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Gênero e cinema, uma história de teorias e desafios

A crítica feminista tornou-se decisiva para a própria história do cinema a partir dos anos 1970, tendo sido realizada por teóricas como Laura Mulvey (cf. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 2, 2005), Claire Johnston, depois Mary Ann Doane e outras que as seguiram e com elas dialogaram. Com teorias que passaram pela psicanálise, pela semiótica, teorias sobre representação e ideologia e debates sobre o essencialismo, entre outras possibilidades, essa crítica colocaria em xeque a situação das mulheres dentro do contexto dos “novos cinemas” que se espalhavam pelo mundo, sendo que muitas delas assumiram a carreira de cineastas e o cinema como ferramenta política.

Junto com esse tipo de crítica criaram-se, também, os festivais, sendo o mais conhecido deles o Festival International de Films de Femmes, que acontece até hoje em Créteil, na França, e foram publicadas revistas especializadas, como a estadunidense Women & Film (1972-1975) e o caderno argentino La Mujer y el Cine, dos anos 1980 aos 2000.

A teoria, inicialmente voltada para a “imagem da mulher” no cinema e seus estereótipos - numa visão estadunidense da crítica - e para o olhar masculino sobre os corpos femininos sexualizados passou por questões difíceis de resolver, como a da autoria feminina, sempre acompanhada pela sombra do essencialismo. Kaja Silverman foi uma das autoras que levantou essa questão.

Foi no final dos anos 1980 e começo dos 1990 que surgiu com força na crítica teórica do cinema o conceito de gênero, tendo como uma de suas inspiradoras a italiana Teresa De Lauretis (1989). A autora denunciava o aparato cinematográfico como aquilo que passou a denominar “tecnologia do gênero”.

No mesmo momento, foi bell hooks (assim em minúsculas mesmo) quem apontou para a especificidade da opressão nas representações das mulheres negras e pobres nos filmes, historicamente relegadas à subalternidade e ao silêncio, também aleijadas do debate crítico feminista. Com hooks estavam lançadas as bases da interseccionalidade no campo da teoria cinematográfica, agregando classe, geração e localização às categorias gênero e “raça”.

O olhar para o gênero abriria ainda a possibilidade de novas demandas, com a expansão e a força do movimento gay, depois LGBT, incluindo suas variações. O surgimento mais recente de um cinema considerado queer, na linha da ancestralidade de Priscila, a rainha do deserto, desdobra-se e não cessa de se expandir, alcançando discussões sobre lesbiandade, transexualidade e não binarismo.

Acompanhando esse fluxo contínuo de crescentes demandas e (não) identificações, as pesquisas acadêmicas interdisciplinares buscam cada vez mais diálogos que se travam com e a partir dos filmes, sejam eles de mulheres ou sobre elas, de temáticas LGTB, realizados ou não por diretores/as polêmicos/as ou aqueles que reforçam e discutem papéis tradicionais de gênero em sociedades fundamentadas em valores patriarcais.

O cinema continua a estimular o debate acalorado, por vezes militante, ou meramente interessado. E foi desse amplo interesse que surgiu a proposta de uma seção temática que reunisse artigos científicos enviados para a REF por autoras/es diversos, de dentro e de fora do Brasil, e por pessoas convidadas, reconhecidas por suas pesquisas e contribuições nesse campo.

A seção temática “Gênero, cinema e audiovisual”, organizada por Ana Maria Veiga e Rosana Cássia Kamita, começa pela discussão sobre nichos audiovisuais (vlogs) difundidos pelo site YouTube e sobre a evasão de privacidade e o compartilhamento da intimidade de algumas vlogueiras que utilizam esse canal de comunicação, com a análise instigante de Lígia Lana, em seu artigo “Postfeminist heroines: contradictions of female audiovisual production on YouTube”.

Em seguida, adentramos o cinema brasileiro realizado por mulheres, através de algumas iniciativas que fazem a intersecção contemporânea entre feminismo e cinema, como Mulher no Cinema, Mulheres do Audiovisual Brasil, Mulheres Negras no Audiovisual Brasileiro, Cabíria Prêmio de Roteiro, Eparrêi Filmes, Academia das Musas, Cineclube Delas e o FINCAR - Festival Internacional de Cinema de Realizadoras, analisadas no artigo “Feminists’ initiatives and actions in contemporary Brazilian audiovisual”, de Marina Cavalcanti Tedesco e Érica Sarmet. As autoras, idealizadoras e organizadoras do Cineclube Quase Catálogo (na Universidade Federal Fluminense), dão conta deste panorama, de suas propostas e resultados.

