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Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito

Primitive accumulation, expropriation and legal violence: expanding the borders of critical sociology of law

Resumo

O presente artigo tem por objetivo indicar uma possibilidade de ampliação das condições de compreensão da reprodução sócio-jurídica do capitalismo na sociologia crítica do direito. Primeiramente, demonstro que o giro antiprodutivista (de tipo habermasiano) renuncia a esse projeto epistemológico, conduz a sociologia crítica do direito ao liberalismo-idealismo e, com isso, produz um déficit analítico na compreensão da organização jurídica das estruturas fundamentais da acumulação. Em seguida, pretendo indicar que a crítica do direito (de tipo pachukaniana) oferece uma solução a esse impasse, ao reconhecer que o dever ser já se encontra realizado nas estruturas de desigualdade. Sustento, todavia, que tal crítica não consegue esgotar as possibilidades de se conhecer a reprodução sócio-jurídica do capitalismo, pois se limita a apreender a posição do direito apenas no momento da troca de mercadorias. Para além desse momento, no entanto, o desenvolvimento capitalista, pressionado por situações de sobreacumulação, possui uma fase expansionista dirigida à tomada de espaços não-mercantilizados, aonde se pode deixar fluir o excedente, abrindo um novo ciclo de valorização. Essa fase será analisada por meio da noção de repetição permanente da acumulação primitiva e da teoria da expropriação capitalista do espaço. Minha hipótese é a de que, nessas condições, o direito aparece como violência jurídica explícita e prescrição expressa da desigualdade. Sob essas estruturas, afirmo que o direito opera com base em: discursos jurídicos de othering (direitos humanos), regimes de privatização (parcerias público-privadas) e direito penal (criminalização do protesto e da pobreza). Ao final, argumento que o conceito de acumulação primitiva e a teoria da expropriação capitalista do espaço têm potencial de fazer a sociologia crítica do direito avançar no conhecimento da reprodução sócio-jurídica do capitalismo.

Palavras chaves:
capitalismo; violência jurídica; acumulação primitiva; teoria da expropriação do espaço

Abstract

The present article aims to indicate a possibility of expanding the conditions of understanding of the socio-legal reproduction of capitalism in the critical sociology of law. First I demonstrate that the antiproductivist turn (following the Habermasian form) resigns this epistemological project: It leads the critical sociology of law to the liberalism-idealism and thereby produces an analytical deficit in understanding the legal organization of the fundamental structures of accumulation. Next, I suggest that the critique of law (following a Paschukanian form) offers a solution to this deadlock by recognizing that the “ought to be” (Sollen) is already achieved in the structures of inequality. I argue however that such criticism can not exhaust the possibilities of understanding the socio-legal reproduction of capitalism, since it embraces the position of law only at the moment of the exchange of commodities. Nevertheless, beyond this momentum the capitalist development, pressured by situations of overaccumulation, has an expansionary phase oriented to the taking of non-commodified spaces, where the surplus can flow, opening a new cycle of valorization. This phase will be analyzed through the notion of permanent repetition of primitive accumulation and the theory of Landnahme. My hypothesis is that, under these conditions, the law appears as explicit legal violence and prescription of inequality. Considering these structures, I state that law operates on the basis of: legal discourses of othering (human rights), privatization regimes (public-private partnerships) and criminal law (criminalization of protest and poverty). Finally, I argue that the concept of primitive accumulation and the theory of Landnahme have the potential to make critical sociology of law to advance in the understanding of the socio-legal reproduction of capitalism.

Keywords:
capitalism; legal violence; primitive accumulation; theory of space expropriation

1. Introdução 1 1 A primeira versão deste artigo apareceu como “Kapitalistische Landnahme: Eine Erweiterung der kritischen Rechtssoziologie” na Série Working Paper 3/17 do DFG -Kollegforscher_innengruppe Postwachstumsgesellschaften. Gostaria de agradecer a Benjamin Seyd, Emma Dowling, Florian Butollo, Karina Becker, Klaus Dörre, Ligia Fabris Campos, Maria Backhouse e Yannick Kalff pelas críticas e sugestões, que recebi durante minha estadia como Senior Fellow no Kolleg Postwachstumsgesellschaften da Friedrich-Schiller-Universität Jena, na Alemanha, no inverno de 2017. Gostaria de agradecer, ainda, a Carolina Vestena, Cesar Mortari Barreira, Lena Lavinas, Manuela Boatca, Paulo Fontes, Sergio Costa e Virginia Fontes por comentários essenciais para o desenvolvimento da presente pesquisa.

A crítica social sempre encontrou dificuldades para conhecer o fenômeno jurídico. Na verdade, seu principal obstáculo tem sido um desejo (que de tempos em tempos reaparece) de esboçar um programa normativo para o direito, que fosse capaz de induzi-lo como meio de emancipação, transformação social ou bastião das classes oprimidas. Esse desejo tem, por diversas oportunidades, gerado sérios déficits analíticos e descritivos nas formulações da sociologia crítica do direito.

Tais déficits podem ser encontrados tanto em um nível macro quanto microssociológico. Em relação ao primeiro, o desejo por um programa normativo tem levado a sociologia crítica do direito a não conseguir perceber a ordem jurídica enquanto uma das estruturas fundamentais do capitalismo. Em relação ao segundo nível, ele tem desprovido a sociologia crítica do direito de instrumentos analíticos para compreender as reestruturações regulatórias promovidas nas diversas fases da acumulação do capital. Esse último problema fica ainda mais claro quando os diferentes programas normativos são confrontados com as transformações jurídicas e institucionais do neoliberalismo. Indiferente a isso, o desejo permanece, todavia, contrafactual e se converte em idealismo jurídico.

Tomarei esse desejo como o ponto de partida para investigar uma das principais questões epistemológicas da sociologia crítica do direito: a possibilidade (limites e extensão) de se conhecer a reprodução sócio-jurídica do capitalismo. Essa investigação será conduzida a partir de um diálogo com o debate sociológico desenvolvido em língua alemã. Outras referências teóricas e empíricas (como, por exemplo, David Harvey e Edward Palmer Thompson) serão todavia mencionadas, mas apenas no âmbito desse diálogo. 2 2 Essa escolha se deu simplesmente porque, como assinalado na primeira nota de rodapé, o presente artigo foi originariamente formulado para intervir no debate alemão. Isso me levou a privilegiar a literatura oriunda desse debate e desconsiderar trabalhos fundamentais sobre acumulação primitiva, como, por exemplo, os de Ellen Wood, Massimo de Angelis, Virginia Fontes e os teóricos dependentistas. Trata-se, no entanto, do primeiro passo de uma pesquisa em desenvolvimento, cujas próximas etapas deverão incorporar as lacunas existentes.

Em primeiro lugar, pretendo mostrar, a partir de uma crítica à teoria normativa do direito de Jürgen Habermas, que o desejo acima mencionado renunciou a oferecer uma resposta à questão epistemológica citada e, com isso, abandonou o campo da crítica social em favor do liberalismo jurídico (Item 2). Em seguida, analisarei de que forma a sociologia crítica do direito reagiu a esse risco por meio da crítica à forma jurídica. Com essa última, foi possível reconhecer não apenas que o dever ser já se encontra realizado nas estruturas de desigualdade do capitalismo, mas também a relação entre forma jurídica e forma da mercadoria. Pretendo sustentar, todavia, que a crítica à forma jurídica não esgota as possibilidades de se conhecer a reprodução sócio-jurídica do capitalismo (Item 3).

Meu objetivo é demonstrar que, ao lado da crítica à forma jurídica, a teoria da acumulação primitiva tem um enorme potencial em fazer avançar a sociologia crítica do direito em sua questão epistemológica fundamental (Item 4). Para isso, pretendo reconstruir os principais autores dessa teoria (repito: no âmbito do debate alemão) e explicar as condições de desenvolvimento do capitalismo com base em uma repetição permanente dos processos de acumulação primitiva. Em seguida, observarei a configuração jurídica dessa etapa capitalista expansionista. Minha hipótese é que, nessas condições, o direito aparece como violência jurídica explícita e prescrição expressa da desigualdade. Enquanto tal, ele é constituído pelos discursos jurídicos (sobretudo, os de direitos humanos) que produzem othering, pela ordem jurídica da privatização (principalmente, as parcerias público-privadas) e pelas técnicas repressivas do direito penal (que criminalizam os movimentos sociais e a pobreza por meio, por exemplo, de legislações contra o financiamento ao terrorismo).

2. Direito e capitalismo: o caráter idealista da crítica antiprodutivista

Não é recente o debate sobre os efeitos produzidos na teoria crítica como um todo pelo chamado “giro antiprodutivista” do pensamento social desde os anos 1970 (entre outros, Antunes 2013Antunes, R. (2013): The Meanings of Work: Essay on the Affirmation and Negation of Work. Leiden/Boston: Brill: 2013.: 112; Dörre/Sauer/Wittke 2012Dörre, K./ Sauer, D./Wittke, V. (2012): Kapitalismustheorie und Arbeit. Neue Ansätze soziologischer Kritik. Frankfurt a.M: Campos.: 13ss.; Rüddenklau 1982Rüddenklau, E. (1982): Gesellschaftliche Arbeit oder Arbeit und Interaktion?: Zum Stellenwert des Arbeitsbegriffes bei Habermas, Marx und Hegel. Frankfurt a. M.: Lang.; Streeck 2013Streeck, W. (2013): “Vom DM-Nationalismus zum Euro-Patriotismus. Eine Replik auf Jürgen Habermas”. In Demokratie oder Kapitalismus? Europa in der Krise, Blätter Verlagsgesellschaft. Berlin: Blätter Verlagsgesellschaft. pp. 87–104.). Como motor dessa reorientação, especulações a respeito de uma possível crise da sociedade do trabalho e de suas energias utópicas começaram a se tornar diagnósticos dominantes no interior das próprias teorias críticas (Habermas 1973______. (1973): Legitimationsprobleme im Spätkapitalismus. Frankfurt a. M.: Suhrkamp. e 1985______. (1985): “Die Krise des Wohlfahrtsstaates und die Erschöpfung utopischer Energien”. In Habermas, J. Die Neue Unübersichtlichkeit. Frankfurt a.M.: Suhrkamp.). Tais diagnósticos sustentavam-se, entre outras, em interpretações que atribuíam ao advento do Estado de Bem-Estar o caráter apaziguador da luta de classes e se desenvolveram com base em leituras sobre a chamada sociedade pós-industrial, que teria levado à formação de uma massa supérflua por meio da substituição via avanço tecnológico do trabalho vivo pelo morto (Bell 1973Bell, D. (1973): The Coming of Post-Industrial Society: A Venture in Social Forecasting. New York: Basic Books.; Gorz 1983Gorz, A. (1983): Abschied vom Proletariat. Jenseits des Sozialismus. Reinbek: Rowohlt.). Essas especulações levaram uma parcela significativamente relevante da crítica social a destituir a centralidade do trabalho como categoria sociológica fundamental e a realizar um progressivo abandono do conflito socioeconômico como objeto de investigação (Offe 1989______. (1989): Arbeitsgesellschaft. Strukturprobleme und Zukunftsperspektiven. Frankfurt a.M.: Campus.).

Não se trata aqui de reconstruir todas as variações teóricas que emergiram do giro antiprodutivista. O mais importante é observar que, quando se ocupa do fenômeno jurídico, esse giro tende a se desdobrar em uma concepção idealista, que é incapaz de apreender os mecanismos de reprodução do direito e seu papel na sociedade capitalista. Para demonstrar essa afirmação, analisarei aquela que, originária da teoria crítica, se tornou uma das mais influentes análises sobre o direito nas últimas décadas. Refiro-me à teoria de Habermas.3 3 A crítica ao modelo habermasiano (descrita nos parágrafos seguintes) foi anteriormente desenvolvida em Gonçalves 2014.

2.1. Centralidade do direito na crítica antiprodutivista

Do ponto de vista dessa teoria, o giro antiprodutivista levou à formulação de um conceito de sociedade bipartida, em que tanto a categoria trabalho quanto o conflito socioeconômico foram reduzidos a uma mera ameaça destrutiva àquilo que seria o espaço de sociabilidade, agora definido apenas por interações comunicativas.

Com isso, Habermas propõe uma reorientação da crítica social, dirigindo suas atenções para a então chamada esfera da interação, âmbito que seria formado apenas por ações comunicativas mediadas simbolicamente, que se orientam segundo normas compreendidas por mais de um sujeito agente (Habermas 1968Habermas, J. (1968): Erkenntnis und Interesse. Frankfurt a.M: Suhrkamp., 77ss). A referência para essa mudança teórica, como se sabe, é a distinção interação/trabalho que, no transcorrer da obra de Habermas, se transformou na distinção sistema/mundo da vida.

Para Habermas, o advento da sociedade moderna implicou a emergência de uma estrutura social altamente diferenciada em funções, competências, interesses etc. Tais diferenças são, porém, compreendidas nos termos da oposição entre mundo da vida e sistema. Tal oposição, conforme Habermas (1988______. (1988): Theorie des kommunikativen Handelns. Band. II. Frankfurt a.M: Suhrkamp.: 258), é um processo social segundo o qual o avanço da racionalização e da diferenciação levou ao desacoplamento de ambas as esferas, que passaram a se distinguir simultaneamente uma da outra. A sociedade moderna é, assim, dividida em dois âmbitos. De um lado, o mundo da vida, horizonte do agir comunicativo livre de coação e pressão, que se estrutura por meio da socialização das personalidades individuais (processos de aprendizagem que constituem a identidade pessoal necessária à interação), da reprodução cultural (repositório de experiências utilizado pelos atores para a interpretação de seus diversos contextos) e da integração social (conjunto de normas legítimas que viabilizam a solidariedade), onde estão ancoradas a esfera privada, a sociedade civil e a esfera pública (Habermas 1988______. (1988): Theorie des kommunikativen Handelns. Band. II. Frankfurt a.M: Suhrkamp.: 208 ss). De outro, se encontra o sistema, espaço de reprodução de ações instrumentais e estratégicas orientadas por uma racionalidade com respeito aos fins, em que operam os meios dinheiro e poder (Habermas 1998______. (1998): Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt a. M.: Suhrkamp.: 428).

Toda a formulação habermasiana se desenvolve em torno da questão da disrupção do mundo da vida pela expansão do sistema. O problema está no desequilíbrio de caráter patológico pela expansão colonizadora do sistema sobre o mundo da vida (Habermas 1988______. (1988): Theorie des kommunikativen Handelns. Band. II. Frankfurt a.M: Suhrkamp.:445–594). Essa ideia de desequilíbrio foi desenvolvida no transcorrer da obra de Habermas por meio do problema teórico das condições da integração social (Schuartz 2002Schuartz, L. F. (2002): Die Hoffnung auf radikale Demokratie: Fragen an die Theorie des kommunikativen Handelns. Bern: Lang.).

