” (BUTLER, 2003BUTLER, Judith (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p.48).

Pensar a sexualidade diferente dos modos estratificados e padronizados com que estamos acostumados reverbera com a ideia da existência de múltiplas performances de gênero. Provoca estranhamento e nos força a sair do lugar-comum, convocando como sugere a psicóloga Elaine Bortolanza (2014BORTOLANZA, Elaine (2014). Zonas de promiscuidade: trottoir do desejo sexual. In SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R. S.; MORAES, Aparecida Fonseca (Orgs.). Prostituição e outras formas de amor. Niterói, UFF. pp. 265/286., p. 267) a passear/trottoir por espaços flutuantes, por um não lugar: “[u]m espaço à deriva, cujo desejo é não se fixar num lugar, como condição para abertura dos sexos à multiplicidade de sensações que a sexualidade nos lança”. No nosso caso, colocando o gênero para passear/trottoir com os Direitos Humanos, nos estrondos silenciosos do desejo do corpo prazeroso.

Ressalte-se que a convocação da noção de desejo e prazer não está aqui por acaso. Mas, para delimitar, assim como o filosofo Michel Foucault, a preferência/opção pela noção de prazer por ela aproximar das lutas e reivindicações políticas do desejo no contemporâneo, tendo em vista que a noção de desejo está mais demasiadamente ligada à lei e à falta, noções que constituíram, com o nascimento da psicanálise no século XIX, nossa subjetividade e, portanto, nosso modo de pensar e viver a sexualidade (DELEUZE, 1993DELEUZE, Gilles (1993). Desejo e prazer: carta de Gilles Deleuze a Michel Foucault. In PELBART, Peter; ROLNIK, Suely (Orgs.). Cadernos de Subjetividade. São Paulo: PUC-SP, v.1, n.1.).

Ao convocar a passear/trottoir gênero e os Direitos Humanos, percebe-se que a questão está entremeada na trama moral em que o desejo pulsa por novos arranjos e combinações. Trama construída por elementos diferentes, misturados sem ordem ou critério.

Tentando desemaranhar esses nós do dispositivo da sexualidade, a psicóloga Elaine Bortolanza (2014BORTOLANZA, Elaine (2014). Zonas de promiscuidade: trottoir do desejo sexual. In SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R. S.; MORAES, Aparecida Fonseca (Orgs.). Prostituição e outras formas de amor. Niterói, UFF. pp. 265/286., p.268) sugere:

(...) que o desejo sexual é uma dimensão irredutível à lógica da representação, ao contrário, para além das políticas identitárias do jogo macropolítico do direito e da norma, o desejo sexual batalha insistentemente neste entre: entre o individual e o coletivo, entre o intimo e o publico, entre o sexo e a norma, entre o êxtase e o amor, entre o eu e outro (...).

Seria este não lugar o espaço do nosso passear/trottoir com o gênero e os Direitos Humanos, em vias de provocar o encontro, numa perspectiva menos dura de “olhar” o gênero, indo além daqueles dispostos como manequins nas vitrines das identidades sexuais.

Destramar esta rede é a dimensão ética que nos possibilita a criação de mundos possíveis para aquilo que tem se tornado intolerável, pois a sexualidade colada á máquina de produção do desejo faz cambalear a todo momento a crença na moral (BORTOLANZA, 2014BORTOLANZA, Elaine (2014). Zonas de promiscuidade: trottoir do desejo sexual. In SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R. S.; MORAES, Aparecida Fonseca (Orgs.). Prostituição e outras formas de amor. Niterói, UFF. pp. 265/286., p. 268).

É inevitável adentrar na trama da moral, quando o objetivo é perquirir as injunções de gênero, aproximando-as nesse debate das questões relacionadas aos Direitos Humanos. Visto que:

(...) é nesse domínio que assistimos, há mais de dois séculos, das formas mais diversas, obscuras e complexas, a produção de técnicas de controle e captura do corpo reduzindo-o á condição de pura vida biológica (...). (BORTOLANZA, 2014BORTOLANZA, Elaine (2014). Zonas de promiscuidade: trottoir do desejo sexual. In SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R. S.; MORAES, Aparecida Fonseca (Orgs.). Prostituição e outras formas de amor. Niterói, UFF. pp. 265/286., p. 268).

