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Condição humana do trabalhador de enfermagem na perspectiva de Hannah Arendt

RESUMO

Objetivo:

analisar como se estabelece a condição humana do enfermeiro no contexto dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).

Método:

estudo teórico-reflexivo, ancorado em três partes essenciais: 1) Concepção teórica e filosófica da condição humana na perspectiva de Hannah Arendt; 2) O trabalho do enfermeiro nos Caps; e 3) Condição humana para pensar o trabalho do enfermeiro.

Resultados:

no contexto de trabalho do Caps, o labor pode ser representado pelas significações psíquicas; a obra, pela produção da prática assistencial do enfermeiro; e a ação pelas relações estabelecidas entre trabalhador e instituição, trabalhador e usuário.

Considerações finais:

a compreensão da vita activa permite refletir sobre a condição humana do enfermeiro em seu contexto de trabalho e (re)considera na contemporaneidade uma melhor compreensão sobre o impacto do trabalho na vida desses trabalhadores da saúde mental.

Descritores:
Filosofia; Enfermagem; Trabalho; Serviços de Saúde Mental; Saúde do Trabalhador

ABSTRACT

Objective:

This study intends to analyze how the human condition of the nurse is established in the context of Psychosocial Care Centers (Caps).

Method:

theoretical-reflexive study, anchored in three essential parts: 1) Theoretical and philosophical conception of the human condition from Hannah Arendt’s perspective; 2) The nurse’s work in the Caps; and 3) Human condition to think about the work of the nurse.

Results:

in the context of the Caps, the work can be represented by the psychic significations; the work, through the production of nurses’ practice of care; and the action by the relations established between worker and institution, worker and user.

Final considerations:

the understanding of the vita activa allows to reflect on the human condition of the nurse in their work context and (re) considers a better understanding about the impact of the work on the life of these mental health workers in the contemporaneity.

Descriptors:
Philosophy; Nursing; Work; Mental Health Services; Occupational Health

RESUMEN

Objetivo:

evaluar cómo se establece la condición humana del enfermero en contexto de Centros de Atención Psicosocial (Caps).

Método:

estudio teórico y de reflexión a partir de tres partes esenciales: 1) Concepción teórica y filosófica de la condición humana desde la perspectiva de Hannah Arendt; 2) El trabajo del enfermero en los Caps; y 3) Condición humana para pensar el trabajo del enfermero.

Resultados:

el contexto de trabajo del Caps, la labor puede representarse por las significaciones psíquicas; obra por la producción de la práctica asistencial del enfermero; y la acción por las relaciones establecidas entre el trabajador y la institución, el trabajador y el usuario.

Consideraciones finales:

la comprensión de la vita activa permite reflexionar sobre la condición humana del enfermero en su contexto de trabajo y (re)considera en la contemporaneidad una mejor comprensión sobre el impacto del trabajo en la vida de esos trabajadores de la salud mental.

Descriptores:
Filosofía; Enfermería; Trabajo; Servicios de Salud Mental; Salud Laboral

INTRODUÇÃO

Hannah Arendt, em sua obra A Condição Humana (1958), aborda o tema filosófico em direta relação com a vida, uma vez que representa as características da existência do homem em determinado espaço e, sem elas, essa existência deixaria de ser humana. A condição humana representada pela vita activa é constituída por três atividades humanas fundamentais: o labor, a obra e a ação. Cada uma dessas atividades corresponde a uma condição básica para a vida do homem(11 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013.).

Arendt analisa o ser humano em sua dimensão laboral, na qual o homem é definido como um ser que produz. Tais análises contribuem para o desenvolvimento de uma profunda compreensão sobre a condição humana no ambiente laboral e, consequentemente, para com a ciência ocupacional. Ressalta-se que a ciência ocupacional, por se originar apenas da análise do trabalho do homem, não consegue explicar o homem como homo faber, daí a dificuldade de dar uma resposta à pergunta antropológica: “Quem é o homem?”. Ele é um ser que se produz por meio do trabalho(22 Jansson I, Wagman P. Hannah Arendt's vita activa: a valuable contribution to occupational science. J Occup Sci. 2017;24(3):290-301. doi: 10.1080/14427591.2016.1277780
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).

