Open-access Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres

Rape Culture - the implicit practice of the incitement of sexual violence against women

Resumo:

O objetivo desse artigo é propor, através de pesquisa teórica bibliográfica, uma reflexão sobre quais mecanismos sistêmicos e culturais promovem a cultura do estupro como, também, protegem o estuprador e anulam os direitos das vítimas. Em uma pesquisa focada na violência sexual contra a mulher, buscamos observar quais formas de violência simbólica resultam nesse tipo de violência. A ideia é desconstruir a imagem mítica tanto da vítima quanto do próprio estuprador como meio de revelar, para além do ideário popular, o que, de fato, é estupro. E uma vez elucidando o status do estuprador e da vítima, buscamos demonstrar como o estupro é, acima de tudo, uma das formas mais difundidas da violência de gênero.

Palavras-chave: estupro; cultura do estupro; violência de gênero; vítima; estuprador

Abstract:

The objective of this article is to propose, through bibliographical research, a discussion about which are the systemic and cultural mechanisms that promote the rape culture while protecting the rapist and canceling out the victim’s right. In a focusing sexual violence against the woman, we seek to observe which are the forms of symbolic violence which result in this kind of de violence. The idea is to deconstruct the popular, mythical, image of both victims and perpetrators, and, in doing so, clarifying our concept of rape. Once we clarify the status of both victims and perpetrators, we will be able to demonstrate how rape is above all one of the most widespread forms of gender violence.

Key words: rape; rape culture; gender violence; victim; rapist

Introdução

Ao iniciar este artigo, é preciso delimitar aos leitores quais os parâmetros e recortes aplicados nessa pesquisa. Dessa forma, é necessário explicar que, por questões de espaço e materiais disponíveis, vamos focar o tema da cultura do estupro somente em violências incitadas e praticadas contra as mulheres. Não se trata, de maneira alguma, de esconder ou diminuir os casos de estupro sofridos por homens ao longo dos anos, mas de escolher um foco para investigar. Ocorre que, quando se trata de violência sexual, os dados e as informações são, muitas vezes, distorcidas ou omitidas em favor do agressor, e, quando se trata de alguma vítima do sexo masculino, a investigação torna-se ainda mais difícil devido ao sigilo gerado pela vergonha duplamente colocada sobre a vítima. Na realidade, o objetivo desse artigo não está em escolher quem é mais vítima e quem sofre mais com esse tipo de violência, mas, sim, de investigar e apontar alguns dos mecanismos que a promovem dentro de quaisquer sociedades, ocidental ou oriental, visto que se trata de um tipo de violência extremamente difundida em todas as culturas.

Tudo o que se pretende apresentar aqui será apenas uma ínfima parte de um todo muito mais complexo, e discutido por muitos de maneira superficial; o que parece ser um paradoxo, já que todos os dias encontramos, em nossos noticiários, reportagens e relatos de estupro. Verifica-se, muitas vezes, que, no afã de punir o estuprador, quando este é publicamente declarado culpado, pouco ou nunca se observa a construção de um debate mais aprofundado acerca dos meios nos quais esses cenários são instalados. De modo que, assim, as vítimas, quando contabilizadas, são empilhadas em números, e dispostas, no máximo, em estatísticas, que, de tempos em tempos, chocam a opinião popular por seus números altamente elevados. Todavia, números são a impessoalização do sujeito, e, desse modo, não expressam os traumas físicos nem psicológicos das vítimas e seus familiares. Eles só expressam os avanços e retrocessos do poder público em punir e coibir esse tipo de crime.

Dessa forma, a proposta desse artigo é discutir como algo tão recriminado publicamente pode, ao mesmo tempo, ser uma prática privada, e, às vezes, até mesmo pública, tão comum. Que tipo de mecanismo pune e, ao mesmo tempo, propaga a violência sexual praticada contra a mulher?

Por que ‘cultura do estupro’?

Chamar uma determinada prática social de cultura implica atribuir-lhe uma série de fatores que exprimem que essa conduta caracteriza-se, entre outras coisas, por ser algo feito de maneira corriqueira e não listado como raras exceções, colocando essa ação como uma atividade humana. Nessa concepção, adotamos a referência de Marilena CHAUI (1986) acerca do termo cultura que, segundo ela, “em sentido amplo, cultura […] é o campo simbólico e material das atividades humanas” (p. 14). O que também não significa que, de maneira direta, todos os homens sejam estupradores, nem que todos os seres humanos sejam diretamente responsáveis pela prática do estupro, mas que, de muitas maneiras, a cultura do machismo e da misoginia contribui para a perpetuação desse tipo de violência focada, principalmente, contra a mulher. E não se trata de considerar a figura do estuprador como doente ou mero produto de uma sociedade determinista que o fez assim. Essa é uma abordagem errônea, já que classificá-lo como doente o isentaria da responsabilidade sobre seus atos, assim como quando classificado como um mero produto da sociedade. Acima das expectativas e conhecimento acerca do tema, o estupro é muito mais difundido do que temos notícia, sendo praticado por homens, em sua grande maioria, que possuem plenas faculdades mentais de escolher praticá-lo ou não, e incentivado por uma série de mecanismos culturais de que falaremos mais adiante.

Relatos sobre casos de estupro acontecem nos mais variados ambientes, desde o temido beco escuro onde todas as mães instruem suas filhas a não transitarem, até mesmo o grande número de incidências ocorridas dentro da ‘pretensa casa segura’ da vítima. E as variações também são difusas no modo agir dos agressores, sendo distintas de caso para caso, fazendo com que a penetração vaginal nem sempre seja uma constante nos casos de violência sexual. E isso tem vários motivos, tais como: a impossibilidade física do agressor de introduzir na vítima penetração peniana vaginal; a realização do ato de violência sexual, de acordo com o desejo sexual do agressor, que pode ser muito mais variado, visto que a realização do impulso sexual se dá por vários meios que podem, inclusive, excluir penetração do pênis na vagina; e a necessidade de encobrir rastros do estupro, de modo a não deixar na vítima secreções que possam, por meio de exames, identificar o agressor.