Para Habermas (1998, 42), em função da superação da pré-modernidade pelo desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), a integração social tornou-se dependente exclusivamente de processos de entendimento e discursivos. Esses processos exigem normas de coordenação que, ao não poderem recorrer a um conteúdo moral unitário como na sociedade pré-moderna, aumentam o risco de uma diferenciação interna ao mundo da vida entre sistema e mundo da vida, o que gera interações estratégicas e dissenso no próprio mundo da vida que, como ideal regulativo, deveria visar justamente o contrário, isto é, deveria visar o consenso. E mais: como a modernidade também depende do sistema que passa a se desacoplar do mundo da vida, libera uma escala ainda maior de ações estratégico-instrumentais, cujo resultado é a difusão social do dissenso. Para resolver esse problema da integração social, Habermas coloca o direito em cena.

Nas palavras do autor, o direito permite a “regulação normativa de interações estratégicas sobre as quais os atores se autocompreendem” (Habermas 1998______. (1998): Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt a. M.: Suhrkamp.: 44). Dessa perspectiva, o direito assume a capacidade de vincular as duas dimensões separadas – a comunicativa, voltada ao entendimento, e a estratégico-instrumental, voltada aos fins. Seu argumento se desenvolve nos seguintes termos: como as normas jurídicas obrigam universalmente a todos os participantes de uma interação estratégica, contém em si o motor da integração social, isto é, ainda que as duas dimensões citadas estejam separadas aos olhos dos atores, as normas podem satisfazer as duas dimensões contraditórias (Habermas 1998______. (1998): Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt a. M.: Suhrkamp.: 44). Habermas sustenta que, para a ação estratégico-instrumental, o direito funciona como uma “limitação factual”, que fixa regras às quais os atores veem-se obrigados a adaptar seus comportamentos; para a ação orientada ao entendimento, ele impõe obrigações recíprocas e, com isso, torna possível o reconhecimento da intersubjetividade (Habermas 1998______. (1998): Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt a. M.: Suhrkamp.: 44). Diante desse quadro, o autor conclui que o direito é a instância normativa da sociedade que realiza a mediação entre sistema e mundo da vida e que permite a tradução de impulsos comunicativos advindos do mundo da vida em termos de poder e dinheiro, bloqueando, assim, a expansão da racionalidade instrumental e estratégica.

Esses impulsos teóricos geraram um amplo debate sobre o potencial do discurso jurídico e sua dimensão emancipatória, sobre o caráter cosmopolita do direito, sobre a formação de uma comunidade jurídica global, bem como sobre a renovação do projeto kantiano da paz (jurídica) perpétua.4 4 A literatura é vastíssima. Ver, a título de exemplo, Brunkhorst 2002, Fassbender 2009, Günther 2009, Habermas 2004, Walker 2007. Para uma crítica que mostra como os mecanismos do direito cosmopolita reforçam as desigualdades globais, ver Boatcă 2015, Gonçalves e Costa 2016. Quais, no entanto, foram as principais perdas analíticas geradas por essa orientação antiprodutivista?

2.2. Antiprodutivismo, idealismo jurídico e alienação do direito

Dentre as diversas perdas, duas se destacam. A primeira delas refere-se ao fato de que, desde quando tal giro se iniciou, foi desencadeado um “esquecimento” gradativo do capitalismo como categoria analítica. E isso até – e principalmente – na própria sociologia crítica do direito. Com a separação metodológica entre interação e trabalho, não foi mais possível identificar que a reprodução do direito é socialmente integrada e que a relação (social) de exploração é determinada e, ao mesmo tempo, atua sobre a reprodução do direito como um de seus determinantes. Na medida em que se separa artificialmente o que se desenvolveu historicamente de maneira indivisível, perde-se o referencial do direito na construção da sociedade dos produtores de mercadorias e, com isso, o sensor para a percepção do fenômeno jurídico nas próprias relações capitalistas.

A segunda perda analítica implica uma mudança de objetivos na prática da crítica: da ênfase na compreensão das crises, antagonismos e contradições do direito na sociedade capitalista para a ênfase na busca por normas sociais capazes de desempenhar a função social integrativa. Isso significa que as desigualdades socialmente construídas passaram a ser tratadas como desvios ou patologias, investigadas a partir de desajustes com as normas produzidas pela própria sociedade (desigual). Com isso, a norma se torna medida da realidade e da transformação/emancipação.

Note-se que a reorientação antiprodutivista da crítica social ao caráter normativo da sociedade perdeu o elo com a dialética histórico-materialista (pois pressupõe a separação entre produção e norma, trabalho e interação, capitalismo e direito). Por outro lado, para permanecer como crítica social, precisou manter a perspectiva emancipatória. Como, todavia, não pode assumir a possibilidade de superação (Aufhebung) que os processos contraditórios internos ao trabalho social deflagram por conta da confluência entre reprodução material e simbólica, a crítica social do giro antiprodutivista precisou recorrer ao mesmo projeto da filosofia política liberal: os direitos constitucionais e os direitos humanos. Com isso, a crítica social do giro antiprodutivista se tornou gradativamente uma teoria do direito e da justiça.

Como ela não trabalha com o potencial negativo da dialética, é obrigada a conceber os direitos (liberais, fundamentais e humanos) como positividade (“um sucedâneo comunicativo para a filosofia da história”) (Bachur 2006Bachur, J. P. (2006): “Individualismo, liberalismo e filosofia da história”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política 66: 167–203.). Por isso, para Habermas (1992: 430ss), os direitos são considerados condição de possibilidade para a construção de uma ordem cosmopolita, na medida em que assegurariam liberdades individuais e, com isso, a possibilidade de associações voluntárias que bloqueariam o uso do sistema político por interesses privados. Os direitos (humanos) seriam, assim, motores de expectativas normativas de uma sociedade civil global (Weltbürgergesellschaft), capaz de conduzir para uma esfera pública transnacional as questões do mundo da vida (ib.).

Mas qual seria, então, a relação entre direito e capitalismo para a crítica social antiprodutivista? Para ela, essa pergunta ainda é respondida com base na tese da distinção entre capitalismo e democracia. Dessa tese são geradas duas concepções. A primeira sustenta que os recursos motivacionais e normativos disponíveis são insuficientes para legitimar a intervenção estatal (no capitalismo tardio) (Habermas 1973______. (1973): Legitimationsprobleme im Spätkapitalismus. Frankfurt a. M.: Suhrkamp.). A segunda compreende o direito como limitação factual da acumulação de capital e de poder, nas situações em que essa acumulação libera uma quantidade elevada de ações estratégicas, capaz de conduzir a uma situação generalizada de difusão social do dissenso (Habermas 1998______. (1998): Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt a. M.: Suhrkamp.: 44).

Em ambas as concepções (a da legitimação no capitalismo tardio e a da criação de integração social), o direito e a democracia são vistos como um conjunto de normas e princípios, apresentado como imune à realidade (contrária), isto é, como se os discursos e regulações jurídico-democráticos pudessem ser isolados dos interesses e relações materiais, que, ironicamente, conformam relações sociais das quais ele mesmo faz parte. Na medida em que as concepções antiprodutivistas e normativas não reconhecem que o direito é elemento constitutivo do presente desviante, não conseguem ver nem a ideologia nem a violência jurídicas da acumulação. Isso se tornou ainda mais claro, pois a prognose dos problemas de legitimação do capitalismo tardio não se confirmou: tanto o neoliberalismo conseguiu mobilizar novos recursos motivacionais e normativos (Boltanski/Ève Chiapello 2005Boltanski, L./ Chiapello, E. (2005): The New Spirit of Capitalism. London: Verso.), quanto o capitalismo financeiro e seus processos mercantilizadores dos espaços públicos empregaram meios jurídicos para deixar fluir tendências especulativas (Picciotto 2011______. (2011): Regulating Global Corporate Capitalism. Cambridge: Cambridge University Press).

Na verdade, a crítica social antiprodutivista desenvolve uma concepção idealista de direito, como se ele pudesse se reproduzir independentemente das relações de produção. Os direitos são apresentados sem qualquer vínculo com análises sobre as mudanças do capitalismo global ou de como essas mudanças podem operar como condições para os processos políticos. Para tal crítica, o direito parece surgir espontaneamente, alheio a uma base material ou a uma racionalidade objetiva.

É possível pensar o direito enquanto algo indiferente aos processos históricos de seu tempo? Ou, ainda, como supor que a produção, circulação e reprodução do capitalismo não podem desempenhar qualquer papel na formação e desenvolvimento dos direitos (humanos, por exemplo)? Nenhuma das dimensões das crises do capitalismo exerce influência em sua aplicação e uso? Há validade empírica em idealizá-los apenas como um discurso contrafactual, um horizonte normativo e emancipatório?

A concepção idealista de direito fundamenta-se naquilo que De Giorgi (1980De Giorgi, R. (1980): Wahrheit und Legitimation im Recht. Ein Beitrag zur Neubegründung der Rechtstheorie. Berlin: Duncker & Humblot.: 143 ss), com base em Hegel e Marx, denominou mecanismos de distanciamento do mundo e do finito. Para tal concepção, a realidade se apresenta como algo estranho ao direito que, constituído enquanto um horizonte emancipatório, é representado “como um produto que se encontra fora da própria realidade” (ibid., 144). Trata-se, assim, de um processo de alienação. Da perspectiva temporal, esse processo de alienação implica compreender os direitos como uma estrutura normativa vinculada ao futuro, isto é, à transformação da sociedade atual. Com isso, tais teorias sempre operam a partir de uma distância entre os direitos e o mundo: este último é tratado como o outro, um presente desviante a ser negado e superado.

Dessa distância é possível inferir uma pretensão teórica de não contaminação ou indiferença do direito em relação ao real, de modo que nem a violação é considerada parte do universo jurídico, nem a observância é pensada à luz das relações sociais e assimétricas de produção. Enquanto normativo, esse tipo de modelo é forçado, de um lado, a desconsiderar o presente ou a finitude em si como objeto da reflexão e, de outro, a excluir o discurso jurídico das relações objetivas em que se constitui. Neste sentido, essa concepção normativa dos direitos é instrumento de alienação do próprio direito, pois o opõe ao mundo, escondendo o processo real do qual ele faz parte. Para se utilizar de uma outra expressão de De Giorgi (ibid., 23), é parte integrante do “projeto burguês de esquecimento e repressão da instância material”.

3. Forma jurídica no capitalismo

Se já era questionável fazer teoria da democracia sem economia política (Streeck 2013Streeck, W. (2013): “Vom DM-Nationalismus zum Euro-Patriotismus. Eine Replik auf Jürgen Habermas”. In Demokratie oder Kapitalismus? Europa in der Krise, Blätter Verlagsgesellschaft. Berlin: Blätter Verlagsgesellschaft. pp. 87–104.:102) ou, em outras palavras, falar seriamente sobre a reprodução dos direitos sem falar ao mesmo tempo de capitalismo, o contexto atual explicitou ainda mais as limitações do idealismo jurídico da critica social antiprodutivista. Ao enfatizar o caráter normativo, tal idealismo se viu desprovido de categorias úteis para compreender a principal transformação jurídica das últimas décadas, qual seja, a reestruturação regulatória, iniciada a partir de 1973, que levou à emergência do direito neoliberal enquanto marco jurídico da acumulação capitalista vigente e de seu processo de financeirização (Gonçalves 2014______. (2014): “Marx está de volta! Um chamado pela virada materialista no campo do direito”. Revista Direito e Práxis 5(9): 301-341).

Essas dificuldades estão associadas aos limites analíticos do esquema capitalismo/democracia, que se tornaram cada vez mais visíveis diante das mudanças contemporâneas. Diferentemente de outros momentos históricos que demandaram regimes ilegais, as atuais políticas reprodutoras de desigualdade estão se realizando nos termos da racionalidade procedimental e democrática do Estado Constitucional de Direito. Nesse âmbito, por exemplo, a Suprema Corte dos EUA tornou-se um lugar privilegiado para se observar como decisões judiciais reforçam as estratificações socioeconômicas (Gilman 2014Gilman, M. (2014): “A Court for the One Percent: How the Supreme Court Contributes to Economic Inequality”. Utah Law Review 2: 1-75.).

O mesmo pode-se dizer a respeito das medidas contemporâneas autoritárias e cerceadoras das liberdades. Pense-se, por exemplo, que o Conseil Constitutionnel (2015)Conseil Constitutionnel, Décision n° 2015-527 QPC du 22 décembre 2015. considerou constitucional o estado de emergência decretado pelo governo francês após os atentados de Paris, de 13 de novembro de 2015. No Sul Global, a realidade não é diferente. No Brasil, há uma disputa de narrativa entre conservadores e progressistas sobre o caráter golpista da destituição da presidenta Dilma Roussef, em agosto de 2016, apenas porque o Supremo Tribunal Federal validou todos os atos do respectivo processo (Saad-Filho 2016Saad-Filho, A. (2016): “Overthrowing Dilma Rousseff: It’s class war & their class is winning.” FocaalBlog, 22 March.). Assim, diferentemente daquilo que foi afirmado por Offe (1983Offe, C. (1983): “Competitive Party Democracy and the Keynesian Welfare State: Factors of Stability and Disorganization”. Policy Sciences 15: 225-246.: 227) há pouco mais de três décadas, a hipótese de que não há separação nem uma tensão fundamental entre capitalismo e democracia constitucional parece ser cada vez mais plausível.

Tal constatação tem exigido um deslocamento da reflexão crítica do direito no sentido de reforçar a necessidade da crítica social retomar o capitalismo como unidade de análise dos marcos normativos da sociedade. Ao invés de distanciamento, o objetivo de tal retomada é assumir o direito como parte integrante do mundo, isto é, como como peça da engrenagem capitalista e de seus mecanismos de reprodução. Trata-se, em outras palavras, de assumir que o direito já se realizou na sociedade e é parte da sua existência material.

