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Múltiplas rotas femininas

RESENHAS

Múltiplas rotas femininas

Carla Rodrigues

revista NoMínimo, em www.nominimo.com.br

Fausse route.

BADINTER, Elisabeth.

Paris: Odile Jacob, 2003. 222 p.

"A razão principal do feminismo, consideradas todas as diferentes tendências, é instalar a igualdade entre os sexos e não melhorar as relações entre homens e mulheres. Não se deve confundir objetivo com conseqüências, mesmo se por vezes acreditamos que os dois caminham juntos" (p. 179).1 1 "La raison première du féminisme, toutes tendance confondues, est d'instaurer l'égalité des sexes et non d'améliorer les relations entre hommes et femmes. Ne pas confondre l'objectif et ses conséquences, même si l'on fait parfois mine de croire que les deux vont de pair." A afirmação é da pensadora Elisabeth Badinter em Fausse route (Rumo equivocado), livro no qual ela faz um balanço dos trinta anos de feminismo na França. A idéia da autora é que há um desvio de rota no movimento feminista francês, que estaria incentivando um processo de vitimização das mulheres e tomando rumos por demais americanizados. Para além do diálogo que estabelece com teóricas norte-americanas e francesas, e consideradas as questões específicas daquela sociedade (como o debate sobre o uso do véu nas escolas), o livro de Badinter chega ao Brasil pouco mais de dois anos depois de lançado na França, com importante contribuição a dar no panorama da reflexão brasileira sobre feminismo, sua história e seus rumos para o futuro.

Em 1975, um grupo de mulheres cariocas organizou na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, a semana de debates intitulada "O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira", evento que reuniu uma platéia de mais de quatrocentos participantes e deu início ao Centro da Mulher Brasileira (CMB), primeira organização feminista no país.2 2 Schuma Schumaher e Erico Vital Brazil, 2000. Começaram a se organizar diferentes movimentos de mulheres, além de jornais de e para mulheres. Os grupos feministas caminharam próximos das organizações de esquerda. Além da luta pela redemocratização, o movimento tinha ações também nas áreas sindical e rural. Mulheres de outros setores sociais e de diferentes orientações sexuais se uniram. Os temas da saúde e do aborto passaram a fazer parte da agenda feminista na década de 1980. A força dessas mobilizações colocou as mulheres como interlocutoras no debate político sobre direito à saúde. Na década de 1980, marcada pelo retorno da democracia no país, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (1987) e o lobby do batom foi atuante na conquista de direitos durante a Assembléia Nacional Constituinte. Na década de 1990, a participação das mulheres no ciclo de conferências mundiais da ONU conferiu caráter global ao movimento. No Rio de Janeiro, o Planeta Fêmea ocupou o Aterro do Flamengo durante a Eco-92. As conferências do Cairo (1994), Beijing (1995) e Durban (2001) foram importantes momentos de encontro e de fortalecimento da bandeira feminista.

Bem antes da onda de globalização dos anos 1990, a norte-americana Betty Friedan já havia causado furor numa visita ao Brasil, trazida pela escritora Rose Marie Muraro. Em 1971, a histórica entrevista a O Pasquim teve grande repercussão e começou o processo de popularização do debate sobre a condição feminina no Brasil.3 3 Schumaher e Vital Brazil, 2000. Durante todo esse período, os estudos de gênero conquistaram espaço nas universidades, a exemplo do que já vinha acontecendo nos Estados Unidos e na Europa. O lançamento da Revista Estudos Feministas, em 1992, é um dos sinais eloqüentes da ampliação do debate teórico e acadêmico no país.

É legítimo afirmar que, seja do ponto de vista do movimento, seja no aspecto teórico, o feminismo no Brasil tem mantido um intenso e constante diálogo com o exterior. Daí a leitura do livro de Badinter nos permitir 'importar' algumas reflexões para a situação brasileira, desde que com a devida atenção às diferenças de contexto, de cultura e de trajetória. Uma diferença fundamental, por exemplo, foi a legalização do aborto na França há trinta anos, tema sobre o qual, no Brasil, os avanços ainda são pequenos. Uma semelhança é a dificuldade de valorizar a contribuição do feminismo como movimento social que influenciou a mudança de comportamento da sociedade, o que pode ser indicativo, por exemplo, de relações de gênero assimétricas nos mais diferentes países.