Esse tipo de entendimento é muito importante para que outras formas de violação sejam ou não classificadas no quadro do estupro, considerando que, por muito tempo, o entendimento de estupro concebeu apenas casos onde a conjunção carnal fosse comprovadamente forçada e com penetração vaginal. Tal concepção mostra-se exclusivamente falocêntrica, ignorando outras práticas de violências sexuais como o sexo oral, anal, masturbação, beijo e qualquer prática sexual que não contemple a penetração vaginal. Tudo isso demonstra uma valoração excessivamente fálica e heteronormativa que classifica apenas como violação aquela praticada com o pênis, desconsiderando qualquer outro tipo de ato, por exemplo, qualquer outro ato sexual praticado até mesmo por alguém do mesmo sexo que a vítima. Essas ideias acerca do ato do estupro seriam válidas se toda e qualquer atividade sexual humana tivesse como único fim a reprodução, de onde se faz necessária a penetração do pênis na vagina; o que é um pensamento ultrapassado, já que, na atualidade, a sexualidade é aceita não apenas para fins de procriação, mas, também, para socialização, satisfação de prazeres, estabelecimento de relações amorosas, relações sociais, recreação, entre outros. Tendo em vista isso, é importante compreender que a realização do desejo sexual do agressor pode se manifestar de várias formas, mas nenhuma delas respeita a vontade e a dignidade da vítima.

Diante disso, um grande progresso foi a mudança do entendimento penal brasileiro sobre o que configuraria a ação que poderia constar como crime de estupro.1 Essa mudança no texto tem dois aspectos que sobressaltam quando comparados. São eles: a primeira é que a lei substitui a palavra mulher por alguém, entendendo, assim, que tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas ou culpadas pelo ato de estupro, promovendo visibilidade para uma parcela das vítimas que não cabiam na lei anterior; a segunda é que, através desse reconhecimento, promove a proteção estendida para vítimas que, antes, não se viam amparadas na lei anterior, além de fazer com que estupradores tenham suas penas ampliadas e sua culpa reconhecida perante um tribunal. Cabe, aqui, como exemplo, o famoso caso do médico Roger Abdelmassih, que teve seu julgamento após a aprovação do artigo 213 (na redação dada pela Lei n.º 12.015, de 2009), recebendo a pena de 278 anos de prisão por 52 estupros e 4 tentativas de abuso sexual de 37 pacientes, que foram a seu consultório na tentativa de engravidar de seus parceiros. Em sua defesa, reportada na entrevista da Revista Piauí n.º 107, Roger e seus advogados afirmam que a mudança do conceito penal de estupro colaborou para que sua pena fosse tão extensa, mas que ele não teria estuprado todas as 52 vítimas, conforme trecho da entrevista a seguir:

Três meses depois, em agosto, uma lei alterou a definição de estupro no Código Penal. ‘Aí, a passada de mão virou estupro’, comentou Abdelmassih na cadeia. Até então, estupro era apenas a conjunção carnal mediante violência entre homem e mulher. Depois, o que se entendia por assédio sexual ou atentado violento ao pudor também virou crime hediondo nas letras da lei. ‘Aí jogaram estupro para cima de mim. Ninguém fala assédio, atentado’ (comenta Abdelmassih) (Daniela PINHEIRO, 2015).

Considerar o comportamento predatório do agressor sexual vai muito além de classificá-lo através do crime previsto no código penal ou como o portador de qualquer doença, transtorno ou anomalia prevista na medicina psiquiátrica vigente. Isso porque os estupradores encontram-se em todos os lugares e classes da sociedade. Eles reproduzem, por meio de atos, a submissão da vítima à sua vontade, transgredindo os direitos humanos mais básicos de integridade física e psicológica do outro. Os estupradores agem assim apoiados em discursos machistas que são transmitidos até eles, e por eles, das mais variadas formas. O conteúdo desse discurso tem como foco a ideia de que o poder sexual está no homem, e que este tem o direito de realizar esse poder sobre a mulher ou sobre outros homens (que, dentro da sociedade binária, não reproduzem os estereótipos de masculinidade e virilidade) como quiser e sempre que julgar necessário.2 Tais valores são repassados para toda a sociedade, que revitimiza a mulher principalmente por, segundo a concepção geral, colocar-se nas chamadas ‘situações de risco’, nas quais a mesma é culpada por não seguir as chamadas regras de conduta. Regras de conduta, que, por sua vez, são inseridas na socialização da mulher desde o momento do nascimento, ensinando-a que tipo e tamanho de roupas vestir, que tipo de maquiagem usar, como se comportar na rua, quando e como beber, quais os horários pode sair de casa, e, assim, sucessivamente, depositando na mulher a responsabilidade sobre os atos dos terceiros contra a sua integridade sexual. Essa mesma cultura do estupro ensina que os homens devem aproveitar toda e qualquer oportunidade de consumação sexual, e, que, muitas vezes, as mulheres que dizem não apenas o dizem porque são ensinadas a não dizer sim na primeira vez, e que cabe a eles ‘transformar’ aquele não em um sim. No Relato retirado da pesquisa da socióloga Diana Scully - citada por Viviane Maria HEBERLE; Ana Cristina OSTERMANN; Débora de Carvalho FIGUEIREDO (2006) - que, em 1990, examinou, junto aos estupradores, qual o vocabulário de motivos apresentados por eles para interpretar o ato do estupro como algo socialmente aceitável:

Todas as mulheres dizem ‘não’ quando querem dizer ‘sim’, mas é um ‘não’ social, para que elas não tenham que se sentir responsáveis mais tarde [relato de um homem de 34 anos que raptou e estuprou uma moça de 15 anos, sob ameaça de faca] (p. 206).

Isso quando há qualquer consulta prévia da vontade da vítima. Em alguns casos, a violência se dá de maneira que a vítima não toma conhecimento da situação antes, durante ou depois da consumação do ato por estar inconsciente, dopada, ou não ter noção de seus direitos perante a própria dignidade. Portanto, é denominado cultura do estupro o conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerância e o estímulo à violação sexual.

