Open-access Mulheres Indígenas nas Missões: patrimônio silenciado

Indigenous Women in Missions: Silenced Heritage

Resumo:

Ao problematizar o patrimônio histórico das Missões Indígenas-Jesuíticas (1609-1750) a partir de preocupações teórico-metodológicas relacionadas aos estudos de gênero e patrimônio, este artigo discute: a) representações sobre mulheres indígenas presentes na documentação histórica gerada pelos jesuítas; b) ressignificação dos espaços femininos em sítios arqueológicos atualmente abertos à visitação, tal qual o Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo; c) questões surgidas a partir da relação entre gênero e história indígena, em especial quando aplicadas aos acervos dos museus dedicados às Missões. Pretende-se, com isso, demonstrar a possibilidade de se entender o patrimônio relacionado às Missões vinculado às mulheres indígenas.

Palavras-Chave: Patrimônio; Mulheres; Indígenas; Missões; Museus

Abstract:

In a discussion of the historical heritage of Jesuit Missions among Indigenous people (1609-1750) based on theoretical and methodological concerns related to gender and heritage studies, this article addresses a) representations of indigenous women in historical documentation by Jesuits; b) resignification of the women's spaces in archaeological sites currently open to visitation, such as the Archaeological Site of São Miguel Arcanjo; and c) issues arising from the relationship between gender and indigenous history, especially when applied to collections at museums dedicated to Missions. This work aims to demonstrate that a combined view of Mission heritage and indigenous women is possible.

Keywords: Heritage; Women; Indigenous people; Missions; Museums

O patrimônio relacionado às Missões Indígenas-Jesuíticas da América Meridional foi construído pautado no silenciamento de mulheres indígenas. “Memórias exiladas” em “estratigrafias do abandono” (Cristina Oliveira BRUNO, 2005, p. 237-238), as mulheres indígenas ocupam um ‘não-lugar’ na historiografia, em sítios arqueológicos e nos museus, o que afeta, entre outros aspectos, sua representatividade no campo do patrimônio relacionado às Missões.

De fato, estudos historiográficos baseados em fontes primárias sobre Missões costumam focar em temas relativos às guerras, comércio, invasões bandeirantes e lideranças masculinas (jesuítas, guerreiros, caciques, xamãs e cabildantes) - o resultado, entre outros, é a revelação de personagens majoritariamente masculinos, como Nicolau Ñangueru, Ñezu e Sepé Tiaraju, além de textos que sequer possuem a palavra mulher ou, quando possuem, o fazem por meio de representações depreciativas em posições meramente coadjuvantes. Já nas visitações aos sítios arqueológicos dos povoados missionais, tal qual o de São Miguel Arcanjo, os territórios femininos são desconsiderados ou tratados como espaços de domínio de severos jesuítas. No que diz respeito às exposições de longa duração em museus dedicados às Missões, como o Museu das Missões, não apenas as representações femininas repousam em estado coadjuvante, como também são tratadas a partir da hagiografia ocidental, colaborando na redução da musealização das mulheres indígenas à vitória da ocidentalização. Trata-se, como se percebe, da “masculinidade do patrimônio cultural” (Cecilia Pérez WINTER, 2014), onde se reproduz representações associadas à submissão, passividade ou irrelevância das mulheres, exilando-as de seu próprio patrimônio.

Esforços para superar esta lacuna têm sido realizados. Um novo fôlego surgiu na historiografia brasileira em fins do século XX, com o ingresso de historiadoras à temática das Missões, campo até então majoritariamente masculino, por meio de suas teses de doutorado (Maria Cristina Razzera dos SANTOS, 1993; Beatriz FRANZEN, 1998; Eliane Cristina Deckmann FLECK, 1999; Maria Cristina Bohn MARTINS, 1999). De lá para cá, demonstrando que o tema veio para ficar, novos estudos marcados por abordagens contemporâneas trouxeram o gênero para o debate sobre as Missões.

Também se nota uma “mudança de mentalidades” nos órgãos federais brasileiros responsáveis pelo patrimônio (Alejandra SALADINO; Camila WICHERS, 2015, p. 140). A V Primavera dos Museus, em 2011, promovida pelo Instituto Brasileiro de Museus, contou com o tema Mulheres, Museus e Memórias. Naquela ocasião, o Museu das Missões propôs um debate onde se procurou contemplar a memória das mulheres indígenas, tal qual ocorreu em outros museus do país, impulsionando ações e pesquisas no campo museológico sobre mulheres (Ana Cristina Audebert Ramos de OLIVEIRA; Marijara Souza QUEIROZ, 2017).

Já o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional reconheceu o Sítio Arqueológico de São Miguel das Missões, então detentor do título de Patrimônio da Humanidade, enquanto lugar de referência para os Guarani por meio do inventário de Referências Culturais Tava Miri/Aldeia de Pedra (José Otávio Catafesto de SOUZA, 2007) - associava-se, enfim, o sítio aos povos indígenas contemporâneos, ainda que pautado majoritariamente na narrativa de lideranças masculinas indígenas.

As próprias mulheres indígenas estão em um novo contexto. Nas articulações sociais e políticas (Sandra BENITES, 2017; Joziléia D. J. Inacio Jacodsen SCHILD, 2016), na valorização dos saberes tradicionais (Nelly Barbosa Duarte DOLLIS, 2017), nas universidades (Clarissa Rocha de MELO; Eunice Kerexu Yxapyry ANTUNES, 2016), nas discussões sobre o patrimônio indígena e escola (Maria Cecília Barbosa KEREXU, 2015; BENITES, 2015; Creuza Prumkwyj KRAHÔ, 2017), na construção de políticas públicas, entre outros campos, elas não só se confrontam com “outros homens” não indígenas, mas também com sub-representações entre seus próprios povos (Azelene KAINGANG, 2012, p. 411-422). Na aldeia Tekoá Koenju, localizada no mesmo município onde está o Sítio Arqueológico São Miguel Arcanjo e o Museu das Missões, a professora Patrícia Ferreira, Mbya-Guarani, torna-se a primeira cineasta indígena a abordar o tema de suas antepassadas e contemporâneas em suas produções (Sophia PINHEIRO, 2017). O surgimento de uma jovem, porém profícua, produção acadêmica de autoria de mulheres indígenas é sem dúvida um dos marcos que afetarão radicalmente as literaturas de diversas áreas, em especial, para este estudo, aquelas produzidas pelas próprias mulheres Guarani interessadas na defesa de seu patrimônio.

