Acessibilidade / Reportar erro

Sonhos e lutas de organizações de mulheres negras na Grã-Bretanha

RESENHAS

Sonhos e lutas de organizações de mulheres negras na Grã-Bretanha

Sandra Iris Sobrera Abella

Universidade Federal de Santa Catarina

Outros tipos de sonhos: organizações de mulheres negras e políticas de transformação.

SUDBURY, Julia.

Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 168 p.

O livro Outros tipos de sonhos: organizações de mulheres negras e políticas de transformação traça um histórico da trajetória de organizações de mulheres negras na Grã-Bretanha e, por meio da análise crítica que efetua, confere visibilidade a coerências e contradições nos discursos das integrantes desses movimentos. Sudbury embasa a sua pesquisa em uma perspectiva histórica, social e crítica, concebendo as organizações de mulheres negras como históricas e em contínua transformação.

A obra resulta da pesquisa de doutorado da autora, que investigou doze organizações de mulheres negras, entrevistando 25 mulheres e mapeando as dificuldades e a realidade interna dessas organizações. Sudbury é inglesa, socióloga, com PhD em Sociologia, professora assistente no Mills College, em Oakland, e é ativista negra atuando em organizações de mulheres negras, tendo dirigido a Agência Nacional de Desenvolvimento para o Setor Voluntário Negro, em Londres.

Tal pesquisa permite embasar discussões sobre gênero e negritude, tratados de modo imbricado. Traz contribuições tanto do ponto de vista teórico, em virtude das análises e discussões conceituais que apresenta, como também metodológico, ao se referir às estratégias utilizadas para superar dificuldades com relação a procedimentos de coleta de dados e de análise e às reflexões acerca das implicações do embasamento teórico para a análise, situando-se em uma perspectiva comprometida com o seu objeto de estudo e com as transformações sociais na luta das mulheres negras na Grã-Bretanha. Assim, realiza reflexões em busca de subsídios conceituais e metodológicos que possibilitem contribuir efetivamente para o alcance dos objetivos propostos, constituindo uma pesquisa engajada com a luta das mulheres negras organizadas pelos seus direitos e pela afirmação na sociedade diante das discriminações e dos ataques sofridos. Nesse sentido, pode-se afirmar que a autora superou a dicotomia entre teoria e prática no contexto do ativismo das mulheres negras, mostrando preocupação em repensar conceitos que limitam as ações das organizações de mulheres. Superando tal dicotomia, a autora procura articular teoria e prática estabelecendo uma relação em que se busca construir conceitos que embasam a ação, enquanto esta, por sua vez, conduz a uma re-construção conceitual. Além disso, o livro em questão também contribui para a atuação de outras organizações com objetivos semelhantes aos dos grupos investigados pela autora, divulgando as experiências que também podem ser utilizadas por outras organizações autônomas, bem como concorre para dar a conhecer também para o público em geral, não só para teóricos, pesquisadores e ativistas de movimentos sociais, diversos aspectos da realidade de mulheres negras e suas organizações.

A estrutura conceitual de análise da pesquisa constitui-se de quatro pontos principais que instrumentalizaram o seu olhar diante das informações obtidas através das entrevistas: deixar de ver as mulheres como vítimas, mas sim como pessoas conscientes e atuantes; substituir a política de identidade por política de posição, contemplando a especificidade de lugares sociais assumidos, com a própria autora posicionando suas análises na perspectiva womanista; articular 'raça', classe e gênero; e superar o essencialismo de 'raça' e sexo, que dificulta o acesso a novas oportunidades nas vidas das mulheres negras.