Sexualidade e poder

Outro fator importante acerca da cultura do estupro é entender o papel do poder e do sexo dentro da sociedade. Não se trata de confundir a atividade sexual consentida com a violação sexual, nada disso, mas é importante compreender como os dois se cruzam na concepção do estuprador, da vítima, do Estado e da sociedade em geral, mesmo que estes não se deem conta disso. Uma grande parte desse problema está na notável repressão sexual sofrida pela mulher, em contraposição ao incentivo sexual recebido pelos homens. O que é um paradoxo numa sociedade majoritariamente heteronormativa, onde parece muito incoerente que os homens, desde a mais tenra idade, sejam incitados ao sexo, enquanto que as mulheres recebam instruções contrárias. Este problema tem um tratamento especial, sendo resolvido de maneira aparentemente muito simplista através das distinções sociais estabelecidas sobre as mulheres entre ‘mulher para casar’ e a ‘desviada’. Essa distinção recebe validação por intermédio do modo como é socialmente adotada, onde é reafirmada através da diferença de tratamentos dispensados às mulheres representantes das diferentes classes sociais e raciais. Nesse caso, em particular, é fundamental que se tenha em mente a diferença do que é compreendido dentro do entendimento social, além da relação entre a sociedade e o tipo de interação sexual e afetiva que é dispensada à mulher negra, como exemplo. No caso da mulher negra, não há como negar que a mesma foi, e continua sendo, vítima do período de escravidão brasileira, que, segundo Isildinha B. NOGUEIRA (1999), traz como herança a visão de que a mulher negra nem ao menos era vista como humana, e, consequentemente, a naturalização atual dela como objeto sexual ou como uma mulher ‘naturalmente’ hiperssexualizada dos dias atuais:

Seu corpo, historicamente destituído de sua condição humana, coisificado, alimentava toda sorte de perversidade sexual que tinham seus senhores. Nesta condição eram desejadas, pois satisfaziam o apetite sexual dos senhores e eram por eles repudiadas pois as viam como criaturas repulsivas e descontroladas sexualmente. [...] Ainda que hoje a mulher negra encontre outras condições de vida não é fácil livrar-se desse lugar, principalmente no que se refere à sexualidade. Mesmo que aparentemente mais assimilados na cultura brasileira, o negro, em particular a mulher negra, se vê aprisionado em alguns lugares: a sambista, a mulata, a doméstica, herança desse passado histórico (p. 44).

Já, no sentido contrário, a dita ‘mulher para casar’ é aquela que deve se manter a mais casta e virginal possível, mesmo que aparentemente, para evitar os julgamentos da sociedade. Dadas as condições e heranças socioculturais, em ambos os casos, a mulher é estereotipada e reprimida em sua sexualidade, seja quando vista como objeto sexual, seja quando é vista como casta. Em ambos os casos, é possível perceber que, dadas as devidas proporções, tanto as chamadas donzelas e as meretrizes são condicionadas socialmente de acordo com a sua classificação sexual - obtida de acordo a sociedade. A sexualidade, além de outros fatores (como status social, raça, status financeiro, e quaisquer outros adjetivos qualificantes), tem o poder de classificar as pessoas de acordo não apenas com a sua percepção da própria sexualidade, mas, também, com o modo como a sociedade percebe o seu comportamento sexual, como aponta Michel FOUCAULT (1988):

Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos mais dotados de maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias (p. 98).

Agora que traçamos a importância da compreensão da relação entre poder e sexualidade, vamos partir para o cerne dessa discussão, a culpabilização da vítima e a absolvição do estuprador. Como vimos, na sociedade patriarcal, o sexo tem relação íntima com o poder, de modo a ser uma das formas de manutenção do status quo. Seguindo essa mesma linha, passamos pela construção social da mulher ‘para casar’ e a ‘desviada’; agora vamos entender como essa classificação ultrapassa a seleção de quem pode ou não pertencer a uma família tradicional, para a seleção de quem pode ou não ser classificada como vítima de estupro.

A imagem da vítima perfeita

É regra necessária que, para haver qualquer constatação de delito, não basta haver delinquente, mas, também, tem de haver vítima do ato cometido. Derivada do latim, victima consta no dicionário da seguinte forma:

Criatura viva, imolada em holocausto a uma divindade; pessoa sacrificada aos interesses ou paixões de outrem; pessoa assassinada ou ferida; pessoa que sucumbe a uma desgraça ou que sofre algum infortúnio; tudo o que sofre qualquer dano; sujeito passivo do ilícito penal; aquele contra quem se comete um crime ou contravenção (Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, 1987, p. 1251).

Seja no roubo de um objeto qualquer ou num assassinato, tanto um quanto outro só são caracterizados como crime ou infração pelo Estado, se este reconhecer o agente passivo da ação como vítima. O que parece ser algo simples à primeira vista, definir vítima e delinquente, na realidade de uma pessoa que sofreu violência sexual, torna-se uma classificação mais ambígua do que nos demais casos. Haja vista que, por exemplo: quando alguém tem seu carro roubado, nem as autoridades, nem a sociedade indagam ao proprietário do veículo de que modo ele lidava com o objeto antes do roubo. Não é empregada uma investigação mais arguta sobre os antecedentes da vítima de roubo; o máximo que ocorre no momento do preenchimento do boletim de ocorrência são as condições em que o roubo se deu. E, de modo geral, em todos os meios de comunicação, o conselho geral é de que: em caso de roubo não reaja, apenas entregue os seus objetos ao ladrão. É bem verdade que, de vez em quando, ocorrem casos de que o roubo foi forjado porque era um golpe contra a seguradora do veículo, ou qualquer outro motivo que passa, aqui, a ser listado. No entanto, se observados os casos em que o roubo era fajuto, esses, por sua vez, são tratados como exceção, e, não, como regra. De modo que, quando alguém nos comunica um roubo, temos maior tendência em acreditar na vítima do que de duvidar dela. Parece haver, na sociedade, um sentimento muito mais definido de justiça em caso da violação da propriedade do que da violação da dignidade.