Embora tais aspectos configurem-se como passos importantes, percebe-se que há, ainda, um imenso caminho a se percorrer rumo à compreensão de que a construção do patrimônio cultural, quando exclui uma determinada camada historicamente marginalizada, está, apenas, reproduzindo valores perversos.

O presente artigo problematiza a questão feminina nas Missões Indígenas-Jesuíticas empreendidas na América Meridional, especificamente aquelas elaboradas entre a Companhia de Jesus e distintas sociedades indígenas durante os anos de 1609-1770, no que ficou conhecido como os 30 Povos das Missões distribuídos entre o atual território do Brasil (Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul), do Paraguai e do norte da Argentina. Tal recorte procura indicar possibilidades sobre a história, memória e patrimônio daquelas mulheres, bem como fornecer subsídios para o ensino de história indígena e abordagens possíveis para a visitação em sítios arqueológicos e exposições em museus dedicados ao tema. Em conjunto, procura-se colaborar na superação do não lugar destinado às mulheres indígenas quando o tema é Missões, bem como propor uma análise onde a etno-história, arqueologia e museologia possam dialogar e propor reflexões sobre demandas patrimoniais contemporâneas. Por se tratar de uma pesquisa que se desenvolve há mais de uma década, é importante sinalizar que aqui se recuperam algumas análises e fontes apresentadas em publicações anteriores (Jean BAPTISTA, 2008; BAPTISTA, Tony BOITA, 2011; BAPTISTA, 2015a; BAPTISTA, 2015b; BAPTISTA, BOITA, 2019), agora redimensionadas a partir de uma abordagem feminista.

I Representações femininas na documentação histórica

Apesar da ausência em estudos historiográficos relacionados às Missões Indígenas-Jesuíticas da América Meridional, as mulheres indígenas estão presentes na documentação histórica deixada pelos próprios jesuítas. Além das publicações de livros e catecismos de proeminentes missionários, boa parte dos documentos históricos daquele tempo hoje compõe os Manuscritos da Coleção De Angelis. Parte dessa coleção foi publicada pelos historiadores e paleógrafos Jaime CORTESÃO (1951; 1952; 1969) e Hélio VIANNA (1970) preferindo-se, nesses casos, documentos relativos a guerras, disputas políticas e confrontos com bandeirantes. Para ter acesso à coleção completa, a Biblioteca Nacional microfilmou-a em 45 rolos, então disponíveis no Centro de Pesquisas Históricas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Com a abertura desses documentos inéditos, tornou-se possível investigar outros temas por quem se aventura na leitura dos manuscritos.

A documentação missionária manuscrita investigada nesta pesquisa revela um conjunto discursivo que, ao ser contextualizado e indiciado, leva a entender sua circularidade com a Igreja moderna a eleger a mulher como objeto de culpabilidade (Jean DELUMEAU, 1992, p. 310-314). De fato, as mulheres indígenas missionais conheceram o esforço constante dos padres em tentar controlá-las, procurando, nas primeiras décadas do projeto missional, mantê-las o mais distante possível da construção dos povoados. O controle das mulheres e de sua sexualidade era um dos mais sólidos pilares daquele projeto, a mola mestra de um sistema político fundamentado no patriarcado, ponto que certamente alcança a contemporaneidade em diversas formas, tal qual o esquecimento dos vínculos das mulheres indígenas com seus próprios patrimônios. Como aponta Barbara VOSS (2012), o controle da sexualidade, em especial, a feminina, é uma das bases onde se assenta o colonialismo, um projeto que classifica corpos e produz o ‘Outro’ abjeto, contrapondo civilização/primitivo e normalidade/perversão. Contudo, vale lembrar que no interior dos povos indígenas o controle do corpo e da sexualidade também se fazia presente, o que talvez tenha facilitado a penetração de determinadas representações ocidentais.

Não obstante, o debate acerca do emprego do conceito de patriarcado na análise das relações de gênero em populações indígenas, antes da colonização, traz duas visões antagônicas: para um grupo, no qual se insere a antropóloga Rita Segato (2012), nas sociedades indígenas existia, antes da colonização, um patriarcado de baixa intensidade, marcado por uma dualidade hierárquica que, apesar de desigual, tinha plenitude ontológica e política, a qual teria sido substituída, com a colonização, por uma estrutura binária; para outro grupo, no qual se insere Maria Lugones (2008), assim como a colonialidade trouxe a invenção do conceito de raça, também teria significado a criação do conceito de gênero para essas sociedades, pois não existiria nestes contextos, antes do “contato” e da colonização, um princípio organizador parecido com o de gênero do Ocidente, postura com a qual também concorda Breny Mendoza (2014). Dessa forma, é importante privilegiar análises contextuais e buscar pistas acerca de como essas sociedades organizavam aquilo que ‘nós’ chamamos de relações de gênero, uma vez que a aplicação de categorias do feminismo ocidental para análise de outros contextos pode ser compreendida como uma “colonização discursiva” (Chandra T. MOHANTY, 1991).