Nos últimos anos, a principal contribuição interna à sociologia crítica do direito que se opõe tanto à lógica das teorias normativas quanto à separação analítica entre democracia e capitalismo é a crítica materialista à forma jurídica (Buckel 2007Buckel, S. (2007): Subjektivierung und Kohäsion: Zur Rekonstruktion einer materialistischen Theorie des Rechts. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft. e 2010______. (2010): “La Forme dans Laquelle Peuvent se Mouvoir les Contradictions‹ – Pour une Reconstruction de la Théorie Materialiste du Droit”. Actuel Marx 47: 135-149.; Elbe 2004Elbe, I. (2004): “Warenform, Rechtsform, Staatsform. Paschukanis’ Explikation rechts- und staatstheoretischer Gehalte der Marxschen Ökonomiekritik”. Grundrisse. Zeitschrift für linke Theorie und Debatte 9: 44-53., 2008______. (2008): “Rechtsform und Produktionsverhältnisse. Anmerkungen zu einem blinden Fleck in der Gesellschaftstheorie von Nicos Poulantzas”. In: Lindner, U et all. (Hg.). Philosophieren unter anderen. Beiträge zum Palaver der Menschheit. Münster: Westfälisches Dampfboot, pp. 225-237 e 2009______. (2009): “Rechtsformanalyse jenseits der Befehlstheorie. Eine Alternative zur reduktionistischen Konzeption von 'juridisch-diskursiver' Macht”. In: Dumbadze, D. et all. (Hg.). Erkenntnis und Kritik. Zeitgenössische Positionen. Bielefeld: Transcript, pp. 193-212.; Harms 2000Harms, A. (2000): Warenform und Rechtsform. Zur Rechtstheorie von Eugen Paschukanis. Baden-Baden: ça-ira-Verlag.; Naves 2000Naves, M. B. (2000): Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo). Essa proposta é formulada a partir de um diálogo com a teoria marxista do direito, de Eugen Pachukanis (2003[1924]). Trata-se de um debate principalmente teórico que busca apresentar a crítica ao direito como elemento central da crítica ao capitalismo e resgatar o materialismo histórico como método de investigação das contradições do direito.

3.1. Crítica à forma jurídica

A crítica pachukaniana à forma jurídica oferece um conceito de direito que, construído a partir da teoria do valor, objetiva analisar o direito na socialização capitalista. (Elbe 2004Elbe, I. (2004): “Warenform, Rechtsform, Staatsform. Paschukanis’ Explikation rechts- und staatstheoretischer Gehalte der Marxschen Ökonomiekritik”. Grundrisse. Zeitschrift für linke Theorie und Debatte 9: 44-53.). Seu ponto de partida é a concepção de Marx segundo a qual, na sociedade capitalista, a sociabilidade do trabalho adquire a forma de valor (Heinrich 1999Heinrich, M. (1999): Die Wissenschaft vom Wert. Die Marxsche Kritik der politischen Ökonomie zwischen wissenschaftlicher Revolution und klassischer Tradition. Münster: Westfälisches Dampfboot.). Isso implica que, no capitalismo, o trabalho individual concreto realiza-se somente por meio da permutabilidade dos produtos, o que, por sua vez, torna a forma do valor condição necessária da socialização. Uma vez que a troca de mercadorias iguala diversos produtos uns aos outros, ela cria uma igualdade abstrata entre diferentes trabalhos, que, a partir de medidas – como, por exemplo, o trabalho social médio –, possibilita a autorreprodução da desigualdade e da própria apropriação do trabalho. A forma do valor adquire, assim, um caráter fetichista e místico.

Para a crítica da forma jurídica, a relação da forma do valor com o direito surge da teoria da mercadoria (Paschukanis 2003Paschukanis. E. 2003[1924]: Allgemeine Rechtslehre und Marxismus. Freiburg: ça ira Verlag.[1924]: 112). Seu ponto de referência é um trecho clássico de Marx (MEW, 23: 99), escrito no primeiro volume de O Capital:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e se trocar umas às outras. Temos, portanto, que olhar para os seus guardiões, para os proprietários das mercadorias. As mercadorias são coisas; são incapazes de resistir aos homens. Se elas não se mostram solícitas, o homem pode empregar violência contra elas, isto é, pode tomá-las. Para relacionar essas coisas umas às outras como mercadoria, seus guardiões precisam se relacionar como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de modo que alguém só se apropria da mercadoria estranha ao vender a sua própria; em consonância, portanto, com a vontade do outro, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles precisam, assim, se reconhecer reciprocamente como proprietários privados. Legalmente desenvolvida ou não, essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, é uma relação de vontades, na qual se reflete a relação econômica.

A partir desse trecho, se sustenta que a troca de mercadorias e, portanto, a realização do valor nela contida só pode se dar em uma relação de vontades dos atores (Elbe 2004Elbe, I. (2004): “Warenform, Rechtsform, Staatsform. Paschukanis’ Explikation rechts- und staatstheoretischer Gehalte der Marxschen Ökonomiekritik”. Grundrisse. Zeitschrift für linke Theorie und Debatte 9: 44-53.: 44-45). A condição fundamental para a troca (capitalista) de equivalentes torna-se, assim, a produção de um ato autônomo da vontade dos proprietários de mercadorias. Essa vontade livre é estabelecida pela forma jurídica. Trata-se da constituição de uma subjetividade que permite a circulação do homem no mercado como um proprietário, que se encontra sem nenhum tipo de impedimento para se vender (Naves 2000Naves, M. B. (2000): Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo: 66 ss). Na verdade, o direito redefine o homem em termos de propriedade, tornando-o, ao mesmo tempo, sujeito e objeto (ib.). Por isso, a forma jurídica é um fator fundamental do processo de alienação: ela faz o homem emergir enquanto um proprietário que aliena a si mesmo (Cerroni 1974Cerroni, U. (1974): Marx und das moderne Recht. Frankfurt a. M.: Fischer.: 91).

Dessa perspectiva, o direito é tratado na sociedade capitalista como uma forma social que se realiza juntamente com a forma do valor (Pachukanis 2003[1924]: 117ff.). Ele participa do processo de abstração dos produtores concretos desiguais, que constituem a troca de equivalentes pressuposta na permutabilidade direta entre mercadorias (Elbe 2008Elbe, I. (2004): “Warenform, Rechtsform, Staatsform. Paschukanis’ Explikation rechts- und staatstheoretischer Gehalte der Marxschen Ökonomiekritik”. Grundrisse. Zeitschrift für linke Theorie und Debatte 9: 44-53.: 234). Para isso, os instrumentos jurídicos empregados são o conceito de sujeito de direito e os princípios de liberdade e igualdade, todos constitutivos do Estado de Direito (Elbe 2004Elbe, I. (2004): “Warenform, Rechtsform, Staatsform. Paschukanis’ Explikation rechts- und staatstheoretischer Gehalte der Marxschen Ökonomiekritik”. Grundrisse. Zeitschrift für linke Theorie und Debatte 9: 44-53.: 47;). O conceito de sujeito de direito é aquele que permite levar as mercadorias, mas também o próprio homem ao mercado (para se vender). Tal conceito só pode funcionar, no entanto, com base nos princípios jurídicos da liberdade e da igualdade. Para dispor de si mesmo, o homem precisa ser livre. Nesse sentido, a liberdade jurídica é a livre disposição sobre si mesmo como mercadoria. Isso, no entanto, não é suficiente para realizar o processo de troca de mercadorias. O homem precisa também firmar contratos com outros homens. Para tanto, a igualdade formal é fundamental. Nesses termos, ela significa o acordo entre vontades iguais.

Sujeito de direito, igualdade e liberdade jurídicas formam no plano abstrato atores iguais, que podem trocar livremente mercadorias e vender sua força de trabalho. Ao mesmo tempo, porém, possibilitam, na instância material, a imposição de interesses privados e desigualdades. Assim, discursos e instituições jurídico-democráticas se configuram como uma das formas sociais que possibilitam o desenvolvimento do capitalismo e seus mecanismos de exploração, sem que seja necessário aplicar meios de violência direta e não-econômica. Aqui, operam-se as relações fetichizadas e reificadas do capital.

Essa configuração possibilita conceber a forma jurídica como mecanismo de coesão social.5 5 A literatura sobre direito como forma de coesão social é ampla. Particularmente relevante foi a contribuição dada pela sociologia marxista do direito italiana na virada dos anos 1970-80, bastante influenciada por Galvano Della Volpe. Ver, entre outros, Badaloni 1972; Barcellona 1978; Cerroni 1974; De Giorgi 1980. Atualmente esse tema foi desenvolvido por Buckel 2007 e 2010. Dessa perspectiva, a sociedade capitalista é caracterizada pelo processo de redefinição das desigualdades estratificadas então existentes. Esse processo contem um potencial elevado de desagregação social (soziale Auflösung), pois implica a ruptura e a fragmentação da concepção religiosa, unitária e transcendental do mundo que determinava o socialmente possível nas sociedades pré-modernas (De Giorgi 1980De Giorgi, R. (1980): Wahrheit und Legitimation im Recht. Ein Beitrag zur Neubegründung der Rechtstheorie. Berlin: Duncker & Humblot.: 21ff.). De maneira oposta a estas últimas, a sociedade capitalista decompõe e distingue o agir em diversas esferas sociais diferenciadas e desiguais. Tem-se, assim, uma criação permanente de insegurança e volatilidade das relações sociais (id.: 22).6 6 Lembre-se que, conforme as palavras de Marx e Engels (MEW 4: 472), “a subversão contínua da produção, o abalo incessante de todas as condições sociais, a insegurança e a agitação perpétuas distinguem a época burguesa de todas as anteriores”.

A reprodução da desagregação e das desigualdades constrange a própria sociedade a afrontar o problema da coesão do agir. Como, no entanto, sob condições capitalistas, as desigualdades e a desagregação não podem ser eliminadas, a coesão torna-se possível apenas como abstração (Badaloni 1972Badaloni, N. (1972): Per il comunismo. Torino: Einaudi.). Para tanto, a sociedade capitalista estrutura um universo de abstrações e formas que se descola da realidade objetiva das relações de produção (que é a estrutura da desigualdade) e se apresenta como um sistema normativo de coordenação das ações. Esse sistema é o direito (De Giorgi 1980De Giorgi, R. (1980): Wahrheit und Legitimation im Recht. Ein Beitrag zur Neubegründung der Rechtstheorie. Berlin: Duncker & Humblot.: 22).

O direito torna possível a coexistência, mas apenas enquanto abstração. Em outras palavras, o direito estabelece um plano de indiferença à diferença, isto é, iguala, na abstração, a desigualdade. Trata-se de uma coesão unicamente formal e de um modelo de abstração, que relaciona igualdades abstratas e indiferentes, na medida em que oculta a racionalidade objetiva das relações sociais de produção (id.: 23-24).

Para essa forma de coesão funcionar, é preciso que o ato constitutivo das abstrações jurídicas não seja reconhecido como aquilo que ele é: um processo de distanciamento e alienação. Para isso, a ideia de vontade livre é, mais uma vez, fundamental. Por conta dela, o direito aparece como uma estrutura autônoma, resultado de uma escolha da própria sociedade (capitalista) que quer obter coesão (circulação) entre suas partes, e não como o resultado de uma pressão seletiva das estruturas desiguais. É, nesse sentido, que se pode compreender a ideia de Pachukanis (2003[1924]: 117), segundo a qual “o fetichismo da mercadoria é completado pelo fetichismo jurídico”. Este último cria a imagem de que as normas jurídicas são regras universalmente válidas colocadas pela comunidade e resultado de decretos e procedimentos formais do Estado, como se elas não tivessem nenhum tipo de vínculo com os fatos que produzem as desigualdades. Com isso, a forma jurídica conclui a operação iniciada pela forma da mercadoria, o ocultamento da reprodução das relações de produção.

3.2. Desenvolvimento do capitalismo e fronteiras da crítica à forma jurídica

Não é incomum que a descrição pachukaniana seja acusada de reduzir o direito à função de meramente possibilitar a troca das mercadorias, como recentemente fez Buckel (2010: 140). Esse tipo de censura desconsidera, no entanto, o caráter onicompreensivo da concepção de reprodução social que Pachukanis utiliza para elaborar sua crítica à forma jurídica. Dessa perspectiva, o autor entende na mesma linha de Marx que, “no próprio ato de reprodução, não se muda apenas as condições objetivas (...), mas os produtores também se transformam, criando novas forças, representações, formas de circulação, necessidades e novas linguagens” (MEW 42: 402). O ato de reprodução é, assim, a síntese do desenvolvimento social de um produto histórico. Trata-se de um processo socialmente amalgamado em que as atividades instrumentais do homem sobre a natureza integram-se em um plexo de mediações entre os produtores.

Da perspectiva pachukaniana, o direito é visto a partir da realização social da fabricação dos produtos, o que implica pensá-lo à luz de uma unidade em que se articulam a operação técnico-produtiva (mundo da objetividade) e a relação por parte daqueles que produzem (mundo da subjetividade). Não há, portanto, trabalho sem interação, externo à práxis social. A reprodução social abrange direito e economia ou, de maneira mais precisa, compreende uma totalidade de movimentos políticos, econômicos, jurídicos e culturais, em que as partes integrantes e constitutivas do fato social total se conjugam (MEW, 42: 34).

Quando desse projeto descritivo e abrangente da totalidade social infere-se apenas um caráter funcionalista do direito (como faz Buckel), as conclusões sobre a forma jurídica daí resultantes tendem a recair nos mesmo problemas (já apresentados) da crítica social antiprodutivista, qual seja, articula-se, no plano teórico, uma separação artificial entre as dimensões entrelaçadas da reprodução da sociedade capitalista.

Obviamente que, no caso de Buckel (2007Buckel, S. (2007): Subjektivierung und Kohäsion: Zur Rekonstruktion einer materialistischen Theorie des Rechts. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft.: 318), não se trata de pensar nos termos habermasianos de uma sociedade bipartida entre interação e trabalho. Ao sentir a necessidade de superar a suposta redução ao funcionalismo, a autora sustenta que a forma jurídica não desempenha, na verdade, uma função, mas produz um “efeito” sobre a economia (Buckel 2010: 140). Em outras palavras, a transformação dos possuidores de mercadorias em sujeitos jurídicos e a possibilidade de troca de mercadorias seriam, assim, um efeito da própria forma jurídica.

Note-se que, com isso, a autora faz uma inversão da ordem estabelecida pelo reducionismo econômico e passa a considerar a reprodução das relações sociais de produção a partir de um determinismo jurídico. Em outras palavras, para escapar de um suposto funcionalismo, Buckel é levada, do mesmo modo que a crítica social antiprodutivista, a um processo de esquecimento do capitalismo. Por isso, a autora busca extrair de formas jurídicas, como, por exemplo, os procedimentos legais e a dogmática jurídica, um modo de existência material do direito (Buckel 2007Buckel, S. (2007): Subjektivierung und Kohäsion: Zur Rekonstruktion einer materialistischen Theorie des Rechts. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft.: 240-242; 2010: 143ff. und 147). Essa formulação renuncia a um postulado marxiano importante para Pachukanis, segundo o qual as relações entre os homens com as coisas (relações técnicas de produção) são mediadas pelas relações dos homens entre si (relações sociais de produção).

