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Ensaio teórico-metodológico sobre validade da informação da identidade de gênero no monitoramento epidemiológico da violência

RESUMO

A inclusão do campo “identidade de gênero” no sistema de vigilância de violências brasileiro, embora tenha representando um avanço, ainda apresenta limitações que podem comprometer a validade dos dados epidemiológicos. As opções de resposta existentes para as identidades das vítimas não abrangem adequadamente a diversidade dessa categoria de análise, resultando em vieses de classificação. Adicionalmente, a ausência de opções para as identidades cisgênero reflete uma abordagem que naturaliza essas identidades, enquanto as identidades trans são consideradas desviantes e passíveis de monitoramento. Para superar essas limitações, é imprescindível adotar uma compreensão mais ampla do gênero como uma construção social e performativa. Isso requer uma reavaliação das estruturas sociais e dos instrumentos de coleta de dados. Nesse contexto de discussão, este ensaio teórico-metodológico tem como objetivo refletir sobre a aferição da identidade de gênero no sistema de vigilância de violências interpessoais e autoprovocadas do Sistema de Agravos de Notificação, tomando como referenciais as concepções teóricas sobre gênero como ato performativo e os fundamentos da validade em investigações epidemiológicas.

DESCRITORES
Diversidade de Gênero; Identidade de Gênero; Violência; Monitoramento Epidemiológico; Saúde Pública

ABSTRACT

The inclusion of the “gender identity” field in the Brazilian violence surveillance system, although representing a step forward, still has limitations that may compromise epidemiological data validity. Existing response options for victims’ identities do not adequately cover the diversity of this analysis category, resulting in classification biases. Additionally, the absence of options for cisgender identities reflects an approach that naturalizes these identities, while trans identities are considered deviant and subject to surveillance. To overcome these limitations, it is imperative to adopt a broader understanding of gender as a social and performative construction. This requires a reassessment of social structures and data collection instruments. In this context of discussion, this theoretical-methodological essay aims to reflect on gender identity measurement in the Reporting Diseases System interpersonal and self-inflicted violence surveillance system, taking as frameworks the theoretical conceptions about gender as a performative act and the foundations of validity in epidemiological investigations.

DESCRIPTORS
Gender Diversity; Gender Identity; Violence; Epidemiological Monitoring; Public Health

RESUMEN

La inclusión del campo de la “identidad de género” en el sistema brasileño de vigilancia de la violencia, aunque representa un paso adelante, todavía tiene limitaciones que pueden comprometer la validez de los datos epidemiológicos. Las opciones de respuesta existentes para las identidades de las víctimas no cubren adecuadamente la diversidad de esta categoría de análisis, lo que genera sesgos de clasificación. Además, la ausencia de opciones para las identidades cisgénero refleja un enfoque que naturaliza estas identidades, mientras que las identidades trans se consideran desviadas y sujetas a seguimiento. Para superar estas limitaciones, es imperativo adoptar una comprensión más amplia del género como una construcción social y performativa. Esto requiere una reevaluación de las estructuras sociales y de los instrumentos de recolección de datos. En este contexto de discusión, este ensayo teórico-metodológico tiene como objetivo reflexionar sobre la medición de la identidad de género en el sistema de vigilancia de la violencia interpersonal y autoinfligida del Sistema de Enfermedades de Declaración Obligatoria, tomando como referentes las concepciones teóricas sobre el género como acto performativo y los fundamentos de validez en las investigaciones epidemiológicas.

DESCRIPTORES
Diversidad de Género; Identidad de Género; Violencia; Monitoreo Epidemiológico; Salud Pública

INTRODUÇÃO

A violência é um fenômeno sócio-histórico, complexo e abrangente que afeta negativamente tanto a saúde física quanto a saúde psicossocial das vítimas e suas famílias(11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, et al. World report on violence and health. Geneva: World Health Organization; 2002. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(02)11133-0
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). Reconhecendo a urgente necessidade de monitorar e escrutinar a violência como um fenômeno de saúde pública no Brasil, em 2006, o Ministério da Saúde implementou o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), vinculado ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) a partir de 2009. A notificação de casos de violência interpessoal e autoprovocada se tornou obrigatória pelos serviços de saúde em todo o país a partir de 2011(22. Ministério da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2016.).

Ao tornar a notificação como compulsória, o Ministério da Saúde buscou criar uma base de dados abrangente e atualizada sobre a incidência de casos de violência, produzindo informações essenciais para subsidiar as políticas públicas direcionadas ao enfrentamento deste fenômeno, além de permitir a identificação de grupos e regiões mais vulneráveis. Desde então, diversos aprimoramentos foram realizados nas fichas de notificação do sistema VIVA, sendo a última, realizada em 2014 e implantada em 2015, uma das mais importantes. Impulsionada pela Política Nacional de Saúde Integral LGBTQIA+ e por pressões dos movimentos sociais, essa atualização incluiu os campos para o registro da orientação e da identidade de gênero das vítimas(22. Ministério da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2016.,33. Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, Santos MAS, Marinho MMA, Benício LA, et al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Rev Bras Epidemiol. 2020;23(suppl 1):e200006, 1. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200006.supl.1. PubMed PMID: 32638993.
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).

Essa inclusão, portanto, reconheceu formalmente os marcadores de gênero e diversidade sexual como elementos essenciais nos determinantes sociais da saúde, adoecimento e morte. Ao incluir campos para o registro da identidade de gênero e da orientação sexual das vítimas de violências, passou a ser possível identificar e monitorar os casos contra pessoas LGBTQIA+, representando um avanço indiscutível no monitoramento epidemiológico do fenômeno(33. Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, Santos MAS, Marinho MMA, Benício LA, et al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Rev Bras Epidemiol. 2020;23(suppl 1):e200006, 1. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200006.supl.1. PubMed PMID: 32638993.
https://doi.org/10.1590/1980-54972020000...
,44. Oliveira DC. Representatividade da população LGBTQIA+ nas pesquisas epidemiológicas, no contexto da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais: ampliar a produção de conhecimento no SUS para a justiça social. Epidemiol Serv Saude. 2022;31(1):e2022020. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742022000100030. PubMed PMID: 35476005.
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).

