Limitações de tarefa na hanseníase e sua associação com cognição e sintomas neuropsiquiátricos

RESUMO

Objetivo:

analisar as limitações de tarefa em pacientes com hanseníase e sua associação com cognição e sintomas neuropsiquiátricos.

Métodos:

este estudo transversal incluiu 60 pacientes com hanseníase multibacilar atendidos em um centro de referência. Os participantes foram divididos segundo a disfunção física e avaliados quanto às atividades diárias (básicas e instrumentais), às funções cognitivas e aos sintomas neuropsiquiátricos. A ordem de aplicação dos instrumentos foi aleatória para evitar interferência da sequência dos testes sobre os resultados.

Resultados:

dos participantes, 55% apresentaram disfunção física. Todos os pacientes eram independentes nas atividades básicas, mas 66% mostraram dificuldades nas atividades instrumentais. Declínio cognitivo e sintomas neuropsiquiátricos foram observados em estágios avançados da doença, porém estes estavam mais associados à idade do paciente do que à hanseníase.

Conclusões:

pacientes com hanseníase evidenciaram disfunção física e dificuldades nas atividades diárias instrumentais. Declínio cognitivo e sintomas neuropsiquiátricos estão mais associados ao envelhecimento do que à hanseníase.

Descritores:
Hanseníase; Atividades Cotidianas; Desempenho Físico Funcional; Cognição; Testes Neuropsicológicos

ABSTRACT

Objectives:

to analyze activity limitations in patients with leprosy and their association to cognition and neuropsychiatric symptoms.

Methods:

this cross-sectional design study included sixty patients with multibacillary leprosy assisted at a reference center. Participants were divided according to their physical disability and submitted to instruments assessing daily activities (basic and instrumental), cognitive functions, and neuropsychiatric symptoms. The order of the instruments was random to avoid any interference of test sequence on the results.

Results:

fifty-five percent of the participants presented physical disabilities. All patients were independent in performing basic activities but sixty-six percent presented difficulties in performing instrumental activities. Cognitive decline and neuropsychiatric symptoms were seen in advanced stages of the disease, but they were more associated to patient age than to leprosy.

Conclusions:

leprosy patients presented physical disabilities and difficulties in performing instrumental daily activities. Cognitive decline and neuropsychiatric symptoms were more associated to aging than to leprosy itself.

Descriptors:
Leprosy; Activities of Daily Living; Physical Functional Performance; Cognition; Neuropsychological Tests

RESUMEN

Objetivo:

analizar limitaciones de tarea en pacientes con Lepra y su relación con cognición y síntomas neuropsiquiátricos.

Métodos:

este estudio transversal incluyó 60 pacientes con Lepra multibacilar atendidos en centro de referencia. Participantes fueron divididos segundo la disfunción física y evaluados cuanto a las actividades diarias (básicas y instrumentales), funciones cognitivas y síntomas neuropsiquiátricos. Orden de aplicación de los instrumentos aleatoria para evitar interferencia de la secuencia de tests sobre los resultados.

Resultados:

de los participantes, 55% presentaron disfunción física. Todos pacientes eran independientes en las actividades básicas, pero 66% mostraron dificultades en las actividades instrumentales. Declive cognitivo y síntomas neuropsiquiátricos fueron observados en etapas avanzadas de la enfermedad, pero estos estaban más relacionados a la edad del paciente que a la Lepra.

Conclusiones:

pacientes con Lepra evidenciaron disfunción física y dificultades en las actividades instrumentales. Declive cognitivo y síntomas neuropsiquiátricos están más relacionados al envejecimiento que a la Lepra.

Descriptores:
Enfermedad de Hansen; Actividades Cotidianas; Desempeño Físico Funcional; Cognición; Pruebas Neuropsicológicas

INTRODUÇÃO

A hanseníase é uma doença endêmica e incapacitante, estigmatizada, geralmente ligada a situações de pobreza e a um sistema de saúde frágil. É uma doença infecciosa que afeta a pele e danifica os nervos periféricos^(1-2).