Rosana Cássia Kamita demonstra como as vozes das mulheres no cinema podem ser apresentadas como consoantes ou dissonantes ao discurso hegemônico. Ao discutir autoria feminina, a autora complexifica a linguagem cinematográfica, entendida como polissêmica, que pode veicular tanto a ideologia dominante e a sujeição às normas vigentes quanto posturas dissidentes.

Ainda sobre contestação e resistência, apresentamos o artigo “Variaciones de la trasgresión en el ojo protésico de María Luisa Bemberg”, de Catalina Trebisacce e Ana Maria Veiga, ambas pesquisadoras do cinema argentino em perspectiva de gênero. Tomando como parâmetro a obra da mais conhecida cineasta do país - e uma de suas pioneiras feministas -, as autoras discutem as possibilidades de transgressão de gênero em filmes realizados por Bemberg durante e após a última ditadura argentina.

Raquel Parrine oferece à leitura, nesta seção, o texto “Construção de gênero, laços afetivos e luto em Paris Is Burning” - sendo este um dos filmes mais polêmicos e caros aos estudos queer, de gênero, “raça” e etnia nas últimas duas décadas. A análise da autora, levantando a fortuna crítica da obra, busca um caminho próprio entre as críticas mais severas e as maneiras positivas de se olhar para o filme.

Gênero e geração estão presentes na análise de uma das mais comentadas séries dos últimos tempos. No artigo “Afects and female old age in Grace and Frankie”, Karina Gomes Barbosa traz ao debate um aspecto ainda pouco abordado nos estudos feministas e de gênero, principalmente quando se intersectam com o cinema - o envelhecimento e as estratégias de sobrevivência de uma geração que reivindica agência e protagonismo para as mulheres, nas mais diversas formas de reagir aos lugares tradicionalmente impostos a elas durante a velhice.

Arte e autobiografia também entram em questão nesta seção temática, com o texto “Carolee Schneemann. El cine como autobiografía, la artista como actriz, el cuerpo como pincel”, de M. Barbaño González-Moreno e Luis Rivero Moreno. Nele, a autora e o autor abordam os filmes de Schneemann, que se coloca como protagonista e diretora de suas obras, entrelaçadas enquanto arte, cinema e narrativa autobiográfica, reescrevendo seu papel social como mulher.

Esteban Marcos Dipaola analisa os excessos do popular em um filme de 1976, do diretor Ettore Scola. Em “Narrativas imaginales de los cuerpos y las sexualidades: géneros y corporalidades en el filme Feos, sucios y malos”, Dipaola destaca a representação exagerada dos corpos e da ordem do gênero no cinema italiano dos anos 1970. A visualidade, atravessada por excessos, aponta para o grotesco como forma de crítica social e política e para o cinema como seu importante veículo.

Para fechar a seção temática, ressaltamos a atualidade dos filmes do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que continuam a instigar pesquisadores na confluência de abordagens queer do cinema e das perspectivas de gênero.

O primeiro dos dois artigos publicados, “Entre lo propio y lo ajeno: modulaciones identitarias fronterizas en Pedro Almodóvar, Eduardo Mendicutti y Luis Antonio de Villena”, é de autoria da argentina Adriana Virginia Bonatto, que compara a obra de Almodóvar às de dois outros diretores - Eduardo Mendicutti e Luis Antonio de Villena -, buscando nos três cineastas escolhidos situações de fronteira e modulações identitárias.

O segundo artigo sobre Almodóvar, que fecha esta seção, é “Desvelando imagens: o visível e o indizível na pele que habitamos”, de Debora Breder e Paloma Coelho. As autoras se detêm a discutir um dos mais polêmicos filmes do diretor, A pele que habito (2011), que traz como temas centrais violência e transexualidade.

Sob perspectivas de abordagem diversas, buscamos agregar textos e análises de orientações múltiplas, porém sempre frutíferas e instigantes, lançando olhares e abrindo caminhos para possíveis reflexões. No centro das atenções, o cinema, as diversas formas de visualidade, os meios de comunicação e os apelos de linguagem que vão se transformando e adquirindo características renovadas com o passar dos anos.

A Revista Estudos Feministas convida você a folhear demoradamente as páginas que se seguem, apreciando e participando de um debate que é central nos dias de hoje - gênero e cinema - e que traz as marcas do nosso próprio tempo. Ele diz respeito à produção cinematográfica, ao audiovisual e às formas de representar/apresentar o social, em diversos espaços e temporalidades.

Boa leitura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
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