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A autoficção de Grazia Deledda

RESENHAS

A autoficção de Grazia Deledda

Andréia Guerini

Universidade Federal de Santa Catarina

Cosima.

Deledda, Grazia. Tradução de Maria do Rosário Toschi. Revisão da tradução: Aurora Fornoni Bernardini.

Vinhedo, SP: Horizonte, 2005. 175 p.

Embora as principais obras de referência literária italianas e estrangeiras não dediquem muitas páginas a Grazia Deledda (Nuoro/Sardenha, 1871 – Roma, 1936) e divirjam na caracterização de sua narrativa, todos são unânimes em afirmar que é uma grande autora do Novecento italiano, podendo ser comparada a escritoras do porte de Jane Austen, Emily Brontë e Virgina Woolf.

Autodidata e uma das poucas mulheres a única italiana – a obter o Prêmio Nobel de Literatura, em 1926, Grazia Deledda estreou como escritora ainda bastante jovem. Com 17 anos já havia publicado alguns de seus escritos em uma revista de moda, e com o passar dos anos escreveu diversos romances, em que se encontra "um valor de poesia", para usar as palavras do conhecido crítico Natalino Sapegno.1 1 Sapegno, 1975, p. 719. Dentre os seus romances destacam-se Fior di Sardegna (1892), Elias Portolu (1903), Cenere (1904), Canne al vento (1913), um dos mais conhecidos e traduzidos, e La madre (1920), que mereceu o prefácio de D.H. Lawrence na tradução inglesa.

A Sardenha, suas paisagens, lendas e personagens são uma constante nos escritos dessa escritora, que em 1899, após seu matrimônio, se transfere para Roma e continua a se dedicar diligentemente à ficção. A aderência à realidade, mas também o interesse pelos elementos psicológicos, místicos e supersticiosos caracterizam a sua intensa produção literária. Embora os traços típicos das correntes naturalista e decadentista estejam bastante presentes na obra de Grazia Deledda, os temas do amor, dor, morte, religião, somados a lugares, figuras, paisagens, são combinados de tal maneira que tornam problemática a aplicação mecânica de certos rótulos. Não por acaso, a parte mais famosa da justificativa do Prêmio Nobel, elaborada pelo júri e lida durante a cerimônia de entrega, diz que Deledda fora escolhida "Pelos seus escritos idealistas inspirados com claridade plástica das vivências na sua ilha natal, e com profundidade e simpatia pelos problemas humanos em geral".

Devido em parte ao Nobel, Grazia foi muito traduzida, mas no Brasil saíram apenas O drama de Regina (1932) e Caniços ao vento (1964) e, recentemente, graças à Editora Horizonte, com sua coleção "Mulheres e Letras", temos à disposição o último livro da escritora sarda.

Cosima, que foi publicado postumamente em 1937, é um romance autobiográfico e narra a história de vida da protagonista, Cosima, da infância à vida adulta, passando pelas vicissitudes cotidianas, do amor à morte, tendo sempre como pano de fundo a Sardenha com suas lendas e personagens, tudo isso aliado ao seu desabrochar como escritora. Aliás, Cosima pode ser resumido como a história de uma jovem escritora nascida em uma cidade periférica da já isolada Sardenha em uma época em que a educação para as mulheres era rara e a carreira literária de uma mulher era mal vista, pois as mulheres deveriam se dedicar ao lar, ao casamento, aos filhos. Esse difícil destino é, ao longo do livro, descrito de forma irônica e, às vezes, dramática.

Apesar de a literatura de Deledda muitas vezes situar-se entre o naturalismo de Verga e o decadentismo de D'Annunzio, neste livro, a escritora coloca-se à margem e acima dessas classificações. Essa autonomia aparece, por exemplo, nas descrições, que são ora de caráter realista, ora psicológico, num vaivém encantador. Assim, em uma narração impessoal, temos a minuciosa descrição da casa paterna:

A casa era simples, mas cômoda; dois quartos por andar, grandes, um pouco baixos, com piso e forro de madeira caiados. [...] A porta de entrada, sólida, fechada com uma grossa tranca de ferro [...] Tinha a lareira e um fogão principal marcado por quatro frisos de pedra [...] Na pia nunca faltava um pequeno caldeirão de cobre cheio de água tirada do poço do quintal [...] (p. 11-13).

E a personagem Cosima é assim retratada:

De baixa estatura, com a cabeça grande, as extremidades minúsculas, com todas as características físicas sedentárias das mulheres de sua raça, talvez de origem líbica, com o mesmo perfil um pouco achatado, os dentes selvagens e o lábio superior muito alongado; tinha, porém, uma pele branca aveludada, belíssimos cabelos negros levemente ondulados e os olhos grandes amendoados de um negro dourado e, às vezes, esverdeado, com a pupila grande, exatamente como as mulheres de raça camítica, que um poeta latino chamou "pupila dupla", de um fascínio passional irresistível" (p. 73).

Já quando o narrador em terceira pessoa fala de Santus, um dos irmãos de Cosima, a descrição é mais de caráter psicológico:

Quem não andava bem era Santus. A morte do pai, em vez de chamá-lo a si, pareceu afundá-lo cada vez mais no abismo onde, dia após dia, se precipitava. Estudou até chegar ao quarto ano de medicina; mas bebia cada vez mais e já começava a viver alcoolizado [...] Santus é o morto-vivo que anunciava o inferno, sim, mas antes da morte, na própria vida (p. 66-68).

Como se percebe, temos uma Deledda sensível em relação aos mais diferentes aspectos que a vida lhe impõe, como o sofrimento pelo irmão alcoolizado, a morte de sua irmã Giovanna, "a mais bela das cinco irmãs" (p. 41), o sofrimento da mãe, a morte de Enza:

Cosima [...] encontrou-a [Enza] insolitamente calma, estendida sobre o leito, palidíssima, com os grandes olhos amedrontados. Não falava, não se movia; mas um cheiro desagradável e quente exalava do leito e quando Cosima, com uma coragem superior à sua idade, procurou descobrir o mistério, deu-se conta que a infeliz Enza jazia em uma poça de sangue negro e fétido. Veio o médico e disse que se tratava de um aborto (p. 71).

Além desses episódios da vida, Cosima tinha também seus próprios temores interiores, como o de ser feia, de não encontrar marido, e também o de não se tornar uma escritora de sucesso.

Com este livro, Deledda nos mostra como é possível superar obstáculos em uma sociedade fechada, patriarcal e fortemente religiosa através de seu firme projeto de se tornar escritora de grande talento. Não por acaso Cosima foi, como lembra Aurora Fornoni Bernardini na introdução do livro, durante gerações um dos mais lidos pelos jovens de seu país.

Nota

Referência bibliográfica

SAPEGNO, Natalino. Disegno storico della letteratura italiana. Firenze: La NuovaItália, 1975.

  • 1
    Sapegno, 1975, p. 719.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Dez 2006
    • Data do Fascículo
      Set 2006
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