Em conferência realizada no Rio de Janeiro, 4 4 Conferência "Práxis feminista e democracia", no Museu da República, em 14 de abril de 2005. Realização do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) e da Articulação de Mulheres do Brasil (AMB). a filósofa francesa Françoise Collin descreveu o movimento feminista como sendo 1) responsável pela ampliação da democracia, na medida em que permitiu que a outra metade da população tivesse direito a voto; 2) um movimento plural, sem hierarquia, dogmas, controle ou estruturas centralizadas, que não defende uma verdade, mas está em permanente processo de construção de uma agenda que evolui e se modifica. É importante ressaltar essa segunda característica para lembrar que, quando Badinter discute o feminismo, de fato só pode falar de um lugar específico, e não em nome de todo o movimento. Esse "todo", felizmente, não existe no movimento, como bem aponta Bila Sorj: "Diferentemente dos demais movimentos políticos como o fascismo, o nacionalismo e o comunismo, o feminismo promoveu uma formidável mudança de comportamentos orientada para a promoção de mais liberdade e igualdade entre os sexos, sem aspirar à tomada do poder, sem utilizar a força e sem derramar uma gota de sangue".5 5 Sorj, 2005, p. 7.

Um dos aspectos relevantes do livro é o diálogo com pensadoras contemporâneas. É certeira a crítica de Badinter à valorização da maternidade feita pela filósofa francesa Sylviane Agacinski.6 6 Autora, entre outros, de Politique des sexes (Agacinski, 2001) e de Métaphysique des sexes: Masculin/Féminin au sources du christianisme (Agacinski, 2005). Segundo Badinter, essa autora tem afirmado a maternidade como eixo central da identidade da mulher. A esse movimento de valorização da maternidade também se assiste no Brasil, na freqüência com que surgem, nas páginas dos jornais, depoimentos de mulheres que pararam de trabalhar para se dedicar exclusivamente à tarefa de ser mãe. Badinter critica o pensamento que desconstruiu as idéias de Simone de Beauvoir7 7 Sobre o assunto, ver Carla RODRIGUES, 2005. para lembrar que, sem a distinção entre natureza e cultura, não haveria feminismo possível. "Nos esquecemos muito rapidamente que ao colocar a biologia em seu lugar o segundo ela [Beauvoir] dinamitou as barreiras da prisão das mulheres" (p. 53),8 8 "Mais on a un peu vite oublié qu'en remettant la biologique à as juste place la seconde elle a dinamité les barreaux de la prison de femmes." defende a autora. Ela atribui ao declínio da importância do pensamento de Beauvoir a amplificação de discursos naturalistas como os que defendem a força do instinto maternal.

O ponto forte do livro está nas duras críticas de Badinter ao que ela chama de vitimização das mulheres, vitimização promovida pela combinação entre o politicamente correto norte-americano e o desejo das feministas de 'proteger' as mulheres, insistentemente tratadas como submissas. Em vez de contribuir para a desejável igualdade entre homens e mulheres, a vitimização a que Badinter se refere traria conseqüências nefastas: mantém a mulher no papel secundário, sem autonomia; estabelece uma relação de disputa com os homens, ao invés de incentivar uma relação horizontal; omite do debate temas como a prostituição e a violência praticada por mulheres. Badinter quer desmontar, por exemplo, a idéia de que "os homens são inimigos a ser abatidos",9 9 Badinter, 2005. idéia com a qual o movimento feminista reforçaria a vitimização das mulheres. Para isso, critica duramente a lei de assédio sexual aprovada na França, que ela considera excessivamente moralista. "Não está longe o tempo no qual, como em Princeton, será considerado como assédio sexual 'toda atenção sexual não desejada que engendre um sentimento de mal-estar ou cause problemas na escola, no trabalho ou nas relações sociais'" (p. 32).10 10 "Le temps n'est pas loin où, comme à Princeton, sera considérée comme harcèlment sexuel 'toute attention sexuelle nos desirée qui engendre um sentiment de malaise ou cause des problèmes à l'école, au travail ou dans les relations sociales'."