Destaca-se ainda que a ciência ocupacional perpassa um momento de transformações históricas, representadas por um processo de desenvolvimento dinâmico, o qual ao longo do tempo comprometeu-se a dar uma resposta racional e científica aos problemas de saúde dos trabalhadores, decorrentes dos seus processos laborais em seu locus de trabalho. No entanto, essas respostas possibilitaram compreender o ambiente laboral apenas em suas definições ocupacionais estatísticas, o que pode conduzir a uma negligência de outras questões(22 Jansson I, Wagman P. Hannah Arendt's vita activa: a valuable contribution to occupational science. J Occup Sci. 2017;24(3):290-301. doi: 10.1080/14427591.2016.1277780
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).

Com uma proposta de trabalho alicerçada na consolidação de uma prática integral e afastada da assistência reducionista que desconsidera a subjetividade, o compromisso social, ético e humanístico, a enfermagem, a partir do surgimento do movimento da Reforma Psiquiátrica (RP), começa a (re)construir seus conhecimentos, o cuidado e, consequentemente, seu avanço tecnológico nas instituições substitutivas aos hospitais psiquiátricos.

Esse movimento influenciou as mudanças no campo da assistência em saúde mental, resultando na necessidade de reorganização do processo de trabalho dos profissionais envolvidos. Dessa forma, a assistência de enfermagem em saúde mental atual começa a demandar do enfermeiro uma postura de agente terapêutico, o qual tem sua prática consolidada através do processo de enfermagem (PE), o que proporciona ao enfermeiro a condição de assumir uma posição autônoma dentro da equipe multidisciplinar dos serviços de saúde mental e, consequentemente, a qualificação da assistência de enfermagem no contexto de saúde mental oferecida(33 Garcia APRF, Freitas MIP, Lamas JLT, Toledo VP. Nursing process in mental health: an integrative literature review. Rev Bras Enferm. 2017;70(1):209-18. doi: 10.1590/0034-7167-2016-00314
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).

O cuidado de enfermagem aplicado nessa perspectiva amplia a qualidade da atenção, encampando as questões clínicas, sociais, políticas e culturais com possibilidade de desconstrução de um modelo manicomial e consequente desinstitucionalização e (re)construção da dignidade da vida, cidadania, autonomia e identidade da pessoa com sofrimento mental. Contudo, o contexto de mudanças não se esgota ou se cristaliza, porque está em constante transformação em termos de logísticas de trabalho, o que implica afastamento dos vícios seculares, os quais isolavam e segregavam o conhecimento, o sofrimento e as pessoas(33 Garcia APRF, Freitas MIP, Lamas JLT, Toledo VP. Nursing process in mental health: an integrative literature review. Rev Bras Enferm. 2017;70(1):209-18. doi: 10.1590/0034-7167-2016-00314
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).

Logo, é perceptível a mudança da prática de enfermagem, cujo objeto de cuidado era o indivíduo, que até então era visto como um ser doente e excluído de qualquer participação em seu processo terapêutico, dado que seus atos estavam circunscritos e definidos pela doença. Por outro lado, o atual contexto histórico direciona a assistência do enfermeiro com foco para a reinserção social da pessoa com sofrimento mental e, nesse contexto, a loucura é considerada um fenômeno social integrado como parte da existência da pessoa. Todavia, observa-se que, do ponto de vista do trabalhador/instituição, o ambiente dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) tem sido permeado por contradições e ampla problemática intrínseca ao processo de implantação desses serviços com infraestrutura inadequada e falta de apoio logístico (materiais de higienização, medicamentos, transporte). Esses desafios têm repercutido na configuração dos processos de trabalho, nas relações estabelecidas entre os diferentes atores, na satisfação e na dinâmica prazer/sofrimento dos trabalhadores no ambiente laboral.