Por maior que tenha sido o esforço dos inacianos, a exclusão das mulheres jamais se alcançou naquele projeto. Por desempenharem papéis fundamentais nas sociedades indígenas, elas longe estavam de serem tomadas como inferiores, pecaminosas ou causas de sedições pelos povos originários da América Meridional. De fato, a documentação permite identificar mulheres horticultoras, coletoras, ceramistas, educadoras, integrantes dos espaços de decisão, combatentes bélicas, lideranças espirituais e figuras centrais em rituais (antropofágicos, iniciantes etc.), entre outras possibilidades.

Analisar as fontes missionárias apologéticas e interessadas na comprovação do projeto de conversão implica reconhecer o campo de representações que ali circulavam. No que diz respeito às mulheres, duas representações costumam ser majoritárias nos manuscritos jesuíticos: as “mancebas auxiliares do demônio” em oposição às “devotas congregantes” (FLECK, 2006). No primeiro caso, tal qual ocorre em outros campos intelectuais, os padres promovem “uma das representações das mulheres indígenas mais difundidas na história do Brasil, aquela que as reduz a seres de sexualidade priápica” (Cristiane LASMAR, 1999, p. 144). No segundo caso, vemos mulheres convertidas ao cristianismo e a superar o que os padres tratam como práticas abjetas, tal qual o “amancebamento”, “canibalismo”, “adultério”, “feitiçarias”, “chorares copiosos”, entre outros verbetes coloniais que se referiam a espaços simbólicos femininos.

O reconhecimento dessas representações elementares implica um filtro a ser usado pelas pesquisas, tornando-se possível não levar adiante representações depreciativas em prol de informações etno-históricas relevantes. Desse modo, torna-se possível entender que as representações jesuíticas sobre as mulheres vinculam-se a um dos temas centrais dessa documentação e da ação missionária: o sistema de parentesco dos povos indígenas conectados às Missões. É neste campo onde se concentram os documentos mais significativos sobre as mulheres nas Missões, abrindo a possibilidade etno-histórica para entender as tensões em que estiveram envolvidas no esforço de se fazerem presentes em um projeto que abertamente as excluía.

Bom exemplo desse exercício metodológico é a superação da representação priápica sobre mulheres indígenas por meio da análise de episódios onde elas convidam jesuítas a práticas sexuais. A preocupação em proteger os padres do sistema de parentesco indígena gera vários protocolos: os claustros e demais aposentos deveriam ser mantidos guarnecidos tanto por homens quanto por “altas paredes em torno da casa” (Diáz TORRES, 1614; Diogo FERRER, 1952, p. 38), bem como as mulheres deveriam ser evitadas quando sozinhas até mesmo em confissões (Lupércio ZURBANO, 1952, p. 65). Mas parece bastante possível vislumbrar que os missionários tentaram construir uma verdadeira muralha entre eles e as mulheres, procurando, com isso, atingir o sistema tradicional de alianças onde as mulheres desempenhavam um papel central.

Em contraponto, para demonstrar o sucesso da evangelização, os missionários promovem em suas cartas a representação da virgem mártir indígena, elegendo algumas mulheres como exemplo de conversão e guarda da castidade. A correspondência do padre Diego Altamirano está repleta dessa representação: ali conhecemos Francisca, uma “doncellita” de doze anos, “delicados membros” e convicta seguidora da palavra congregada, “enlaçada na garganta” até a morte por um homem que a assediava sem sucesso (Diego ALTAMIRANO, 1952, p. 243, 252). Quanto mais se avança na documentação jesuítica, intensificam-se os casos de virgens mártires indígenas assediadas e assassinadas por algum “homem”, “verdugo” ou “demônio” disforme “tomado pela luxúria”, alguns armados com cordas, paus, pedras, outros aplicando feitiços fatais (Salvador de ROJAS, 1690). Como se percebe, depurando-se as representações majoritárias sobre as mulheres, o discurso inaciano dedicado à virgem mártir indígena vincula-se à puberdade, indicando narrativas indígenas sobre o início da vida adulta no mundo colonial.

Para assegurar o sucesso da conversão ao cristianismo em suas correspondências, os jesuítas buscaram não apenas representar seu distanciamento das mulheres, mas também dos homens indígenas considerados convertidos. A documentação jesuítica está permeada de casos de edificação onde homens devotos repudiam mulheres que os convidam para seguir outros rumos que não aqueles recomendados pelos padres. Em 1637, por exemplo, Alonso Tari, jovem assíduo frequentador da casa dos padres, implora para ser castrado de modo a evitar o pecado. Os padres negam o pedido, não sem antes se encherem de admiração (Joseph OREGIO, 1970, p. 152).

Marcado por recuos e avanços, o combate ao que os padres chamam de “poligamia” ou “amancebamentos” demorou a sumir dos povoados, se é que algum dia sumiu. A historiografia costuma comemorar vitória à poligamia por volta dos primeiros cinquenta anos da experiência missional, quando a documentação missionária impressa se cala sobre o assunto. Mas, conforme indicam documentos manuscritos, nada garante que o debate não tenha continuado: em 1690, por exemplo, encontra-se uma mulher vivendo com dois rapazes em São Francisco Xavier e outro “notório feiticeiro” em São Cosme e Damião a viver com três mulheres (ROJAS, 1690); durante a fome da década de 1730, quando indígenas deixam os povoados massivamente para formar novas cidadelas e novas famílias sem a presença dos jesuítas, a monogamia cristã parece ter sido derrotada (Bernardo NUSDORFFER, 1736, p. 1-2).

Como se percebe, a análise das representações sobre as mulheres nas Missões, em especial no que diz respeito à sua sexualidade e conversão ao cristianismo, leva a entender que os sistemas de parentesco das comunidades indígenas encontraram caminhos estratégicos relacionados ao contexto colonial, ressignificaram-se e ganharam proporções clandestinas, sem poder se indicar seu completo banimento. Mas não restam dúvidas de que a prática diluiu-se enormemente em relação ao panorama inicial. Ao interagir sobre os sistemas de parentesco originários, as Missões geraram legiões de mulheres desconectadas de famílias extensas, algo até então (aparentemente) inconcebível nas sociedades indígenas.