Não por acaso, durante o período de 2015 a 2017, ocorreu um aumento significativo nas notificações de violências interpessoais e autoprovocadas, tanto entre a comunidade LGBTQIA+ quanto entre travestis e transexuais (neste texto, será adotado o termo “trans” em respeito ao movimento político transativista). A qualidade dos dados sobre orientação sexual e identidade de gênero ao longo do período melhorou sobremaneira ao longo dos anos, sendo as formas física e sexual de violências as mais observadas nas notificações(33. Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, Santos MAS, Marinho MMA, Benício LA, et al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Rev Bras Epidemiol. 2020;23(suppl 1):e200006, 1. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200006.supl.1. PubMed PMID: 32638993.
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). Contudo, esse avanço não deve representar o encerramento do debate sobre a matéria, especialmente ao analisar que a inclusão de campos e o formato da inclusão dos marcadores de diversidade sexual e de gênero não ocorreram a partir de uma compreensão abrangente sobre o tema.

Tomando como referência o campo “orientação sexual” da ficha de notificação(22. Ministério da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2016.), é possível observar que essa variável possui opções de resposta que incluem uma autodeterminação de ser heterossexual, homossexual (gay/lésbica), bissexual, não se aplica e ignorado, encerrando a possibilidade de outras e múltiplas formas de orientação sexual, tais como queer, intersexo, pansexual, assexual e outras orientações, representadas pelo símbolo de “mais” na sigla LGBTQIA+. De modo ainda mais restritivo, a variável identidade de gênero incluiu apenas as opções de resposta para “travesti”, “mulher transexual”, “homem transexual”, “não se aplica” e “ignorado”.

A falta de opções para respostas como “mulher cisgênero”, “homem cisgênero” e outras identidades, incluindo aquelas que se autodeterminam como gênero fluido, queer, entre outras, acarreta problemas significativos em termos de validade epidemiológica. Isso ocorre porque as opções “não se aplica” ou “ignorado” podem ser atribuídas tanto a pessoas cisgênero quanto a outras identidades que não se enquadram nessas categorias preestabelecidas, resultando em vieses de classificação difíceis de controlar durante as análises. É crucial refletir sobre o fato de que os projetos de mapeamento, levantamento e produção de dados epidemiológicas são tecnologias importantes para o (re)conhecimento da população e formulação de políticas públicas(44. Oliveira DC. Representatividade da população LGBTQIA+ nas pesquisas epidemiológicas, no contexto da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais: ampliar a produção de conhecimento no SUS para a justiça social. Epidemiol Serv Saude. 2022;31(1):e2022020. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742022000100030. PubMed PMID: 35476005.
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,55. Canavese D, Polidoro M, Signorelli MC, Moretti-Pires RO, Parker R, Terto Jr V. Pela urgente e definitiva inclusão dos campos de identidade de gênero e orientação sexual nos sistemas de informação em saúde do SUS: o que podemos aprender com o surto de monkeypox? Cien Saude Colet. 2022;27(11):4191–4. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320222711.12902022en. PubMed PMID: 36259839.
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). No entanto, é igualmente urgente que a produção de dados evolua para padrões de informações mais sofisticadas, a fim de mitigar os danos que uma classificação restritiva pode causar.

Além disso, a falta de opções adequadas para a identificação de gênero de modo autônomo e, consequentemente, digna das pessoas, estabelece um efeito discursivo no documento de notificação oficial, levando a um mapeamento epidemiológico que se concentra apenas em gêneros considerados desviantes da norma. Ou seja, à medida que as categorias cisgênero são ignoradas, tem-se o estabelecimento do positivo – do anormal, daquilo que precisa ser visto e monitorado – apenas para a população travesti e trans. Isso reflete uma abordagem que é comumente observada no mapeamento de doenças, onde o foco é marcar os casos positivos e estabelecer o padrão de normalidade para a maioria da população. Em outras palavras, o discurso subjacente ao formulário sugere que identidades cisgênero não precisam ser mapeadas. Assim, ao ignorar essas identidades, o formulário as considera como naturais, agregando um significado de originalidade às identidades cisgênero e um sentido patológico ou desviante às identidades travesti e trans, bem como ignorando e apagando as identidades não binárias, intersexo e demais identidades não cisgênero.

Este manuscrito recorre às teorias de Judith Butler(66. Butler J. The force of nonviolence: an ethico-political blind. London: Verso; 2020.

7. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.
-88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.) para compreender a construção social do gênero de forma abrangente e questionar as normas e categorias fundamentais que limitam e oprimem as pessoas com base em sua identidade de gênero. Ao conhecer o gênero como uma construção social e, consequentemente, performativa, os autores tomam uma posição teórica para rivalizar e questionar a perspectiva hegemônica que compreende o gênero como categoria fixa e essencialista (biológica e inata). Desafia-se, assim, as concepções pautadas pelo binarismo que sistematicamente exclui e apaga determinadas identidades em diversas estruturas sociais. Por conseguinte, esse apagamento limita a produção de cuidados e a formulação de políticas públicas capazes de reconhecer e enfrentar problemas de grupos considerados socialmente dissonantes.

Nesse contexto, este ensaio teórico-metodológico tem por objetivo refletir sobre a aferição da identidade de gênero no sistema de vigilância de violências interpessoais e autoprovocadas do SINAN, tomando como referenciais as concepções teóricas sobre gênero como ato performativo e os fundamentos da validade em investigações epidemiológicas.

A Subversão dos Conceitos de Originalidade do Sexo e Gênero: um Debate Sobre os Efeitos do Poder, Discurso e Performatividade

Durante muito tempo, o processo de diferenciação biodeterminista dos sexos, baseado em teorias que atribuem a anatomia e a genética dos corpos como explicação, desempenhou um papel significativo na construção dos papéis sociais tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres. A existência de uma humanidade dividida em duas categorias distintas, com base na diferença sexual, foi considerada por muito tempo como um axioma(99. Rivera MFA, Scarcelli IR. Contribuições feministas e questões de gênero nas práticas de saúde da atenção básica do SUS. Saúde Debate. 2021;45(spe1):39–50. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0103-11042021e103
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,1010. Curado JC, Jacó-Vilela AM. Estudos de Gênero na Psicologia (1980-2016): aproximações e distanciamentos. Psicologia (Cons Fed Psicol). 2021;41:e219132. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003219132
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). Além disso, nessas correntes pautadas pela razão do essencialismo biológico, as categorias “sexo” e “gênero” eram frequentemente usadas de forma intercambiável. Nessa abordagem, os corpos femininos eram frequentemente interpretados como uma versão inferior em relação aos corpos masculinos, que eram considerados como o padrão original, não havendo espaço para outras identidades de gênero(1010. Curado JC, Jacó-Vilela AM. Estudos de Gênero na Psicologia (1980-2016): aproximações e distanciamentos. Psicologia (Cons Fed Psicol). 2021;41:e219132. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003219132
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). Essa corrente do pensamento por muito tempo se utilizou – e ainda se utiliza - deste esforço retórico para explicar desigualdades entre homens e mulheres.