Já, no caso de estupro, a coisa toma uma configuração totalmente diferente. Não basta a constatação do ato do estupro consumado, seja lá de que forma se deu; também é feita uma apuração sobre o histórico da suposta vítima. Aqui entra o fator da reputação, ou seja, o modo como a sociedade julga o comportamento da vítima antes do estupro. Atrelado à reputação é que se concede ou não o status de vítima de estupro para uma mulher. Desse modo, ser vítima de estupro é um status social condicionado à reputação e que corresponde a muito além do que apenas sofrer a violência sexual - é receber da sociedade o aval de quem realmente é inocente com relação ao ocorrido.

A construção social da vítima perfeita de estupro parte da ideia de que a castidade feminina, ou o mais próximo disso, é uma questão moral não apenas da mulher que a carrega, como, também, um atestado de bons antecedentes de sua família. Uma mulher com vida sexual intensa e conhecida em seu meio social escandaliza não somente os vizinhos ou conhecidos, mas estende para sua família a má fama da mulher. Logo, a virgindade é não somente o status físico do hímen intacto; é, também, a representação da honra da família imaculada. De acordo com Ferrière, citado em Georges VIGARELLO e Lucy MAGALHÃES (1998), o crime de estupro não é apenas um ato contra a dignidade da vítima, mas, também, contra a honra da família: “A virgindade é o ornamento dos costumes, a santidade dos sexos, a paz das famílias e a fonte das maiores amizades” (VIGARELLO, 1998, p. 19). Vigarello (1998) entende a leitura de Ferrière uma vez que, para este autor,

sua existência é a condição do casamento. O ataque público a ela compromete a honra, a posição, e até a vida. Uma jovem ‘deflorada’ torna-se inevitavelmente uma mulher perdida. Assim, o estupro da moça impúbere não poderia escapar aos rigores do carrasco: o ‘roubo da virgindade’ determina a gravidade (p .19).

Seguindo essa linha, para ser reconhecida como vítima de estupro, não basta sofrer a violência física; é preciso, também, que a mulher, antes da ocorrência do fato, tenha sido classificada dentro da reputação de ‘mulher para casar’, caso contrário, o estupro (quando reconhecido como tal) não será nada mais do que consequência de um comportamento inapropriado. Conforme Vigarello (1998):

A qualidade da pessoa a quem a violência é feita aumenta ou diminui o crime. Assim, uma violência feita a uma escrava ou a uma doméstica é menos grave que a feita a uma moça de condição honesta. A distância social modula a escala de gravidade dos crimes em uma sociedade de classes, distribuindo o peso das violências segundo a condição de suas vítimas. A posição social é decisiva. A dignidade do ‘ofendido’ orienta o cálculo e indica a extensão do mal (p. 23).

Ou como Muyart de Vouglans define, em 1757: “O estupro pode ser cometido contra todo tipo de pessoa do sexo [...] É punido com mais ou menos rigor, segundo a qualidade [dessas pessoas]” (in VIGARELLO, 1998, p. 23). Portanto, uma mulher manter-se casta é uma obrigação para com a moral, de onde, mesmo após a interrupção do hímen em situação aceita socialmente (dentro do casamento ou de uma relação amorosa estável e duradoura), a prática sexual deve continuar confinada a uma série de rigores com os quais é possível atestar a boa reputação sexual da mulher. Caso contrário, a sua prática sexual não apenas servirá como histórico ginecológico de suas práticas sexuais, mas, também, servirá como atestado social da má conduta da suposta vítima de estupro. Assim, cabe à mulher, enquanto vítima de estupro, não apenas ter um comportamento considerado exemplar antes da violência sexual, assim como dar provas de que é capaz de proteger a sua honra a qualquer custo. De acordo com Simone de BEAUVOIR (1967):

A civilização patriarcal votou a mulher à castidade; reconhece-se mais ou menos abertamente ao homem o direito a satisfazer seus desejos sexuais ao passo que a mulher é confinada no casamento: para ela o ato carnal, em não sendo santificado pelo código, pelo sacramento, é falta, queda, derrota, fraqueza; ela tem o dever de defender sua virtude, sua honra; se ‘cede’, se ‘cai’, suscita o desprezo; ao passo que até na censura que se inflige ao seu vencedor há admiração (p. 122).

O que é um comportamento contrário ao esperado de uma vítima de assalto, por exemplo, no qual se solicita que a vítima entregue tudo ao ladrão sem qualquer relutância. Da vítima de estupro espera-se não apenas que a vítima resista bravamente às investidas do seu agressor, mas que, também, traga na pele marcas da violência sofrida como prova de sua tentativa de resistência quase heroica. Uma mulher ou menina que resiste e luta fisicamente contra a investida violenta de seu agressor cumpre corretamente o papel de vítima esperado pela sociedade. E, se, por desgraça, ela morrer tentando proteger a honra, então se cumpre completamente o quadro da vítima perfeita, sendo até considerada um exemplo de virtude a ser seguido.3

Percebe-se que existe no imaginário coletivo a imagem da vítima de estupro como a mulher que é forçada a manter relações sexuais contra a própria vontade, e que luta contra o agressor saindo do ato completamente marcada com hematomas e cortes que atestam que a vítima foi, realmente, violentada. O problema, porém, está no fato de que nem sempre são estas as circunstâncias do estupro. E essas circunstâncias são as mais diversificadas do ideário popular, conforme relata a pesquisa do IPEA “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde” (versão preliminar), realizada por Daniel CERQUEIRA e Danilo de Santa Cruz COELHO (2014) e divulgada em março de 2014. Nesta pesquisa, algumas situações se fundamentam, como, por exemplo, quando verificamos que a probabilidade de uma vítima de estupro ser do sexo feminino aumenta de 88,5% na infância para 97,5% na idade adulta; sendo que as taxas de estupro contra menores de 13 anos ocupam um total de 50,7%, caindo para 19,4% na adolescência e crescendo novamente para 29,9% na fase adulta (CERQUEIRA; COELHO, 2014, p. 8). Esses números inicialmente apontam que sim, a mulher é a principal vítima dos estupros registrados, ao mesmo tempo em que corre o maior risco de sofrê-los ainda na infância. O que, num primeiro momento, a colocaria no status de vítima perfeita nessa idade, já que não possui, via de regra, uma vida sexualmente ativa que possa corroborar contra a reputação da vítima anterior ao estupro. Porém, infelizmente, esse não parece ser o caso quando se trata do estupro praticado por membros da família ou da convivência familiar, onde a criança vítima, muitas vezes, é questionada à exaustão sobre a certeza da realidade dos fatos, ou se não se trata apenas de uma invenção ou má interpretação de algum gesto mais ambíguo que tenha partido do adulto.