Essa redução de vida humana à condição de pura vida biológica é tratada pelo filósofo Giorgio Agamben (2007)AGAMBEN, Giorgio (2007). Profanações. São Paulo: Biotempo. como “vida nua”. Esta noção seria uma forma de descrever os mecanismos de normatização da vida e os desafios próprios à ação política na sociedade contemporânea. Ou seja, nesse jogo macropolítico da sexualidade, como sugere Michel Foucault (2010)________________ (2010). Ética, sexualidade e política. In MOTTA, Manoel B. da (Org.) Ditos e Escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária., interessa-nos valermo-nos da sexualidade, dos prazeres, para chegar a uma multiplicidade de relações.

O reconhecimento e a concessão de direitos a todas as expressões de gênero seria uma possibilidade de restituição daquilo que Giorgio Agamben (2007)AGAMBEN, Giorgio (2007). Profanações. São Paulo: Biotempo. chama de “ato de profanação”. Ou seja, a possibilidade do livre uso, daquilo que foi, na esfera da religião, e mais tarde na esfera jurídica, separado do ser humano.

Este livre uso da sexualidade faz aceder incontáveis e inomináveis performances de gênero. Por sua vez, cria relações ainda sem forma e reconhecimento que remexem nos nós mais profundos de instituições e institutos jurídicos.

Assim, esse passear/trottoir pelo domínio do gênero e dos Direitos Humanos nos permite entrever que:

(...) estamos longe da produção filiativa, da reprodução hereditária, que só retém como diferenças uma simples dualidade dos sexos no seio de uma mesma espécie, e pequenas modificações ao longo das gerações. Para nós, ao contrário, há tantos sexos quanto termos em simbiose, tantas diferenças quanto elementos intervindo num processo de contágio. Sabemos que entre um homem e uma mulher passam muitos seres, que vem de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das raízes, e não se deixam compreender em termo de reprodução, mas apenas devir (DELEUZE e GUATTARI, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34., p. 19).

Nesse sentido, ao falar de gênero na seara dos Direitos Humanos (e não só nela) o diálogo interdisciplinar (como por exemplo, entre Sociologia/Antropologia e Direito) se faz necessário. Urge buscar novas “lentes” para além do “olhar congelado” nas diferenças sexuais naturalizadas homem/mulher e nas categorias heterossexual/homossexual/bissexual. É necessário vislumbrar, no Direito, a existência de outras discussões, como por exemplo, as já citadas teorias queer.

Como já explicado, as teorias queer recusam a classificação do desejo sexual nas categorias “homossexual”, “heterossexual”, “homem” ou “mulher”, afirmando que a orientação sexual e a identidade sexual e de gênero é construída social e que, portanto, não existem papeis sexuais “essenciais” ou biologicamente inscritos na natureza humana. Para seus teóricos, o desejo sexual é múltiplo e variável, demonstrando que não há uma identidade “essencial” ou “natural” construída a partir da noção de gênero. Opondo-se ao tradicional conceito de gênero, que distinguia o “heterossexual” socialmente aceito do “anômalo” (queer), esta teoria afirma que todas as identidades são igualmente anômalas (BUTLER, 2003BUTLER, Judith (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Tendo como luzeiro esse aporte teórico, vislumbra-se a existência de corpos que anunciam novas intensidades, corpos que buscam desgarrar-se das formas articuladas da sexualidade encarcerada nos órgãos sexuais, nas genitálias, nos papéis sexuais masculino/feminino.

Mas, viver isso de modo pleno em nossa sociedade ainda não nos é permitido e juridicamente garantido. Isto porque a sexualidade ainda é um campo excessivamente controlado pelas instâncias de poder do Estado. Tanto que, dado o princípio de racionalização do desejo, existe a necessidade do enquadramento em uma identidade sexual (orientação sexual), “(...) relegando a um plano inferior a valorização do prazer como intensidade ou potência de produzir novos agenciamentos” (BORTOLANZA, 2014BORTOLANZA, Elaine (2014). Zonas de promiscuidade: trottoir do desejo sexual. In SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R. S.; MORAES, Aparecida Fonseca (Orgs.). Prostituição e outras formas de amor. Niterói, UFF. pp. 265/286., p. 276).