A autora defende a idéia de que as mulheres perdem a oportunidade de valorizar as conquistas na direção da igualdade, muitas vezes expurgando conseqüências positivas geradas, ainda que indiretamente, pelo feminismo. É o excesso de moralismo que impede as feministas de reconhecer a liberdade sexual da juventude como uma conseqüência positiva do movimento.

É claro que se pode enxergar no livro muito do antiamericanismo típico dos franceses. Mas não se deve perder de vista, na leitura de Fausse route, o quanto as críticas de Badinter podem contribuir no debate sobre o feminismo e suas possibilidades de sensibilizar novas gerações, sobretudo se considerarmos as dificuldades que, pelo menos no Brasil, o feminismo enfrenta para se afirmar como fundamental nas conquistas hoje tidas como naturais na sociedade. Mulheres que estudam, trabalham e são donas das suas próprias vidas muitas vezes não reconhecem que o feminismo produziu uma revolução silenciosa e pacífica, capaz de mudar o padrão de comportamento de homens e mulheres nas sociedades ocidentais.11 11 "Ainda é notável a grande resistência das pessoas em se declararem feministas, mesmo quando abraçam todas as bandeiras que as feministas lançaram desde os anos 70: salário igual para trabalho igual, livre acesso à contracepção, descriminalização do aborto, igualdade entre homens e mulheres na repartição das tarefas domésticas, o fim da violência doméstica. Assim, encontramos muitas mulheres e homens que sempre iniciam suas colocações dizendo que não são feministas, mas são a favor disto e daquilo que constituem o ideário e as lutas feministas" (Sorj, 2005, p. 7).

Uma certa nostalgia

Fausse route também nos leva a refletir sobre esta importante característica inicial do feminismo: não ter dono e não ter uma verdade única a ser defendida. Badinter é apenas uma das que podem falar em nome desse movimento, e certamente é uma voz a ser ouvida, mas não é 'dona' do movimento. Por isso, cabe uma reserva sobre a omissão de um ponto fundamental: representatividade do movimento feminista, que falaria em nome de uma categoria de "mulheres" que já não é e talvez nunca tenha sido unívoca. O tema vem sendo amplamente discutido. A abordagem de Jacques Derrida, em diálogo com a psicanalista Elisabeth Roudinesco, é a seguinte:

Compartilho de sua preocupação diante da lógica comunitária, diante da compulsão identitária, e resisto, como a senhora, a esse movimento que tende para um narcisismo das minorias que vem se desenvolvendo por toda a parte inclusive nos movimentos feministas. Em certas situações, deve-se todavia assumir responsabilidades políticas que nos ordenem uma certa solidariedade com aqueles que lutam contra esta ou aquela discriminação, e para fazer reconhecer uma identidade nacional ou lingüística ameaçada, marginalizada, minorizada, deslegitimizada, ou ainda quando uma comunidade religiosa é submetida a repressão. Isso de modo algum impede que se desconfie da reivindicação identitária ou comunitária enquanto tal.Mas devo fazer a minha parte, ao menos provisoriamente, aqui onde constato uma discriminação ou uma ameaça. Nesse caso, quer se trate de mulheres, dos homossexuais ou de outros grupos, posso compreender a urgência vital do reflexo identitário. Posso então aceitar uma aliança momentânea, prudente, ao mesmo tempo apontando seus limites tornando-os tão explícitos e inteligíveis quanto possível. Portanto não hesito em apoiar, por mais modestamente que seja, causas como as das feministas, dos homossexuais, dos povos colonizados, até o momento em que desconfio, até o momento em que a lógica da reivindicação me parece potencialmente perversa ou perigosa (grifo do autor).12 12 DERRIDA e ROUDINESCO, 2004, p. 34 e 35.

É preciso reconhecer que é delicada a tarefa de encontrar, conforme diz Derrida, "o momento em que a lógica da reivindicação pode ser tornar potencialmente perversa ou perigosa". O que Fausse route poderia fazer e não faz é problematizar as feministas enquanto categoria identitária, tema que está inexoravelmente colado a todos os questionamentos de Badinter. Muitas das suas críticas podem ser compreendidas como uma tentativa de manter fixa a ideologia feminista, num momento em que movimento e teoria se desdobram sobre novas questões.