Por conseguinte, a dimensão relacional, fruto do confronto sujeito × trabalho no ambiente laboral, repercute na saúde do trabalhador e, consequentemente, na condição humana, dado que a prática laboral pode ser percebida como causa de sofrimento indesejado, labuta penosa e humilhante. Entretanto, pode gerar prazer como algo que define a identidade pessoal e enaltece o trabalho e o trabalhador(44 Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana � análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 2015.). Em razão disso, faz-se necessário refletir sobre a evolução na forma de cuidar em saúde mental no contexto do Caps, por este constituir um serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico, como também refletir acerca da qualidade das condições de trabalho ofertadas aos trabalhadores desses centros.

Considerando que os homens são seres singulares e ao mesmo tempo plurais e, ainda, estão expostos uns aos outros, num contexto material de relações que sublinham a fragilidade essencial de toda existência, para este estudo o trabalho focaliza o labor, a obra e a ação. É definido a partir do lugar que está sendo analisado, neste caso, o trabalho do enfermeiro que atua no Caps.

A partir do contexto ora apresentado, toma-se a obra da teórica política Hannah Arendt A condição humana como referência para entender a multifacetada natureza da vida no contexto de trabalho. Neste sentido, pretende-se analisar como se estabelece a condição humana do enfermeiro no contexto dos Caps.

CONCEPÇÃO TEÓRICA E FILOSÓFICA DA CONDIÇÃO HUMANA NA PERSPECTIVA DE HANNAH ARENDT

Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política alemã de origem judaica, aborda a condição humana e a sua temporalidade. Para Arendt, a condição humana – que não se confunde com o conceito de natureza humana – é caracterizada pela vita activa (a vida humana que se empenha em fazer algo) e corresponde a uma condição básica para a vida do homem: o trabalho (labor); a obra (produção de algo novo); e a ação (action). Os conceitos compreendem as circunstâncias de vida encontradas pelo homem(11 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013.). Arendt elabora, assim, uma antropologia filosófica que busca dar conta das várias dimensões humanas.

De acordo com Arendt, o trabalho (labor) é considerado a atividade que conduz o homem do nascimento até a morte em uma progressão retilínea, de forma circular, e que segue o ciclo vital do corpo humano e nunca chega a um fim enquanto existir vida. Caracteriza-se por um processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo e o metabolismo estão ligados às necessidades vitais produzidas pelo trabalho para alimentar o processo da vida. Laborar é produzir bens de consumo – laborar e consumir são dois estágios do ciclo de reprodução da vida biológica e estão sempre produzindo vida – e, uma vez que corresponde à própria condição de vida, participa de suas fadigas e penas, mas também da bênção ou da alegria do labor, que desempenha um papel muito importante nas teorias modernas do trabalho(11 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013.).

A obra (produção de algo novo) consiste na não naturalidade da existência humana e produz o mundo artificial de objetos, das coisas duráveis, sendo atribuída ao homo faber. Sua condição humana é o pertencer ao mundo. Pela produção do artificial o homem cria um mundo próprio, caracterizado pela cultura, pelo estranhamento à sua condição puramente material.

A ação (action) é a atividade que se exerce diretamente entre os homens, sem a mediação de objetos ou matéria, corresponde à condição humana da pluralidade e se dá em uma esfera puramente intersubjetiva. Daí a completa ruptura com o mundo puramente natural. As relações intersubjetivas são caracterizadas pela ‘transcendência’. Apenas nesse ambiente de pluralidade possibilitado pelo intercâmbio de sujeitos racionais é que pode surgir a vida política, objeto central da condição humana(11 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013.).

Para Arendt, o trabalho, a obra e a ação correspondem a um aspecto do ser humano, animal laborans, o qual produz bens com prazo determinado de duração, que são consumidos no intuito de preservar a espécie, por isso estão relacionados à manutenção da vida. O homo faber é o grande produtor do artifício humano na Terra e o realizador dos objetos que existem no mundo e sua atividade de fabricar é a mesma, independente do período histórico: mediante o domínio da técnica, gera uma produção inesgotável da riqueza, o chamado esquema da produção-consumo(11 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013.).