No Brasil, o número de novos casos de hanseníase vem diminuindo ao longo dos anos. O país, porém, ainda se encontra na triste posição de ser uma das nações onde a doença é mais prevalente⁽³⁾.

Pacientes com hanseníase sofrem diversas consequências de ordem biológica e psicossocial^(4-6). Embora a doença seja caracterizada por problemas de pele e distúrbios sensóriomotores, pesquisas apontam para um maior acometimento da doença^(7-9). Estudos recentes mostram que pacientes com hanseníase apresentam limitações na realização das atividades de vida diária (AVDs) além de possuírem grande suscetibilidade para o aparecimento de deficiências físicas e morbidades^(10-12). Declínio cognitivo também foi observado em alguns pacientes⁽¹³⁾. As taxas de suicídio são elevadas entre essas pessoas, impactadas sobretudo pelas disfunções motoras da doença, pela reclusão social e por preconceitos da sociedade^(14-15).

Sabendo que a disfunção física é comum na hanseníase, os autores realizaram este estudo para avaliar como se encontra a independência dos pacientes na realização de AVDs básicas e instrumentais, bem como para investigar se a deficiência física na hanseníase impacta outros sistemas do organismo como o cognitivo e o neuropsiquiátrico. Os autores acreditam que este estudo é de interesse de leitores da Revista Brasileira de Enfermagem tendo em vista que amplia a discussão no campo do cuidado ao paciente com hanseníase.

OBJETIVOS

Analisar as limitações de tarefa em pacientes com hanseníase e sua associação com cognição e sintomas neuropsiquiátricos.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa foi conduzida de acordo com os preceitos éticos estipulados pela declaração de Helsinque, e seu protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Todos os participantes firmaram por escrito seu consentimento antes de iniciada a etapa avaliativa.

Desenho, localização e período

Este é um estudo de desenho transversal derivado de uma tese de mestrado do Programa de Pós-graduação em Saúde e Desenvolvimento da Região Centro-Oeste. Os procedimentos metodológicos foram relatados de acordo com o STROBE – Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology. Os participantes foram recrutados entre 2018 e 2019, no Hospital São Julião — uma instituição localizada no município de Campo Grande (estado de Mato Grosso do Sul, Brasil) e considerada referência no tratamento da hanseníase na América Latina.

Amostra estudada

O cálculo do tamanho amostral envolveu a delimitação do erro alfa em 5%, do poder estatístico em 80% (1-beta) e do tamanho do efeito em 0,45. O tamanho do efeito foi previamente estipulado pelos pesquisadores em relação ao que eles esperavam encontrar sobre o comprometimento dos participantes nas AVDs. Diante disso, 60 pacientes com diagnóstico de hanseníase multibacilar foram incluídos neste estudo.

Os critérios de inclusão envolveram pessoas de ambos os sexos, com 18 anos ou mais e com diagnóstico de hanseníase multibacilar. Foram excluídos participantes que não conseguiam entender os testes, aqueles com confusão mental e pessoas com impossibilidade de comparecimento ao centro de avaliação.

Os participantes foram divididos em três grupos de acordo com a deficiência física: sem deficiência, com deficiência leve e com deficiência grave. Todos foram submetidos à avaliação dermatoneurológica, que indicou diagnóstico de hanseníase multibacilar. A confirmação diagnóstica foi feita por análises teciduais (biópsia) no centro de referência.

Procedimentos metodológicos

Após o recrutamento, os participantes foram submetidos a instrumentos de avaliação de incapacidade física quanto às AVDs, funções cognitivas e sintomas neuropsiquiátricos. As avaliações de cada paciente foram realizadas no mesmo dia. A ordem de aplicação dos instrumentos foi aleatória para evitar qualquer interferência da sequência dos testes sobre os resultados.