Hoje essa problematização do desejo, restrita aos discursos dos direitos humanos – em que tanto a liberdade como a verdade serve para regular e normatizar o desejo sexual no campo macropolítico da sexualidade –, excluem de modo radical a possibilidade de atualização dos afetos do presente, o que contribui para uma ‘esterilidade política’ dessa dimensão, tendo em vista o modo como a sexualidade vem se afirmando como campo político de atuação (BORTOLANZA, 2014BORTOLANZA, Elaine (2014). Zonas de promiscuidade: trottoir do desejo sexual. In SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R. S.; MORAES, Aparecida Fonseca (Orgs.). Prostituição e outras formas de amor. Niterói, UFF. pp. 265/286., p. 278).

Hodiernamente há inumeráveis formas de convivialidade entre corpos em devir. No entanto, dado o limite do Direito e da norma, somos míopes para enxergar a criação de novas sexualidades. Isto é: “nem homens tornados mulheres nem mulheres tornadas homens, mas uma outra sexualidade dos homens e das mulheres” (BORTOLANZA, 2014BORTOLANZA, Elaine (2014). Zonas de promiscuidade: trottoir do desejo sexual. In SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R. S.; MORAES, Aparecida Fonseca (Orgs.). Prostituição e outras formas de amor. Niterói, UFF. pp. 265/286., p. 279).

A inadequação do desejo no campo do Direito e da norma gera indivíduos “acabados”, aprisionados nos sexos binários. Desurdir essas identidades rígidas seria um sinal de criação de algo novo, nos discursos “democráticos” e “liberais”, e não imposto enquanto uma verdade maior forjada em esquemas rígidos de pensar e sentir.

Em matéria veiculada no Jornal Correio Braziliense, em 30 de junho de 2015, a socióloga Berenice BentoBENTO, Berenice. Disputas de gênero (2015). In Jornal Correio Braziliense. 30 de junho., leciona que:

A teoria de gênero também traz no bojo a teoria da sexualidade, segundo a qual, a verdadeira e única possibilidade de os seres viverem suas experiências de desejo sexual seria mediante da complementaridade dos sexos. Qualquer deslocamento - homens femininos heterossexuais ou homens masculinos gays; mulheres femininas lésbicas ou mulheres masculinas heterossexuais – é inaceitável.

Segundo ela, essa teoria de gênero atrelada a essa teoria da sexualidade é incentivadora da violência. É preciso lembrar que há diversas resoluções de organismos supranacionais que reconhecem o direito à migração de um gênero para outro. Mas, diante dos argumentos reconhecidos internacionalmente acerca da importância de se pensar sobre os direitos dessa “multidão queer” (PRECIADO, 2011PRECIADO, Beatriz (2011). Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. In Revista Estudos Feministas. V 19. N 1. Florianópolis jan/abr. pp. 11/20.), capazes de transformar a cultura da violência de gênero, não raro o corpo legislativo responde: vamos fazer mais uma lei para criminalizar.

Cumpre esclarecer que a própria definição do que seja violência de gênero, no Direito, revela as amarras em que nos encontramos presos. Ao analisarmos as normativas internacionais sobre gênero, observa-se ainda a visão de que estamos tratando tão somente de papéis sociais designados a homens e mulheres biologicamente considerados. É o que se extrai, por exemplo, da obra do jurista Elder Lisboa Ferreira da Costa (2014)COSTA, Elder Lisboa Ferreira da (2014). O gênero no direito internacional: discriminação, violência e proteção. Belém: Paka-Tatu..

O autor realiza um estudo à luz do Direito Internacional e define gênero como a “[...] relação entre homens e mulheres baseada na identidade, em condições e funções e nas responsabilidades segundo têm sido construídas e definidas pela sociedade e na cultura” (COSTA, 2014COSTA, Elder Lisboa Ferreira da (2014). O gênero no direito internacional: discriminação, violência e proteção. Belém: Paka-Tatu., p. 95). Diferenciando a definição de gênero da de sexo, afirma que este último deve ser entendido como sendo “[...] tudo aquilo que se refere às disposições anatômicas e biológicas entre mulheres e homens” (COSTA, 2014COSTA, Elder Lisboa Ferreira da (2014). O gênero no direito internacional: discriminação, violência e proteção. Belém: Paka-Tatu., p. 95).