A relação entre jesuítas e mulheres, como se percebe, foi pautada no esforço de distanciamento acompanhado de um mapeamento das singularidades, indicando amplas possibilidades de novos estudos sobre mulheres. Por outro lado, verificar o combate jesuítico aos espaços simbólicos femininos, em conjunto à dimensão simbólica dos corpos femininos (Lauriene SOUZA, 2013), implica depurar as representações existentes em seus conteúdos, para só então encontrar dados sobre a desarticulação do sistema tradicional de parentesco e as crises nas comunidades indígenas operadas pela introdução de categorias ocidentais relacionadas a gênero e sexualidade. Evita-se, com isto, levar adiante interpretações tidas como majoritárias, mas absolutamente comprometidas com representações depreciativas.

De modo prático, o combate promovido pelos jesuítas aos espaços simbólicos femininos criou um desafio para as mulheres missionais: afinal, em tempos coloniais, com alternativas tão estreitas (Elisa Fruhauf GARCIA, 2013), especialmente para mulheres indígenas, para onde iriam?

II O Cotiguaçu nos sítios arqueológicos das Missões

Em boa parte dos atuais remanescentes arquitetônicos dos povoados missionais encontra-se uma estrutura estranha ao modelo monasterial inicialmente sonhado pelos jesuítas. Trata-se de uma edificação ampla, geralmente ao lado do cemitério ou da igreja central: a Casa das Recolhidas, como ficou conhecida na historiografia, ou o Cotiguaçu, como se chamava nos povoados missionais.

Novidade colonial, esta espacialidade é o campo com maior vocação daquelas ruínas para se tratar da história, memória e patrimônio das mulheres nas missões em uma visitação ou no ensino de história indígena, por exemplo, ao mesmo tempo em que os dramas que ali se desenrolaram revelam profundos aspectos das vivências femininas missionais.

No Sítio Arqueológico São Miguel Arcanjo, no Rio Grande do Sul, esta espacialidade é tratada por meio de uma placa que a identifica como uma espécie de presídio feminino interessado em punir e guardar a castidade das mulheres jovens e viúvas. Entre os guias de turismo que percorrem o sítio, “há uma ênfase posta na ‘natureza materna’ e na imagem da mulher frágil que necessita da proteção e do apoio da Missão para sobreviver” (Suzana Cavalheiro de JESUS, 2015, p. 68-69). Em poucas palavras, a visitação ao sítio representa as mulheres indígenas como submetidas à ordem missional, unicamente incluídas no processo para serem guardadas - ou aprisionadas - à sombra dos jesuítas.

De fato, por ironia, ao combater o sistema de parentesco indígena, as Missões geraram um contingente feminino volumoso que cobrava seu lugar no novo contexto. Aos jesuítas se imputaram os conteúdos da poligamia, tal qual segurança, alimentação, acolhimento e acomodação de viúvas e órfãos, aspectos semelhantes às cobranças que outrora pesavam a um cacique poligâmico (SANTOS, 1993, p. 283; SOUZA, 2002, p. 229). Em troca, relações de fidelidade interessadas na manutenção do povoado fizeram-se presentes, como indicam as múltiplas atividades desenvolvidas pelas mulheres do Cotiguaçu. Se de fato em algum momento os jesuítas puderam comemorar a derrota das uniões poligâmicas entre os indígenas, foi ao custo do seu próprio ingresso simbólico nessa instituição.

O Cotiguaçu nasce conectado ao combate à poligamia, mas foi além. Há, de fato, períodos em que as mulheres indígenas configuraram a maioria da população dos povoados missionais em virtude da presença masculina em guerras ou serviços prestados à Colônia, e também parece possível, sobretudo nos povoados próximos às terras de Charruas e Guenoas, que mulheres não Guarani tenham sido ali incluídas (Maria IMOLESI, 2011, p. 153).

Em geral, as pesquisas que se dedicaram à origem do Cotiguaçu o datam na segunda década do século XVIII. Contudo, a documentação manuscrita traz as primeiras notícias do feito ao final do século XVII, conforme demonstra Jean BAPTISTA (2015a, p. 82-83): em 1695, o Cotiguaçu já é sólido ao menos nos povoados de São Carlos, Nossa Senhora da Fé, São Inácio Mini e Loreto; em 1699, no povoado de São Cosme e Damião e de sua vizinha Candelária, as mulheres solteiras e órfãs estão “em casa separada vivendo em comunidade”; em 1700, “o recolhimento das órfãs está em seu vigor” no povoado de São Carlos. Daí por diante, este espaço passa a ser encontrado nos povoados até ser considerado elemento trivial: “Existe em cada povoado a Casa das Recolhidas, cujos maridos estão por muito tempo ausentes ou que se fugiram e não se sabe deles” e “com elas estão as viúvas, especialmente se são moças e não possuem pai, mãe ou algum parente de confiança que possa delas cuidar” (José CARDIEL, 1989, p. 58). Como se percebe, em boa parte dos relatos assinados pelos padres, insiste-se em classificar o Cotiguaçu como espaço das mulheres que sobraram (JESUS, 2015, p. 69).

Não foram poucas as mulheres a ingressarem no Cotiguaçu. Os dados populacionais de mulheres na Casa das Recolhidas costumam ser crescentes ao longo do tempo. Em 1716, por exemplo, alguns povoados do Tape (atual estado brasileiro do Rio Grande do Sul) superam 200 inscritas em cada Cotiguaçu, como no caso de São Miguel, com 247 mulheres, e São Luiz, com 506 mulheres, um total próximo a 12% da população de 4.283 indivíduos (BAPTISTA, 2015a, p. 82-84). Números assim levantam a possibilidade de que o Cotiguaçu não se restringia ao quadrado que hoje recebe seu nome, mas se tratava muito mais de uma instituição alargada pelas ruas dos povoados.