No entanto, em sua obra seminal, Beauvoir(1111. Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1967.) faz uma crítica contundente a essa visão, aspecto que até a atualidade ainda há quem considere como subversiva e perigosa(1212. Mano MK. As mulheres desiludidas: de Simone de Beauvoir à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu. 2019;e195624(56):e195624. doi: http://dx.doi.org/10.1590/18094449201900560024
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), já que questiona o processo de estabilização dos gêneros como papéis a serem desenvolvidos na sociedade. Beauvoir(1111. Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1967.) inaugura uma nova corrente de pensamento, ao interpretar o gênero como uma construção socioantropológica e, consequentemente, cultural desvinculada das supostas diferenças biológicas entre os sexos. Contesta-se, assim, a visão reducionista praticada até o momento, e abre-se caminho para um entendimento mais abrangente e inclusivo das expressões do gênero(1212. Mano MK. As mulheres desiludidas: de Simone de Beauvoir à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu. 2019;e195624(56):e195624. doi: http://dx.doi.org/10.1590/18094449201900560024
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).

Na mesma medida, autoras como Betty Friedan(1313. Friedan B. A mística feminina. 4. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 2020.), bell hooks(1414. Hooks B. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Editora Perspectiva; 2019.), entre tantas outras, caminharam na mesma direção, endossando a luta do movimento feminista de contestação dos papéis e desigualdades sociais impostas pelo gênero, além de, algumas delas, incluírem a raça e a classe como mediadores importantes do estado de desigualdades impostos pela sociedade. Em sua obra amplamente reconhecida no campo dos estudos de gênero, intitulada “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, Joan Scott(1515. Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1995;20(2)) se alinha às correntes socioantropológicas vigentes, bem como assume influências das teorias pós-estruturalistas. Nesse contexto, Scott desafia a dicotomia entre a natureza essencialista de homens e mulheres, propondo uma perspectiva que atribui um papel crucial à linguagem e ao discurso na formação do gênero.

Scott(1515. Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1995;20(2)) argumenta que o gênero não é uma característica inata, mas sim uma construção social que é moldada e perpetuada por meio de representações simbólicas. Para ela, o gênero não deve ser tratado como categoria fixa, mas deve ser encarado como um desafio aos significados atribuídos às diferenças entre homem e mulher, questionando especialmente o alijamento de determinados grupos em detrimento de outros considerados hegemônicos(1010. Curado JC, Jacó-Vilela AM. Estudos de Gênero na Psicologia (1980-2016): aproximações e distanciamentos. Psicologia (Cons Fed Psicol). 2021;41:e219132. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003219132
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). Nessa perspectiva, esse pensamento se alia à consagrada frase de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se”(1111. Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1967.).

Por outro lado, mesmo que essa perspectiva coloque o foco no contexto cultural que molda e constrói significados aos corpos e gêneros, ainda assim, os corpos, em última análise, estariam fadados aos moldes da cultura, tornando-se o novo destino do ser(88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.). Sendo assim, ainda que se questionem outros destinos aos corpos e o destino inicialmente traçado pelo que é biológico fosse sumariamente substituído e rejeitado, a estabilidade de um destino se manteria, mas, dessa vez, por meio da cultura(88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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). Tal como apontam Firmino e Porchat(1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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), este processo de formação do gênero feminino enfrentaria coerções e normas impostas pela sociedade (mesmo que implícitas), impondo um novo imperativo ao corpo: o “torne-se mulher”(16:56).

Evidentemente, este conjunto de regras sobre o que é feminino estaria sujeito a um conjunto restrito e socialmente aceitável do que é ser mulher(1212. Mano MK. As mulheres desiludidas: de Simone de Beauvoir à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu. 2019;e195624(56):e195624. doi: http://dx.doi.org/10.1590/18094449201900560024
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). Em outras palavras, a construção do feminino não escapa do peso das expectativas culturais, mesmo que possa resistir ao determinismo biológico, trazendo consigo um conjunto de características que seriam consideradas a versão original de ser mulher(88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1212. Mano MK. As mulheres desiludidas: de Simone de Beauvoir à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu. 2019;e195624(56):e195624. doi: http://dx.doi.org/10.1590/18094449201900560024
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,1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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). O afastamento dessas normas estabelecidas pode ser visto como a subversão ou um comportamento errático, e, consequentemente, está sujeito a correções sociais. Na verdade, ocorrem coerções socias e em alguns corpos considerados dissonantes, até mesmo coerções sexuais, como os estupros com o objetivo “correção” e “cura”, perpetradas contra mulheres lésbicas e homens trans(1717. Trispiotis I, Purshouse C. ‘Conversion Therapy’ as degrading treatment. Oxf J Leg Stud. 2021;42(1):104–32. doi: http://dx.doi.org/10.1093/ojls/gqab024. PubMed PMID: 35264896.
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).

Nessa compreensão, mesmo a identidade masculina, que no passado se beneficiou do status de categoria original, não estaria isenta desse processo de “tornar-se” e, consequentemente, do que culturalmente se faz necessário reunir em termos de características e comportamentos considerados masculinos. Questiona-se, assim, a compreensão teórica de uma separação do que é biológico, o sexo, do que seria uma categoria construída pelo discurso que se estabiliza em uma cultura, o gênero(88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1010. Curado JC, Jacó-Vilela AM. Estudos de Gênero na Psicologia (1980-2016): aproximações e distanciamentos. Psicologia (Cons Fed Psicol). 2021;41:e219132. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003219132
https://doi.org/10.1590/1982-37030032191...
,1212. Mano MK. As mulheres desiludidas: de Simone de Beauvoir à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu. 2019;e195624(56):e195624. doi: http://dx.doi.org/10.1590/18094449201900560024
https://doi.org/10.1590/1809444920190056...
,1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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,1818. Lima VM, Belo FRR. Gênero, sexualidade e o sexual: o sujeito entre Butler, Foucault e Laplanche. Psicol Estud. 2019;24:e41962. doi: http://dx.doi.org/10.4025/1807-0329e441962
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).