Sem essa perspectiva pachukaniana de mediação, a proposta de reconstrução de uma teoria materialista do direito, tal como feita por Buckel, não supera a esperança normativa presente no idealismo jurídico. Por isso, a autora aposta na mobilização de “garantias jurídicas do reconhecimento”, bem como no caráter contraditório da universalização de seus procedimentos, para construir “projetos contra-hegemônicos alternativos de modos de vida, relações e subjetividades” (Buckel 2007Buckel, S. (2007): Subjektivierung und Kohäsion: Zur Rekonstruktion einer materialistischen Theorie des Rechts. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft.: 321 ff.; 2010: 148). Essa compreensão, no entanto, como mostra Barreira (2016)Barreira, C. M. (2016): “Autonomia jurídica: o problema da reificação revisitado”. In: Cunha, J. R. (Org.). Epistemologias Críticas do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 313-342., precisa renunciar a um pressuposto fundamental da crítica à forma jurídica, qual seja, o fato de que a sociedade capitalista não se imuniza contra, mas com a ajuda das contradições, e o faz isso por meio do direito.

Se o funcionalismo não é um problema metodológico da crítica à forma jurídica, então qual seria sua limitação?

3.3. Crítica à forma jurídica e dinâmica da acumulação

A crítica à forma jurídica serve para analisar o funcionamento do direito em um momento específico da acumulação capitalista, qual seja, o momento em que dinheiro é transformado em capital e que, por meio desse, se faz mais-valia e vice-versa. Esse momento é representado pela notória fórmula D-M-D’, em que dinheiro acumulado é investido em mercadoria para produzir mais dinheiro (MEW 23: 161ff.). Trata-se, assim, de um processo caracterizado pela conversão de força de trabalho e matérias-primas em capital.

Evidentemente, como mostrou Marx, tal conversão não se realiza por um conjunto de critérios técnicos de eficiência que seriam válidos ad eternum nem mesmo por uma correlação proporcional entre o valor da mercadoria e o tempo de trabalho da produção. Em seu esforço por revelar como a produção está organizada e seu produto distribuído, Marx identifica que o valor de troca da força de trabalho é superior aos custos médios de sua regeneração, pois ela produz um excedente, uma mais-valia, que apenas os proprietários do capital podem se apropriar. Esse excedente completa o valor da mercadoria produzida (MEW 23: 165ff.).

Para a normalização e estabilização desse percurso da acumulação, é preciso que o capital estabeleça mecanismos de indiferença ao seu ato expropriador constitutivo. Isso se torna possível pelo reflexo do valor de troca das mercadorias no trabalho (MEW 23: 61). O valor de troca torna as mercadorias equivalentes entre si, não obstante os diversos valores de uso que elas possuem. Dessa equivalência emerge uma identificação entre os diferentes trabalhos concretos, na medida em que todos são expressões da atividade produtiva geral. Ao lado da dimensão concreta desenvolve-se assim um caráter abstrato (homogeneizador e equalizador) do trabalho (MEW 23: 56ff.). Tem-se, assim, que, no interior da própria estrutura do trabalho, já estão presentes os componentes e as condições para sua alienação. Enquanto o abstrato expressa igualdade, o concreto implica desigualdades e diferenças. Essa contradição primária entre identidade e não-identidade inscreve mas, ao mesmo tempo, oculta a relação de exploração na mercadoria (Fausto 1987Fausto, R. (1987): Marx: Lógia e Política. Investigação para uma reconstituição do sentido da dialética. Vol. 2. São Paulo: Brasiliense.:293). Torna-se, com isso, fator fundamental da normalização e estabilização do modo de produção capitalista.

A crítica à forma jurídica é um modelo importante para observar os desdobramentos dessa contradição primária. Ela explica por qual razão a dominação adquire a forma de uma dominação abstrata, como a expropriação do trabalho do produtor direto é invisibilizada e de que forma a troca entre equivalentes proporciona a reprodução das desigualdades. Trata-se, portanto, de um capítulo chave da teoria da forma-valor, que permite pensar o direito no interior do ciclo em que dinheiro é transformado em capital, por meio do capital se faz mais-valia e por meio da mais-valia se faz mais capital. Mas o capitalismo se resume a esse ciclo?

Para continuar a ser capital, o capital tem de se valorizar sempre e, dado que a produção de valor está atada ao trabalho, ele sempre precisa de mais trabalho do que o necessário, levando-o a produzir um excedente de trabalho e, portanto, de capital (MEW 25: 263). Como o valor é um “fim em si mesmo” (Selbstzweck), ele se torna “desmedido” (Masslos) (MEW 23: 161 e 167). Quando atinge um determinado volume de grandeza, esse processo desmedido se depara com as condições sociais possíveis de realização do valor criado, isto é, com a viabilidade de se vender o que se produziu e de utilizar o potencial produtivo que se gerou. Ao atingir essas barreiras, o valor aumentado não consegue mais ser realizado. Tem-se, assim, uma sobreacumulação que mina as bases da rentabilidade (MEW 25: 261ff.). Nesse momento, o capital precisa recorrer a outro espaço, outro lugar, criar novas condições sociais que permitam o excedente fluir, abrindo um novo ciclo de valorização.

As relações sociais produzidas por essa dinâmica não correspondem àquelas constituídas pelo princípio da troca de equivalentes. Elas não dizem respeito aos mecanismos de estabilização da acumulação capitalista, mas à sua dinâmica expansionista, aos seus imperativos por crescimento, à sua capacidade de produção e destruição do espaço conforme as necessidades de (re)valorização (Dörre 2012Dörre, K. (2012): “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarktkapitalismus”. In: Dörre, K.et all. (Hg.). Soziologie - Kapitalismus - Kritik: eine Debatte. Frankfurt: Suhrkamp, pp. 21–86.; Harvey 2009______. (2009) “The ‘New’ Imperialism: Accumulation by Dispossession”. Socialist Register 40 (40): 63–87.; Luxemburg 1975Luxemburg, R. (1975 [1913]): “Die Akkumulation des Kapitals”. In Lexemburg, R. Gesammelte Werke, Vol. 5. Berlin: Institut für Marxismus-Leninismus.).

Segundo essa perspectiva, o desenvolvimento do capitalismo é analisado como um processo permanente de superação dos obstáculos e limites à acumulação por meio da mercantilização de espaços ainda não mercantilizados (Dörre 2012Dörre, K. (2012): “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarktkapitalismus”. In: Dörre, K.et all. (Hg.). Soziologie - Kapitalismus - Kritik: eine Debatte. Frankfurt: Suhrkamp, pp. 21–86.: 39ff.). Esse processo supõe a impossibilidade de realização completa da mais-valia em seu lugar de produção e a pressão da sobreacumulação, que exigem a expropriação de um Fora não-capitalista para realizar parte relativa da mais-valia existente e amortizar investimentos (Luxemburg 1975Luxemburg, R. (1975 [1913]): “Die Akkumulation des Kapitals”. In Lexemburg, R. Gesammelte Werke, Vol. 5. Berlin: Institut für Marxismus-Leninismus.: 315ff.).7 7 No debate alemão, esse processo expansionista do capitalismo para espaços ainda não mercantilizados é descrito por diferentes substantivos Aneignung, Enteignung, Expropriation, Usurpation, Landnahme, Eroberung etc. Optei pelo termo “expropriação” como a categoria genérica que abrange todas essas práticas. Farei, no entanto, referência às outras noções (apropriação, desapropriação, usurpação, espoliação do espaço, conquista etc.) conforme a exigência de afirmações, teses e conteúdos específicos. Minha opção por “expropriação” como categoria genérica se deve à reflexão fundamental que Virgínia Fontes (2010) desenvolve entre nós. Como já ressaltado na nota de rodapé n. 2, o modelo de Fontes não será, no entanto, nesse momento discutido em razão do escopo do presente artigo.

Essa dinâmica destruidora do capitalismo é uma condição permanente para a troca de equivalentes. Na medida em que ela proporciona a expropriação de um espaço (ainda não gerador de valor), realiza as condições necessárias para a respectiva troca, quais sejam, a tomada da terra pertencente ao camponês, a separação entre os produtores e os meios de produção e a exploração intensiva dos recursos naturais (MEW 23: 741-744). Isso, por sua vez, permite a abertura de um novo ciclo de acumulação e de novos mercados. Note-se, portanto, que esses processos de expropriação do espaço desenvolvem-se paralelamente à troca de equivalentes, mas não correspondem à ela.

Nesse estágio expropriador da acumulação capitalista, o direito não possui as mesmas características que ele desenvolve na etapa de estabilização do sistema. Como afirma Rosa Luxemburgo (1975: 397), no reino puro da troca de equivalentes, “domina a paz, a propriedade e a igualdade como formas”, o que significa que “a apropriação da propriedade alheia transforma-se em direito de propriedade; a exploração, em troca de mercadorias; e a dominação de classes, em igualdade”. Já no momento de expropriação dos espaços não capitalistas, os métodos empregados não são formas sociais de dissimulação. Segundo a autora: “aqui dominam a política colonial, o sistema de empréstimos internacionais, a política de interesses privados e a guerra. Aqui se evidencia, de maneira completamente explícita e aberta, a violência, a fraude, a opressão e a pilhagem“ (Luxemburg 1975Luxemburg, R. (1975 [1913]): “Die Akkumulation des Kapitals”. In Lexemburg, R. Gesammelte Werke, Vol. 5. Berlin: Institut für Marxismus-Leninismus.: 397).

Como visto, essas experiências são muito distintas daquelas desenvolvidas pelo princípio da troca de equivalentes. Em uma situação de repressão institucional explícita, o direito não funciona como um recurso motivacional ou legitimador da acumulação capitalista nem mesmo como uma forma social fetichizada. Conforme Luxemburgo (1975: 397): “seria muito difícil descobrir, nessa confusão de atos políticos de violência e provas de força, as leis exatas dos processos econômicos”. Assim, no contexto da expansão da acumulação do capital e da expropriação capitalista, o direito não pode ser pensado nos termos da tese da complementaridade entre forma da mercadoria e forma jurídica. Ao contrário, para se compreender esse outro caráter do direito, é preciso ir para além da crítica à forma jurídica. Diferentemente dessa última, que pretende investigar por qual razão a estrutura da desigualdade capitalista depende de um princípio formal de identidade para se estabilizar, a principal pergunta a orientar a pesquisa sobre o caráter do direito nos processos de expropriação do espaço é: como o direito funciona no movimento de reação capitalista a mecanismos bloqueadores da acumulação?

4. Direito e acumulação primitiva

Para responder à última pergunta é preciso reconhecer, como visto acima, que o capitalismo é uma engrenagem que produz permanentemente autolimitações, mas que também é altamente sensível a seus pontos nevrálgicos. Quando estes são atingidos, ele aciona processos que o levam a expandir para terrenos não-mercantilizados com o fim de gerar um novo ciclo de estabilidade (Dörre 2012Dörre, K. (2012): “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarktkapitalismus”. In: Dörre, K.et all. (Hg.). Soziologie - Kapitalismus - Kritik: eine Debatte. Frankfurt: Suhrkamp, pp. 21–86.: 41). Na base fundamental desse processo de expansão está uma repetição permanente do ato de acumulação primitiva.

4.1. Repetição permanente da acumulação primitiva

Em Marx (MEW 23: 741), a acumulação primitiva é tratada como um ato originário que permite observar o movimento do capital não como um círculo vicioso em que dinheiro é transformado em capital e que, por meio desse, se faz mais-valia e vice-versa. Ao contrário, o autor mostra que existe uma acumulação prévia que é o ponto de partida para o modo de produção capitalista (id.). Uma vez que o pressuposto para a produção capitalista é a transformação de bens materiais ou imateriais em valor e isto só é possível pela “separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições de realização do trabalho”, Marx (MEW 23: 742) conclui que a acumulação primitiva é o “processo histórico de separação entre produtor e meio de produção”. Trata-se, portanto, de um ato de expropriação de grupos sociais, cuja consequência é a criação de uma massa livre para vender sua força de trabalho. Para Marx (id.), esse ato envolve conquistas imperialistas, colonização, roubo por meio de assassinatos e legislações sanguinárias, isto é, “violência direta e extraeconômica” (außerökonomische, unmittelbare Gewalt) (MEW 23: 765). Segundo Marx (id.), esse processo é chamado de “primitivo”, pois identificado com a “pré-história do capital”.

Rosa Luxemburgo não se limitou a ver esse fenômeno como “pré-história do capital”, mas como fator determinante da dinâmica do desenvolvimento do próprio capitalismo. A autora sustenta que apenas uma parte do movimento da acumulação realiza-se a partir de um processo puramente econômico entre capitalistas e trabalhadores nos espaços de produção da mais-valia (Luxemburg 1975Luxemburg, R. (1975 [1913]): “Die Akkumulation des Kapitals”. In Lexemburg, R. Gesammelte Werke, Vol. 5. Berlin: Institut für Marxismus-Leninismus.: 315). Todavia, como apenas essa parte relativa e limitada da mais-valia consegue ser apropriada no local de sua produção, Luxemburgo (1975: 315–316) sustenta que o sistema sempre necessita recorrer a um Fora não-capitalista para realizá-la por completo. Esta outra dimensão da acumulação opera no cenário mundial e, como visto, faz uso de violência explícita.

A partir das considerações de Luxemburgo, Harvey (2009______. (2009) “The ‘New’ Imperialism: Accumulation by Dispossession”. Socialist Register 40 (40): 63–87.: 74 ss) desenvolve o argumento segundo o qual a acumulação baseada na violência não é uma “etapa originária” ou um ato passado, mas um processo que se repete permanentemente no curso do capitalismo. Por esta razão, ele passou a denominá-lo de “acumulação por despossessão”. Harvey (2009______. (2009) “The ‘New’ Imperialism: Accumulation by Dispossession”. Socialist Register 40 (40): 63–87.: 64) sustenta que “a sobreacumulação em um sistema territorial específico” é resultado tanto do excedente de trabalho (desemprego) como do capital (abundância de mercadorias que não podem ser vendidas sem perdas, inutilização da potencialidade produtiva e excesso de capital desprovido de capacidade de se tornar rentável). Segundo o autor, tal excedente pode ser absorvido por ajustes temporal-espaciais. Quando esses ajustes não se dão através da “reprodução ampliada sobre uma base sustentável”, Harvey (2009: 63–64) afirma que a acumulação passa a recorrer a outros meios, qual seja, a acumulação por despossessão. Nesse momento, conclui o autor, ela se transforma em um “capitalismo de rapina” que retoma as práticas predatórias e a violência política do ato original (Harvey 2009______. (2009) “The ‘New’ Imperialism: Accumulation by Dispossession”. Socialist Register 40 (40): 63–87.: 72). O fator decisivo, neste processo, é que a acumulação do capital sempre se dá por meio de diferentes formas de intervenção estatal.