Quando se observa a planta baixa dos povoados, percebe-se que a inserção do Cotiguaçu se dá no que pode ser considerado como área missionária, onde se alinham oficina, escola, claustro, cemitério e igreja. Trata-se de uma área responsável pela criação dos discursos oficiais do povoado, de onde se emana a nova ordem vigente e suas moralidades, ambas em constante transformação ao longo da história. Distintos nas vestes, modos e práticas, os membros da área central opõem-se à chusma corriqueiramente desnuda, moradora dos bairros missionais ou da área rural, a quem se deve vigiar por ser mais afeita ao antigo modo de ser. Se no início do projeto os missionários tentaram expulsar as mulheres, viram-se ao fim dos seiscentos tendo-as ao lado, em grande volume, justamente na área central do projeto. Não parece se tratar, portanto, de mulheres que sobraram naquele contexto. Mais parece a reunião de mulheres interessadas em fazer parte dos setores diretivos dos povoados missionais.

Da mesma forma que os homens das oficinas e os meninos das escolas (Bianca BRIGIDI, 2005), para citar dois importantes setores sociais produzidos nas Missões vinculados diretamente à área central, as mulheres do Cotiguaçu também exercem práticas e regulamentos diferenciados dos demais moradores dos povoados. Possuindo uma diretora indígena - personagem com atributos de liderança que merece atenção em estudos futuros -, elas ganham seu próprio espaço nas missas, são volumosas nas congregações marianas, permanecem vestidas com a bata branca e participam do cultivo nas áreas comuns dos povoados (CARDIEL, 1989, p. 98). A produção de tecidos pelas mulheres, não apenas do Cotiguaçu, tornou-se “um dos pilares econômicos das missões e ocupava todo o universo feminino” (IMOLESE, 2011, p. 143), o que possivelmente contribuiu nos interesses jesuíticos em vê-las reunidas em grande volume e das mulheres em integrarem o sistema econômico dos povoados. De uma maneira ou outra, este grupo de mulheres passou a integrar de forma sólida a área central dos povoados e junto a ela passaram a produzir novas moralidades. Em um curto espaço de tempo, lideraram demandas femininas que circulavam pelos povoados.

Não se tratava de ingressar em uma instituição que não ofertasse contrapartidas. As mulheres do Cotiguaçu são consideradas prioritárias na distribuição de rações e lenha, bem como estão protegidas de estupros e assédios masculinos. De fato, constituíam-se em falta grave violências sexuais no sistema penal dos povoados, uma vez que a castidade feminina era uma meta missionária. Ingressar no Cotiguaçu sem autorização “para o trato ilícito” resultaria em 25 chibatadas em 1756 ao infrator (IMOLESE, 2011, p. 148), ou certamente seria uma das faltas que poderia resultar na expulsão do agressor de uma congregação ou ser enviado para a prisão e desterro, entre outras possibilidades (CARDIEL, 1989, p. 93; BAPTISTA, 2015a, p. 152-163; Antônio Dari RAMOS, 2016, p. 235-243).

Certamente, muitos missionários utilizaram de castigos descomedidos para repreender e manter as mulheres do Cotiguaçu em condição de cárcere. Não foram poucos a aplicar castigos físicos, até mesmo em grávidas, não raro provocando abortos, ou a tentar mantê-las presas por fora, o que levou o padre Antônio Machoni a afirmar a seus colegas em 1740: “o Cotiguaçu não é cárcere” (IMOLESI, 2011, p. 140). Também é preciso lembrar que no Cotiguaçu eram recolhidas as “delinquentes”, sem que fossem mantidas encarceradas, algumas sendo açoitadas “pelas mãos da diretora ou de outra mulher” no sigilo do próprio local (CARDIEL, 1991, p. 155). Nesses indícios, percebe-se o empenho de setores entre os jesuítas que procuravam combater violentamente as articulações femininas, ao passo que outros, como Machoni, pressionavam para que se encontrassem alternativas.

Contudo, a documentação manuscrita deixa escapar que a população feminina não interagiu com a mão de ferro de setores jesuíticos de modo passivo, gerando relatos que desconstruíam as representações de devotas congregantes e de passividade feminina mediante as tentativas de controle severo. Nesse sentido, o empenho dos inacianos em tentar mantê-las aprisionadas no Cotiguaçu acaba por revelar muito mais sobre a realidade inversa. Bom exemplo disso ocorre em 1730: “Uma índia de Candelária saiu sem licença do padre da Casa das Recolhidas”, denuncia um jesuíta construindo um caso edificante, “na volta ao caminho, correndo com outra, sem que vissem uma tormenta se formando, caiu um raio e somente a ela deixou morta” (ANÔNIMO, 1730). Trata-se de um evidente discurso a promover os sucessos da Missão aos destinatários da carta, mas também um caso potencialmente empregável em missas na tentativa, talvez vã, de convencer as demais mulheres a desistirem de suas saídas, certamente não raras, do Cotiguaçu. Afinal, ainda conforme essa indígena de Candelária, os jesuítas contavam muito mais com raios milagrosos vindos do céu do que com as chaves nos portões do Cotiguaçu para controlar a mobilidade feminina.