A avaliação da disfunção física dos participantes ocorreu por meio da Escala de Avaliação Neurológica Simplificada proposta pela Organização Mundial da Saúde⁽¹⁶⁾. Esse instrumento envolve tanto as funções motoras quanto as sensoriais dos pacientes. As funções motoras foram analisadas por meio da força dos participantes nos músculos dos olhos, das mãos e dos pés. As funções sensoriais foram analisadas mediante a integridade da visão dos pacientes e testes de estesiometria. Nesse instrumento, a deficiência física é classificada em 0 quando o sujeito não apresenta nenhuma deficiência sensório-motora, 1 quando algum déficit sensório-motor é encontrado (identificado pelo monofilamento roxo do estesiômetro ou por força muscular de até 4,0) e 2 quando a doença está em estágio mais avançado (identificada pela presença de contraturas, deformidades, úlceras e outras lesões tróficas).

As AVDs foram verificadas pelo Índice de Katz (IK)⁽¹⁷⁾ e pela escala de Triagem de Limitação de Atividade e Consciência de Risco (SALSA, sigla em inglês para Screening of Activity Limitation and Safety Awareness)⁽¹⁸⁾. O IK avalia a independência do sujeito em AVDs básicas como tomar banho, trocar de roupas, realizar higiene, fazer transferências, controle de esfíncteres e independência para se alimentar. A escala varia de 0 a 6, com escores mais altos indicando maior independência na realização das atividades. A escala SALSA, diferentemente, avalia a independência do sujeito em AVDs instrumentais, como cozinhar, servir líquidos quentes, abrir/fechar garrafas, manipular objetos e outras tarefas que exigem processamento das funções executivas. Na SALSA, valores de até 25 indicam nenhuma dificuldade na execução da tarefa, valores de 25 a 39 indicam dificuldade leve, valores de 40 a 49 mostram dificuldade moderada na execução das tarefas e valores acima de 50 indicam dificuldade severa do participante em realizar a tarefa.

As funções cognitivas dos participantes foram avaliadas pela Bateria de Avaliação Frontal (BAF)⁽¹⁹⁾. Esse instrumento foi utilizado por avaliar os seguintes processos executivos: conceituação, flexibilidade léxica, programação motora, instruções conflitantes, controle inibitório e autonomia ambiental. A escala varia de 0 a 18, sendo que, quanto maior a pontuação no teste, melhor o desempenho cognitivo do participante. Os sintomas neuropsiquiátricos foram mensurados pelo Questionário de Autorrelato (SRQ-20, sigla em inglês para Self-Reporting Questionnaire)⁽²⁰⁾. A pontuação do instrumento varia de 0 a 20, e os valores mais altos indicam presença de sintomas neuropsiquiátricos. Além dos instrumentos anteriormente delimitados, os pesquisadores elaboraram um formulário sociodemográfico geral para caracterizar a amostra quanto à idade, sexo, presença de dor e medicamentos em uso.

Análise dos dados

A análise dos dados envolveu a estatística descritiva e inferencial. Como o teste de ShapiroWilk apresentou padrão não paramétrico dos dados, os resultados foram descritos em número de eventos, porcentagem, mediana e intervalo interquartil.

Para a estatística inferencial, os testes qui-quadrado, Kruskal-Wallis e U de Mann Whitney foram utilizados para comparar os grupos em relação aos desfechos desta pesquisa. O índice de correlação de Spearman foi aplicado para verificar associações entre idade, tempo de diagnóstico, AVDs, dor, sintomas neuropsiquiátricos e cognição. O nível de significância foi de 5% (p < 0,05).

RESULTADOS

Esta pesquisa envolveu 63 participantes. Devido aos critérios de seleção, três indivíduos foram excluídos por não confirmação diagnóstica (n = 2) e recusa em participar da pesquisa (n = 1). O tamanho final da amostra foi de 60 participantes, 31 homens e 29 mulheres, com média de idade de 54,0±23,5 anos. Dos pacientes, 55% apresentavam alguma deficiência física (leve ou grave), e o tempo médio de diagnóstico dos sujeitos foi de 4,5±8,0 anos. A Tabela 1 detalha os aspectos sociodemográficos e clínicos dos participantes.