Este é o ponto de partida para os estudos de Dörre (2012 que, nos últimos anos, dedicou-se a oferecer um teorema da expropriação capitalista do espaço (Landnahme).8 8 O termo alemão Landnahme significa literalmente “tomada da terra”. Sua origem teórica encontra-se em Luxemburgo que atribuiu à expansão capitalista o conteúdo do colonialismo dos países não-europeus. Conforme aplicado por Dörre, essa noção adquire um sentido mais amplo. É a invasão, tomada e ocupação de um espaço ou grupo social para a exploração de toda sua potencialidade e mercantilização. Nesse sentido, optei pela tradução “expropriação capitalista do espaço”. Essa opção se baseia, mais uma vez, na influência da reflexão desenvolvida por Virginia Fontes entre nós, conforme explicado na nota de rodapé n. 7. Nesse sentido, é importante ressaltar que a presente opção de tradução se diferencia de duas escolhas anteriores que eu havia feito. Quando fui revisor de um trabalho de Dörre (2015a) ao português, achei melhor manter a expressão Landnahme no original em alemão. Em um texto de minha autoria anterior (Gonçalves 2016), adotei a tradução espoliação do espaço. Tudo isso revela a dificuldade de expressar o sentido que o termo alemão contem. Uma dificuldade compartilhada pelos tradutores de Dörre em língua inglesa. Ver, nesse sentido, Dörre/Lessenich/Rosa 2015: 4. É importante ressaltar, ainda, que o conceito de Landnahme não pode ser reduzido à expressão inglesa land grabbing que, bastante difusa no debate contemporâneo, possui um sentido técnico muito preciso: aquisição ilegal de grandes porções de terras por companhias transnacionais, governos estrangeiros ou pessoas privadas para produzir alimentos ou biocombustíveis em alta escala. O leque e o objetivo teórico do termo Landnahme são muito maiores. Trata-se de um conceito macrossociológico, isto é, reflete diferentes processos de expropriação de um espaço social lato sensu (não se resumindo a um território geográfico, mas contendo também relações sociais) com fins de mercantilizá-lo. Esse modelo entende que a acumulação capitalista sempre esbarra em barreiras temporal-espaciais que precisam ser superadas para sua continuidade. A ideia de impossibilidade de realização completa da mais-valia em seu lugar de produção é retomada para demonstrar que a acumulação do capital exige, para sua perpetuação, novos territórios não-capitalistas que poderão prover novos recursos, matérias-primas e mercados de trabalho (2012: 40). Para Dörre (2012Dörre, K. (2012): “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarktkapitalismus”. In: Dörre, K.et all. (Hg.). Soziologie - Kapitalismus - Kritik: eine Debatte. Frankfurt: Suhrkamp, pp. 21–86.: 41), os espaços não-capitalistas não se resumem a territórios ou modos de produção já existentes, o que tornaria o processo de expansão do capital um fenômeno irreversível, que tenderia a um fim. Ao contrário, a necessidade permanente de superar as fronteiras da acumulação leva o capitalismo a produzir espaços não-capitalistas, que ele, posteriormente, expropriará. Com isso, o autor indica que “em princípio, a cadeia de expropriação capitalista do espaço é infinita” (Id: 42).

A partir dessa consideração, Dörre (2012Dörre, K. (2012): “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarktkapitalismus”. In: Dörre, K.et all. (Hg.). Soziologie - Kapitalismus - Kritik: eine Debatte. Frankfurt: Suhrkamp, pp. 21–86.: 36 e 41) formula um teorema do desenvolvimento capitalista. Trata-se da acumulação do capital pela expropriação de espaços não-capitalistas existentes ou produzidos ativamente. Dessa tese, o autor deduz que o capitalismo funciona com base em uma “Dialética Dentro-Fora”, segundo a qual os limites de sua capacidade interna de acumulação exigem a expropriação de um Fora. Esta equação, no entanto, só se fecha por meio de intervenções estatais, regulações, violências diretas, físicas e simbólicas. Nesse contexto, o papel do direito enquanto violência jurídica é fundamental.

4.2. A reprodução sócio-jurídica da expropriação capitalista

No movimento da expropriação capitalista do espaço, o direito atua em diferentes processos de ocupação e precarização, movidos pela expansão da acumulação do capital. Esses processos são múltiplos e variam conforme sua escala de ação sobre as diversas territorialidades. Podem, portanto, se reproduzir em um plano macro, como os regimes de austeridade e privatização, em aquisições ilegais de terras (land grabbing) por companhias privadas para produzir commodities ou em intervenções locais, como as políticas de regularização fundiária, desocupação e especulação imobiliária em bairros operários ou favelas.

Em comum, todas essas medidas têm o fato de se desenvolverem por meio de ações diretas do Estado que efetuam a mudança das relações de propriedade então existentes e mercantilizam espaços até então pouco atrativos para a produção de valor (Dörre 2012Dörre, K. (2012): “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarktkapitalismus”. In: Dörre, K.et all. (Hg.). Soziologie - Kapitalismus - Kritik: eine Debatte. Frankfurt: Suhrkamp, pp. 21–86.: 30-35; Harvey 2007______. (2007): A Brief History of Neoliberalism. Oxford/New York: Oxford University Press.: 78). Tal mercantilização torna-se possível por dispositivos regulatórios que privatizam bens públicos e comuns, cortam gastos públicos e sociais, reduzem impostos sobre a renda, retiram as barreiras que limitam o livre fluxo do capital financeiro por meio de políticas de desregulamentação e restringem as garantias dos trabalhadores.

Como visto, em um processo de expropriação, há sempre a superação de um mecanismo bloqueador da acumulação e a ocupação capitalista de um território (lato sensu) no qual determinadas necessidades encontravam-se desmercantilizadas. Como essa dinâmica implica a reestruturação espacial, ela importa, ao mesmo tempo, expulsão ou precarização das populações locais, que, uma vez retiradas de seu espaço comum, podem se vender livremente no mercado de trabalho. Para isso, no entanto, precisam ser disciplinadas para seu novo papel na cadeia produtiva. Assim, além dos instrumentos de apropriação/expropriação do espaço público e comum, o direito também participa das técnicas de controle dos expropriados.

Em termos gerais, reprodução sócio-jurídica da expropriação capitalista implica desvalorização dos direitos sociais, desapropriação de terras coletivas, ampliação e forte proteção dos direitos de propriedade, incentivos jurídicos à privatização, arranjos institucionais facilitadores do livre-mercado, criminalização da pobreza e dos movimentos de resistência. Tem-se, assim, um modelo de direito que explicitamente prescreve a expropriação, a ocupação de domínios comuns e a colonização de diferentes formas de espaço e de modos de vida, relações e subjetividades existentes.

Esse modelo é resultado de reformas legislativas e constitucionais desencadeadas pelo Estado com base em procedimentos legais, que alteram uma organização sócio-jurídica coletiva e comum, substituindo-a por um regime jurídico de direito privado. Essa alteração de regime jurídico pode ser relida justamente como um processo de transição da comunidade (Gemeinschaft) para a sociedade das trocas de equivalentes. Grupos sociais que experimentavam uma vida comum e coletiva são descolados dos meios de produção e distanciados entre si através de um ato expropriador e, a partir de então, se encontram livres para negociar sua força de trabalho. Em outras palavras, o sujeito coletivo se transforma em um sujeito de direito, dotado juridicamente de autonomia e vontade livre, para aparecer em um contrato de compra e venda como um igual.

Do ponto de vista da expropriação capitalista, a vida coletiva e comum é um contexto desmercantilizado, na medida em que os membros da comunidade não participam da produção de valor. A remercantilização implica a expropriação desses membros e, ao mesmo tempo, a alteração de seu regime jurídico, do direito comum e coletivo ao direito (burguês) civil. Assim, em razão dessa correlação (entre a expropriação e a alteração de regime jurídico), ainda que a expropriação possa incluir práticas de roubo, conquistas e guerras abertamente ilegais, ela sempre vai precisar de um momento de violência jurídica, isto é, uma reforma legal, uma nova regulação ou instituto que, ao transformar as condições jurídicas existentes, prescreve abertamente a estrutura de desigualdade do ato expropriador. Nessa manifestação do direito, não há igualdade e liberdade abstratas, não há fetichismo, alienação ou distanciamento do mundo, mas reconhecimento jurídico explícito da assimetria e da desigualdade. Um exemplo bastante esclarecedor dessa configuração do direito é a edição e promulgação da assim chamada “Lei das Joias”, aprovada pelo Parlamento dinamarquês em janeiro de 2016, que permite que sejam confiscados os bens dos refugiados, quando seu patrimônio exceder 10.000 coroas dinamarquesas.9 9 O título oficial da respectiva lei é L 87.

4.2.1. Othering e direito: o “Outro” como o “Fora”

A desigualdade materialmente estabelecida pelo ato expropriador e legalmente prescrita precisa pressupor uma justificativa racional para a situação desigual que será estabelecida. Para tanto, a expropriação capitalista do espaço faz uso de sua dimensão linguístico-discursiva. Essa dimensão foi investigada recentemente por Backhouse (2015)Backhouse, M. (2015): Grüne Landnahme - Palmölexpansion und Landkonflikte in Amazonien. Münster: Westfälisches Dampfboot.. Ao estudar a expropriação capitalista das áreas verdes (grüne Landnahme) no estado do Pará, a autora mostra que a introdução da figura retórica áreas degradadas (degradierte Flächen) em legislações de proteção ambiental foi essencial para justificar a transferência da propriedade rural de pequenos proprietários para grandes empresas. Trata-se aqui de um processo simbólico, em que o grupo social e o espaço a serem expropriados são retórica e discursivamente estabelecidos como um Outro prejudicado, inferiorizado e atrasado. Nesse processo, o discurso jurídico não é o único, mas um fator fundamental na concepção desse Outro.

Os mecanismos que concorrem para tal concepção são muito semelhantes àqueles descritos no conceito de othering, tal como formulado por Spivak (1985)Spivak, G. C. (1985): “The Rani of Simur: An Essay in Reading the Archives”. History and Theory 24(3): 247-272.. Othering é um instrumento utilizado para se construir imagens de “culturas diferentes” como representações invertidas de si. Isto é: cria-se a representação de um diferente pelo recurso a figuras estereotipadas com o fim de se estabelecer valores positivos para a própria identidade cultural. Spivak mostra que o othering foi utilizado para impor a primazia da Europa sobre suas colônias na escala civilizatória. De um lado, tem-se a identidade europeia, o Eu, que é apresentado como racional, moderno e individual; do outro lado, tem o Outro, a cultura do resto do mundo, que é construída como ancestral, tradicional, atrasada, pré-moderna ou comunitária (Costa e Gonçalves 2011Costa, S./Gonçalves, G. L. (2011): “Human Rights as Collective Entitlement? Afro-Descendants in Latin America and the Caribbean”. Zeitschrift für Menschenrechte 2: 52-70.: 59).

A reprodução cultural do Outro não é, todavia, autorreferencial, como sugerem os Estudos Pós-Coloniais (Said 2003Said, E. W. (2003): Orientalism. London: Penguin Books.: 2-4), mas está ancorada nas condições objetivas da expansão do capital. No momento em que uma expropriação capitalista é ativada, diversas estruturas discursivas concorrem para caracterizar como desviantes e atrasadas as condições, prestações e relações existentes em um espaço desmercantilizado. Essa caracterização é sempre formada com base em uma comparação com o suposto grau de desenvolvimento alcançado pelo espaço mercantilizado. Isto pode ser visto nos discursos humanistas e iluministas que, ao caracterizarem os povos originários da África, da Ásia ou da América como irracionais e sua natureza como selvagem, viabilizaram as conquistas e colonizações da acumulação primitiva (Amin 2009Amin, S. (2009): Eurocentrism: Modernity, Religion and Democracy. A Critique of Eurocentrism and Culturalism. New York: Monthly Review Press.: 152ff.). Mas também pode ser encontrado nas atuais recomendações neoliberais que tratam determinados territórios como atrasados, improdutivos e ineficientes, possibilitando sua ocupação pela lógica “racional” do mercado (Chimni 2006Chimni, B. S. (2006): “Third world approaches to international law: a manifesto”. International Community Law Review 8: 3-27.). Enquanto vetores da acumulação primitiva e de sua repetição, projetos de modernização e desenvolvimento, bem como missões civilizatórias, carregam em si as condições retóricas e discursivas da expropriação capitalista, isto é, concorrem para a caracterização do “Outro” a ser expropriado.

Da perspectiva da expropriação capitalista, o Outro cultural é o Fora não-capitalista. Na medida em que determinado espaço não corrobora para a criação de valor, ele se encontra externo à acumulação capitalista. Quando, como visto, essa última se depara com seus limites em uma situação de crise de sobreacumulação, ela necessita criar condições para sua expansão. Para isso, instrumentos retórico-discursivos caracterizam o Fora como um Outro desviante e inferior, como uma área degradada. Ao aparecer como tal, o Fora se torna um território que não apenas pode, mas deve ser apropriado para poder se desenvolver. Essa dinâmica aparece de maneira muito clara nos discursos políticos e jurídicos sobre favelas na América Latina. Geralmente associadas de maneira estereotipada a um lugar onde se corporifica a criminalidade e o subdesenvolvimento, as favelas se tornam uma área “incivilizada” que pode ser, a qualquer momento, tomada para reestruturações urbanas ou especulação imobiliária (Berenguer 2014Berenguer, L. O. (2014): “The Favelas of Rio de Janeiro: A study of socio-spatial segregation and racial discrimination”. Iberoamerican Journal of Development Studies 3(1): 104–134.: 110ff; Rothfuß 2014Rothfuß, E. (2014): Exklusion im Zentrum: Die brasilianische Favela zwischen Stigmatisierung und Widerständigkeit. Bielefeld: Transcript.; Wacquant 2005Wacquant, L. (2005): “Zur Militarisierung städtischer Marginalität. Lehrstücke aus Brasilien”. Das Argument 263: 131–147.).

4.2.2. Privatização pelo direito

Note-se, portanto, que a caracterização do Fora como Outro é uma condição para sua mercantilização. Nesse momento, no entanto, os arranjos jurídicos não são mais os mecanismos de othering. O direito, ao contrário, desenvolve instrumentos que possibilitam a transferência da propriedade e da prestação de serviço público, coletivo ou comum a atores privados do mercado. Esses instrumentos realizam a desregulamentação, a privatização e a abertura de um determinado setor para o comércio transnacional e a concorrência. Aparecem em diferentes desenhos institucionais: leilões e vendas de bens, vias, empresas ou áreas públicas, concessões, parecerias entre atores públicos e privados, transmissões da propriedade, da administração ou da gestão de um serviço público ou meio coletivo para empresas particulares etc. (Picciotto 2002Picciotto, S. (2002). “Introduction: Reconceptualizing Regulation in the Era of Globalization”. Journal of Law and Society, 29(1), 1-11.). Em comum, esses desenhos institucionais operam o deslocamento da capacidade de alocação de recursos de um ente coletivo ou público (o Estado, por exemplo) para empreendimentos privados, que passam a estabelecer novas instâncias produtivas, definir novos padrões de integração dos sectores econômicos, de tecnologias e de relações trabalhistas.