Badinter parece padecer de uma certa nostalgia: aquela de um tempo em que o feminismo, ainda que internamente plural, era mais unívoco. A polissemia dos discursos vem aos poucos enfraquecendo a identidade coletiva e "as feministas" vão deixando de ser uma categoria identitária com definições claras, mudança que não é necessariamente ruim, na medida em que se pode considerar que o feminismo não é uma verdade única sobre a qual o campo teórico e político deve se estabelecer. Nesse sentido, o título que indica uma rota falsa (fausse route) parte da premissa de que há uma rota verdadeira, previamente dada, o que não deixa de ser contraditório com a própria história do movimento. Abrir-se a múltiplas rotas é um processo permanente, uma aspiração e um desafio a ser perseguido. Olhar criticamente para a própria história seria uma forma de construir os passos para os próximos trinta anos, sem perder de vista os valores que marcam o percurso até aqui.

O livro de Badinter foi publicado no Brasil em 2005 pela editora Civilização Brasileira, na coleção Sujeito e História, sob o título Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos. A tradução da edição brasileira é de Vera Ribeiro.

Notas

Referências bibliográficas

AGACINSKI, Sylviane. Politique des sexes. Paris: Points, 2001.

______. Métaphysique des sexes: Masculin/Féminin au sources du christianisme. Paris: Seuil, 2005.

BADINTER, Elisabeth. L'homme n'est pas um ennemi a abattre. Entrevista disponível em: http://livres.lexpress.fr/dossiers.asp?idC=6656&idR=4. Acesso em: 30 maio 2005.

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã... Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

RODRIGUES, Carla. "Butler e a desconstrução do gênero". Revista de Estudos Feministas, v. 13, n. 1, p. 179-183, 2005.

SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Erico. Dicionário de Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

SORJ, Bila. "O estigma das feministas". O Globo, p. 7, 13 maio 2005.

Estudos Feministas, Florianópolis, 13(3): 756-774, setembro-dezembro/2005

  • 1
    "La raison première du féminisme, toutes tendance confondues, est d'instaurer l'égalité des sexes et non d'améliorer les relations entre hommes et femmes. Ne pas confondre l'objectif et ses conséquences, même si l'on fait parfois mine de croire que les deux vont de pair."
  • 2
    Schuma Schumaher e Erico Vital Brazil, 2000.
  • 3
    Schumaher e Vital Brazil, 2000.
  • 4
    Conferência "Práxis feminista e democracia", no Museu da República, em 14 de abril de 2005. Realização do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) e da Articulação de Mulheres do Brasil (AMB).
  • 5
    Sorj, 2005, p. 7.
  • 6
    Autora, entre outros, de
    Politique des sexes (Agacinski, 2001) e de
    Métaphysique des sexes: Masculin/Féminin au sources du christianisme (Agacinski, 2005).
  • 7
    Sobre o assunto, ver Carla RODRIGUES, 2005.
  • 8
    "Mais on a un peu vite oublié qu'en remettant la biologique à as juste place la seconde elle a dinamité les barreaux de la prison de femmes."
  • 9
    Badinter, 2005.
  • 10
    "Le temps n'est pas loin où, comme à Princeton, sera considérée comme harcèlment sexuel 'toute attention sexuelle nos desirée qui engendre um sentiment de malaise ou cause des problèmes à l'école, au travail ou dans les relations sociales'."
  • 11
    "Ainda é notável a grande resistência das pessoas em se declararem feministas, mesmo quando abraçam todas as bandeiras que as feministas lançaram desde os anos 70: salário igual para trabalho igual, livre acesso à contracepção, descriminalização do aborto, igualdade entre homens e mulheres na repartição das tarefas domésticas, o fim da violência doméstica. Assim, encontramos muitas mulheres e homens que sempre iniciam suas colocações dizendo que não são feministas, mas são a favor disto e daquilo que constituem o ideário e as lutas feministas" (Sorj, 2005, p. 7).
  • 12
    DERRIDA e ROUDINESCO, 2004, p. 34 e 35.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
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