Tabela 1
Aspectos clínicos e socioeconômicos de pacientes com hanseníase atendidos em um hospital de referência, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2019

Variáveis	Disfunção física (nota)			p
	Sem disfunção (0)	Disfunção leve (1)	Disfunção severa (2)
Tamanho amostral, n	27	23	10	0,019
Idade, anos	48,0 (25,0)	57,5 (29,2)	60,0 (23,2)	0,252
Sexo, Masculino - Feminino, %	44,4 - 55,6	52,2 - 47,8	70,0 - 30,0	0,384
Tempo de diagnóstico, anos	3,0 (5,5)	5,0 (6,7)	7,0 (17,7)	0,757
Úlceras, %	11,1	4,3	40,0	0,019
Dor, escore	0,0 (5,0)	5,0 (9,5)	1,5 (6,2)	0,389
Bateria de Avaliação Frontal, escore	15,0 (5,0)	13,5 (6,0)	10,5 (8,2)	0,413
Sintomas neuropsiquiátricos, escore	7,5 (10,0)	11,0 (7,5)	2,5 (7,7)	0,029

• Nota: Os dados estão expressos em números absolutos para tamanho amostral e em porcentagem para sexo e úlceras. As demais variáveis estão expressas em mediana (intervalo interquartil). Valor de p do teste do qui-quadrado é para tamanho amostral, sexo e úlceras. Valor de p do teste Kruskal Wallis, para as demais variáveis.

Em relação às limitações de tarefa, nenhum participante apresentou pontuação abaixo de 5,0 no IK, indicando boa independência dos sujeitos na realização das AVDs básicas (p = 0,709 na comparação entre grupo). Para a escala SALSA, houve participantes que apresentaram nenhuma dificuldade na realização das AVDs instrumentais e outros que apresentaram dificuldades leve, moderada e severa. A Tabela 2 detalha as dificuldades dos participantes em realizar as AVDs instrumentais em cada grupo.

Tabela 2
Performance dos participantes sobre as atividades instrumentais da vida diária, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2019

Grupos	Dificuldades na escala SALSA				p
	Nenhuma	Leve	Moderada	Severa
Disfunção física (nota)					0,102
Sem disfunção (0), %	48,2	37,0	7,4	7,4
Disfunção leve (1), %	17,4	52,2	30,4	0,0
Disfunção severa (2), %	30,0	40,0	30,0	0,0

• Nota: SALSA - Escala de Triagem de Limitação de Atividade e Consciência de Risco (Screening of Activity Limitation and Safety Awareness). Os dados estão em expressos em porcentagem. Valor de p refere-se ao teste de qui-quadrado.

A Tabela 3 mostra as análises de correlação entre idade, tempo de diagnóstico, dor, AVDs, sintomas neuropsiquiátricos e cognição. Com relação aos medicamentos, todos os participantes faziam uso do coquetel de medicamentos preconizado pela Organização Mundial da Saúde e pelo Ministério da Saúde, a saber: rifampicina, dapsona e clofazimina.

Tabela 3
Análises de correlação envolvendo as variáveis clínicas dos pacientes com hanseníase multibacilar, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2019

	Idade	Tempo de diagóstico	Dor	Índice de Katz	SALSA	Cognição	Sintomas neuropsiquiátricos
Idade	1,000	0,324	0,084	-0,005	0,090	-0,339	0,385
Tempo de diagnóstico		1,000	-0,071	0,063	0,298	-0,080	0,058
Dor			1,000	-0,208	0,419	-0,246	0,178
Índice de Katz				1,000	-0,017	0,255	-0,043
SALSA					1,000	-0,245	0,335
Cognição						1,000	0,340
Sintomas neuropsiquiátricos							1,000

• Nota: SALSA - Escala de Triagem de Limitação de Atividade e Consciência de Risco (Screening of Activity Limitation and Safety Awareness). Valor de R dos testes de correlação de Spearman. Valores significativos (p < 0,05) estão destacados em negrito.

DISCUSSÃO

A hanseníase é uma condição incapacitante que atinge toda a família e estigmatiza o paciente^(21-23). Uma forma de minimizar o preconceito é discutir abertamente a temática da doença na sociedade⁽²⁴⁾. Outra forma é preparar os profissionais de saúde para abordá-la de forma integral a fim de que o paciente não se torne fisicamente incapacitado e recluso do meio social⁽²⁵⁾.