Em sua investigação a autora supera diversas dificuldades metodológicas, como o fato de ocupar um cargo de liderança em organização que investigou e ao mesmo tempo buscar uma imparcialidade e confiança das entrevistadas, apesar das implicações políticas do seu cargo e das disputas de interesses existentes nessas organizações. Entretanto, Sudbury conseguiu superar essa situação que lhe dificultava o acesso às organizações que visava investigar, conciliando em ambos os lugares sociais seus conhecimentos e informações de que dispunha, beneficiando assim essas organizações. Desse modo, os objetivos de ambas as partes foram sendo alcançados, o que gerava satisfação mútua. Tal solução veio ao encontro do objetivo de que sua experiência como pesquisadora e seus conhecimentos como ativista pudessem contribuir para o fortalecimento das mulheres negras e suas organizações. Assim, salienta-se que, apesar dos lugares sociais de ativista e de pesquisadora ocupados concomitantemente pela autora, ela consegue soltar-se de amarras relacionadas a essas posições, tecendo críticas perspicazes e demonstrando alto grau de lucidez ao apontar preconceitos e incoerências nas teorizações e práticas dessas mulheres negras.

O capítulo metodológico, na verdade, consiste em uma crítica à 'sociologia branca', ou seja, ao 'racionalismo científico social', criticando as premissas epistemológicas que fundamentam a ciência sociológica branca que defende 'verdades universais' em prejuízo dos grupos minoritários e de seus saberes locais, padronizando na análise uma perspectiva européia masculina.

Várias questões problemáticas existentes na realidade das mulheres negras podem ser apontadas, como a violência de mulheres contra outras mulheres, a violência dos homens negros contra as mulheres negras e racismo por parte de algumas mulheres negras, assim como também exclusão de lésbicas das lutas das organizações de mulheres negras.

Torna-se necessário desmistificar uma visão idealizada de homogeneidade nas organizações de mulheres negras que mascara diferenças, evidenciando que estas existem, assim como também estão presentes contradições e formas de opressão nessas organizações e um alto grau de complexidade na realidade dessas mulheres. Isso revela a falácia de uma unidade de propósitos e luta entre todas as mulheres, e também entre todos os negros, ignorando as diferenças, sejam de 'raça', gênero e também de classe social, sexualidade, e outras condições de vida, como por exemplo o fato de ser mãe solteira, o que constitui sistemas de opressão integrados.

Nesse sentido, as diversas minorias pertencentes a uma categoria maior, "mulheres negras", muitas vezes não sentem suas necessidades contempladas nas organizações das mulheres negras, as quais, sustentadas em uma idéia de suposta homogeneização, acabam suplantando interesses e velando conflitos, como é o caso das lésbicas, excluídas por organizações negras que possuem uma concepção hegemônica patologizante de sexualidade, ocasionando cisões em um pretenso movimento unificado, questões essas que complexificam sobremaneira a compreensão das organizações de mulheres negras na Grã-Bretanha.

Existe também uma idealização que as mulheres negras investigadas fazem delas mesmas, inclusive citando heroínas mitificadas e deusas de diferentes religiões como modelos, o que acaba fazendo com que as mulheres ignorem suas fraquezas e busquem somente suas forças, procurando ser supermulheres, o que conduz à frustração.

Apesar de diversas ativistas negras se autodenominarem feministas, há um movimento crescente de crítica a esse conceito como característico do pensamento e da ação das mulheres brancas contra o sexismo. E assim as mulheres negras têm preferido o termo "womanismo". Womanismo é definido como uma perspectiva de valorização da mulher em todos os seus âmbitos de ação e relação, não possuindo, no entanto, uma conotação política, como é o caso do feminismo. Na realidade, o feminismo parece designar uma perspectiva de posicionamento da mulher branca, ignorando vivências mais específicas da realidade cotidiana que assolam as mulheres negras, não contempladas pelo conceito de feminismo.

Para uma compreensão mais acurada da opressão sofrida pelas mulheres negras, faz-se necessário articular os conceitos de gênero, 'raça' e classe social, constituindo um todo complexo cujas partes se inter-relacionam, o que caracteriza uma situação específica das mulheres negras, que não se encontra nas vivências das mulheres brancas e nem nas dos homens negros. Sendo assim, a articulação entre 'raça' e gênero origina categorias complexas: "racismo de gênero" e "sexismo racializado", relacionados às posições de classe assumidas, tornam-se conceitos que permitem uma compreensão mais ampla e crítica da situação vivenciada pelas mulheres negras.