Assim, desde o momento em que as pessoas são identificadas como mulheres ou homens, elas passam a ser inscritas em um sistema de normas de gênero(88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1010. Curado JC, Jacó-Vilela AM. Estudos de Gênero na Psicologia (1980-2016): aproximações e distanciamentos. Psicologia (Cons Fed Psicol). 2021;41:e219132. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003219132
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,1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
https://doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.201...
). Nessa toada, a detecção de um sexo, mesmo que em um corpo não nascido, passa a ser afetada por discursos que esboçam expectativas sobre os desejos, comportamentos e aparências a partir da mínima detecção do que é ou do que possivelmente virá a ser a genitália daquele corpo(1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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). Na verdade, antes mesmo da possibilidade de detectar a genitália, um conjunto de expectativas familiares e sociais já incidem sobre o corpo. Essas expectativas circunscreverão o corpo ainda não nascido em uma espécie de trilha de comportamentos esperados e ensinados pelos adultos por meio de múltiplas mensagens ao longo da vida. Assim, as regras sociais, por meio de um discurso pré-existente, ainda que não sejam necessariamente determinantes e fatídicos, auxiliam a modular e restringir certas experiências, desejos e, consequentemente, a expressões de gênero, bem como a adoecer as pessoas(1818. Lima VM, Belo FRR. Gênero, sexualidade e o sexual: o sujeito entre Butler, Foucault e Laplanche. Psicol Estud. 2019;24:e41962. doi: http://dx.doi.org/10.4025/1807-0329e441962
https://doi.org/10.4025/1807-0329e441962...
).

Nessa direção, a filosofia de John L. Austin(1919. Austin JL. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018.), que, tal como os trabalhos de Foucault(2020. Foucault M. The archeology of knowledge & discourse on language. New York: Pantheon Books; 1972.,2121. Foucault M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal; 1980.), auxiliaram a teoria de Butler, traz à tona o argumento de que o discurso não se destina meramente a uma descrição sobre o mundo, ou seja, a linguagem nem sempre é meramente constatativa. Para ele, a linguagem também pode ser utilizada para produzir ações por meio das palavras que são utilizadas, em relação ao que ele conceituaria como unidades fundamentais, que vão além dos sentidos da palavra, sendo, na verdade, atos de fala (“speech acts”).

Ao produzir ações e efeitos no contexto em que a linguagem é usada, Austin(1919. Austin JL. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018.) afirma que estamos lidando com linguagem performativa. Dessa forma, o discurso apresenta características fundamentais que envolvem convenções, intenções e atos capazes de afetar o mundo. A primeira característica corresponde ao entendimento que a realização de uma ação performativa depende do contexto e das regras estabelecidas. Em outras palavras, no caso específico da comunicação, se faz necessário existir um acordo tácito sobre o significado das palavras dentro de um contexto. Assim, o uso de palavras e expressões não ocorrem ao acaso e os sentidos atribuídos a elas são definidos, em termos históricos e contextuais, antes mesmo que o diálogo ocorra.

A segunda característica refere-se à intenção concreta de realizar uma ação ao comunicar uma mensagem, seja ela escrita ou falada. Nesse sentido, a emissão de uma mensagem não é necessariamente uma mera expressão de ideias ou uma constatação de fatos. A linguagem também pode ser um ato que possui um propósito por trás da própria mensagem. Por fim, a terceira característica, o ato perlocucionário, diz respeito ao efeito produzido pelo ato de fala, ou seja, as consequências produzidas pelos falantes sobre o mundo e seus ouvintes. Mais que um ato de constatação, a fala, portanto, pode ser produtora de ações capazes de influenciar as pessoas e causar reações.

Assim, ao considerar essas características da linguagem como performativa, Butler(77. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.) se alinha com a proposta de Austin(1919. Austin JL. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018.). Portanto, a linguagem vai além de ser apenas uma ferramenta neutra de comunicação; ela também atua como uma forma de ação que molda interações sociais e sustenta certas identidades de gênero que parecem estar estabilizadas no discurso(88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.). Como resultado, também pode ser usada para negar a diversidade.

Ao investigar a natureza do gênero dessa maneira, convida-se a examinar não apenas os fundamentos que questionam aspectos biológicos atribuídos aos homens e às mulheres, mas principalmente como o discurso e a cultura operam ao modular a experiência de ser homem ou mulher e as rígidas fronteiras impostas a cada uma dessas identidades(1212. Mano MK. As mulheres desiludidas: de Simone de Beauvoir à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu. 2019;e195624(56):e195624. doi: http://dx.doi.org/10.1590/18094449201900560024
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,1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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). No caso específico deste manuscrito, por meio do discurso, reflete-se que é possível manter um status de identidades de gênero originais usando uma linguagem específica (exemplo: termos, palavras) em uma ficha de notificação de violência. Assim, atribui-se sentido para que o que é reconhecidamente diferente (“queer”) seja assinalado na ficha (como no caso de travestis, homens trans e mulheres trans), enquanto as identidades de gênero consideradas socialmente “originais” permanecem rigidamente protegidas.

É útil refletir sobre a concepção de originalidade e o processo de imitação quando abordamos questões de identidade de gênero segundo Butler(77. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.), pois isso contribui para a compreensão da perversa lógica de um sistema que busca corrigir ou eliminar corpos que desviam das normas. Nesse sistema, estabelece-se uma relação de gênero correto e, portanto, original ao longo da história e por meio de processos performativos. O sexo e o gênero são, assim, imitados ao longo do tempo, conferindo a aparência de algo natural(1010. Curado JC, Jacó-Vilela AM. Estudos de Gênero na Psicologia (1980-2016): aproximações e distanciamentos. Psicologia (Cons Fed Psicol). 2021;41:e219132. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003219132
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,1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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). Dessa forma, ao falar de imitação, Butler(77. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.) não se refere apenas a uma cópia de formas, mas sim ao processo discursivo pelo qual as pessoas aprendem e repetem essas formas, comportamentos, papéis sociais que são esperados, corroborando para apontamentos similares de Scott(1515. Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1995;20(2)).