A preocupação com as definições acima se explica em virtude de que o autor busca explanar de que modo o Direito Internacional trata de uma questão correlata: a violência de gênero, que para ele “[c]onsiste na violência contra as mulheres, praticada pelo simples fato de terem nascido mulheres” (COSTA, 2014COSTA, Elder Lisboa Ferreira da (2014). O gênero no direito internacional: discriminação, violência e proteção. Belém: Paka-Tatu., pp. 221/222).

Como parte da marcação biológica para a definição de gênero, o autor somente compreende violência de gênero como violência contra a mulher e cometida somente por homens, ambos anatomicamente considerados. Segundo ele:

[...] quando se fala de violência de gênero, está-se dentro de um processo de socialização de homens e mulheres, onde a cultura patriarcal machista sustentava a supremacia dos papéis masculinos sobre os papéis femininos (COSTA, 2014COSTA, Elder Lisboa Ferreira da (2014). O gênero no direito internacional: discriminação, violência e proteção. Belém: Paka-Tatu., p. 191).

Assim, para o autor em tela, de acordo com o Direito Internacional “[...] só a mulher pode ser vítima de violência de gênero” (COSTA, 2014COSTA, Elder Lisboa Ferreira da (2014). O gênero no direito internacional: discriminação, violência e proteção. Belém: Paka-Tatu., p. 246).

No contexto jurídico brasileiro, especialmente no âmbito da aplicação do Direito Civil, também é possível notar que a marcação anatômica está presente quando se trata da concessão de direitos entre os gêneros. É o caso da alteração do nome civil relacionada com a ocorrência ou não de cirurgia de redesignação sexual.

Em artigo apresentado por Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira Smith e Mariah Torres Aleixo (2013)SMITH, Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira; ALEIXO, Mariah Torres (2013). Corpo, gênero e direito: (re) elaborando conceitos, construindo interfaces. Trabalho apresentado no I Seminário Internacional Desfazendo Gênero. Natal-RN/UFRN. 14 e 16 de agosto., durante o I Seminário Internacional Desfazendo Gênero, as autoras apontam para seguinte questão: como no país a alteração do nome somente é possível após autorização judicial, no caso das pessoas trans, tem sido observada a concessão da autorização judicial para alteração do nome civil somente após a realização da cirurgia de redesignação sexual, o que provoca outra desigualdade, pois para transmulheres a cirurgia é realizada com relativo sucesso, mas para transhomens ainda é considerada experimental, o que faz com que eles consigam a alteração do nome nos registros com menos dificuldade.

A situação apontada pelas autoras acima, ilustra adequadamente a afirmação feita por Márcia AránARÁN, Márcia (2006) A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. In Revista Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica. Rio de Janeiro. V IX. N 1. Jan/jun. pp. 49/63. de que existe uma “[...] concepção normativa dos sistemas de sexo-gênero” (2006, p. 49) que informa os discursos de poder, como o discurso jurídico5 5 Neste trabalho, fazemos uso do termo “discurso” em conformidade com os ensinamentos de Michael Foucault, para quem a expressão consiste no conjunto de práticas que, institucionalizadamente, são acionadas para se alcançar o poder, com a função de perpetuar leis, regras normas e valores socialmente aceitos. Cf. FOUCAULT, Michael. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1999. . O referido sistema foi assim denominado pela antropóloga estadunidense Gayle Rubin (2003)____________ (2003). O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo. In Cadernos Pagu. N 21. pp. 1/64., para explicar as ideias de que cada corpo possuía um sexo e um gênero correspondente, o que originava um conjunto de disposições utilizado por uma sociedade para extrair do sexo biológico a ação humana devida.

Ocorre que a construção teórica do sistema sexo-gênero também partia da visão de que existia essencialmente uma dualidade entre masculino e feminino. Cabe notar que exatamente por essa razão o referido pensamento sofre muitas críticas, pois inviabiliza a análise a partir de outras configurações entre sexo e gênero. A própria autora fez, posteriormente, “uma correção” a essa concepção nos seguintes termos:

É preciso haver um modelo que não seja binário, porque a variação sexual é um sistema de muitas diferenças, não apenas um par de diferenças conspícuas (RUBIN; BUTLER, 2003RUBIN, Gayle; BUTLER, Judith (2003). Tráfico Sexual – Entrevista. In Cadernos Pagu. N 21. pp. 157/209. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n21/n21a08.pdf>. <Acesso em 08 fev. 2015>.
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n21/n21a08....
, p. 168).