Se por um lado pode-se afirmar que 'raça', como uma realidade que se auto-afirma biologicamente, sem ambigüidades, não existe, podendo estabelecer diferentes classificações conforme a cultura de uma determinada região, consistindo antes em um constructo social e histórico, o racismo existe e persiste, constituindo realidades e formas de subjetividade. Sendo assim, compreendendo-se categorias identitárias como sociais e historicamente construídas, escapa-se da obviedade marcadamente biológica da 'raça' e do sexo, concebendo-os como um fenômeno social. Nesse sentido, ao evidenciar a identidade como a de mulher negra, apagam-se diferenças e ocultam-se as relações de poder que mantêm a ordem social hegemônica discriminatória, na medida em que não se consideram na análise as diferentes posições assumidas pelos sujeitos na sociedade, as quais, além de contemplar 'raça' e gênero, também definem-se a partir da classe social, sexualidade, religião, educação e condições situacionais diversas. Por esse motivo, torna-se pertinente a substituição do conceito de "política de identidade" por "política de posicionamento", enfatizando o lugar ocupado pelas mulheres negras no tempo e no espaço, a partir de uma perspectiva ideológica.

Com relação ao conceito de negritude, este é concebido atualmente por muitas organizações sociais como uma "cor política", constituindo-se, portanto, em um termo que abrange também quem não possui pele escura, como no caso das chinesas, por exemplo, que nesse contexto conceitual denominam suas organizações de negras. Sendo este um conceito utilizado, portanto, como sinônimo de grupos discriminados e vítimas de racismo, expandindo tal preconceito para as mais diferentes etnias, pode inclusive abranger os judeus. Tal abertura no uso do conceito de negritude o retira de uma visão essencialista, biologicista, colocando-o como uma categoria histórica e social.

Diante das diversas situações de opressão vivenciadas pelas mulheres negras pesquisadas, elas manifestaram uma compreensão de atuação política em que a luta é travada no cotidiano, não se restringindo à filiação a partidos políticos. Essa concepção do pessoal como político nas organizações de mulheres negras considera as experiências pessoais como ponto de partida, não desconsiderando, entretanto, a importância da ação coletiva.

As organizações de mulheres negras na Grã-Bretanha têm aderido à proposta de política de transformação sugerida por Patricia Hill Collins (1990) de sair da dicotomia entre indivíduo e coletividade, para seguir em um processo de trabalhar primeiramente na transformação e fortalecimento pessoal (autoconfiança, educação, desenvolvimento econômico/independência financeira). No entanto, uma ênfase nas mulheres como indivíduos pode conduzir a uma patologização, ignorando a importância da discriminação social sofrida por elas. Após esse primeiro momento, passa-se gradualmente a questionar o conceito de família saudável; a transformar a comunidade local (o desenvolvimento da consciência em comunidades locais); e a formar redes nacionais e internacionais.

A autora discute bastante a noção de identidade, as classificações e distinções e suas implicações nas relações sociais/de poder, mas não enriquece/beneficia suas análises com a teoria de "poder simbólico" de Bourdieu, autor que ela, em nenhum momento, menciona.

A partir da leitura do livro, pode-se compreender a complexidade das organizações de mulheres negras, como a sua relação com os homens negros violentos. Ao mesmo tempo que essas mulheres precisam defender-se desses homens, também precisam preservá-los da estigmatização que eles sofrem, defendendo-os assim dos ataques de mulheres e homens brancos que visam transformá-los em monstros, o que se constitui em uma das muitas relações contraditórias em que as mulheres negras se vêem envolvidas. Essa é uma entre tantas situações complexas e contraditórias que as mulheres negras enfrentam em seus movimentos de luta, diante das quais se unem e traçam estratégias diversas em busca da realização dos seus sonhos coletivos e individuais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br