O controle cristão moralizante, em eventuais lapsos nos discursos missionários, revela-se falho, como se percebe. Indicam-se, com isso, práticas autônomas distantes das normas regulares e das representações de devotas congregantes, virgens mártires ou prisioneiras de cárceres. Parece mesmo circular no interior do Cotiguaçu uma ordem social própria, exclusivamente feminina, distinguindo-se dos homens, com uma percepção de opressão de gênero distinta da contemporânea. Não se quer, com isso, indicar que o Cotiguaçu é um território de ampla liberdade onde a opressão não pudesse estar presente, como de fato estava, mas, sim, que termos como gênero e opressão provenientes do vocabulário ocidental nem sempre são compatíveis com a percepção da diferença entre indígenas contemporâneos (LASMAR, 1999, p. 154; Marilyn STRATHERN, 2006; Cecilia McCALLUM, 2013; Luisa Elvira BELAUNDE, 2015, p. 405; LUGONES, 2008), quiçá as de outros tempos. Mais uma vez, as críticas ao “colonialismo discursivo” do Ocidente devem ser consideradas (MOHANTY, 1991). Há, evidentemente, riscos neste entendimento: trocar um discurso pelo outro, mascarar múltiplos cenários de opressão, negar as diferenças reais existentes entre homens e mulheres indígenas, e estas com os não índios, tensões que necessitam ser problematizadas e superadas - reside, aí, um ponto de alerta para análises pautadas na fluidez. Mas, por outro lado, a julgar pelas fontes, não parece possível construir um discurso onde as mulheres indígenas são passivas mediante o mundo colonial; afinal, mais parecem ser suas construtoras.

Nesse sentido, a imagem do Cotiguaçu enquanto permanente e severa prisão é historicamente distante das teias de tensão cotidianas que as mulheres impunham ao sonho de padres repressores. Dito de outro modo, a imagem do Cotiguaçu como prisão precisa ser submetida às fontes históricas primárias em novas pesquisas, avaliando-se distensões entre os próprios jesuítas sobre como realizar este controle e, sobretudo, apontando ao entendimento de que aquelas mulheres não aceitaram a violência missionária de modo passivo, mudo ou submisso, o que apenas reforçaria representações clássicas que justificam a ausência dessas mulheres em seus patrimônios. Por fim, resumir o Cotiguaçu a um cárcere permanente, imutável ao longo do tempo, livre de tensões, controlado mediante severa opressão, fala muito mais sobre os desejos do domínio do patriarcado existente no Ocidente do que propriamente de mulheres indígenas.

O Cotiguaçu acabou representado na historiografia e nas espacialidades dos sítios arqueológicos contemporâneos como um terreno de clausura e controle das mulheres indígenas. Setores jesuíticos bem que quiseram implantar um controle severo e violento, mas também se vê nos registros históricos outras possibilidades. Na contramão dos desejos jesuíticos, gerações de mulheres construíram novos espaços no mundo colonial onde se inseriram, tencionaram, atuaram e procuraram se proteger, tornando-se elemento ativo do projeto missional. Ou, nos dizeres da cineasta Guarani Patrícia Ferreira (PINHEIRO, 2017), a representar uma versão que circula oralmente entre as mulheres indígenas que hoje circulam pelo Sítio: o Cotiguaçu era onde “as crianças eram criadas por essas mulheres para continuar seu nandereko”, espaço “onde as mulheres perpetuaram a cultura, resistindo ao contato dos jesuítas e não-indígenas” (p. 99).

III Representações femininas nos Museus

Um caminho possível para se reconhecer as dimensões do gênero presente nas Missões pode ser encontrado hoje nos museus dedicados ao tema. Centenas de esculturas em madeira policromada ali produzidas, de séculos distintos, retratam mulheres indígenas elevadas a deidades. Indica-se, com isso, a possibilidade de os museus, na qualidade de mediadores entre objeto e público, considerarem questões de gênero, etnia e raça, “de forma a ampliar a gama de possibilidades de interpretação e de leitura acerca dos sujeitos envolvidos no processo de decodificação do objeto musealizado” (Joana FLORES, 2017, p. 65).

Do modo como estão dispostas atualmente, quem percorre tais espaços museológicos acaba por considerar que ali se encontram apenas entidades ocidentais submetidas a clássicas divisões de gênero em um cenário de vitória do cristianismo. Isso se deve ao fato de que majoritariamente os acervos desses museus dedicam-se a classificar tais obras a partir da hagiografia ocidental. Ou seja, nas exposições encontramos apenas entidades ocidentais, como se lê nas legendas de cada escultura, ainda que as imaginárias tenham cabelos negros, olhos amendoados e estejam cercadas de símbolos que remetem a tradições indígenas. Bom exemplo disso é o que ocorre com as chamadas imagens marianas.

Uma rápida imersão ao universo linguístico do tempo das Missões indica outros caminhos para o entendimento dessas esculturas. No esforço de tradução, a nomeação das entidades ocidentais entre indígenas enfrentou a antropofagia, como, de fato, demonstram as polêmicas entre os religiosos daqueles tempos (Bartomeu MELIÀ, 2003, p. 241-248). A tradução primeira de Maria para Tupãn Sy (Antônio RUIZ DE MONTOYA, 1876, p. 540) já remete a uma heresia aos olhos da Igreja: todas as classes de Sy ou Chy são as metades indivisíveis da deidade com quem compartilham o primeiro nome - no caso, Tupã, a força tempestade, feita de parcelas femininas e masculinas.

Outra tradução de Maria deu-se mediante Ñande Sy, Nossa Mãe, companheira de Ñande Ru, Nosso Pai, o casal indivisível progenitor dos Guarani nas etnografias do século XX (Graciela CHAMORRO, 1998, p. 103-106; León CADOGAN, 1992, p. 119-136; SOUZA, 2013), nomeação também empregada para mulheres de reconhecida sabedoria na contemporaneidade (BENITES, 2015, p. 37). “Chamam-na de ‘Nossa Mãe’”, garante Ruiz de Montoya (1997) sobre a nomeação da entidade no cotidiano missional, “não somente os adultos, mas até mesmo os meninos e meninas” (p. 167).