Nesse cenário, os autores deste estudo analisaram as limitações de tarefas em pacientes com hanseníase multibacilar e investigaram se a deficiência física ocasionada pela doença afeta outros sistemas do organismo. Os resultados mostraram que a maioria dos participantes apresentou algum tipo de deficiência física (leve ou grave). Todos os pacientes eram independentes na realização das AVDs básicas, mas boa parte (66,7% da amostra) apresentou dificuldades para realizar as AVDs instrumentais. Dificuldades em realizar as atividades instrumentais foram associadas ao tempo de diagnóstico. Declínio cognitivo e sintomas neuropsiquiátricos, embora presentes, foram mais associados à idade da pessoa do que à hanseníase em si. A compreensão dos fatores que impactam a saúde de pacientes com hanseníase é importante para fornecer o melhor suporte às famílias e o melhor tratamento aos pacientes.

A primeira coisa a salientar nesse estudo é que os grupos foram homogêneos para idade, sexo, tempo de diagnóstico, dor referida e atividades funcionais. Esses resultados são importantes, pois minimizam o impacto dos perfis sociodemográficos e clínicos dos grupos sobre os desfechos. Apesar de não haver diferenças para idade e tempo de diagnóstico, pacientes com maior disfunção física tendem a ter idade mais avançada e maior tempo de diagnóstico. Esse aspecto é relevante porque mostra o impacto concomitante da gravidade da doença e da idade na saúde dos indivíduos.

Neste estudo, o número de pacientes com disfunção física grave foi significativamente menor do que o número de pacientes sem disfunção física e daqueles com disfunção leve. Os motivos para esse achado podem estar relacionados às dificuldades dos pacientes graves em comparecer ao hospital e ao fato de a maioria dos pacientes assistidos no hospital São Julião serem tratados antes de atingir o estágio avançado da doença. Novos estudos devem centrar análises naqueles com disfunção física grave para verificar se seus perfis clínicos e funcionais são semelhantes aos encontrados neste estudo.

Pesquisas prévias já relatam o impacto da hanseníase na independência funcional do paciente^(26-28). No presente estudo, os grupos foram homogêneos para AVDs básicas e instrumentais. Apesar dessa semelhança, a Tabela 2 mostra que 66,7% dos pacientes com hanseníase multibacilar apresenta dificuldades para realizar atividades instrumentais da vida diária. Isso significa que a deficiência física não interferiu nas AVDs básicas, mas há uma tendência de piora nos valores das AVDs instrumentais à medida que a deficiência física aumenta. Além disso, conforme relatado na Tabela 3, houve uma associação significativa entre tempo de diagnóstico e AVDs instrumentais. Isto é, quanto maior o comprometimento físico do paciente, maiores são as suas dificuldades em realizar atividades complexas do dia a dia. Esse achado é importante porquanto reforça que, embora a deficiência física não tenha impactado as AVDs básicas, ela está interferindo nas AVDs complexas dos sujeitos.

As úlceras de pele representam um grave problema na hanseníase⁽²⁹⁾. Seu tratamento é complexo e ainda frágil em evidências científicas⁽³⁰⁾. Como esperado, os pacientes com disfunção física avançada apresentaram mais úlceras que pacientes sem deficiência. Como os pacientes com deficiência avançada eram independentes na realização das AVDs, os autores concluem que essas úlceras estão mais associadas à progressão da doença do que à constituição de escaras consequentes do imobilismo.

A queixa de dor é comum em pacientes com hanseníase^(31-32). Os autores hipotetizaram inicialmente que indivíduos em estágios avançados da doença sofreriam mais dor que aqueles em estágios iniciais por apresentarem mais úlceras cutâneas. Os achados, contudo, foram diferentes: apesar da presença de úlceras ser mais frequente no grupo mais avançado da doença, pacientes com disfunção física grave reportaram menos dor do que aqueles com disfunções leves. Os autores atribuem esse achado ao fato de que a anestesia é comum em estágios avançados da doença e os estímulos sensoriais podem não estar sendo sentidos pelo paciente.