Já outras situações do imaginário coletivo acerca do estupro não se confirmam através da pesquisa do IPEA, como, por exemplo, quando a vítima do estupro é menor de 13 anos, em que entre os maiores índices de possíveis estupradores, estão: 32,2% amigos ou conhecidos da família; 12,3% padrasto; e 11,8% o pai (CERQUEIRA; COELHO, 2014, p. 10). Ou seja, dentre os casos de estupro contra meninas menores de 13 anos, a probabilidade de que o caso ocorra dentro do ambiente familiar da vítima é de 56,3% do total, contra 12,6% praticado por desconhecido. Heleieth I. B. SAFFIOTI e Suely S. de ALMEIDA (1995) apontam que a legitimação da dominação masculina no âmbito familiar pode ser um fator decisivo para que, dentro de casa, se perpetue todo tipo de maus tratos contra crianças e mulheres:

Se os homens cometem e sofrem violências no espaço público, reinam soberanos no espaço privado, como detentores do monopólio do uso ‘legítimo’ da força física. Com efeito, o domicílio constitui um lugar extremamente violento para mulheres e crianças de ambos os sexos, especialmente as meninas. Desta sorte, as quatro paredes de uma casa guardam os segredos de sevícias, humilhações e atos libidinosos/estupros graças à posição subalterna da mulher e da criança face ao homem e da ampla legitimação social desta supremacia masculina (p. 33).

O que aponta que a violência sexual, assim como a violência de gênero praticada contra a mulher, é muito mais comum do que se pensa dentro do ambiente familiar desde a mais tenra idade, assim como descrevem Saffioti e Almeida (1995):

Embora na socialização feminina estejam sempre presentes a suspeita contra desconhecidos e a prevenção de uma eventual aproximação com estes elementos, os agressores de mulheres são, geralmente, parentes ou pessoas conhecidas, que se aproveitam da confiança desfrutada junto às suas vítimas (p. 4).

Constata-se, dessa maneira, que o lugar onde a menina deveria ser idealmente protegida é, também, o local onde, possivelmente, ela será vitimada. E, muitas vezes, sem ter a quem recorrer, visto que o depoimento da vítima contra um agressor conhecido tem a tendência de ser abafado, para não ‘destruir a vida do estuprador’ que é, até mesmo, tido como mais uma ‘vítima’ da situação. As famílias não querem, num primeiro momento, admitir que aquela bestialidade possa ter acontecido debaixo do seu teto sagrado, optando, muitas vezes, por negar o acontecido. Outra tendência é a que Saffioti (2004) explana quanto à sua teoria dos motivos pelos quais aponta como possível meio de descaracterizar a vítima infantil de estupro e proteger o agressor:

No caso de Freud, porém, uma parte desta herança tem produzido resultados extremamente deletérios às vítimas de abuso sexual, em especial do abuso incestuoso. Para Freud, e hoje para muitos de seus seguidores, os relatos das mulheres que frequentavam seu consultório, sobre abusos sexuais contra elas perpetrados por seus pais, eram fantasias derivadas do desejo de serem possuídas por eles, destronando, assim, suas mães. Na pesquisa realizada entre 1988 e 1992 (SAFFIOTI, 1992), não se encontrou um só caso de fantasia. A criança pode, e o faz, enfeitar o sucedido, mas sua base é real, isto é, foi, de fato, molestada por seu pai. Contudo, o escrito de Freud transformou-se em bíblia e a criança perdeu a credibilidade (p. 19).

De acordo com Suzana BRAUN (2002), mesma teoria é aceita por CHARAM (1997), que, segundo ela: “acredita que o segredo na família abusiva ocorre devido à dificuldade de as crianças vencerem a confusão e procurarem ajuda, muitas vezes acreditando que ninguém irá aceitar o que dizem, ou elas podem ter medo das brigas na família” (p. 45). Logo, percebe-se que a idealização do estupro como o ato bestial (que ocorre somente contra vítimas de moral perfeitamente imaculada), praticado por um algoz desconhecido e abominável que lhe rouba não apenas a castidade, mas, também, fere a honra da vítima e da família profundamente, choca-se com a realidade dos fatos apresentados nessa pesquisa.

Há de se considerar não apenas os estupros ocorridos na infância, assim como os registrados na fase adulta, em que 60,5% dos estupros sofridos por adultos (dentre os quais 97,5% mulheres) são praticados por desconhecidos; 15,4% por amigos e conhecidos da vítima, seguidos por 9,3% praticados pelo cônjuge (CERQUEIRA; COELHO, 2014, p. 10). Não vamos nos estender aqui sobre o estupro praticado por desconhecidos, porque esse é o estupro que é tido como padrão no ideário popular. Porém, vamos chamar atenção para os estupros praticados por conhecidos e amigos da vítima ou pelo próprio cônjuge. Esses dois casos chamam a atenção porque são, consecutivamente, o segundo e terceiro maiores índices de probabilidade de estupro a ser sofrido na vida adulta de uma mulher de acordo com a pesquisa do IPEA. O estupro praticado por um amigo ou conhecido tem uma característica diferente, já que o agressor, inicialmente, tem a confiança da vítima, e, portanto, faz uso dessa confiança como meio de obter seu intento. Aqui entram dois fatores a serem considerados: o ‘amigo’ que quer sair da zona da amizade (também conhecida como friendzone) e ter relações sexuais (e, até mesmo, amorosa) com a sua vítima; e o marido, que tanto no âmbito religioso quanto no civil é visto como alguém que tem direito a ter relações sexuais com sua esposa. O próprio Damásio de Jesus, renomado jurista, em comentário do art. 213 do Código Penal, é citado em Bruna de LARA et al. (2016) por interpretar que a mulher não tem obrigação de manter relações sexuais com o marido, desde que apresente uma causa justa para a negativa:

Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações com seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato, desde que tal negativa não se revista de caráter mesquinho. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal, e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa (p. 168).