Ao analisar as mulheres cisgênero, percebe-se que a construção do que é considerado como ato feminino não é algo essencialista, mas sim resultado de influências sociais e culturais que moldam a feminilidade desde antes do nascimento, no momento da descoberta e das expectativas do seu sexo. Isso também se aplica às mulheres trans, cujas identidades tendem a ser formadas pelos padrões e expressões associados ao que é considerado feminino na sociedade(1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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). Da mesma forma, os homens cisgênero, homens trans e outras expressões da masculinidade também são moldados e reproduzidos culturalmente. O masculino também é uma convenção, um tornar-se(1111. Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1967.) sem necessariamente nascer(77. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.). Ambas, pessoas cisgênero e trans, estão igualmente envolvidas na realização performativa que constitui o gênero feminino e masculino(1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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). Enquanto isso, pessoas que se identificam como gênero fluido impõem um questionamento existencial ao binarismo promovido por pessoas cisgênero e trans.

Portanto, o processo de repetir o que seria considerado atos e jeitos do que é socialmente considerado como feminino ou masculino é o que Butler denomina como performance(88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.). A compreensão do sexo e do gênero como performances é, em si mesma, um questionamento da tentativa falaciosa de determinar o gênero com base no sexo. Ou seja, o sexo e o gênero são construções produzidas por discursos e linguagens ao longo do tempo.

O gênero não é uma característica ontológica dos seres, pois ele, a partir de um processo contínuo de criação e recriação, é moldado pelas interações sociais e pelas relações de poder(1010. Curado JC, Jacó-Vilela AM. Estudos de Gênero na Psicologia (1980-2016): aproximações e distanciamentos. Psicologia (Cons Fed Psicol). 2021;41:e219132. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003219132
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). O principal legado de Butler é compreender o gênero como performativo e buscar a subversão de uma ordem essencialista, permitindo a liberdade de expressão e visando à autodeterminação de gênero das pessoas(77. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1010. Curado JC, Jacó-Vilela AM. Estudos de Gênero na Psicologia (1980-2016): aproximações e distanciamentos. Psicologia (Cons Fed Psicol). 2021;41:e219132. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003219132
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,1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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). No entanto, após tantos avanços teóricos, não há espaço para ingenuidade. A cultura hegemônica e heterocisnormativa, a fim de manter a coerência de um sistema dual, privilegia algumas identidades de gênero em detrimento de outras(1818. Lima VM, Belo FRR. Gênero, sexualidade e o sexual: o sujeito entre Butler, Foucault e Laplanche. Psicol Estud. 2019;24:e41962. doi: http://dx.doi.org/10.4025/1807-0329e441962
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).

Assim, apesar do inegável avanço conquistado em 2015, a ficha de notificação de violência interpessoal e autoprovocada é um exemplo dos efeitos do discurso performativo sobre a construção das identidades, pois apaga algumas expressões de gênero do seu sistema de classificação. No limite, fica a questão se algumas identidades importam mais que outras em uma perspectiva de monitoramento epidemiológico. Assim, devido à própria natureza do fenômeno da violência, restringir a coleta de dados dessa variável a um conjunto limitado de respostas, que tradicionalmente exclui identidades na sociedade, levanta a questão se o próprio sistema de notificação não estaria reproduzindo violações de direitos em alguns grupos populacionais. Ademais, essas opções restringem sobremaneira a validade da aferição do monitoramento.

O Discurso Performativo Hegemônico Sobre a Validade Epidemiológica: o Sacrifício do Método e a Problemática Estratégia Para Classificar Grupos

A validade epidemiológica é um tema central nas discussões científicas, pois há uma constante preocupação em reduzir vieses, erros aleatórios e problemas relacionados às fontes de informação nas investigações. A validade refere-se à capacidade de uma pesquisa, seus instrumentos ou variáveis medirem corretamente e de forma precisa o que se propõe a medir(2222. Fletcher R, Fletcher S. Clinical epidemiology: the essentials. 4. ed. São Francisco: Lippincott; 2005.). Nessa esteira, para que uma medida seja efetivamente válida, há de existir um arcabouço teórico que subjaza aquilo que se pretende medir. Em outras palavras, a validade não responde por mera métrica, mas, entre outros pilares, por uma operacionalização de um construto que, por natureza, é teórico, em uma redução capaz de torná-lo mensurável(2323. Reichenheim ME, Moraes CL. Alguns pilares para a apreciação da validade de estudos epidemiológicos. Rev Bras Epidemiol. 1998;1(2):131–48. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1415-790X1998000200004
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).

Do ponto de vista estatístico, a validade é considerada uma medida de acurácia (Ac), que é a proporção de resultados corretos, verdadeiros positivos (VP) e verdadeiros negativos (VN) em relação ao total de resultados obtidos. Quanto mais próxima de 100% for a acurácia, mais precisa será a medida(2222. Fletcher R, Fletcher S. Clinical epidemiology: the essentials. 4. ed. São Francisco: Lippincott; 2005.,2424. Trevethan R. Sensitivity, specificity, and predictive values: foundations, pliabilities, and pitfalls in research and practice. Front Public Health. 2017;5:307. doi: http://dx.doi.org/10.3389/fpubh.2017.00307. PubMed PMID: 29209603.
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).

Ac=VPVP+VN×100

A decomposição da medida de acurácia também é fundamental para compreender as propriedades do teste (por exemplo, um procedimento, item ou pergunta), conhecidas como “sensibilidade” e “especificidade”. Enquanto a sensibilidade é uma medida estatística que avalia a capacidade de um teste em identificar corretamente os casos positivos para uma determinada condição avaliada, ou seja, a proporção de VP em relação ao total de casos positivos identificados, a especificidade é uma medida que se preocupa em capturar corretamente os casos negativos (VN) entre os testes aplicados na população estudada. Em outras palavras, a especificidade identifica a proporção de VN corretamente classificados em relação ao total de casos negativos. Os resultados de ambas as propriedades são expressos como proporções que variam de 0 a 100, em que 100 representa um grau de excelência obtido pela medida, indicando que todos os VP ou VN foram corretamente classificados(2424. Trevethan R. Sensitivity, specificity, and predictive values: foundations, pliabilities, and pitfalls in research and practice. Front Public Health. 2017;5:307. doi: http://dx.doi.org/10.3389/fpubh.2017.00307. PubMed PMID: 29209603.
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).