Ao contrário do que foi estipulado pelos autores, os pacientes com disfunção física grave apresentaram menos sintomas neuropsiquiátricos do que aqueles com disfunções leves. Isso pode indicar, por um lado, que o grau de incapacidade física por si só não permite inferir sobre a presença ou ausência de sintomas neuropsiquiátricos em pacientes com hanseníase multibacilar. Por outro lado, os resultados dos testes neuropsiquiátricos podem ter sido mascarados por uma noção imprecisa de saúde dos pacientes com disfunções graves, uma vez que os escores cognitivos dos participantes desse grupo foram relativamente inferiores aos dos demais grupos. Como a análise complementar mostrou que os sintomas neuropsiquiátricos estavam mais associados à idade do que à hanseníase, os autores concluem que os sintomas neuropsiquiátricos não foram afetados pela hanseníase. Esse resultado diverge em relação ao encontrado por Rocha-Leite e colaboradores⁽³³⁾, e tal divergência deve estimular novos estudos para explorar melhor a temática em questão.

Há controvérsias se pessoas com hanseníase sofrem ou não de quadros demenciais. Alguns estudos mostram escores cognitivos normais em pacientes com hanseníase, e outros mostram casos de pacientes com demência^(13,34). A maioria dos pacientes avaliados neste estudo apresentou escores normais na BAF, e os valores vistos no grupo de sujeitos com disfunções graves podem indicar declínio cognitivo, mas não demência⁽³⁵⁾. Apesar de não terem sido encontradas diferenças entre os grupos para cognição, os resultados indicaram uma tendência de declínio cognitivo com o aumento da deficiência física. Como o grupo de disfunção física grave apresentou um indicativo de idade mais avançada que os demais grupos, as análises de correlação confirmam que o declínio cognitivo em pacientes com hanseníase está mais associado à idade da pessoa do que à doença em si.

Limitações

Leitores devem estar cientes de algumas limitações desta pesquisa. Em primeiro lugar, os resultados encontrados são restritos a pacientes com hanseníase multibacilar. Em segundo lugar, o grupo de disfunção física grave foi significativamente menor do que os grupos sem disfunção física ou com disfunção física leve. Em terceiro lugar, todos os pacientes faziam uso de medicamentos para hanseníase, o que predispõe os achados a serem restritos a pacientes medicados. Em quarto lugar, os participantes não foram acompanhados após a alta do tratamento⁽³⁶⁾, dificultando análises complementares do tipo causa-efeito. Por fim, as correlações estatísticas encontradas neste estudo foram de moderada intensidade⁽³⁷⁾, indicando que pode haver outros fatores não analisados neste estudo impactando as variáveis em questão.

Contribuições para a área

O presente trabalho traz novas informações sobre o cuidado de pessoas com hanseníase. Disfunção física, AVDs, cognição e distúrbios neuropsiquiátricos são tópicos dos quais enfermeiros, médicos, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde devem estar cientes antes do tratamento.

Os resultados indicam a importância de assistência precoce a pacientes com hanseníase multibacilar como forma de prevenir incapacidade física e seu impacto nas AVDs instrumentais. Os autores consideram os achados desta pesquisa enquanto estímulo a novos estudos voltados para análise dos fatores internos e externos que afetam a saúde dos pacientes com hanseníase.

CONCLUSÕES

Este estudo mostrou que a disfunção física é frequente em pacientes com hanseníase multibacilar, conforme já relatado na literatura. Os participantes eram independentes na realização das AVDs básicas, mas apresentavam dificuldades na realização das AVDs instrumentais. Declínio cognitivo e os sintomas neuropsiquiátricos, embora presentes, estão mais ligados ao envelhecimento do que à hanseníase.

• FOMENTO
  Apoio financeiro foi concedido pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS - Programa de Pós-graduação em Saúde e Desenvolvimento da Região Centro-Oeste e Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (CAPES) - Código financeiro 001.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

EDITOR ASSOCIADO: Álvaro Sousa

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  09 Abr 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  13 Jul 2020
• Aceito
  25 Set 2020