Simone de Beauvoir (1967) entende que, dentro da sociedade patriarcal, o casamento está para a mulher, tal qual a realização profissional está para o homem, de modo que, para que o casamento tenha sucesso, é preciso que a mulher faça algumas concessões, tais como a manutenção de uma vida sexual ativa de acordo com a vontade do marido:

O homem, pelo fato de ser quem ‘toma’ a mulher - sobretudo em sendo numerosas as solicitações femininas - tem maior possibilidade de escolha. Mas como o ato sexual é considerado um serviço imposto à mulher e no qual assentam as vantagens que lhe são concedidas, é lógico que não se dê importância a suas preferências singulares (p. 175).

Em ambos os casos, o agressor parte da ideia de que o não é um sim que ainda não foi revertido, e de que, no fundo, a mulher quer aquilo tanto quanto ele; que precisa apenas de algum outro estímulo a mais como drogas, álcool ou força física para ceder. A vítima, por sua vez, em muitos casos confusa pela forma como se deu a situação, mal sabe identificar que aquilo se tratou de um estupro. E quando identifica como estupro, muitas vezes a vítima opta por não denunciar, afinal, eram amigos, conhecidos ou casados, e, nesse caso, a sociedade entende que não houve estupro, e, sim, uma relação sexual. Configurando desta forma, é mais um meio pelo qual a vítima deve ser questionada tanto quanto a veracidade dos fatos. Afinal de contas, que tipo de mulher que denuncia um amigo, conhecido, um namorado ou um esposo por estupro? E como essa mulher há de provar que se tratou, de fato, de um estupro, já que existem várias testemunhas do contato e do afeto entre vítima e agressor antes da violência relatada? São questões como essa que colocam em xeque as estatísticas referentes à violência sexual: a vergonha da vítima e o julgamento da sociedade. A dificuldade de provar que um ato sexual é, na realidade, estupro, vem da barreira criada através do julgamento da sociedade. Uma sociedade que idealiza a vítima de estupro com critérios tão rigorosos, que são quase intangíveis, e, ao mesmo tempo, que cria a imagem de um estuprador bestial que fica na espreita de um beco escuro, esperando pela oportunidade de levar a cabo seu desejo. Essa construção social da imagem da vítima, assim como das circunstâncias em que a sociedade em geral configura o estupro como tal, acaba por encobrir todo um modus operandi de estupradores que não são reconhecidos como estupradores. Parece que, na necessidade de criar uma imagem perfeita do que seria de fato uma sociedade segura, as pessoas reais ficam à mercê das ações reais que, na maioria das vezes, passam pela tangente (por escolha coletiva consciente ou inconsciente). O que corrobora a dificuldade de identificar vítima e agressor, visto que ambos geralmente não correspondem à imagem mental que a sociedade tem deles.

A desconstrução do estuprador

A mesma sociedade que idealiza que tipo de mulher que pode ou não ser considerada vítima de estupro também projeta sua própria ideia de estuprador. O típico estuprador é tido como um homem mentalmente perturbado que usa da força para violentar mulheres honestas e descuidadas. Essa caracterização do estuprador como esse tipo de figura (perturbada, vil, bestial) vemos sendo reproduzida às dúzias em filmes como Irreversível (2002), ou novelas como A Indomada (1997), nos quais o estuprador é retratado como um sujeito de comportamento agressivo e suspeito que ataca suas vítimas de assalto. Nesses ataques, tem-se a impressão de que o estupro se deu muito mais por falta de cuidado da vítima por sair à noite, sozinha, tornando-se alvo fácil para o estuprador, do que propriamente por culpa única e exclusiva do agressor. Tais construções confirmam a imagem de que o estupro é um caso isolado, que ocorre em determinadas situações devido muito mais à imprudência da vítima para com a própria segurança, do que, simplesmente, pela culpa do agressor. Constrói-se, então, a concepção de que determinados comportamentos, roupas, gestos fazem da mulher que os utiliza uma vítima em potencial ou não para o ato do estupro. Para Pierre BOURDIEU (2002), o modo como a mulher se comporta e se apresenta legitima, perante a sociedade, o modo pelo qual ela deverá ser tratada:

Essa aprendizagem é ainda mais eficaz por se manter, no essencial, tácita: a moral feminina se impõe, sobretudo, através de uma disciplina incessante, relativa a todas as partes do corpo, e que faz lembrar e se exerce continuamente através da coação quanto aos trajes ou aos penteados. Os princípios antagônicos da identidade masculina e da identidade feminina se inscrevem, assim, sob a forma de maneiras permanentes de se servir do corpo, ou de manter a postura, que são como que a realização, ou melhor, a naturalização de uma ética (p. 38).

De acordo com Adler, em HEBERLE; OSTERMANN; FIGUEIREDO (2006), o comportamento da mulher muitas vezes ultrapassou o julgamento relegado apenas ao âmbito da sociedade, sendo, até mesmo, transferido para a instância jurídica:

Até os anos 1980, era comum encontrar no discurso jurídico britânico exemplos de críticas às mulheres por terem saído sozinhas, por terem um passado sexual ‘promíscuo’, por pedirem carona, por vestirem-se de forma provocativa, e até mesmo por morarem sozinhas ou dormirem seminuas (p. 206).