A privatização e o cercamento são os atos característicos do momento da mercantilização em uma expropriação capitalista do espaço. Eles viabilizam a abertura de um mercado até então inexistente que será capaz de absorver os fluxos do capital. Já vimos que esse processo implica o processo de separação entre produtor e meio de produção. Isso, por sua vez, pode se dar por desapropriações legais, nas quais o Estado, sob a justificativa que vai promover uma utilidade pública, ironicamente retira as pessoas de suas casas ou terras e reestrutura o território para a criação de valor. Ainda que legal, essas medidas têm a mesma forma do roubo, pois pressupõem uma prerrogativa unilateral do Estado que não depende da concordância do afetado. Recentemente, as imagens das remoções de favelas no Rio de Janeiro em função das reformas urbanas destinadas a receber os Jogos Olímpicos de 2016 (que, sob a justificativa de “utilidade pública”, viabilizaram a incorporação de favelas e terrenos populares ao mercado imobiliário e a exploração do turismo) mostram o caráter violento dessas medidas jurídicas. O contingente de policiais e o poderio militar mobilizados confirmam que o instrumentário jurídico das desapropriações não é um processo idílico nem igualitário (Cummings 2015Cummings, J. (2015): “Confronting Favela Chic: The Gentrification of Informal Settlements in Rio de Janeiro, Brazil”. In: Lees, L. et all. (Eds.). Global Gentrifications. Uneven Development and Displacement: Bristol: Policy Press, pp.81-100; Freeman 2012Freeman, J. (2012): “Neoliberal accumulation strategies and the visible hand of police pacification in Rio de Janeiro”. Revista de Estudos Universitários 38 (1): 95-126; Sánchez e Broudehoux 2013Sánchez, F. und Broudehoux, A-M. (2013): “Mega-Events and Urban Regeneration in Rio de Janeiro: Planning in a State of Emergency”. International Journal of Urban Sustainable Development. 5(2): 132-153.).

Uma outra prática comum de privatização e cercamento é a distribuição por parte do Estado de títulos de propriedade às populações que ocupam áreas comunitárias (Dowall e Clark 1996Dowall, D. E./Clark, G. (1996): A Framework for Reforming Urban Land policies in Developing Cpountries. Urban Management Program Report 7, IBRD: Washington DC.). Nesse caso, o membro de uma comunidade ou de uma terra coletiva é transformado em proprietário da parcela em que morava ou trabalhava. Após a titulação, o indivíduo se torna livre para alienar, arrendar, hipotecar, atrair investimentos para melhora de infraestruturas etc. A literatura dominante tem identificado nessas práticas um potencial de empoderamento (empowerment) dessas populações (Atuahene 2006Atuahene, B. (2006): “Land Titling: A Mode of Privatization with the Potential to Deepen Democracy”. Saint Louis University Law Journal 50: 761-781.). Não seriam, no entanto, mais um tipo de violência jurídica?

Entre uma historiografia pessimista e otimista sobre as condições da massa popular inglesa na acumulação primitiva, Thompson (1966Thompson, E. P. (1966): The Making of the English Working Class. New York: Vintage Books.: 212) formulou uma tese que pode ser útil para responder a essa pergunta. Segundo o autor, a ligeira melhora proporcionada por algumas legislações protetoras da classe trabalhadora na virada do século XVIII para o XIX foi, na verdade, sentida como uma experiência catastrófica. Isto é: se a transformação em trabalhador livre pode ter representado algum ganho imediato, também significou participar das condições capitalistas de exploração do trabalho. Transportada essa tese para a atualidade, é possível afirmar que programas de distribuição de título de propriedade são caminhos possíveis para se sentir a experiência catastrófica do precariado.10 10 A literatura sobre o precariado é ampla. Ver, entre outros, Dörre 2013 e 2015b; Standing 2011.

4.2.3. Uso massivo do direito penal

Sob as condições do trabalho precarizado, criam-se oportunidades para o surgimento de legislações punitivas destinadas a preparar a massa livre para suas novas condições de trabalho e reprimir suas formas de resistência (Wacquant 2014______. (2014): “Marginality, Ethnicity, and Penality: A Bourdieusian Perspectiva on Vriminalization”. In: Duff, R. A. et all (Eds.). Criminalization. The Political Morality oft he Criminal Law. Oxford: Oxford University Press, pp. 270-290). Existem experiências recentes que mostram como o direito penal pode ser um componente importante para se sentir essa experiência como catastrófica. A reforma constitucional do direito à terra no México é um exemplo esclarecedor desse processo.11 11 Esse caso foi amplamente analisado em outra oportunidade: Schacherreiter e Gonçalves 2016.

A Constituição Mexicana de 1917 inaugurou no mundo o reconhecimento da propriedade social, assegurando os ejidos e as comunidades, terras coletivas e áreas comuns para camponesas e indígenas. No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, as negociações sobre a participação do México no Tratado Norte-americano de Livre Comércio (NAFTA) e as recomendações do Banco Mundial exigiram ajustes estruturais que buscassem substituir o modelo agrário da Revolução de 1917 pela liberalização financeira da terra. Com isso, a Constituição foi reformada e permitiu expressamente que os ejidos pudessem ser vendidos, alugados e hipotecados. Em outras palavras: a reforma constitucional transformou trabalhadores comunitários em proprietários livres. As condições desiguais e assimétricas (de poder, de informação, de capital, de distribuição de riscos etc) presentes no mercado agrário transnacional levaram esses camponeses a vender suas terras em situações altamente desfavoráveis (de endividamento, desconhecimento do valor real etc.) e a se tornar empregados dos novos proprietários (conglomerados empresariais que compraram e concentraram as terras na forma de grandes latifúndios voltados para a produção de biocombustível e alimentos em alto escala).

Evidentemente que houve uma intensa mobilização dos camponeses contra essas medidas. A mais importante foi o levante do Ejército Zapatista de Liberación Nacional em 1994 em Chiapas. Simultaneamente a essa mobilização, o Estado Mexicano desenvolveu diversas políticas de criminalização e repressão dos camponeses e dos movimentos políticos. Este aparelho repressivo desencadeou diversas prisões sob a acusação de diferentes crimes, dentre eles, ataque à paz pública, portes de arma de uso exclusivo do exército, insultos à autoridade, violação da ordem, motim, terrorismo, sedição, rebelião e conspiração (Comité Cerezo México 2016Comité Cerezo México (2016a): CONSULTA 5° Informe VDH: Defender los derechos humanos en México: La normalización de la represión política (Junio de 2015 a mayo de 2016), https://www.comitecerezo.org/spip.php?article2557&lang=es
https://www.comitecerezo.org/spip.php?ar...
). Entre 1995 e 2010, existiram em torno de 900 presos políticos condenados em todo o país (id., 2012).

Além disso, como mostra Bayo (2013)Bayo, M. M. (2013): “La criminalización de la pobreza y los efectos estatales de la seguridad neoliberal: Reflexiones desde la Montaña, Guerrero”. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas 7(2): 174-208., um conjunto de jurisprudências da Suprema Corte de Justiça e reformas da lei criminal estabeleceram diversos regimes de exceção. Segundo a autora, a principal dessas reformas foi a modificação da Ley contra la Delincuencia Organizada (id., 199). A nova redação da respectiva lei fez amplo uso de termos ambíguos e abstratos para identificar a participação de um indivíduo em uma rede criminosa. Isso possibilitou evidentemente a ampliação da repressão a mobilizações políticas e sociais, que, por envolver a reunião de várias pessoas, poderiam agora ser classificadas como ações de uma organização criminosa. Além disso, como essa lei se refere à prática de qualquer crime, seus termos abstratos permitiram que qualquer indivíduo indiretamente relacionado possa ser visto como parte de uma organização. Isso tem levado à criminalização em massa da população pobre. Se considerarmos que essa massa é formada por camponeses e indígenas expulsos de seus ejidos e comunidades, fica ainda mais claro o caráter disciplinador da respectiva legislação.

Esse exemplo ilustra bem a última etapa da reprodução sócio-jurídica da expropriação capitalista, qual seja, o uso massivo do direito penal. Essa etapa foi amplamente descrita por Marx no Capitulo 24 do Volume 1 de O Capital. Quando tratou da usurpação violenta da terra comunal na Inglaterra, Marx identificou duas fases histórico-jurídicas distintas no que se refere à regulação dos direitos à terra. A primeira refere-se ao período que compreende do final do século XV ao século XVII, quando a respectiva usurpação foi praticada ilegalmente e contra legislações que buscavam freá-la. A segunda fase verificou-se a partir do século XVIII, momento em que a usurpação passou a ser legal e a própria lei se tornou o “veículo do roubo” (MEW 23: 709).

Ambos os momentos, no entanto, foram atravessados pelo direito penal, que Marx então denominou de “legislação sanguinária”. Essas leis operavam paralelamente à expropriação dos camponeses de suas terras. À medida que eram expulsos, eles se tornavam completamente livres para vender sua força de trabalho ao capitalista, mas não conseguiam ser automaticamente absorvidos pela economia industrial. De um lado, as manufaturas não cresciam na mesma proporção do número elevado de camponeses expropriados; de outro, esses camponeses, socializados em outras práticas, não correspondiam aos novos padrões de trabalho e modos de vida exigidos. Formava-se, assim, uma massa ainda não economicamente absorvida que necessitava ser ajustada à “disciplina da nova situação” (MEW 23: 762). É dessa perspectiva que Marx explicou o surgimento na Inglaterra e na França de diversas legislações sanguinárias contra a vagabundagem e a pauperização desde o século XV. O direito penal, nesse sentido, cumpriu um papel de disciplinamento da força de trabalho durante o processo de acumulação primitiva.

4.2.4. Sistematização do ciclo: violência jurídica e prescrição jurídica da desigualdade

Com base em todos os elementos até aqui discutidos, é possível fazer agora uma sistematização de todo o processo da reprodução sócio-jurídica da expropriação capitalista do espaço e de suas fases. O primeiro ato se dá com a caracterização do Fora não-capitalista como um Outro desviante, inferiorizado e atrasado. Umas vez assim qualificado, é possível praticar atos de expropriação por meio de técnicas jurídicas destinadas à privatização do espaço comum e público. O emprego dessas técnicas pressiona grupos sociais e populações locais a se desvincularem de suas comunidades ou coletividades, tornando-os livres para vender sua força de trabalho. A partir desse momento, o direito penal é utilizado para fins de disciplinamento.

Quando o processo de repressão e criminalização dos grupos expropriados se completa, os indivíduos que pertenciam a esses grupos se acham suficientemente preparados para ingressar no sistema de troca de equivalentes. Em outras palavras: somente após o disciplinamento por meio do direito penal, o ciclo estável da acumulação (D-M-D’) pode ser normalizado. Uma vez normalizado, o direito passa a aparecer e funcionar de uma maneira diversa daquela manifestada na expropriação capitalista. Ele deixa de prescrever expressamente violência e desigualdade e adquire a estrutura da forma jurídica, isto é, a forma da igualdade e liberdade abstratas, que se encontra vinculada ao fetichismo da mercadoria para ocultar a apropriação do tempo de trabalho que não foi pago.

Tudo isso, no entanto, é precedido pela violência jurídica e pela prescrição normativa da desigualdade conduzidas pelo expropriação capitalista do espaço. Sistematicamente, foi visto que reprodução sócio-jurídica da expropriação capitalista se desenvolve em três etapas: (a) a criação do Fora não-capitalista por meio de othering; (b) a privatização e (c) a repressão/disciplinamento pelo direito penal.

Ainda que, para implementar essas etapas, o ordenamento jurídico disponibilize múltiplas instituições, regulações e regras, é possível identificar o uso mais acentuado de determinados marcos regulatórios em cada tipo de expropriação capitalista. Para ilustrar esses usos tomarei – ainda que rapidamente – o exemplo da atual expropriação dominada pelas finanças. Nela pode-se identificar em cada uma das etapas citadas um configuração jurídica que se destaca:

  1. a

    No que se refere à criação do Fora não-capitalista por meio de othering, os direitos humanos são um instrumento clássico, cujo emprego pode ser amplamente constatado desde o início do colonialismo europeu até os processos contemporâneos de financeirização (Anghie 1999; Barreto 2012Barreto, J-M. (2012): “Decolonial Strategies and Dialogue in the Human Rights Field: A Manifesto”. Transnational Legal Theory 3(1): 1-29.; Costa e Gonçalves 2011Costa, S./Gonçalves, G. L. (2011): “Human Rights as Collective Entitlement? Afro-Descendants in Latin America and the Caribbean”. Zeitschrift für Menschenrechte 2: 52-70.; Gonçalves e Costa 2016______./Costa, S. (2016): “The Global Constitutionalization of Human Rights: Overcoming Contemporary Injustices or Juridifying Old Asymmetries?”. Current Sociology 64(2): 311-331.; Gonçalves 2012Gonçalves, G. L. (2012): “Are We Aware of the Current Recolonisation of the South?”. This Century Review/Journal for Rational Legal Debate 1: 22-25.). Nesses processos, como afirma Chimni (2006)Chimni, B. S. (2006): “Third world approaches to international law: a manifesto”. International Community Law Review 8: 3-27., o projeto neoliberal tem usado amplamente essa experiência para a abertura de novos mercados e investimentos.

  2. b

    Quanto à privatização, o principal mecanismo de transferência de um regime público e coletivo para atores privados tem sido as parcerias público-privadas.

  3. c

    Por fim, no que se refere aos processos de repressão e disciplinamento, recomendações transnacionais de combate ao financiamento do terrorismo têm levado à produção de um aparato repressivo estatal de criminalização de movimentos sociais e de populações precarizadas.

Ainda que de maneira breve, analisarei cada um desses marcos regulatórios nas próximas páginas à luz da perspectiva de uma reprodução sócio-jurídica da expropriação dominada pelas finanças.

4.3 Reprodução sócio-jurídica da expropriação dominada pelas finanças

Harvey (2007______. (2007): A Brief History of Neoliberalism. Oxford/New York: Oxford University Press., 147 ss) mostra que o fordismo construiu, por meio de investimentos em infraestrutura e força de trabalho, condições para a exploração econômica em um determinado espaço. Tal exploração foi amortizada apenas a longo prazo (Dörre 2012Dörre, K. (2012): “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarktkapitalismus”. In: Dörre, K.et all. (Hg.). Soziologie - Kapitalismus - Kritik: eine Debatte. Frankfurt: Suhrkamp, pp. 21–86., 42–43). Nesse ciclo, o Estado tornou-se peça-chave para os movimentos do capital e, ao absorver a produção por meio de investimentos em bens públicos, criou uma estratégia de desarme do dispositivo da sobreacumulação.