O TRABALHO DO ENFERMEIRO NOS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS)

No tocante à enfermagem, o trabalho domina um campo de conhecimentos que dá competência para cuidar das pessoas, em todo o seu processo de viver e morrer. Assim, o cuidar perpassa três dimensões básicas: a) Cuidar de indivíduos e grupos, da concepção à morte; b) Educar e pesquisar, o que envolve o educar intrínseco ao processo de cuidar, a educação permanente no trabalho, a formação de novos profissionais e a produção de conhecimentos que subsidiem o esse processo; e c) A dimensão administrativo-gerencial do espaço assistencial e participação no gerenciamento da assistência em saúde e institucional(55 Pires DEP. Necessary changes for advancing nursing as caring science. Rev Bras Enferm. 2013;66(esp):39-44. doi: 10.1590/S0034-71672013000700005
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).

Nas primeiras décadas do século XX, o cuidado de enfermagem psiquiátrica surgiu proveniente do conhecimento desenvolvido sobre e no hospital psiquiátrico, associado ao trabalho manual, caracterizado principalmente pela vigilância, observação e controle do comportamento dos pacientes por meio de técnicas que envolviam cuidados clínicos e medidas de contenção química e física(66 Esperidião E, Silva NS, Caixeta CC, Rodrigues J. The psychiatric nursing, ABEn and the Scientific Department of Psychiatric and Mental Health Nursing: progress and challenges. Rev Bras Enferm. 2013;66(esp):171-6. doi: 10.1590/S0034-71672013000700022
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). Esse contexto de assistência reforçou a patologização e a reprodução da exclusão da pessoa com sofrimento mental por meio da execução de práticas ancoradas em violação dos direitos humanos. No entanto, as mudanças no modo de construção das práticas que subsidiam a profissão da enfermagem foram possíveis a partir dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica.

O surgimento do movimento de Reforma Psiquiátrica, nas décadas de 1980 e 1990, representou a luta por mudanças no enfoque dado à loucura e suas formas de tratamento, além de aspectos legais/normativos e culturais envolvidos. Nesse cenário, a enfermagem passou a atuar em instituições substitutivas ao modelo manicomial a partir do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (Caps), que surgiu na cidade de São Paulo em 1987. Paralelamente ao surgimento do Caps, também foram implantados os Núcleos de Atenção Psicossocial (Naps), os quais passaram a organizar a demanda de cuidado em saúde mental no território, sendo o Caps a porta de entrada da Rede de Atenção Psicossocial (Raps).

Nessa perspectiva, é relevante destacar que o trabalho do enfermeiro se insere em uma prática ampliada de cuidados que transcende os recursos tradicionais que subsidiavam as práticas manicomiais. Assim, a partir de uma concepção do trabalho em equipe interdisciplinar, a assistência de enfermagem se fundamenta em novas formas de cuidar em saúde mental, que respeitam a singularidade do indivíduo e assumem atitude terapêutica crítico-reflexiva, numa perspectiva humanista(66 Esperidião E, Silva NS, Caixeta CC, Rodrigues J. The psychiatric nursing, ABEn and the Scientific Department of Psychiatric and Mental Health Nursing: progress and challenges. Rev Bras Enferm. 2013;66(esp):171-6. doi: 10.1590/S0034-71672013000700022
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).