[e]stou agora argumentando que é essencial separar analiticamente o gênero da sexualidade para refletir com mais precisão a separação social existente (RUBIN, 1984RUBIN, Gayle (1984). Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. (No original: “I am now arguing that it is essential to separate gender and sexuality analytically to reflect more accurately their separate social existence”). In VANCE, Carole (Ed.) Pleasure and Danger: Exploring Female Sexuality. Paul: Routledge & Kegan. pp. 267/319., p. 270).

Assim, observamos que o sistema hierárquico e assimétrico de gênero não enfraquecerá com medidas exclusivas no âmbito do Direito Penal ou no campo do Direito Civil. É necessário pensar mecanismos para uma sociedade acolhedora de todas as diferenças humanas. Esse é compromisso ético que deve/deveria orientar o Direito e a norma no contemporâneo.

4. Violência de gênero como violação dos Direitos Humanos

É possível afirmar a violência de gênero como uma forma de violação dos Direitos Humanos, posto que tais direitos são “um conjunto de faculdades e instituições” (PÉREZ LUÑO, 2001PÉREZ LUŇO, Antonio-Henrique (2001). Derechos humanos, estado de derecho y constitución. Madrid: Tecnos., p. 48) componentes de normas jurídicas construídas nacional e internacionalmente, variáveis na história, cuja finalidade é a efetivação da dignidade humana, da igualdade e da liberdade.

O principal fundamento sobre o qual os Direitos Humanos se constroem na atualidade é a noção de dignidade humana, que se expressa em “condições adequadas de existência” (RAMOS, 2005RAMOS, André de Carvalho (2005). Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar., p. 20) e na possibilidade de participar ativamente da vida em comunidade, não se reportando exclusivamente ao caráter positivado desses direitos.

Portanto, deve-se compreender que a expressão Direitos Humanos congrega a totalidade dos direitos inerentes à condição de ser humano, necessários à existência digna, que permita a perfeita realização do indivíduo, sendo a construção de normas que reconheçam esses direitos uma estratégia de afirmação e efetivação.

Em que pese o reconhecimento da importante atuação da comunidade internacional no reconhecimento e proteção da dignidade humana, com destaque para os últimos sessenta anos, cumpre esclarecer que o arcabouço teórico e normativo que embasou a construção dos Direitos Humanos, conforme modernamente compreendidos, foi estruturado a partir da visão heteronormativa, o que torna imprescindível a reinterpretação de tais direitos para o estabelecimento da igualdade de gênero (TELES, 2006TELES, Maria Amélia de Almeida (2006). O que são direitos humanos das mulheres. São Paulo: Brasiliense. ).

A conduta adotada de “permitir” que a norma e os comportamentos internos sejam afetados pelos parâmetros internacionais de proteção da dignidade humana, a qual é observada em face da elaboração de novos direitos que, no decurso do tempo, gradativamente, incorporam-se aos sistemas jurídicos diversos, em culturas diferentes, reflete a força expansiva dos Direitos Humanos, que influencia a construção e recontrução dos ordenamentos jurídicos dos diversos países e propicia o surgimento dos chamados “novos direitos”.

Nas palavras do jurista Cesar Luiz Pasold (2005)PASOLD, Cesar Luiz (2005). Novos direitos: conceitos operacionais de cinco categorias que lhes são conexas. In Revista Sequência. N. 50. jul. pp. 225/236., os “novos direitos” podem ser compreendidos a partir das lições do filósofo Norberto Bobbio (1992)BOBBIO, Norberto (1992). A Era dos Direitos. 5 ed. Rio de Janeiro: Campus., para quem a ampliação do rol de bens que se entende como devidos de proteção e a consideração da vida humana em sua concretude são as grandes motivações para o surgimento de “novos direitos”.

Assim, tais direitos merecem incorporação ao quadro jurídico existente em face das novas demandas que emergem na sociedade e não podem ser desconsideradas em face da proibição de realizar discriminações entre pessoas.

É o caso das demandas por direitos que fazem as pessoas LGBT. Suas necessidades concretas e os imperativos jurídicos que lhes garantem dignidade impõem à sociedade e ao Estado o empreendimento de esforços que ponham em marcha as mudanças necessárias para o exercício de cidadania.