Dörre (id.) interpreta esse processo como a formação de um Fora que, apesar de utilizado para melhorar a prestação econômica, é inacessível para a acumulação privada. Com isso, foram construídas as condições para uma nova expropriação capitalista: quando esse espaço público esgotou seu potencial de amortização e, consequentemente, se tornou um obstáculo para a valorização do capital, passou a ser tomado pelo capital financeiro. Se é verdade que esse processo permitiu que o capital excedente fosse convertido em ativos, também levou à desindustrialização e à precarização, isto é, a um novo Fora a ser posteriormente tomado por um outro tipo de expropriação capitalista, qual seja, o capitalismo financeiro (Dörre 2012Dörre, K. (2012): “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarktkapitalismus”. In: Dörre, K.et all. (Hg.). Soziologie - Kapitalismus - Kritik: eine Debatte. Frankfurt: Suhrkamp, pp. 21–86.: 44).

Caracterizado pelas políticas neoliberais de austeridade e por uma orientação ao mercado global, todas essas ações, voltadas para privatizar o mercado de bens e serviços até então produzidos e administrados pelo Estado, foram desenvolvidas por meio de intervenções regulatórias e reformas legais. Nesse sentido, diferentemente do que à primeira vista pode parecer, a expropriação no neoliberalismo (dominada pelas finanças) é politizada, dependente de regulação estatal e de (novos) marcos normativos (Dörre 2012Dörre, K. (2012): “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarktkapitalismus”. In: Dörre, K.et all. (Hg.). Soziologie - Kapitalismus - Kritik: eine Debatte. Frankfurt: Suhrkamp, pp. 21–86., 30–35).

4.3.1. Direitos humanos como meio de criação do Fora não-capitalista a ser expropriado

A principal pergunta do ponto de vista da teoria da expropriação capitalista do espaço a respeito dos direitos humanos é: Por que a eclosão da influência política e aceitação social dos direitos humanos como projeto emancipatório se deu nos últimos trinta anos, isto é, concomitante às transformações nos modelos de produção e de regulação que levaram à estabilização da acumulação neoliberal? Para respondê-la, é preciso recorrer às considerações do jovem Marx.

Em Sobre a Questão Judaica, o conceito de universalidade irreal (unwirklichen Allgemeinheit) apresenta a negação da vida material do homem em relação ao seu ser genérico (Gattungswesen) por meio da criação do Estado Político. O ser genérico torna-se uma abstração política, um cidadão, que encobre o indivíduo real, constituído pelos interesses egoísticos do burguês. Note-se que o cidadão suspende apenas abstratamente as desigualdades materiais, mas não as anula, permitindo que elas se reproduzam, a seu modo, na vida real, na sociedade civil burguesa (MEW 1: 355-356).

Essa crítica é desenvolvida pelo Jovem Marx a partir da distinção droits du citoyen/droits de l’homme. Uma distinção que indica dois padrões de direitos. De um lado, os droits du citoyen reforçam a essência associativa da vida humana e pressupõem a vinculação do homem em comunidade. De outro, os droits de l’homme, o direito de propriedade e do homem egoísta, que negam a essência associativa da vida humana, se baseiam no divórcio de tal vida e no confinamento do social ao indivíduo. Ao distribuir abstratamente o título de membro da comunidade, os droits du citoyen suspendem as desigualdades para que elas se reproduzam na vida social real através dos droits de l'homme (MEW 1: 355-356; 362 e ss). Abstrata e artificial, a cidadania é uma alegoria que possibilita a imposição de interesses particulares e critérios desiguais, reconhecidos pelos droits de l'homme.

Em que pese o caráter idealista do conceito de ser genérico, o Jovem Marx descobriu uma fórmula fundamental para compreendermos como os direitos humanos criam simbolicamente o Fora não-capitalista que viabiliza a repetição da acumulação primitiva. Essa fórmula revela que os direitos humanos operam de modo contraditório: seu caráter universal cria uma igualdade abstrata que permite a reprodução jurídica da desigualdade material. Note-se que essa fórmula não corresponde à lógica da forma jurídica ou do fetichismo, vale dizer, não se trata da construção de uma relação de contradição em que a aparência do capitalismo (a troca de equivalente) nega a sua essência (a relação desigual entre capitalista e trabalhador). A universalidade abstrata dos direitos humanos (os droits du citoyen) cria as possibilidades de uma violência direta por parte do direito que reproduz juridicamente a desigualdade (os droits de l’homme).

Isso se dá porque o caráter universal dos direitos humanos pressupõe a existência de um conjunto de valores inerentes à natureza humana. Trata-se de uma humanidade intangível que, por residir na essência dos homens, é presente em todos indistintamente sendo, portanto, universalizada. Essa característica requer não apenas que todos sejam tratados de maneira igual, como também exige que o direito destinado à proteção dos valores humanos seja do mesmo modo universal. Isso significa que: se é verdade que qualquer indivíduo carrega a humanidade em si, como a exteriorização de seus atos é contingente, cabe aos direitos humanos opor-se aos atores, grupos e ações desviantes.

Este é o ponto de partida para se fixar um critério universal e moral de bem e de justiça, que é adotado como medida para julgar a realidade como desviante ou não. Note-se que, para autorizar a aplicação dos direitos humanos, o desviante deve ser considerado como parte da humanidade (mantém-se o universalismo abstrato), mas, ao mesmo tempo, deve ser tomado em sua especial fragilidade (porque é desviante). Se os desiguais são iguais enquanto homens (abstratos), mas inferiores em suas ações, o grupo autoproclamado “não desviante” pode, então, “proteger” os desviantes. Essa autoproclamação do grupo supostamente não-desviante se apresenta discursivamente como superioridade moral e civilizatória, mas, na verdade, é a manifestação da acumulação de poder existente na sociedade, conforme explicado por Arendt (2011Arendt, H. (2011 [1955]): Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft: Antisemitismus, Imperialismus, Totalitarismus. München [u.a.]: Piper.[1955]: 326). Nesse sentido, a definição universal de bem e justiça é monopolizada pelo ponto de vista das posições e classes dominantes, que a usam para impor seus interesses particulares. Com isso, o discurso humanista torna-se motor de intervenções, correções, controles, violências, conquistas e colonizações.

No âmbito do capitalismo global, a estratégia desse discurso é construir uma hierarquia espacial: de um lado, espaços civilizados, detentores das virtudes da racionalização moderna; de outro, bolsões de injustiça, governados por normas irracionais e atrasadas. Uma vez apresentadas como atraso, essas últimas regiões podem ser objeto de missões civilizatórias e de modernização (Boatca e Costa 2010Boatcă, M/Costa, S. (2010): “Postcolonial Sociology: A Research Agenda”. In: Rodríguez, E. G. et all. (Eds.): Decolonizing European Sociology. Transdisciplinary Approaches. Surrey: Ashgate, pp. 13-32; Hall 1992Hall, S. (1992): “The West and the Rest: Discourse and Power”. In: Gieben, B./Stuart, H. (Eds.). Formations of Modernity. Cambridge: Polity Press, S. 184–227.).

A base dessas missões é a tomada capitalista do território que permite a expansão da acumulação. Essa combinação entre expropriação capitalista e discurso dos direitos humanos só é possível por causa da relação contraditória entre droits de l’homme e droits du citoyen: o caráter universal dos direitos humanos é utilizado para a expansão do sistema capitalista, o que, por sua vez, tem como consequência a difusão global e a transnacionalização do direito de propriedade (Chimni 2006Chimni, B. S. (2006): “Third world approaches to international law: a manifesto”. International Community Law Review 8: 3-27.: 11).

Esse processo foi escancaradamente visível no colonialismo, quando a semântica dos direitos humanos e as missões civilizatórias foram a base das subjugações e da escravidão de diversos povos que viabilizaram a acumulação originária (Lander 2011Lander, E. (Org.) (2011): La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CICCUS.). O mesmo, no entanto, pode ser observado no capitalismo contemporâneo (Chimni 2006Chimni, B. S. (2006): “Third world approaches to international law: a manifesto”. International Community Law Review 8: 3-27.). Basta pensarmos nas guerras humanitárias contra o Iraque e nas diversas intervenções militares na África, guerras contra o tráfico na América Latina etc. Todas elas têm levado à expropriação e expulsão de comunidades, à produção de uma massa de camponeses, convertidos em trabalhadores precarizados. No seu lugar, há a valorização e a exploração capitalista do novo solo (land grabbing, especulação imobiliária etc).

Além disso, o suposto grau de superioridade na escala dos direitos humanos e do desenvolvimento permite às classes dominantes do centro do capitalismo ditar desenhos institucionais projetados no centro do capitalismo que devem ser adotados pelo resto do mundo. No âmbito da acumulação neoliberal, pense-se nas recomendações do Banco Mundial, do FMI, nas soluções de austeridade às crises etc. Nesse processo está a base do novo imperialismo: imperativos da acumulação que, com base nas normas e na linguagem dos direitos humanos, reproduzem a mesma lógica das “missões civilizatórias” que permitem as neocolonizações, ou melhor, as expropriações capitalistas do espaço.

4.3.2. Parcerias público-privadas como meios de mercantilização

Harvey (1989Harvey, D. (1989): “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler 71(1): 3-17.: 7) mostra que as principais ações de mercantilização no capitalismo financeiro têm dependido de um novo desenho institucional: as parcerias público-privadas.

Tais parcerias são consideradas a característica central do novo modelo social de empresariamento (Entrepreneurialism). Para Harvey (1989Harvey, D. (1989): “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler 71(1): 3-17.: 7-9), elas foram capazes de remodelar as condições de acumulação previamente existentes, que haviam se transformado em barreiras para a expansão capitalista. Durante o fordismo, o modelo de gerenciamento (Managerialism) baseava-se no repasse de recursos e no envolvimento direto de atores públicos com atividades produtivas e de investimentos. As transformações macro pós-1973 construíram, todavia, um novo ambiente econômico que passou a ser dependente da negociação direta com o mercado financeiro e da reconstrução de uma paisagem física e social que viabilizasse a competição por recursos e empregos. Dessa perspectiva, Harvey apresenta a ideia de que os espaços passaram a ter que assumir um comportamento empresarial. Tal empresariamento tornou-se possível pelas parcerias público-privadas.

Tais parcerias são contratos entre a Administração pública e grupos privados, nos quais esses últimos fornecem infraestruturas e serviços urbanos por meio de contraprestação remunerada. O financiamento das parcerias público-privadas dependem da emissão de títulos negociados na bolsa de valores. Trata-se de um sistema de captação de recursos contingenciados, isto é, o Estado só pode aplicar os recursos captados nas obras previstas para uma determinada região. Em contrapartida, os compradores dos títulos adquirem direitos de construir e modificar a infraestrutura urbana. Paralelamente a isso, o espaço é igualmente aberto para a especulação imobiliária. Com o objetivo de transformação da paisagem de modo a orientá-la ao mercado, as parcerias público-privadas se convertem, assim, em um instrumento jurídico privilegiado para a acumulação financeira.

4.3.3. Lei de combate ao financiamento do terrorismo como meio de disciplinamento da massa “livre”

Como visto, a expropriação dominada pelas finanças é a estratégia de inclusão de territórios em novos fluxos financeiros globais. Essa estratégia exige uma reestruturação do respectivo espaço para gerar valor de mercado a áreas até então desmercantilizadas. O efeito social dessas intervenções tem sido a expulsão da população pobre, apropriação de áreas públicas, eliminação do comércio local, apagamento da memória do território, desindustrialização, precarização, desemprego em massa e pobreza. Dado esse caráter abertamente antissocial, os projetos de reestruturação de cidades ou zonas rurais são atravessados por riscos de mobilizações coletivas, protestos e resistências sociais.

Para conter esses riscos, organismos transnacionais do capital financeiro têm exigido por parte dos Estados a adoção de legislações de combate ao financiamento ao terrorismo que, ao final, têm servido para a repressão de movimentos sociais e criminalização da pobreza. O principal desses organismos é o Finantial Action Task Force (FATF). O FATF integra uma rede de proteção que busca combater padrões institucionais que possam produzir efeitos negativos sobre a “integridade” do sistema financeiro. O objetivo do FATF é reagir às ameaças advindas da lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo. Para tanto, ele desenvolve uma série de recomendações e, em seguida, monitora a aplicação dessas medidas em seus países membros. Ao final, emite relatórios de avaliação que classificam os países como “conformes”, “parcialmente conformes” e “não conformes” às recomendações. A recompensa pelo cumprimento é a declaração daquele ambiente como seguro para os negócios. Já o certificado de “território não-cooperativo” representa um sinal vermelho para o mercado financeiro, desestimulando-o a realizar transações naquele país (FATF 2012FATF (2012): International Standards on Combating Money Laudering and the Finacing of Terrorism & Proliferation. FATF: Paris: http://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/recommendations/pdfs/FATF_Recommendations.pdf
http://www.fatf-gafi.org/media/fatf/docu...
).

As recomendações do FATF, consideradas saudáveis para o sistema financeiro, têm gerado efeitos completamente contrários à liberdade de associação e manifestação de movimentos sociais, conforme demonstrou Hayes (2012)Hayes, B. (2012). Counter-terrorism, policy laudering and the FATF: legalising surveillance, regulating civil society. Amsterdam: Transnational Institute e Statewatch (https://www.tni.org/files/download/fatf_report-update_0.pdf)
https://www.tni.org/files/download/fatf_...
. Isso foi particularmente sentido após implementação por diversos Estados da Recomendação VIII (R. VIII). Segundo Hayes (2012Hayes, B. (2012). Counter-terrorism, policy laudering and the FATF: legalising surveillance, regulating civil society. Amsterdam: Transnational Institute e Statewatch (https://www.tni.org/files/download/fatf_report-update_0.pdf)
https://www.tni.org/files/download/fatf_...
: 2), o sistema de avaliação desse organismo “aprovou alguns dos mais restritivos regimes reguladores de Organizações sem fins lucrativos no mundo e encorajou fortemente alguns governos já repressivos a introduzir novas regras susceptíveis de restringir o espaço político no qual as ONGs e os atores da sociedade civil atuam”.

Países que receberam o selo “conforme a recomendação”, como Egito e Tunísia, criaram regras, leis e um aparato de segurança que coibiram largamente a ação de movimentos sociais e coletivos políticos. Se pensarmos na história recente dos dois exemplos citados, fica evidente que a adoção da R. VIII foi um dentre muitos outros instrumentos da reação à Primavera Árabe e aos processos de mudança das estruturas de poder naquelas sociedades. Hayes (2012Hayes, B. (2012). Counter-terrorism, policy laudering and the FATF: legalising surveillance, regulating civil society. Amsterdam: Transnational Institute e Statewatch (https://www.tni.org/files/download/fatf_report-update_0.pdf)
https://www.tni.org/files/download/fatf_...
:2) realizou ainda estudos de caso de outros dez países: Miyanmar, Camboja, Colômbia, Índia, Indonésia, Paraguai, Rússia, Arábia Saudita, Serra Leoa e Uzbequistão. Em todos, afirma o autor, legislações endossadas pelo FATF restringiram direitos de organização e manifestação de movimentos sociais. Segundo Hayes, o impacto do regime da R. VIII também foi negativo mesmo nos países em que ativistas experimentam maior espaço de liberdade. Itália, EUA e Bélgica, por exemplo, também obtiveram o selo “conforme a recomendação”. Nesses três países, foi constatado um aumento significativo do aparelho repressivo contra movimentos sociais e imigrantes pobres.