A ressignificação do trabalho do enfermeiro implica a criação de espaços que promovam a reabilitação biopsicossociocultural do indivíduo com sofrimento psíquico. Desse modo, o trabalho organiza-se de forma autônoma por meio da implementação do processo de enfermagem, o qual possibilita uma amplitude na avaliação do estado de saúde da pessoa com sofrimento mental, e, de forma coletiva, através da construção do Projeto Terapêutico Singular (PTS) junto aos demais membros da equipe, ao usuário e seus familiares, e da formação de grupos e oficinas com finalidades terapêuticas. Além disso, o enfermeiro presta também apoio matricial, oferecendo suporte às equipes de saúde da família e manejo em situações de crise, e participa da reinserção pelo trabalho, visitas domiciliares e atendimento familiar(77 Pinho ES, Souza ACS, Esperidião E. Working processes of professionals at Psychosocial Care Centers (CAPS): an integrative review. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(1):141-52. doi: 10.1590/1413-81232018231.08332015
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).

Cabe destacar que, nesse cenário de atuação, o trabalho do enfermeiro é dinâmico, mediado por um processo de construção de possibilidades, habilidades e competências no fazer cotidiano do usuário, de tal forma que a reabilitação psicossocial e a reinserção social se tornem possíveis. Nessa perspectiva, o enfermeiro adquire identidade profissional como integrante da equipe interdisciplinar, o que favorece a construção das competências equivalentes ao saber-fazer da profissão, com desenvolvimento de planos de cuidados, com respaldo na tomada de decisão sobre questões inerentes a suas atribuições no campo da saúde mental(77 Pinho ES, Souza ACS, Esperidião E. Working processes of professionals at Psychosocial Care Centers (CAPS): an integrative review. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(1):141-52. doi: 10.1590/1413-81232018231.08332015
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).

Entretanto, apesar de se estar diante de uma lógica que sinaliza rupturas e superação do modelo manicomial, ainda cabe uma reflexão sobre o que se anuncia como reforma e o que se efetiva como trabalho do enfermeiro, dado que, na atual conjuntura dos serviços do Caps, as equipes desses centros têm elencado barreiras que comprometem a solidificação da Reforma Psiquiátrica. Dentre elas, destacam-se: a falta de concretização da RP nas práticas dos serviços e dos profissionais; a dificuldade de articulação com os demais pontos de atenção à saúde do território, incluindo as ações das Equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF), e as condições de trabalho prejudicadas pela falta de recursos humanos e materiais para operacionalização de atividades de inclusão(88 Nóbrega MPSS, Domingos AM, Silveira ASA, Santos JC. Weaving the West Psychosocial Care Network of the municipality of São Paulo. Rev Bras Enferm. 2017;70(5):965-72. [Thematic Edition "Good practices and fundamentals of Nursing work in the construction of a democratic society"] doi: 10.1590/0034-7167-2016-0566
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). Esses problemas ocasionam consequências à qualidade da assistência de enfermagem prestada ao indivíduo com sofrimento psíquico e podem ser efeitos de um processo reformista com insuficiente sustentação gerencial e política para efetivar, no âmbito dos serviços, a construção de uma rede de atenção psicossocial comprometida com a efetivação de suas diretrizes.

A CONDIÇÃO HUMANA PARA PENSAR O TRABALHO DO ENFERMEIRO

Na conjuntura dos Caps, os conceitos que sustentam a condição humana de vita activa abordados por Arendt podem ser aplicados ao processo de trabalho do enfermeiro, uma vez que o trabalho (labor), a obra (produção de algo novo) e a ação (action) estão presentes de forma concreta nesse ambiente laboral.

O labor é representado pela dimensão material do enfermeiro, que, como trabalhador de serviço de saúde mental, vivencia nas relações sociais e nas interfaces entre singular e coletivo a construção de uma prática que se estabelece a partir das relações com outros profissionais da equipe, usuários do serviço, familiares e gestores de serviços. Nesse contexto laboral/relacional, subjetividade, motivação e desejos aparecem como centrais, podendo produzir prazer e/ou sofrimento, e são procedentes das dinâmicas internas das situações e formas de organização do trabalho, da criação das relações subjetivas e de poder na equipe, das condutas e das ações dos trabalhadores(44 Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana � análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 2015.).