Porém, a mudança dos pressupostos que informam na atualidade a aplicação e interpretação das normas que garantem direitos, bem como o senso comum, facilitaria a realização da vida das pessoas LGBT, que não precisariam lutar pelo direito de serem o que são, pela reconstrução e exposição pública de seus corpos e identidades.

Importante é frisar o ensinamento do jurista espanhol Antonio-Enrique Pérez-Luño (2006)_____________________________ (2006). La tercera generación de derechos humanos. Navarra: Aranzadi., o qual afirmou há alguns anos algo que é absolutamente verdade neste momento político brasileiro: comparativamente, em nenhum outro momento da humanidade sentiu-se tão fortemente a necessidade de reconhecer os valores e direitos das pessoas como universais.

Nesse sentido, os muitos registros de violências praticadas contra mulheres e pessoas LGBT devem ser encarados como violência baseada na discriminação de gênero, que não são apenas aquelas praticadas pelas pessoas físicas (como lesões corporais, agressões físicas e verbais),6 6 Cf. BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica 2012. Disponível em <http://www.sdh.gov.br/noticias/2013/junho/numero-de-denuncias-de-violencia-homofobica-cresceu-166-em-2012-diz-relatorio>. < Acesso em 05 set. 2015>. mas também aquelas praticadas pelas instituições públicas.

A exemplo, tomamos as ações estatais que dizem respeito à construção de dados sobre crimes provocados pela discriminação de gênero, que no Brasil é denominada de transfobia, lesbofobia e homofobia pelos movimentos sociais LGBT, os quais, juntamente com a Trangender Europe, denunciam que o país é o recordista mundial em assassinatos de pessoas transexuais, informação confirmada por Roger Raupp Rios e Flávia Piovesan (2003, p. 155), que alertam para o fato “[...] de que a cada dois dias uma pessoa é assassinada no Brasil em função de sua orientação sexual”.

Todos os militantes da causa LGBT no país alertam para a ausência de dados oficiais que tratem desses tipos de crime. No entanto, uma busca por dados oficiais que reportem a situação é dificultosa, uma vez que no país os crimes relacionados à transfobia, ou ao ódio a pessoas LGBT em geral, ou mesmo que analisem as ocorrências de crimes de modo a cruzar com a identidade de gênero, não são quantificados.

A confirmação do argumento se dá com simples pesquisa aos sites dos órgãos de segurança pública. A título de exemplo, tem-se o balanço de ocorrências policiais no ano de 2013 no Estado do Pará, publicado no site da Secretaria de Segurança Pública [www.segup.pa.gov.br], o qual aponta o número de crimes registrados, apresenta uma tabela de tipificação, mas não analisa nenhum dos crimes colacionados com dados como sexo, idade, cor da pele e identidade de gênero. Assim, somente é possível saber das ocorrências, mas não se pode identificar quem são as vítimas.

No caso do site da Secretaria Nacional de Segurança Pública [www.portal.mj.gov.br], a situação é ainda pior, porque não se localiza nenhuma pesquisa indicativa acerca da análise das ocorrências de crime em relação à população LGBT no país.

Porém, desde 1999 são publicados dados sobre violências perpetradas contra a população LGBTT no Brasil (GRUPO GAY DA BAHIA7 7 Cf. MOTT, Luiz. Violação dos Direitos Humanos e Assassinato de Homossexuais no Brasil, Salvador: Grupo Gay da Bahia, 1999. , SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA)8 8 Cf. BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica 2012. Op. cit. Disponível em <http://www.sdh.gov.br/noticias/2013/junho/numero-de-denuncias-de-violencia-homofobica-cresceu-166-em-2012-diz-relatorio>. < Acesso em 05 set. 2015>. , os quais apontam que a realidade da vida social desafia o respeito à igualdade e a não discriminação, tanto pelas esferas de governo quanto pelos membros da sociedade considerados nas suas relações privadas. Desta feita, são valorizadas ações que objetivem divulgar na comunidade informações que gerem respeito às múltiplas identidades sexuais e de gênero, tais como os planos nacionais e estaduais de direitos humanos, o programa Brasil sem Homofobia e as ações pontuais nas secretarias de educação e segurança pública.

Assim, é possível inferir que a ausência de dados oficiais acerca dos crimes praticados contra a população LGBT no Brasil é consequência da invisibilidade em que são colocadas e que provoca inúmeras violações de Direitos Humanos, tanto por parte das instituições como por parte da comunidade em geral.