Uma vez que os povoados missionais contavam com diversas etnias, a Maria ocidental recebe nomes não apenas Tupi-Guaranis, mas também de outros povos Jê e Pampeano. No povoado de Concepción, composto por diversas etnias indígenas, ela é chamada de “Mi Madre, Santíssima, Mi Señora, Mi Reyna etc.” (BAPTISTA, 2015b, p. 134). Mediante este exemplo breve, nasce a possibilidade de que a Maria ocidental tenha experimentado consideráveis variantes de conteúdo ao ser traduzida para deidades nativas entre os distintos povos que estiveram nas Missões.

Ao realizar traduções de entidades ocidentais para entidades indígenas, os missionários paraguaios recorriam a estratégias de colegas ativos em outros espaços e contextos, manifestando uma característica dos esforços de tradução jesuítica. Criava-se, assim, “uma terceira esfera simbólica”, nem cristã, nem indígena (Ronaldo VAINFAS, 1999, p. 209). Para Serge Gruzinski (2001), objetos, divindades, práticas e crenças sofrem com uma descontextualização: no México, também a Virgem foi um problema de tradução e denominada como uma deusa asteca (p. 89, 291-292).

Se na análise linguística os dados apontam para o fato que a Maria ocidental encontrou outras nomeações quando entre os indígenas missionais, a análise estética indica alterações de forma significativas. Uma escultura sobrevivente do processo após longos “percursos museais” (Zita Rosane POSSAMAI, 2010), atualmente integrante do acervo do Museu das Missões, em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, é um bom exemplo dessa manifestação recorrente (Figura 1).

Figura 1:
Nossa Senhora da Conceição.

Nomeada pelo Museu como Nossa Senhora da Conceição, a escultura em madeira policromada nasceu provavelmente no século XVII. Embora a história da arte a trate como uma representação mariana, aspecto que levou o Museu das Missões a assim apresentá-la ao público, a escultura expressa um tanto mais em seus traços. De olhos amendoados e longos cabelos enegrecidos, a imagem assemelha-se muito mais a uma mulher indígena do que a Maria alva comumente representada na arte ocidental. Ao que parece, se trata de um fenômeno recorrente na história da Igreja, quando a versatilidade de Maria adéqua-se formalmente às culturas onde se relaciona, propondo novas estéticas para a entidade ocidental. Mas também indica a potência da feminilidade indígena injetada pelo artista, onde a intenção objetiva de ter um rosto feminino indígena representando uma entidade atravessou os séculos em busca de um protagonismo intencional de gênero e etnia.

Já no Museu de Santiago, Paraguai, escondem-se os restos do último altar dos povoados missionais. Nele se encontra um conjunto de pinturas que revela uma concepção artística sobre as entidades maiores divinizadas nos povoados. Para fins deste estudo, a análise se concentra na representação mariana ali existente (Figura 2), ainda que muitos outros elementos essas pinturas estão a guardar.

Figura 2:
Virgem e o Menino

O primeiro aspecto que chama atenção nessa representação é a plumaria dos anjos e querubins. Ao contrário da tradição alva do Ocidente, as plumas enchem-se de um vermelho encarnado, bastante próximo daquele utilizado pelas lideranças espirituais indígenas em seus mantos xamânicos, confeccionados com plumas da ave guará - estes mantos desfrutavam de tamanho prestígio entre os indígenas que a Igreja procurou eliminar todos que encontrava, sobrevivendo apenas um exemplar em perfeito estado aos dias atuais, hoje parte do acervo do Museu Etnográfico de Viena. Do ponto de vista linguístico, a ave guará, as lideranças espirituais Guarani e até mesmo anjos e santos, são nominados no mundo missional como marangatu, palavra traduzida pelos padres por “os bem-aventurados”. A Glória ocidental, com isto, passa a ser afetada, ao menos nesta pintura, pelo vermelho xamânico dos marangatu missionais.

Os motivos florais da pintura também chamam atenção. Rodeada de lírios do campo, a pintura parece propor um cruzamento com narrativas indígenas que no século XX as etnografias relacionaram com Ñande Sy: em determinado momento de sua trajetória, a deidade conversa com seu filho, Kuaray, o Sol, ainda no ventre, tendo os lírios como testemunha. Não há como se saber se as narrativas coletadas no século XX relacionam-se com aquelas do século XVII, mas a inserção do lírio na imagem deixa margens para se entender que temos ali crenças indígenas que remetem a Ñande Sy.

Há nesta pintura uma representação do Jesus Menino, tomado por uma auréola solar, também passível de fluxos antropofágicos que remetem à Kuaray, o Sol, filho de Ñande Sy e Ñande Ru, entre os Guarani. Assim, ao menos um grupo de mulheres indígenas parece indicar quando explica o motivo das oferendas postas aos pés da imagem da santa ao tempo das missões: “Agradecidas, padre, a Nossa Mãe, trazemos as primícias de nossas chácaras”. O padre, intrigado com tamanho ardor, pede maiores explicações: “Como não servir a uma Senhora que com tanta liberalidade se deu e rogou seu filho Santíssimo?”, teriam explicado as mulheres sobre as dádivas da entidade (Pedro ROMERO, 1969, p. 73).

Por fim, aos pés da mãe e do filho, está nesta pintura uma serpente, gigantesca, malévola, reportando ao conjunto de animais mitológicos recorrentes nas esculturas e pinturas missionais e absolutamente distantes dos cânones ocidentais, parecendo indicar, com isso, a possibilidade dos corpos femininos e suas dimensões mitológicas (SOUZA, 2013) estarem manifestas nessas esculturas enquanto forças com as quais podiam se contar.

Na relação estabelecida entre os dados linguísticos e estéticos pode-se, portanto, inferir que as representações marianas produzidas nas Missões da América Meridional referiam-se a entidades resultantes do processo colonial. Nessas Marias, não se vê entidades indígenas anteriores ao contato, nem mesmo aquelas trazidas pelos inacianos. O que se vê são entidades geradas no processo missional, representantes de uma moralidade e espiritualidade ali surgidas vinculadas aos corpos femininos e suas dimensões mitológicas, hoje possível integrante de um patrimônio ainda a ser considerado.

