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Um olhar feminino sobre o anarquismo?1 1 Esta resenha foi publicada em francês pela revista CLIO ¾ Histoire, Femmes et Sociétes.

Entre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo

RAGO, Margareth.

São Paulo: UNESP, 2001. 368 p.

Historiadora conhecida do público brasileiro, Margareth Rago tem publicado trabalhos que focalizam a História das Mulheres e das Relações de Gênero, dentro de uma perspectiva foucaultiana e anarquista. Neste seu último livro, Entre a História e a Liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo, a autora utiliza eses mesmos referenciais para analisar a vida e a obra de uma intelectual anarquista: Luce Fabbri.

Através de uma escrita ágil e atraente, a autora conta-nos, em 341 páginas, os 92 anos de vida desta pensadora italiana. A maneira como mistura a história da vida privada com a obra intelectual da anarquista leva o leitor a se enternecer, a amar e a viver, juntamente com a autora, as experiências de vida e reflexões de Luce Fabbri.

A partir das análises de autores como Michel Foucault e Hannah Arendt, a autora compara a vivência, os ditos e os escritos de Luce Fabbri, mesmo que, por vezes, a própria Luce não se reconheça ¾ como a autora destaca ¾ nestas análises, aproximações e comparações que faz da obra da anarquista italiana com a destes autores.

Passado e presente entrecruzam-se nesta obra. O resultado não é uma biografia, mas o desenho de uma vida, construída como obra de arte. Neste desenho, o pensamento anarquista constitui a paisagem: o suporte é a memória. Esta é, o tempo todo, tematizada e questionada.

O livro divide-se em cinco capítulos, os quais reproduzem um percurso temporal: do nascimento e da vida em Bolonha (Itália) à adolescência e à juventude vividas em diversos pontos do país. Simultaneamente, ficamos conhecendo o momento em que Luce descobriu-se anarquista e o cotidiano do surgimento do fascismo na Itália. Este é um dos pontos fortes da obra. As tensões do surgimento do fascismo são vividas "por dentro", e a narrativa de Luce é instigante nesta parte.

A fuga da Itália e o exílio no Uruguai é um outro momento forte do trabalho, no qual se misturam emoções, história política e análise teórica. A autora prende, aí, o leitor, envolvendo-o nas tramas de uma história quase épica. O Uruguai, descrito por Luce como lugar de liberdade e acolhida, é pintado com as cores da admiração, quase no limite da idealização, especialmente quando se refere ao presidente que governava este país àquela época: José Batlle & Ordoñez.

Dois outros personagens, além de Luce, são muito focalizados na obra ¾ certamente pela força da narradora: o pai de Luce, Luigi Fabbri, e o anarquista Errico Malatesta. A obra destes é discutida em meio à narrativa das lutas na Itália, da fuga da família Fabbri, passando antes por Genebra e Paris e, finalmente, indo para o exílio na América do Sul.

Outro ponto de destaque da obra é a narrativa da Guerra Civil Espanhola, vivida por Luce a partir do exílio no Uruguai. Esta guerra é pensada como uma rica experiência anarquista. A leitura que Luce faz, morando na América, através das informações que chegam pelos jornais, panfletos, cartas, informantes, é impressionante. A Espanha desse tempo foi, para Luce e para os demais anarquistas da época, "uma grande esperança que se abre no horizonte e, repentinamente, uma enorme frustação".

Naqueles anos, Luce e os companheiros pareciam ver, aí, todos os ideais anarquistas se concretizarem: "vivemos mais na Espanha do que aqui". Eles organizaram comitês de ajuda, divulgaram informações, atuaram em várias frentes de propaganda. Muitos partiram para lutar. Depois veio a dolorosa derrota pela falange franquista. Luce salienta, especialmente, os companheiros anarquistas mortos pelos comunistas.

No balanço que o livro faz sobre o anarquismo, são dissecadas as várias tendências que o formam, os debates, as discussões do momento atual e do passado. São muito ricas as análises que a autora apresenta da obra da intelectual anarquista. O socialismo libertário é apresentado como a única utopia que "não foi derrotada, no campo teórico, pelos acontecimentos".