5. Algumas considerações finais

No campo do Direito, a discussão encontra amparo dentro do conceito de igualdade previsto na Constituição Federal de 1988 e nos ordenamentos jurídicos internacionais, o que implica no significado de que qualquer pessoa é detentora de direitos e deveres, independente de qualquer característica que possua. No caso do presente estudo, independentemente de suas identidades sexuais e de gênero. Afinal:

[...] o que se requer do direito constitucional, na academia e na prática: compromisso com a democracia e fazer valer os direitos fundamentais, especialmente onde eles enfrentam preconceito, costumes e tradições arraigados (RIOS; RESADORI, 2015RIOS. Roger Raupp; RESADORI, Alice Hertzog (2015). Direitos humanos, transexualidade e “direito dos banheiros”. In Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro: UERJ. V 6. N 12. pp. 196/227., p. 218).

A Constituição Federal/88 identifica a igualdade como um dos fundamentos da República e como pressuposto de todos os direitos e garantias individuais e coletivas fundamentais e dos demais direitos que delas são derivados. Daí que um objetivo fundamental do país é “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, CF/88). Tal previsão − quando lida em correlação com a previsão genérica do artigo 5º do mesmo diploma legal, o qual prevê que todas as pessoas são iguais perante a lei − leva à adequada interpretação de que as identidades sexuais e de gênero são protegidas constitucionalmente como direitos fundamentais, ou seja, como aspectos indispensáveis para a vida com dignidade.

Desta forma, o que se pretende com a afirmação da igualdade é buscar “não desigualdade”, sendo necessário averiguar um sentido mais concreto e claro para a expressão. O termo “não desigual” pode adotar o sentido de “igual”, ou de “equânime”, “semelhante”, “idêntico”, “análogo”, “equivalente”, “correspondente”, “proporcional” ou “regular”. Pode-se dizer, valorativamente, que a “não desigualdade” implica em olharmos a verdade das coisas a nossa volta, implica em saber a exata ou viável medida das coisas. Ainda que essas afirmações nos aparentem uma mera abstração de conceitos jurídicos, a verdade sobre essa operação intelectual é chegada num resultado de adequação satisfatório entre Direito e a vida de cada um/a de nós.

O dever de fundamentação e preocupação de um tratamento igual aos desiguais pesa sobre os necessários desvios sobre a igualdade. Ao regular as desigualdades em vista de criar igualdades, devemos nos ater ao fato de iniciar o processo dentro de uma ordem que é natural e de fácil apreensão e a partir daí operar o Direito de modo a estabelecer classificações diferenciadas e “artificiais”, sendo que essas é que devem sempre ser bem fundamentadas (SANCHÍS, 1995SANCHÍS, Luis Prieto (1995). Igualdad y Minorías. Revista del Instituto Bartolomé de las Casas - Derechos y Libertades. Madrid.).

Como já argumentado, ao identificarmos situações ocorridas em nossa sociedade que tem fundamento na desigual valoração que se dá às pessoas por causa do gênero, percebemos como a discussão da igualdade necessita ser operacionalizada em ações concretas que busquem interferir nas realidades violadoras de direitos.

Quando analisamos as questões relativas à convivência em nossa sociedade de pessoas gays, lésbicas, travestis e transexuais, uma gama variada de impedimentos baseados no gênero é detectada: a impossibilidade de manifestar a subjetividade; as agressões verbais, físicas e sexuais; a dificuldade em ter respeitado o nome social. Tais circunstâncias podem ser justificadas pela discriminação praticada contra essas pessoas por conta de suas identidades sexuais e de gênero (RIOS; PIOVESAN, 2003 e SMITH, 2013RIOS. Roger Raupp; PIOVESAN, Flávia (2003). A discriminação por gênero e por orientação sexual. In BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Brasília. Série Cadernos do Centro de Estudos Judiciários/Seminário Internacional as Minorias e o Direito. V 24. 2003. pp 155/175.).

Grave também é a situação das decisões judiciais prolatadas com base na discriminação de gênero. Toma-se como exemplo a questão relativa à alteração do nome nos registros oficiais. Muitos magistrados apenas concedem tal modificação após a comprovação da realização da cirurgia de transgenitalização, o que no caso das transmulheres é ainda mais rigoroso, pois para transhomens a implantação do pênis é reconhecida pelos juízes e juízas como cirurgia experimental, o que “facilita” a decisão em relação a eles.