Ironicamente, o acervo indígena hoje existente nos museus dedicados à história das Missões é classificado como “acervo jesuítico”, “barroco jesuítico”, “arte sacra jesuítica”, “imaginária jesuítica”, “santos jesuítas”, entre outras possibilidades excludentes. O reconhecimento deste acervo como indígena pode gerar uma importante contribuição “para o aperfeiçoamento de formas de convivência que, transcendendo noção moderna de tolerância, propiciem respeito ao diferente” (Claudia Maria Pinheiro STORINO; Mario de Souza CHAGAS, 2012, p. 44). Mais do que nunca, está na hora de os museus, sobretudo os federalizados como o Museu das Missões, superarem a reprodução da lógica da colonização, hierárquica e autoritária (Mário CHAGAS, 2017, p. 131). Dito de outro modo, classificar as esculturas como imagens marianas ou vinculadas à hagiografia cristã, conforme as legendas dos museus costumam fazer, é um ato reducionista, capaz de sobrepujar histórias, autorias indígenas e representatividades no campo do patrimônio.

Considerações finais

Ao associar a documentação histórica base da historiografia, os espaços construídos no âmbito das Missões e as representações femininas nos museus, buscou-se traçar algumas abordagens possíveis dos processos de silenciamento a que estiveram submetidas mulheres indígenas nas Missões. Ampliando o campo de visão, constata-se que estudos históricos, arqueológicos e museológicos voltados à questão da mulher Guarani precisam avançar.

Como apontam os estudos decoloniais, a invenção do conceito de raça, como instrumento de dominação, insere uma diferença radical entre os povos, afetando também as relações sexuais (SEGATO, 2012), onde as mulheres, sobretudo as não brancas (indígenas e negras), são inseridas em espaços marcados por uma violência física, simbólica e epistêmica, potencializada por suas intersecções (Alejandra AGUILAR PINTO, 2010). Dimensões dessa violência podem ser encontradas no escamoteamento de informações históricas documentais, na leitura misógina de espaços arqueológicos e na apresentação de acervos ao público geral em museus, conforme demonstrado. Essa violência epistêmica é uma forma de invisibilizar o outro, expropriando-o de uma forma de representação: “La violencia se relaciona con la enmienda”, explica Marisa BELAUSTEGUIGOITIA (2001), “la edición, el borrón y hasta el anulamiento tanto de los sistemas de simbolización, subjetivación y representación que el otro tiene de sí mismo, como de las formas concretas de representación y registro, memoria de su experiencia” (p. 237-238).

Para muitas autoras feministas, como a historiadora Joan Wallach SCOTT (1995), mais que a inclusão das mulheres e da categoria gênero na análise histórica, as abordagens feministas impõem um reexame crítico das premissas e dos critérios de trabalho existentes. Esses estudos podem desvelar múltiplas construções daquilo que é denominado como sexo, gênero e sexualidade, no tempo e no espaço, evidenciando o quanto a nossa categorização de gênero é moldada por um olhar moderno e europeu, possibilitando “revisiter le mythe de la condition universelle des femmes”, como nos aponta Azadeh KIAN (2010, p. 1).

O debate sobre o patrimônio não pode estar indiferente a este aspecto: é inegável que a invisibilidade de mulheres em processos patrimoniais pode ocasionar não apenas um silenciamento desta camada, mas também fortalecer as violências sociais a que estão historicamente submetidas.

Embora ausente das narrativas historiográficas, arqueológicas e museológicas dos estudos e instituições que se dedicam à memória e história das Missões Indígenas-Jesuíticas da América Meridional, as mulheres indígenas envolvidas no processo missional constam em distintos documentos históricos, indicando-se, com isto, que sua presença longe esteve de ser insignificante naquele processo.

No mesmo sentido, a presença feminina no processo das Missões indicando-se, portanto, que sua presença não foi insignificante naquele processo de não deixar vestígios materiais e arqueológicos: o Cotiguaçu não é uma prisão, como alguns jesuítas bem parecem ter tentado concretizar e como comumente a historiografia pretende representar; mais parece ser um espaço construído também a partir de interesses femininos, sobretudo daquelas empenhadas em elaborar um espaço onde sua existência passasse a ser possível no violento mundo colonial, inserindo-se no campo de poder, controle e manutenção dos povoados.

O mesmo se dá com as divindades indígenas femininas, comumente reduzidas à hagiografia ocidental quando materializadas em esculturas hoje musealizadas. Mulheres e deusas, de fato, reconstruíram-se mediante o contexto se apresentava, cruzando tradições e se recriando no mundo colonial. Dito de outro modo, tratar determinadas esculturas sobreviventes do processo missional como meras reproduções de entidades ocidentais é uma redução daquele universo, uma violência epistêmica que silencia manifestações evidentes da cosmovisão indígena.

Como se percebe, o debate de patrimônio, quando associado ao de gênero/etnia, pode levar à compreensão de que estas categorias são produtivas quanto à ampliação de um determinado patrimônio. Fortalece-se, assim, a própria potência e vínculo que o debate patrimonial pode ter com o passado e o presente, redimensionando a figura da mulher indígena de criatura submissa ao domínio do Ocidente à categoria de agente construtora daquele patrimônio.

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    BAPTISTA, Jean Tiago; WICHERS, Camila Azevedo de Moraes; BOITA, Tony Willian. “Mulheres Indígenas nas Missões: patrimônio silenciado”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 3, e56150, 2019.
  • Financiamento:
    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:
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  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2018
  • Revisado
    09 Mar 2019
  • Aceito
    15 Abr 2019
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