Propaga-se toda uma regra social de como a mulher deve comportar-se em público e na presença de homens. Nessas regras, está embutido não somente o arquétipo de bom comportamento, como, também, o comportamento mais adequado para manter a integridade física da mulher, ou seja, como evitar agressões verbais, físicas e estupro. No entanto, não se percebe o mesmo cuidado no que tange a apresentar um comportamento padrão que evite ao homem desenvolver-se como estuprador. Existe, sim, claramente, a ideia de que é errado um homem ir até um beco escuro e estuprar uma desconhecida, todavia, não se considera errado, pelo menos de maneira unânime, que ele faça uso de artimanhas como embebedar uma mulher, para, depois, transar com ela inconsciente, por exemplo.

O tempo todo tomamos conhecimento de estupros por meios de comunicação. Constantemente, nesses casos, os homens, como todo o restante da sociedade, solicitam que a justiça seja feita e que o ‘típico’ estuprador seja punido de maneira exemplar. Os homens, de maneira geral, sabem que correm riscos mínimos de tornarem-se vítima de estupro, entretanto, demonstram um sentimento honesto de revolta diante do reconhecimento do ato, já que muitos veem nas vítimas a projeção de que poderiam ser algum membro da sua família (mãe, filha, irmã, esposa etc.). Porém, curiosamente, alguns desses homens que rechaçam o estupro ‘típico’ de casos como o do ‘Maníaco do Parque’,4 são os mesmos homens que praticam estupros de outras formas, até mesmo sem se dar conta de que aquilo é estupro. E aqui entra a importância do esclarecimento do que é um estupro na perspectiva do estuprador e da sociedade, não apenas da vítima. Reconhecer a independência, a dignidade da mulher e sua autonomia perante o ato sexual é o primeiro passo para poder elucidar, diante do grande público, aquilo que se qualifica como estupro, e, que, costumeiramente, não é reconhecido como tal. Desde o não, que significa o não da mulher que está sendo paquerada, até a autonomia da esposa de consentir as relações sexuais somente quando estas são do seu desejo, tudo isso precisa ser revisto pela sociedade.

Nos últimos anos, quando o termo cultura do estupro entrou em discussão, algumas pessoas demonstraram um verdadeiro descontentamento para com o termo. Seguindo a lógica dessas pessoas, não é possível que um país como o Brasil seja palco para algo tão atroz como a cultura do estupro, visto que esse ato é um crime reconhecido tanto pela sociedade, como, também, pelo código penal brasileiro. Todavia, o que essas pessoas ignoram é o fato de que estupro não é apenas aquilo que é caracterizado como estupro na perspectiva coletiva da sociedade patriarcal, como já foi explicado aqui. A falta de noção da real caracterização do crime de estupro impede muitas coisas, dentre elas: que o crime seja registrado; que a condição da vítima seja reconhecida e devidamente remediada; que o sistema crie meios mais eficazes de prevenção focados na educação sexual dos homens, e não apenas na prevenção das mulheres, como acontece atualmente; que seja feito um estudo mais aprofundado das causas desse fenômeno etc. A ignorância para com o sistema que fomenta a prática de estupro apenas serve para proteger inúmeros estupradores do julgamento legal e social por seus atos, impedindo, também, o reconhecimento do comportamento ou de estimuladores desse ato. Nesse panorama, torna-se possível compreender o porquê do conflito entre feministas e sociedade com respeito ao entendimento do que é estupro, quem são os estupradores e como um crime tão censurado é tão comum. Assim, enquanto várias feministas afirmam, nas redes sociais, que ‘todo homem é um potencial estuprador’, a sociedade machista e patriarcal reluta em aceitar tal afirmação. E essa relutância parte da interpretação de que, na afirmação de ‘todo homem é um potencial estuprador’, consta a equivocada leitura generalizada de que todo homem é um estuprador. De acordo com a pesquisa do IPEA, o sexo do agressor sexual é masculino em: 92,55% quando a vítima é criança; 96,69% quando a vítima é adolescente; e 96,66% quando a vítima é adulta. Ou, conforme a interpretação de Cerqueira e Coelho (2014): “A tabela 4 [que faz parte da pesquisa conduzida pelos autores] indica que a maioria esmagadora dos agressores é do sexo masculino, independentemente da faixa etária da vítima, sendo que as mulheres são autoras do estupro em 1,8% dos casos, quando a vítima é criança” (p. 9).

Em última análise, a amostragem é compreensiva quando se percebe o quão duro é olhar para o seu pai, irmão, amigo ou conhecido com a suspeita de que, em algum momento, esse homem possa ter praticado ou possa vir a praticar tamanha atrocidade. Nesse caso, é muito mais fácil aceitar que o estuprador, via de regra, tem alguma característica ou anormalidade que os homens que temos em nosso círculo social não têm, do que admitir que qualquer homem pode vir a praticá-lo, desde que esteja moralmente justificado para isso.

Nunca se conseguiu traçar o perfil do agressor físico, sexual ou emocional de mulheres. Do ponto de vista sociológico, eles são cidadãos comuns não só na medida em que têm, via de regra, uma ocupação e desempenham corretamente outros papéis sociais, mas também porque praticam diferentes modalidades de uma mesma violência estrutural. Se não apenas as classes sociais são constitutivas das relações sociais, estando neste caso também o gênero e a raça/etnia, não há razão para se buscarem características específicas dos agressores, pelo menos da perspectiva aqui assumida. A Psicologia fez numerosas tentativas de detectar as especificidades do agressor, com resultado negativo. Ou seus instrumentos de mensuração do que se considera anormalidade são insuficientes para alcançar esse objetivo, ou o agressor é normal. Do ângulo sociológico aqui esposado, não faz sentido procurar características individuais no agressor, quando a transformação de sua agressividade em agressão social é socialmente estimulada (SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995, p. 138).