Na verdade, o combate ao financiamento do terrorismo tem se tornado um instrumento fundamental para aumentar o arsenal dos poderes coercitivos do Estado (Crimm 2008Crimm, N. J. (2008): “The Moral Hazard of Anti-Terrorism Financing Measures: A Potential to Compromise Civil Societies and National Interests”. Wake Forest Law Review 43(2): 577-626.; McCullooch e Pickring 2005McCulloch, J./Pickering, S.J. (2005): “Suppressing the financing of terrorismo”. The British Journal of Criminology 45(4): 470-486.; Welsh 2013Welsh, R. “Understood But Undefined: Why Do Argentina and Brazil Resist Criminalising Terrorism?”. Vienna Journal on International Constitutional Law 7(3): 327-384.). De recomendações de organismos como o FATF surgem reformas legais que adotam termos abstratos, como, por exemplo, “terrorismo”, que aumentam significativamente a discricionariedade dos poderes policial e judicial. Com isso, não apenas movimentos de resistência, mas toda uma população torna-se objeto de constante vigilância. Como mostra McCullooch e Pickring (2005McCulloch, J./Pickering, S.J. (2005): “Suppressing the financing of terrorismo”. The British Journal of Criminology 45(4): 470-486.: 475ss), a criminalização desses grupos sociais não se limita a ações estatais restritivas da liberdade, mas se estende por meio de regras jurídicas que concedem às autoridades governamentais a possibilidade de paralisar financeiramente contas bancárias de indivíduos ou de organizações políticas. Trata-se, em resumo, de instrumentos que contem forte potencial para obstar mobilizações de movimentos sociais, sindicatos, protestos e indignações coletivas contra a entrada do fluxo do capital financeiro e seus processos mercantilizadores em determinados territórios e espaços que ainda não estão compreendidos por tal lógica.

5. Conclusão

Um dos grandes problemas da sociologia crítica do direito é a questão epistemológica sobre a possibilidade (limites e extensão) de se conhecer a reprodução sócio-jurídica do capitalismo. Como visto, a solução habermasiana a essa questão foi cancelar a centralidade do trabalho enquanto categoria analítica, atribuir às condições sociais de reprodução do direito características distintas daquelas presentes na reprodução do capitalismo, enfatizar a dimensão normativa do sistema jurídico e, com isso, inferir desse sistema um potencial emancipatório.

Do ponto de vista da questão epistemológica citada, a solução habermasiana simplesmente não buscou enfrentá-la, mas apenas afastá-la do horizonte da crítica social. Evidentemente que essa postura opera em uma situação de risco: como a respectiva questão é uma das condições de realização da própria crítica, desconsiderá-la tem como principal consequência o perigo da conversão da sociologia crítica do direito em liberalismo jurídico. Se comparada a outras situações de tensão no interior da história da sociologia crítica do direito (como, por exemplo, o Juristen-Sozialismus de Anton Menger, a politische Justiz de Otto Kirchheimer ou die Herrschaft des Gesetzes de Franz Neumann), essa conversão foi o principal impasse que ela já experimentou. Diversos estudos de diferentes orientações anunciaram inclusive que esse foco obsessivo pela normatividade poderia marcar o fim da sociologia crítica do direito (Fischl 1993Fischl, R. M. (1993): “The Question That Killed Critical Legal Studies”. Law & Social Inquiry 17(4): 779-820.; Schlag 1991Schlag, P. (1991): “Normativity and the Politics of Form”. University of Pennsylvania Law Review 139(4): 801-932.).

Como mostrado, a normative solution perdeu, todavia, força e plausibilidade explicativa, principalmente por não conseguir oferecer respostas às diferentes reestruturações regulatórias do neoliberalismo implementadas nas últimas décadas e à dimensão jurídica das diversas crises contemporâneas. A esse déficit explicativo a sociologia crítica do direito conseguiu reagir apenas quando recolocou a questão epistemológica no centro de suas análises por meio do resgate da crítica à forma jurídica. Como visto, isso permitiu repensar teoricamente o lugar do dever ser (Sollen), tratando-o como parte dos movimentos contraditórios, antagônicos e conflituosos das relações de produção, isto é, como parte integrante da reprodução da totalidade social. No lugar de investigar a realidade a partir de desajustes com a norma, tem-se a compreensão das estruturas da desigualdade à luz dos processos de formação do trabalho abstrato e da origem das formas de fetichismo e reificação. Em outras palavras, a crítica à forma jurídica demonstrou que a norma jurídica está enraizada e realizada na relações materiais da vida e em meio aos atos expropriadores ali existentes. Assim, a sociologia crítica do direito pôde superar os impasses criados pelo projeto normativo e antiprodutivista, levando sua questão epistemológica a sério.

As possibilidades do conhecimento oferecidas pela crítica à forma jurídica estão, todavia, limitadas a um momento específico da reprodução social do capitalismo, o momento da troca de equivalentes. Foi visto, no entanto, que, por detrás dessas trocas, se desenvolve um outro modus operandi do sistema. Trata-se de uma fase expansionista movida pela impossibilidade de realização de parte da mais-valia em seu lugar de produção e da necessidade de deixar fluir as situações de sobreacumulação.

Essa fase é caracterizada pela expropriação de espaços não-capitalistas. Uma dinâmica que envolve roubos, colonizações, guerras e conquistas: reações do sistema aos seus estados de crise que ativam uma repetição permanente da acumulação primitiva. Como o capitalismo se reproduz juridicamente sob tais condições? A resposta aqui apresentada é a de que o direito não aparece como forma, mas como violência jurídica explícita e prescrição expressa da desigualdade. Com essa resposta, o objetivo do presente texto foi apenas o de acenar para o fato de que a teoria da expropriação capitalista do espaço tem um enorme potencial de fazer a sociologia crítica do direito avançar em sua possibilidades de conhecer a a reprodução sócio-jurídica do capitalismo.

  • 1
    A primeira versão deste artigo apareceu como “Kapitalistische Landnahme: Eine Erweiterung der kritischen Rechtssoziologie” na Série Working Paper 3/17 do DFG -Kollegforscher_innengruppe Postwachstumsgesellschaften. Gostaria de agradecer a Benjamin Seyd, Emma Dowling, Florian Butollo, Karina Becker, Klaus Dörre, Ligia Fabris Campos, Maria Backhouse e Yannick Kalff pelas críticas e sugestões, que recebi durante minha estadia como Senior Fellow no Kolleg Postwachstumsgesellschaften da Friedrich-Schiller-Universität Jena, na Alemanha, no inverno de 2017. Gostaria de agradecer, ainda, a Carolina Vestena, Cesar Mortari Barreira, Lena Lavinas, Manuela Boatca, Paulo Fontes, Sergio Costa e Virginia Fontes por comentários essenciais para o desenvolvimento da presente pesquisa.
  • 2
    Essa escolha se deu simplesmente porque, como assinalado na primeira nota de rodapé, o presente artigo foi originariamente formulado para intervir no debate alemão. Isso me levou a privilegiar a literatura oriunda desse debate e desconsiderar trabalhos fundamentais sobre acumulação primitiva, como, por exemplo, os de Ellen Wood, Massimo de Angelis, Virginia Fontes e os teóricos dependentistas. Trata-se, no entanto, do primeiro passo de uma pesquisa em desenvolvimento, cujas próximas etapas deverão incorporar as lacunas existentes.
  • 3
    A crítica ao modelo habermasiano (descrita nos parágrafos seguintes) foi anteriormente desenvolvida em Gonçalves 2014.
  • 4
    A literatura é vastíssima. Ver, a título de exemplo, Brunkhorst 2002Brunkhorst, H. (2002): Solidarität. Von der Bürgerfreundschaft zur globalen Rechtsgenossenschaft. Frankfurt a.M.: Suhrkamp., Fassbender 2009Fassbender, B. (2009): The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Brill Academic Pub., Günther 2009Günther, K. (2009): “Juristische Diskurse”. In: Brunkhorst, H. et all. (Hg.). Habermas Handbuch. Stuttgart/Weimar: J.B.Metzler, pp.72-74., Habermas 2004______. (2004). “Hat die Konstitutionalisierung des Völkerrechts noch eine Chance?”. In Harmas, J. Der gespaltene Westen. Kleine politische Schriften X. Frankfurt a.M: Suhrkamp, pp.113-193., Walker 2007Walker, N. (2007): “Making a World of Difference? Habermas, Cosmopolitanism and the Constitutionalization of International Law”. In: Shabani, O. P. (Ed.). Multiculturalism and Law: A Critical Debate. Cardiff: University of Wales Press, pp. 219–234.. Para uma crítica que mostra como os mecanismos do direito cosmopolita reforçam as desigualdades globais, ver Boatcă 2015Boatcă, M. (2015): “Commodification of Citizenship. Global Inequalities and the Modern Transmission of Property”. In: Wallerstein, I. et all. (Eds.): Overcoming Global Inequalities. Boulder: Paradigm Publishers, pp. 3-18., Gonçalves e Costa 2016______./Costa, S. (2016): “The Global Constitutionalization of Human Rights: Overcoming Contemporary Injustices or Juridifying Old Asymmetries?”. Current Sociology 64(2): 311-331..
  • 5
    A literatura sobre direito como forma de coesão social é ampla. Particularmente relevante foi a contribuição dada pela sociologia marxista do direito italiana na virada dos anos 1970-80, bastante influenciada por Galvano Della Volpe. Ver, entre outros, Badaloni 1972Badaloni, N. (1972): Per il comunismo. Torino: Einaudi.; Barcellona 1978Barcellona, P. (1978): La Repubblica in trasformazione. Problemi istituzionali del caso italiano . Bari: De Donato.; Cerroni 1974Cerroni, U. (1974): Marx und das moderne Recht. Frankfurt a. M.: Fischer.; De Giorgi 1980De Giorgi, R. (1980): Wahrheit und Legitimation im Recht. Ein Beitrag zur Neubegründung der Rechtstheorie. Berlin: Duncker & Humblot.. Atualmente esse tema foi desenvolvido por Buckel 2007 e 2010Buckel, S. (2007): Subjektivierung und Kohäsion: Zur Rekonstruktion einer materialistischen Theorie des Rechts. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft..
  • 6
    Lembre-se que, conforme as palavras de Marx e Engels (MEW 4: 472), “a subversão contínua da produção, o abalo incessante de todas as condições sociais, a insegurança e a agitação perpétuas distinguem a época burguesa de todas as anteriores”.
  • 7
    No debate alemão, esse processo expansionista do capitalismo para espaços ainda não mercantilizados é descrito por diferentes substantivos Aneignung, Enteignung, Expropriation, Usurpation, Landnahme, Eroberung etc. Optei pelo termo “expropriação” como a categoria genérica que abrange todas essas práticas. Farei, no entanto, referência às outras noções (apropriação, desapropriação, usurpação, espoliação do espaço, conquista etc.) conforme a exigência de afirmações, teses e conteúdos específicos. Minha opção por “expropriação” como categoria genérica se deve à reflexão fundamental que Virgínia Fontes (2010)Fontes, V. (2010): O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. desenvolve entre nós. Como já ressaltado na nota de rodapé n. 2, o modelo de Fontes não será, no entanto, nesse momento discutido em razão do escopo do presente artigo.
  • 8
    O termo alemão Landnahme significa literalmente “tomada da terra”. Sua origem teórica encontra-se em Luxemburgo que atribuiu à expansão capitalista o conteúdo do colonialismo dos países não-europeus. Conforme aplicado por Dörre, essa noção adquire um sentido mais amplo. É a invasão, tomada e ocupação de um espaço ou grupo social para a exploração de toda sua potencialidade e mercantilização. Nesse sentido, optei pela tradução “expropriação capitalista do espaço”. Essa opção se baseia, mais uma vez, na influência da reflexão desenvolvida por Virginia Fontes entre nós, conforme explicado na nota de rodapé n. 7. Nesse sentido, é importante ressaltar que a presente opção de tradução se diferencia de duas escolhas anteriores que eu havia feito. Quando fui revisor de um trabalho de Dörre (2015a)______. (2015a): “A nova Landnahme: dinâmicas e limites do capitalismo financeiro”. Revista Direito e Práxis 6(12):536-603 ao português, achei melhor manter a expressão Landnahme no original em alemão. Em um texto de minha autoria anterior (Gonçalves 2016______. (2016): “Acumulação primitiva, direitos humanos e movimentos sociais: esboço de uma provocação ao giro antiprodutivista”. In: Cunha, J. R. (Org.). Epistemologias críticas do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 61-74), adotei a tradução espoliação do espaço. Tudo isso revela a dificuldade de expressar o sentido que o termo alemão contem. Uma dificuldade compartilhada pelos tradutores de Dörre em língua inglesa. Ver, nesse sentido, Dörre/Lessenich/Rosa 2015: 4. É importante ressaltar, ainda, que o conceito de Landnahme não pode ser reduzido à expressão inglesa land grabbing que, bastante difusa no debate contemporâneo, possui um sentido técnico muito preciso: aquisição ilegal de grandes porções de terras por companhias transnacionais, governos estrangeiros ou pessoas privadas para produzir alimentos ou biocombustíveis em alta escala. O leque e o objetivo teórico do termo Landnahme são muito maiores. Trata-se de um conceito macrossociológico, isto é, reflete diferentes processos de expropriação de um espaço social lato sensu (não se resumindo a um território geográfico, mas contendo também relações sociais) com fins de mercantilizá-lo.
  • 9
    O título oficial da respectiva lei é L 87.
  • 10
    A literatura sobre o precariado é ampla. Ver, entre outros, Dörre 2013 e 2015b______. (2015b): “Prekarität - die neue soziale Frage?”. In: Böhme, G./Gahlings, U. (Hg.). Wie lebt es sich in unserer Gesellschaft? Bielefeld: Aisthesis, pp. 89-121.; Standing 2011Standing, G. (2011): The Precariat. The New Dangerous Class. London: Bloomsbury..
  • 11
    Esse caso foi amplamente analisado em outra oportunidade: Schacherreiter e Gonçalves 2016Schacherreiter, J./Gonçalves, G. L. (2016): “The Zapatista Struggle for the Right to Land: Background, Context and Strategies”. In: Fischer-Lescano, A/Moeller, K. (Eds.). Transnationalisation of Social Rights. Cambridge: Intersentia, pp. 265-303..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2017
  • Aceito
    22 Abr 2017
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