Alguns desafios permeiam o trabalho das equipes multidisciplinares dos Caps: condições de infraestrutura física, materiais, equipamentos e medicamentos inadequados; recursos humanos insuficientes; e dificuldades inerentes à gestão dos serviços, que restringem seu funcionamento e dificultam a consolidação das mudanças propostas pelo novo modelo de atenção à saúde mental(99 Clementino FS, Miranda FAN, Martiniano CS, Marcolino EC, Pessoa Júnior JM, Dias JA. Assessment of Organizational Structure of Centers for Psychosocial Care in the city of Campina Grande, Paraíba State. Rev Bras Ciênc Saúde. 2016;20(4):261-8. doi: 10.4034/RBCS.2016.20.04.01
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). Cabe acrescentar que essas dificuldades tornam o trabalho do enfermeiro exaustivo, com destaque para as significações psíquicas, o que gera sentimentos negativos e, com isso, altera seu estado emocional, podendo gerar consequências para o organismo, como fadiga, irritabilidade, depressão e estados somativos, que podem se manifestar em adoecimento e, consequentemente, contribuir para a degradação fisiológica do profissional(1010 Dias GC, Furegato ARF. Satisfaction in, and impact of work on, the multidisciplinary team in a psychiatric hospital. Rev Enferm UERJ. 2016;24(1):e8164. doi: 10.12957/reuerj.2016.8164
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).

Dessa forma, o enfermeiro parece sujeito do retrato do animal laborans em sua essência, a partir do “corpo que se mistura com o outro” e se mostra sufocado e afogado pelo fazer, trabalhando para suprir necessidades e demandas, nutrindo apenas o processo vital. E, no cenário dos Caps, isso pode aparecer a partir de duas perspectivas: na primeira, o enfermeiro trabalha para o sustento do outro – nesse caso, a assistência de enfermagem prestada à pessoa com sofrimento mental –; e, na segunda, ele trabalha em troca de salário, sem maiores perspectivas de reconhecimento.

Entretanto, há também a procura pelo prazer e a fuga do desprazer, as quais constituem uma aspiração constante para o enfermeiro, em virtude das requisições instituídas no processo, nas relações e na organização do trabalho. As experiências de prazer surgem do amálgama que o trabalho traz para o corpo. A psique e as relações interpessoais se evidenciam por meio da gratificação, da realização, do reconhecimento, da liberdade e da valorização no trabalho(44 Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana � análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 2015.). Nessa realidade de trabalho, aparece o homo faber, sujeito de fabricação que assume valor na vida desses sujeitos. Para Arendt, há um período de alívio e de alegria breve que segue a realização e acabamento do trabalho, da mesma forma como o prazer é concomitante ao funcionamento de um corpo sadio(11 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013.).

A obra, outro componente da condição humana de vita activa abordado por Arendt, se efetiva pela produção de uma prática assistencial implementada pelo enfermeiro que busca o desenvolvimento de novos caminhos dos cuidados em enfermagem, a partir de ações com promoção de saúde, ênfase em novos rumos de um cuidado mais vivo e humano e, assim, mais efetivo. A assistência de enfermagem em saúde mental promovida pelo enfermeiro nos serviços substitutivos destaca-se pela necessidade de construir vínculos, de acolher o sofrimento e de construir uma prática criativa e solidária que favoreça a escuta qualificada e, consequentemente, a melhoria da qualidade de vida do usuário.

No que diz respeito à terceira condição humana, a ação, entende-se que esta se caracteriza pelas relações estabelecidas entre trabalhador e instituição, nas quais estão implicadas as relações interpessoais e de biopoder entre gestão e trabalhadores; pelas sociais; e pelas interfaces entre singular e coletivo, trabalho e saúde mental e trabalhador-usuário, em que os cuidados continuados acontecem e produzem no trabalhador significações psíquicas e a construção de relações subjetivas e intersubjetivas.