Porém, ao mesmo tempo, essa é uma leitura equivocada, uma vez que, ao dizer que ‘todo homem é um potencial estuprador’ não significa, necessariamente, que todos os homens alguma vez praticaram ou praticarão esse ato. Apenas significa que, em determinadas situações, geradas pelo sistema patriarcal, em que são criados mecanismos de desumanização da mulher, transformando-a em mero objeto sexual para a satisfação dos desejos e das necessidades do homem, o homem pode, em algum momento, forçar a relação sexual (caracterizada como estupro) porque, dentro desse sistema, acredita ter completa liberdade de acesso ao corpo da mulher, mesmo contra a vontade dela:

A violência de gênero é um reflexo direto da ideologia patriarcal, que demarca explicitamente os papéis e as relações de poder entre homens e mulheres. Como subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita ou sub-reptícia, coloca a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem, o que termina legitimando e alimentando diversos tipos de violência, entre os quais o estupro (CERQUEIRA; COELHO, 2014, p. 2).

Essa justificativa parte da sociedade que o estimula como predador sexual desde o nascimento, ao mesmo tempo em que coloca a mulher na posição de presa. Sendo assim, enquanto que, mesmo que hipoteticamente, ‘todo homem é um potencial estuprador’, poucos (ou ninguém) estão dispostos a negar que ‘toda a mulher é uma potencial vítima de estupro’, visto que, como já foi exposto aqui, a esmagadora maioria das vítimas de estupros registrados é mulheres.

Conclusão

Uma vez compreendida a amplitude de atos contra a dignidade de uma pessoa (nesse caso, em especial, a mulher) que podem ser enquadrados como estupros, torna-se necessário investigar como se naturaliza esse tipo de violência quando permeada por essas características. Todas essas conjunturas podem ser facilmente analisadas a partir de todo tipo de material cultural que faça qualquer tipo de menção ou alusão à mulher, desde músicas até a pornografia. Isto é, tudo envolve uma construção social relativa ao papel da mulher com relação à própria sexualidade e a como o homem deve se relacionar com ela, que pode conter, em si, alguma mensagem de propagação da cultura do estupro. E essa investigação deve tomar como objetivo verificar sob quais signos é possível que a interpretação do que é estupro seja confundida, de maneira intencional ou não, como algum tipo de direito que determinados homens pensam ter sobre o corpo da mulher, qualificando o que alguns autores denominam como a dominação masculina. Saffioti (2004) utiliza o conceito de Pateman para explicar a forma como o patriarcado se dá, e como ele legitima a dominação masculina:

A dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas estão em questão na formulação do pacto original. O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma história de sujeição. O contrato original cria ambas, a liberdade e a dominação. A liberdade do homem e a sujeição da mulher derivam do contrato original e o sentido da liberdade civil não pode ser compreendido sem a metade perdida da história, que revela como o direito patriarcal dos homens sobre as mulheres é criado pelo contrato. A liberdade civil não é universal - é um atributo masculino que depende do direito patriarcal. [...] O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é social no sentido patriarcal - isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres - e também sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático do homem ao corpo das mulheres (p. 53-54).

Na interpretação de Bourdieu, por sua vez, a alegação da dominação masculina baseia-se na divisão entre gêneros, originada através do reconhecimento das diferenças biológicas entre homens e mulheres. De acordo com Bourdieu (2002), o pênis, enquanto símbolo de virilidade, respalda a pretensa superioridade máscula com relação à condição biológica feminina:

A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada (p. 33).

Nessa mesma construção social da sexualidade, os papéis são distribuídos desde o momento em que somos separados entre homens e mulheres. E, através dessa classificação, cria-se a ideia do feminino em contraposição ao masculino. Onde a mulher é representada como passiva, tolerante, amorosa, enquanto o homem é visto como ativo, imperativo e rude, e, portanto, dominante.

A compreensão do que é a prática da dominação masculina por meio, também, da violência simbólica, obriga os indivíduos verdadeiramente compromissados com o fim do estupro a desconstruírem a própria compreensão do papel do homem e da mulher dentro da sociedade. E uma vez compreendido o modo em que se constitui a divisão de papéis sociais entre dominador e dominado, é possível romper a fonte que alimenta esse sistema em prol de um sistema igualitário, como o defendido pelo feminismo. Somente com a desconstrução de padrões que justificam qualquer tipo de dominação masculina que a cultura do estupro tenderá à inanição ou a ser deliberadamente aniquilada. Dessa forma, ao perder seu principal alicerce, a saber - a ideia de que homens têm direito a ter acesso livre ao corpo da mulher - a cultura do estupro também tem eliminada a justificativa para que a violência sexual seja, de alguma forma, aceita ou tolerada pela sociedade.

Referências

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  • BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina Traduzido por M. H. Kuhner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
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  • CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil São Paulo: Brasiliense, 1986.
  • FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda.Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa 11.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
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  • IRREVERSÍVEL. Direção e roteiro: Gaspar Noé. Produção: Christophe Rossignon. Fotografia: Benoît Debie, Gaspar Noé. Trilha Sonora: Thomas Bangalter. Gênero: Drama. França, 95 min.
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  • VIGARELLO, Georges; MAGALHÃES, Lucy. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
  • 1
    Conforme consta no Código Penal Brasileiro, no artigo 213 (na redação dada pela Lei n.º 12.015, de 2009), estupro é: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, substituindo a lei anterior que considerava no Art. 213 - “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”.
  • 2
    É uma prática comum em situações de conflitos armados o estupro de homens como forma de subjugar e destruir a moral da tropa adversária.
  • 3
    Citamos, aqui, como exemplo, a história da beata brasileira Albertina Berkenbrock (11 de abril de 1919 - 15 de junho de 1931), que morreu aos 12 anos defendendo a virgindade contra seu agressor, e é cultuada como santa no Sul de Santa Catarina. Segundo relatos, Albertina morreu após lutar arduamente contra seu agressor, impedindo-o de estuprá-la de maneira que ao fim morreu, contudo, manteve a virgindade intacta.
  • 4
    Francisco de Assis Pereira, conhecido como ‘maníaco do parque’, em 1998, condenado à soma de 130 anos de prisão por crimes de estupro seguido de assassinato (Fernando SERPONE, 2011).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2016
  • Aceito
    17 Out 2016
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