Ressalte-se que as decisões judiciais favoráveis à reinterpretação da igualdade também jogam papel importante na garantia da construção de uma sociedade mais justa e solidária, especialmente nos casos do reconhecimento da união homoafetiva, que teve impactos sobre o Direito de Família, adoções e no direito à sucessão.

Mas as ações ainda sofrem muita resistência do conservadorismo moral que afeta a interpretação e aplicação do Direito à igualdade, naturalizada que é a convicção de que a biologia define quem se é e quem não se pode ser. Por isso, as manifestações coletivas de pessoas LGBT tem sido importantes momentos para fazer a sociedade “enxergar” o gênero.

  • 1
    Derivado do latim genus, o termo “gênero” é habitualmente utilizado para designar uma categoria qualquer – classe, grupo ou família – apresentando os mesmo sinais de pertencimento. Em numerosos trabalhos acadêmicos contemporâneos, designa-se por “sexo” o que deriva do corpo sexuado (masculino ou feminino) e por “gênero” o que se reporta à significação sexual do corpo na sociedade (masculinidade ou feminilidade). Dentre outros textos, vale conferir: Cf. SCOTTSCOTT, Joan Wallace (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In Revista Educação e Realidade. V 20. N 2. Porto Alegre, jul/dez., Joan Wallace. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In Revista Educação e Realidade. V 20. N 2. Porto Alegre, jul/dez 1995.
  • 2
    Um exemplo do que estamos comentando pode ser observado entre os Nuer, do Sudão, onde a esterilidade feminina de uma mulher casada soluciona-se com o seu retorno a família de origem, considerando-a desta feita como “homem”, podendo obter uma esposa da qual se torna o marido, sendo a reprodução biológica assegurada por um criado, mas todas as crianças segundo o que determina a lei social da filiação serão do marido. Cf. EVANS-PRINTCARDEVANS-PRINTCARD Edward (1978). Os Nuer. São Paulo: Perspectiva. Edward. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978. )
  • 3
    Queer significa bizarro. O termo foi inicialmente utilizado como injuria contra os homossexuais, antes de ser recuperado pelos pesquisadores nominando uma teoria.
  • 4
    Militantes de grupos gays acreditam que vocábulos terminados como o sufixo “ismo” como transexualismo e homossexualismo, tragam consigo um ranço cultural pejorativo, associando esses vocábulos à patologias. Dessa feita, pensados como identidades de gênero e não como anomalias, foram gradativamente sendo adotados os vocábulos transexualidade e homossexualidade.
  • 5
    Neste trabalho, fazemos uso do termo “discurso” em conformidade com os ensinamentos de Michael Foucault, para quem a expressão consiste no conjunto de práticas que, institucionalizadamente, são acionadas para se alcançar o poder, com a função de perpetuar leis, regras normas e valores socialmente aceitos. Cf. FOUCAULT, Michael________________ (1999). A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola.. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
  • 6
    Cf. BRASILBRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em <12 Nov. 2014>.. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica 2012. Disponível em <http://www.sdh.gov.br/noticias/2013/junho/numero-de-denuncias-de-violencia-homofobica-cresceu-166-em-2012-diz-relatorio>. < Acesso em 05 set. 2015>.
  • 7
    Cf. MOTT, LuizMOTT, Luiz (1999). Violação dos Direitos Humanos e Assassinato de Homossexuais no Brasil, Salvador: Grupo Gay da Bahia.. Violação dos Direitos Humanos e Assassinato de Homossexuais no Brasil, Salvador: Grupo Gay da Bahia, 1999.
  • 8
    Cf. BRASIL_______ (2012). Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica. Disponível em <http://www.sdh.gov.br/noticias/2013/junho/numero-de-denuncias-de-violencia-homofobica-cresceu-166-em-2012-diz-relatorio>. < Acesso em 05 set. 2015>.
    http://www.sdh.gov.br/noticias/2013/junh...
    . Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica 2012. Op. cit. Disponível em <http://www.sdh.gov.br/noticias/2013/junho/numero-de-denuncias-de-violencia-homofobica-cresceu-166-em-2012-diz-relatorio>. < Acesso em 05 set. 2015>.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2016
  • Aceito
    13 Jul 2016
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