S=VPVP+FN×100E=VNVN+FP×100

Assim, diante da utilização de um instrumento (a ficha de notificação de violência interpessoal e autoprovocada) que apenas permite marcar as identidades travestis, mulheres trans e homens trans para fins da investigação de uma condição identitária com ampla variedade de classificações para além das apresentadas, certamente surgem desafios significativos em relação à validade epidemiológica. Embora os casos selecionados que se autodeclarem como identidades não cisgênero (travestis, homens trans e mulheres trans), em tese, sejam melhor identificados, os problemas surgem quando lidamos com os casos de pessoas cisgênero. Isso porque esse conjunto de identidades é marcado como “ignorado” ou “não se aplica” no instrumento de coleta. Ademais, outras identidades não cisgênero (não binárias, gênero fluido, assexuais, etc.) sequer são consideradas no instrumento.

Embora o instrumento consiga detectar com relativa adequação os casos selecionados de identidade não cisgênero, a presença das opções “ignorado” e “não se aplica” introduz um fator de incerteza na mensuração. Esses casos podem incluir indivíduos que são positivos para identidades não reveladas, como travestis e pessoas trans que, por diversos motivos, optaram por não informar a sua identidade. Isso pode resultar em uma subestimação da sensibilidade do instrumento. Outro aspecto crucial é a especificidade do instrumento. Uma vez que os casos negativos não são marcados como tal, há uma falta de identificação precisa dos VN. Isso prejudica a validade epidemiológica, pois não é possível distinguir corretamente os casos negativos dos casos ignorados, potencialmente superestimando a prevalência da condição cisgênero. Ou seja, a ausência da notificação precisa para os casos de violências em pessoas cisgênero dificulta a comparabilidade entre os grupos, reduzindo a capacidade de diagnóstico situacional e formulação de políticas públicas direcionadas às reais necessidades do país.

Uma forma de lidar com os problemas de validade e comparabilidade associados à coleta do item “identidade de gênero” na ficha de notificação é estabelecer uma relação entre a variável sexo - embora, como discutido na seção anterior, isso esteja longe de ser ideal do ponto de vista dos estudos de gênero - e a identidade de gênero. Nesse sentido, a resposta de sexo masculino como “não se aplica” na identidade de gênero seria equivalente a um homem cisgênero. Da mesma forma, quando o sexo é registrado como “feminino” e a identidade de gênero é “não se aplica”, trata-se de uma mulher cisgênero(22. Ministério da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2016.). Entretanto, como se observa, isso não resolve a totalidade dos problemas de validade apresentados.

Embora possa parecer uma resolução metodologicamente simples de ser realizada, mantém-se a questão do quanto os instrumentos de medida podem estar alheios à realidade concreta da vida, assim como quanto eles podem servir para a manutenção de um estado produtor de desigualdade e de anulação das identidades de gênero por meio do uso de uma linguagem performativa(1919. Austin JL. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018.) que reforça o poder(2020. Foucault M. The archeology of knowledge & discourse on language. New York: Pantheon Books; 1972.) sobre a originalidade de alguns gêneros(77. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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). A introdução de opções de resposta “mulher cisgênero” e “homem cisgênero” enfrentaria essa problemática imposta pelo instrumento de coleta, embora não resolveria a totalidade de situações de captura da realidade.

A introdução de um campo com “outras identidades” contribuiria sobremaneira ao processo de investigação epidemiológica, aspecto ausente até a presente versão do formulário. Nota-se que pessoas que se identificam como gênero fluído, na ausência da opção “outros”, tendem a naturalmente escolher “não se aplica” na identidade de gênero. Entretanto, caso tenham o sexo atribuído ao nascimento como “masculino”, passariam a estar classificados como “homens cisgênero”, um claro viés de classificação epidemiológica. Isso, por óbvio, não representa a realidade identitária a ser capturada, introduzido problemas analíticos de difícil controle.

Outra situação que ilustra um potencial viés de classificação na atual formatação das variáveis sexo e gênero é o fato de uma mulher trans que, após a peleja de retificar seu registro civil, terá em sua documentação o registro do sexo feminino. Caso ela não seja questionada sobre a sua identidade de gênero, e isso, a depender da forma como é questionada, a classificação da identidade de gênero tenderá a ser “ignorada” ou “não se aplica”, gerando a compreensão de uma mulher cisgênero.

No limite, o problema que se apresenta diante da má classificação da ficha, além das subestimações relatadas anteriormente, reforça a linguagem da ambiguidade entre sexo e gênero tão criticadas pelas teorias atuais(66. Butler J. The force of nonviolence: an ethico-political blind. London: Verso; 2020.88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.). Ou seja, o formulário, para além de uma análise aprofundada sobre os seus ganhos com a inclusão dessas variáveis, reproduz uma linguagem hegemônica e performativa(1919. Austin JL. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018.), e reforça o sentido de originalidade de algumas identidades sobre outras. Ademais, a atual configuração do formulário imputa o apagamento de pessoas de gênero fluído, de pessoas intersexo e uma enorme variedade de identidades de gênero, sacrificando inclusive a sensibilidade como propriedade do teste(2222. Fletcher R, Fletcher S. Clinical epidemiology: the essentials. 4. ed. São Francisco: Lippincott; 2005.,2424. Trevethan R. Sensitivity, specificity, and predictive values: foundations, pliabilities, and pitfalls in research and practice. Front Public Health. 2017;5:307. doi: http://dx.doi.org/10.3389/fpubh.2017.00307. PubMed PMID: 29209603.
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).

A existência de pessoas que desafiam a relação socialmente imaginada entre sexo e gênero ilustra ainda mais a natureza não meramente biológica das identidades de gênero e os problemas de classificação impostos pela formatação dessa variável na ficha. Ao demonstrar que a relação entre sexo e gênero é mais complexa do que parece(88. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1616. Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero.” Doxa. Revista Brasileira de Psicologia e Educação. 2017;19(1):51–61. doi: http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819
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), as pessoas intersexo naturalmente impõem uma situação embaraçosa às definições binárias convencionalmente estabelecidas. O mesmo ocorre com as pessoas de identidade de gênero fluido, cuja existência questiona a suposta originalidade do gênero e da orientação sexual, revelando a distância entre o que se pretende apreender, e a realidade concreta e complexa dos diversos corpos no mundo. Na atual versão da ficha de notificação, não há espaço para a expressão e a captação de informações sobre essas identidades, eliminando a diversidade sexual e de gênero desses grupos populacionais.