O anarquismo de Luce dá continuidade ao de Errico Malatesta; porém, diferente deste, considera importantes as contribuições trazidas pelo conhecimento científico sobre o homem e a sociedade. Para Luce, "a idéia de liberdade se amplia à medida que progride a ciência, a qual produz uma liberdade sempre maior".

Desconsiderando as tendências anárquicas que partem de leis históricas, ou que constroem utopias e, ainda, as que negam o mundo presente, Luce afirma que a anarquia não tem um programa delimitado, é uma concepção. Mais do que "um ponto bem fixo, ao qual se deva chegar", a anarquia é "um caminho a seguir".

Luce critica todo irracionalismo considerado como predomínio do instinto sobre a razão e, conseqüentemente, opressão dos semelhantes, pois, de acordo com ela, os homens têm o instinto do poder. Critica também os anarquistas terroristas, os "expropriadores individualistas, considerando-os danosos para o movimento libertário como um todo. A vida de Luce mostra que o anarquismo pode ser praticado de diferentes maneiras. A autora mostra como a pensadora constrói sua própria vida ¾ espaço de atuação pública e privada ¾ como uma experiência anarquista. Assim, antes de uma luta política, trata-se "de uma questão ética, que envolve a produção da subjetividade". Neste sentido, o caminho é mais importante do que a finalidade.

Na narrativa de Luce, as reflexões sobre o socialismo, a linguagem, a cultura, a liberdade têm um peso maior do que a narrativa da vida privada: a cronologia é marcada pela vida política. É assim que, entremeando estas discussões, ficamos sabendo de seu casamento, do nascimento da filha, da morte do pai e da mãe, do marido. A autora argumenta que não encontrou, em Luce, o sentimento burguês de intimidade, e atribui isso à sua timidez em falar do privado.

Esta obra traz, assim, um retrospecto muito importante do anarquismo contemporâneo; mostra que não é possível pensá-lo sem as contribuições de Luce Fabbri, mesmo que a autora, por vezes, demonstre um grande fascínio pela pensadora e afirme estar oferecendo um "olhar feminino" sobre o anarquismo. No Brasil e na América Latina, a história do anarquismo tem sido contada à luz das experiências masculinas. É, então, o envolvimento das mulheres que torna o passado singular.

Luce apresenta uma narrativa estruturada racionalmente, muito mais pública do que privada, e reconhece ter tido dificuldades, até 1933, de aceitar as lutas feministas ¾ consideradas por ela como coisas da burguesia. Na época das entrevistas que concedeu à autora, ao referir-se às mulheres, dizia que elas "podem revolucionar o mundo se não imitarem os homens, já que são portadoras de uma cultura própria, de outras formas de percepção, de organização e de elaboração prática, estética e mental".

Negando que isso possa ser resultado de uma essência biológica, diz que, até os dias atuais, a maneira como homens e mulheres são construídos diferenciadamente torna as mulheres inexperientes para serem guerreiras, comandantes e generais, no entanto muito mais aptas para organizar a vida social. Esta posição, defendida também pela autora, aproxima-se daquela reivindicada pelo "feminismo da diferença", que, entretanto, a própria narrativa da vida da pensadora anarquista parece negar. Luce não viveu, em sua época, os constrangimentos de seu gênero. Teve acesso a lugares fechados para as mulheres comuns e foi poupada ¾ pela mãe e, depois, pelo marido ¾ das tarefas domésticas comumente atribuídas às mulheres. Talvez por isso não reconheça ¾ e isto é explicitado no livro ¾ que o fato de ser uma mulher tenha a importância que a autora pretende atribuir-lhe.

São, portanto, provocantes as questões que este livro apresenta: o anarquismo como combate às diferentes formas de autoritarismo; o feminino como uma outra narrativa histórica, e também como uma proposta de organização de vida.

JOANA MARIA PEDRO

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    Esta resenha foi publicada em francês pela revista CLIO ¾ Histoire, Femmes et Sociétes.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2002
    • Data do Fascículo
      2001
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