A ação permite ao enfermeiro a possibilidade de criar significações de sua própria realidade objetiva de trabalho a partir da configuração que se constitui nas teias de relações humanas estabelecidas nesses centros, com perspectiva de que lhe seja concedida a capacidade de instauração de novidades no processo de trabalho, com rompimento de limites e fronteiras e criação dos vínculos enfermeiro-usuários, enfermeiro-gestão e enfermeiro-outros profissionais(77 Pinho ES, Souza ACS, Esperidião E. Working processes of professionals at Psychosocial Care Centers (CAPS): an integrative review. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(1):141-52. doi: 10.1590/1413-81232018231.08332015
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).

Nesse sentido, o trabalho, a obra e a ação propostos por Arendt podem servir como conceituações teóricas para uma descrição mais profunda da condição humana e ocupacional do enfermeiro que atua em Caps, o qual se define como um ser que se constrói em três dimensões, a partir da atividade humana. Seu corpo precisa de labor para continuar a ser humano, integrado. Pela obra de seu psiquismo, o enfermeiro produz o artificial, constrói um mundo paralelo ao natural, do qual seu corpo faz parte. Por fim, ao estabelecer relações intersubjetivas, ele se autotranscende em direção ao outro. Portanto, embora o enfermeiro se desenvolva pela atividade, em suas várias dimensões, as duas primeiras –labor e obra – devem orientar a última, criando um mundo propriamente humano, no qual seja efetiva a condição humana do enfermeiro.

E é nesse locus que a ciência ocupacional deve apresentar sua capacidade de não apenas cuidar dos problemas de saúde decorrentes do trabalho, mas, principalmente, propor meios de se evitar tais problemas. Uma visão possibilitada pela filosofia e, de modo especial, aqui tratada pela reflexão de Arendt, a qual permite que a ciência ocupacional se aproprie de uma visão multifacetada sobre a condição humana do enfermeiro, com intuito de uma compreensão melhor e mais profunda sobre o impacto do trabalho na vida desses trabalhadores.

Assim, como contribuição valiosa para a ciência ocupacional, a compreensão da vita activa permite uma reflexão sobre o que acontece no mundo do trabalho do enfermeiro e nos chama a (re)considerar na contemporaneidade a condição humana a partir do contexto de trabalho e suas novas perspectivas. Para Arendt, não só as atividades realizadas durante o trabalho, mas também as consequências da atividade humana são relevantes para o entendimento dos fenômenos que condicionam a vita activa(22 Jansson I, Wagman P. Hannah Arendt's vita activa: a valuable contribution to occupational science. J Occup Sci. 2017;24(3):290-301. doi: 10.1080/14427591.2016.1277780
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), as quais estão representadas na (Figura 1).

Figura 1
Condição Humana do trabalho do enfermeiroque atua em Centro de Atenção Psicossocial (Caps), Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, 2018

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vita activa presente no pensamento de Arendt é apresentada como uma possibilidade de inter-relação com o contexto de trabalho dos Caps, uma vez que o enfermeiro é um ser biológico, que com seu labor adquire os meios necessários para a continuidade de sua vida. Esse profissional, por meio de sua obra, transforma o mundo natural, transcendendo-o, criando um mundo artificial, que se dá pela busca do desenvolvimento de novos caminhos dos cuidados.

Por fim, ele é um ser de ação que não apenas tem a capacidade de transformar o mundo natural em artificial, mas de criar um novo – o mundo cultural, intelectual –, o que configura uma dimensão capaz de pensar o que está sendo feito, inclusive de repensá-lo. O que se revela não como subjetividade, mas como intersubjetividade. As relações estabelecidas entre o enfermeiro e seus pacientes possibilitam a construção deste “novo mundo”. Assim, o trabalho do enfermeiro, analisado a partir da perspectiva filosófica de Hannah Arendt, permite também visualizar uma concepção mais abrangente sobre questões inerentes ao campo da enfermagem no contexto dos Caps e a consequente contribuição para a ciência ocupacional.

REFERENCES

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Dalvani Marques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2017
  • Aceito
    13 Out 2018
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