Tomando como referência uma população hipotética com 20 registros (Quadro 1), a problemática sobre a validade epidemiológica pode ser melhor ilustrada. No quadro, é possível verificar a identidade de gênero real, aquela que é autorreferida e que se pretende apreender no formulário, o sexo atribuído ao nascimento, como informação capturada por meio de autorrelato ou, no geral, por meio do registro civil da pessoa notificada, a situação atual do sexo no registro civil (se foi retificada ou não), e a identidade de gênero, capturada por meio da marcação das opções no formulário de notificação. A partir disso, realiza-se o exercício de classificar (“classificação final”) a identidade de gênero a partir do sexo relatado e da identidade de gênero capturada no formulário com o objetivo de gerar um banco de dados que vise à comparabilidade entre os grupos. Posteriormente, classificou-se a informação como “VP” e “VN”, e como “falsos positivos” e “negativos”.

Quadro 1
Banco hipotético com 20 registros de notificação de violência interpessoal e autoprovocada contendo as variáveis identidade de gênero, sexo atribuído ao nascimento, sexo no registro civil, identidade de gênero capturada no formulário, classificação da identidade e classificação da informação – Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2023.

A partir deste simples exercício, observa-se que, com uma especificidade de 100% para a população hipotética, é possível inferir que o teste foi capaz de identificar corretamente todos os casos verdadeiramente negativos, ou seja, todas as pessoas cisgêneros foram corretamente classificadas. A eficiência relativa da ficha nesse exercício hipotético também foi observada em relação à propriedade de sensibilidade, sendo possível identificar corretamente 70% dos VP; nesse caso, as identidades travestis, mulheres trans e homens trans. Por outro lado, as propriedades do teste observadas neste exercício tendem a não se repetir diante da realidade concreta.

É fundamental considerar que nem todas as pessoas responderão sobre a sua identidade de gênero, quer seja por medo ou estigma pela revelação da identidade, quer seja porque sequer serão questionadas a esse respeito. Supondo ainda que, no registro 6 (ID 6), caso a mulher trans não seja questionada sobre sua identidade de gênero e o sexo tenha sido retificado no registro civil para feminino, ela será classificada como mulher cisgênero. Esse é apenas mais um exemplo da redução da sensibilidade do instrumento na realidade concreta do cotidiano. Assim, a sensibilidade no exercício hipotético passaria de 70% para 60%. Assim, não é improvável que casos VP sejam classificados erroneamente como negativos (FN) nesse processo de classificação das informações pelo instrumento.

Estudo que investigou as notificações entre 2015 e 2017 demonstrou que, embora tenha ocorrido uma melhoria significativa do preenchimento das “identidades de gênero” e “orientações sexuais”, respectivamente, 37,8% e 30,8% das respostas sobre essas variáveis não foram consideradas válidas. Em outras palavras, parte significativa das respostas foi ignorada, demonstrando os sérios problemas de preenchimento e classificação desse item(33. Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, Santos MAS, Marinho MMA, Benício LA, et al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Rev Bras Epidemiol. 2020;23(suppl 1):e200006, 1. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200006.supl.1. PubMed PMID: 32638993.
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). Ademais, é imprescindível refletir que, no Brasil, a variável “identidade de gênero” sequer é coletada de modo obrigatório em menores 10 anos(44. Oliveira DC. Representatividade da população LGBTQIA+ nas pesquisas epidemiológicas, no contexto da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais: ampliar a produção de conhecimento no SUS para a justiça social. Epidemiol Serv Saude. 2022;31(1):e2022020. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742022000100030. PubMed PMID: 35476005.
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), o que reforça a negação à expressão de gênero desde a infância, gerando problemas adicionais ao monitoramento epidemiológico das violências nesse grupo. Ao considerar essa realidade, tem-se como resultado a ampliação do número de travestis e pessoas trans não classificadas corretamente, afetando sobremaneira a sensibilidade do instrumento.

Ao ampliar incorretamente a classificação de pessoas que estão expostas a maiores riscos de violência(2525. Peixoto EM, de Azevedo Oliveira Knupp VM, Soares JRT, et al. Interpersonal violence and passing: results from a Brazilian trans-specific cross-sectional study. J Interpers Violence. 2021;37:1–14. doi: http://dx.doi.org/10.1177/08862605211005152. PubMed PMID: 33866890.
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2828. Arayasirikul S, Turner CM, Hernandez CJ, Trujillo D, Fisher MR, Wilson EC. Transphobic adverse childhood experiences as a determinant of mental and sexual health for young trans women in the San Francisco bay area. Transgend Health. 2022;7(6):552–5. doi: http://dx.doi.org/10.1089/trgh.2021.0062. PubMed PMID: 36518300.
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) no grupo de “ignorados” e “não se aplica”, que aqui assumimos como pessoas cisgênero, ocorre a potencial e falsa elevação da prevalência de violência nesse grupo. Isso significa que, ao comparar os grupos cisgênero com o grupo de travestis e pessoas trans, a diferença na magnitude dos eventos será menor do que na realidade, devido a um viés na mensuração. Em outras palavras, a comparação das informações com os grupos de pessoas cisgênero acaba sendo dificultada devido ao viés presente, o que prejudica a validade dessas informações. Assim, a atual configuração do formulário, mesmo com problemas de validade, permite avaliar de forma consistente (ou seja, pelo sentido da epidemiologia, de modo reprodutível) as violências interpessoais e autoprovocadas em travestis, mulheres trans e homens trans ao longo do tempo. Por outro lado, o formulário exclui outras identidades do monitoramento e dificulta a comparabilidade com o grupo de pessoas cisgênero.

Em um país onde a violência é um grave problema de saúde pública e que, alarmantemente, lidera o ranking de assassinatos de pessoas trans no mundo(2929. Benevides BG, Nogueira SNB. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018. Brasília: Associação Nacional de Travestis e Transexuais no Brasil; 2020.), um viés de informação completamente prevenível como esse merece ser enfrentado com urgência, especialmente porque as ações no âmbito da saúde pública brasileira são baseadas em informações. Quanto menos forem identificadas as necessidades da população, menores serão as chances de lograr êxito na formulação de ações capazes de enfrentar os principais problemas deste grupo. Emergências sanitárias recentes, como o surto de Monkeypox no Brasil, descortinou a necessidade de ampliar a aferição da identidade de gênero e orientação sexual, incluindo esse monitoramento em todas as fichas do SINAN, não somente no fenômeno das violências(55. Canavese D, Polidoro M, Signorelli MC, Moretti-Pires RO, Parker R, Terto Jr V. Pela urgente e definitiva inclusão dos campos de identidade de gênero e orientação sexual nos sistemas de informação em saúde do SUS: o que podemos aprender com o surto de monkeypox? Cien Saude Colet. 2022;27(11):4191–4. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320222711.12902022en. PubMed PMID: 36259839.
https://doi.org/10.1590/1413-81232022271...
). Mas o que se percebe é justamente que, mesmo quando coletados, a qualidade dos dados dessas variáveis é relativamente prejudicada, e sua disponibilidade é restrita. Mesmo após cerca de 8 anos de sua inclusão no formulário de monitoramento das violências, essas variáveis ainda não estão acessíveis nas bases de dados públicas do SINAN, limitando a realização das investigações e, consequentemente, a formulação de políticas públicas(44. Oliveira DC. Representatividade da população LGBTQIA+ nas pesquisas epidemiológicas, no contexto da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais: ampliar a produção de conhecimento no SUS para a justiça social. Epidemiol Serv Saude. 2022;31(1):e2022020. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742022000100030. PubMed PMID: 35476005.
https://doi.org/10.1590/s1679-4974202200...
).

A compreensão das múltiplas violências a partir de uma perspectiva ampla das identidades de gênero é fundamental para combater as desigualdades e discriminações enfrentadas pelas pessoas autopercebidas dentro do espectro trans. Entender essas manifestações e suas causas estruturais é crucial para lidar de forma eficaz e sistemática com a variedade de violências enfrentadas pelas pessoas trans e não binárias. Além disso, um mecanismo de mapeamento epidemiológico das experiências de violência, que inclua uma variedade de conceitos sobre identidades de gênero nos estudos e sistemas de vigilância, permitiria um acompanhamento objetivo, sistemático e metodologicamente estruturado da magnitude, das características e tendências do fenômeno da população(3030. Blondeel K, de Vasconcelos S, García-Moreno C, Stephenson R, Temmerman M, Toskin I. Violence motivated by perception of sexual orientation and gender identity: a systematic review. Bull World Health Organ. 2018;96(1):29–41L. doi: http://dx.doi.org/10.2471/BLT.17.197251. PubMed PMID: 29403098.
https://doi.org/10.2471/BLT.17.197251...
).

É importante ressaltar que os indicadores resultantes desses instrumentos de medição forneceriam dados para sensibilizar a sociedade sobre a gravidade do problema, bem como sustentar formulações de políticas públicas mais específicas. Compreender de modo mais acurado os padrões, características e fatores associados à violência tornará possível identificar as áreas prioritárias de intervenção e desenvolver estratégias direcionadas a esses grupos populacionais.

Portanto, se faz fundamental e urgente a geração de abordagens mais sensíveis, tanto do ponto de visto epidemiológico como dos direitos humanos, que levem em conta a diversidade das identidades de gênero, permitindo a produção de informações capazes de subsidiar os formuladores de políticas públicas. Além destes ganhos, a revisão dos procedimentos tende a assegurar informações que viabilizam espaços para que vozes de pessoas tradicionalmente alijadas e silenciadas pela sociedade e pelo Estado sejam efetivamente ouvidas. Afinal, estamos diante de um real processo de inclusão ou o processo de aferição das identidades de gênero nas fichas de notificação seria meramente uma ilusão?

Considerações Finais

Apesar dos indiscutíveis avanços com a introdução da variável “identidade de gênero” na ficha de notificação de violência interpessoal e autoprovocada no Brasil, é fundamental que se debatam com franqueza e urgência sobre as limitações impostas à qualidade da informação sobre gênero neste formulário. A adoção de um certo padrão de normalidade de gênero, aqui ironicamente chamado de “os originais” (mulheres e homens cisgênero), introduz grandes incertezas no processo de mensuração, pois sua identificação se dá pela combinação do sexo (masculino/feminino) com as categorias de resposta “ignorado” e “não se aplica”. Do ponto de vista teórico e político, essa adoção reforça um poder de linguagem hegemônico, em que existem gêneros certos e incorretos, reforçando a ruptura discursiva entre sexo e gênero como se um fosse algo biológico e, portanto, inato, e o outro, uma construção de papéis e, consequentemente, uma escolha individual. Além disso, a forma como a ficha se apresenta também introduz importantes problemas de validade, ignorando outras identidades de gênero e produzindo erros de estimativa que podem levar a conclusões equivocadas no processo de comparação de grupos para a formulação de políticas públicas.

Mais do que tecer críticas sem proposições concretas, à luz das reflexões realizadas, este ensaio pretende propor a urgente necessidade de introdução das categorias de resposta “mulher cisgênero”, “homem cisgênero”, “intersexo”, “gênero fluido” e um campo que permita respostas abertas, como “outros”, assegurando o pleno direito à autodeterminação do gênero. Isso, além de contribuir para o rompimento de uma longa e hegemônica tradução do sexo como inato e do gênero como papel social, especialmente quando dissonante das regras socialmente normalizadas, tende também a capturar melhor as informações da realidade, que é mais complexa do que aquela proposta em sistemas binários e simplistas sobre gênero. No limite, a ficha de notificação passaria a incorporar novas nuances da identidade de gênero, como a fluidez, as pessoas intersexos e tantos outros grupos.

  • Apoio financeiro Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil, na forma de uma bolsa de produtividade em pesquisa nível 2, sob Processo no. 312056/2022-2. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), sob Processo no. 211.970/2021. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística (PROCIENCIA/UERJ).

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO

Rebeca Nunes Guedes de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2023
  • Aceito
    22 Ago 2023
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